ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

19 de novembro de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Livre circulação de mercadorias — Organização comum dos mercados no setor do linho e do cânhamo — Derrogações — Proteção da saúde pública — Legislação nacional que limita a industrialização e a comercialização do cânhamo apenas às fibras e sementes — Canabidiol (CBD)»

No processo C‑663/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela cour d’appel d’Aix‑en‑Provence (Tribunal de Recurso de Aix‑en‑Provence, França), por Decisão de 23 de outubro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 23 de outubro de 2018, no processo penal contra

B S,

C A,

sendo intervenientes:

Ministère public,

Conseil national de l’ordre des pharmaciens,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: M. Vilaras, presidente de secção, N. Piçarra, D. Šváby, S. Rodin (relator) e K. Jürimäe, juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: V. Giacobbo, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 23 de outubro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

em representação de B S, por X. Pizarro e I. Metton, avocats,

em representação de C A, por E. van Keymeulen, M. De Vallois, A. Vey e L.‑M. De Roux, avocats,

em representação do Governo francês, por A.‑L. Desjonquères, C. Mosser e R. Coesme, na qualidade de agentes,

em representação do Governo helénico, por G. Kanellopoulos e A. Vasilopoulou, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por A. Lewis, M. Huttunen e M. Kaduczak, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de maio de 2020,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 34.o e 36.o TFUE, do Regulamento (UE) n.o 1307/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, que estabelece regras para os pagamentos diretos aos agricultores ao abrigo de regimes de apoio no âmbito da política agrícola comum e que revoga o Regulamento (CE) n.o 637/2008 do Conselho e o Regulamento (CE) n.o 73/2009 do Conselho (JO 2013, L 347, p. 608), e do Regulamento (UE) n.o 1308/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, que estabelece uma organização comum dos mercados dos produtos agrícolas e que revoga os Regulamentos (CEE) n.o 922/72, (CEE) n.o 234/79, (CE) n.o 1037/2001 e (CE) n.o 1234/2007 do Conselho (JO 2013, L 347, p. 671).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado em França contra B S e C A, a respeito da comercialização e da distribuição de um cigarro eletrónico de óleo de cânhamo.

Quadro jurídico

Direito internacional

SH e notas explicativas do SH

– SH

3

O Conselho de Cooperação Aduaneira, atual Organização Mundial das Alfândegas (OMA), foi instituído pela Convenção para a Criação de um Conselho de Cooperação Aduaneira, concluída em Bruxelas, em 15 de dezembro de 1950. O Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias (a seguir «SH») foi elaborado pela OMA e instituído pela Convenção Internacional sobre o Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de Mercadorias, celebrada em Bruxelas, em 14 de junho de 1983, e aprovada, com o seu Protocolo de alteração de 24 de junho de 1986, em nome da Comunidade Económica Europeia, pela Decisão 87/369/CEE do Conselho, de 7 de abril de 1987 (JO 1987, L 198, p. 1) (a seguir «Convenção sobre o SH»).

4

A posição 2932 da nomenclatura do SH que figura no seu capítulo 29, intitulado «Produtos químicos orgânicos», apresenta‑se da seguinte forma:

N.o de posição

Código NC

SH

Designação das mercadorias

[…]

 

[…]

29.32

 

Compostos heterocíclicos exclusivamente de heteroátomo(s) de oxigénio:

[…]

 

[…]

 

 

— Outros

 

2932.95

— — Tetraidrocanabinóis (todos os isómeros)

 

 

— — Outros

5

É abrangido pela posição 5701 da nomenclatura do SH, atual posição 5302, o «Cânhamo (Cannabis sativa L.), em bruto ou trabalhado, mas não fiado; estopas e desperdícios de cânhamo (incluindo os desperdícios de fios e os fiapos)».

– Notas explicativas do SH

6

As notas explicativas do SH são elaboradas na OMA em conformidade com as disposições da Convenção sobre o SH.

7

A nota relativa ao capítulo 29 da nomenclatura do SH indica:

«O capítulo 29, em princípio, inclui apenas os compostos de constituição química definida apresentados isoladamente […] Um composto de constituição química definida apresentado isoladamente é uma substância constituída por uma espécie molecular (por exemplo, covalente ou iónica) cuja composição é definida por uma relação constante entre os seus elementos e que pode ser representada por um diagrama estrutural único. […] Estes compostos podem conter impurezas.»

8

Segundo a nota relativa à posição 5302 da nomenclatura do SH, esta posição compreende:

«1)

O cânhamo em bruto, tal como se apresenta depois de colhido, debulhado ou não.

2)

O cânhamo macerado, cujas fibras, descoladas parcialmente da cana, ainda lhe estão aderentes.

3)

O cânhamo espadelado, ou seja unicamente a filaça, constituída por feixes de fibras (filamentos têxteis) que ultrapassam, por vezes, 2 m de comprimento.

4)

A filaça de cânhamo penteada ou tratada por qualquer outro processo para fiação (mas não fiada), apresentada, geralmente, em fitas ou mechas.

5)

As estopas e desperdícios filamentosos de cânhamo, que provêm, em geral, da espadelagem e sobretudo da penteação, bem como os desperdícios dos fios de cânhamo, recolhidos nomeadamente no decorrer da fiação ou da tecelagem, e os fiapos de cânhamo provenientes do desfiamento de cordas usadas, trapos, etc. Estes desperdícios incluem‑se na presente posição, quer se utilizem em fiação (podendo então apresentar‑se em fitas ou mechas), quer não. Neste último caso, empregam‑se, por exemplo, como material de enchimento (estofamento) ou de calafetagem ou para a fabricação de papel.»

Convenção Única

9

A Convenção Única de 1961 sobre os Estupefacientes, conforme alterada pelo Protocolo de 1972 de Modificação da Convenção Única sobre os Estupefacientes de 1961, concluída em Nova Iorque, em 30 de março de 1961 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 520, n.o 7515, a seguir «Convenção Única»), prevê, no seu artigo 1.o:

«1.   Salvo indicação expressa em contrário ou salvo se o contexto exigir outra interpretação, as definições seguintes aplicam‑se a todas as disposições da presente Convenção:

[…]

b)

O termo “cannabis” designa a extremidade dos ramos floridos ou frutificados da planta de cânhamo (com a exclusão das sementes e das folhas que não sejam acompanhadas de sumidades), cuja seiva não tenha sido extraída, qualquer que seja a sua aplicação;

c)

expressão “planta de cannabis” designa toda a planta do género cannabis;

[…]

j)

O termo “estupefacientes” designa toda a substância do quadro II, quer seja natural, quer seja sintética.

[…]»

10

A lista dos estupefacientes do quadro I da mesma convenção inclui a canábis, a resina de canábis, os extratos e as tintas de canábis.

Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas

11

A Convenção de 1971 sobre as Substâncias Psicotrópicas, celebrada em Viena, em 21 de fevereiro de 1971 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1019, n.o 14956, a seguir «Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas»), prevê, no seu artigo 1.o, alínea e):

«Salvo indicação em contrário, e ressalvando a possibilidade de o contexto exigir uma interpretação diferente, as expressões seguintes têm na presente Convenção o significado indicado:

[…]

e)

A expressão “substância psicotrópica” designa qualquer substância, de origem natural ou sintética, ou qualquer produto natural das listas I, II, III ou IV [da presente convenção]».

Direito da União

Decisão‑Quadro 2004/757/JAI

12

A Decisão‑Quadro 2004/757/JAI do Conselho, de 25 de outubro de 2004, que adota regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infrações penais e às sanções aplicáveis no domínio do tráfico ilícito de droga (JO 2004, L 335, p. 8), prevê, no seu artigo 1.o:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por:

1)

“Droga”: qualquer das substâncias abrangidas pelas seguintes Convenções das Nações Unidas:

a)

[Convenção Única];

b)

[Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas]. Incluem‑se igualmente as substâncias sujeitas a controlo nos termos da Ação Comum 97/396/JAI[,] de 16 junho de 1997, [com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia,] relativa ao intercâmbio de informações, avaliação de risco e controlo das novas drogas sintéticas [(JO 1997, L 167, p. 1)].»

13

Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, alínea a), da Decisão‑Quadro 2004/757, cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias para que sejam punidos, quando ilegítimos, os seguintes atos intencionais: produção, fabrico, extração, preparação, oferta, comercialização, distribuição, venda ou fornecimento em quaisquer condições, intermediação, expedição, expedição em trânsito, transporte, importação ou exportação de drogas. O artigo 2.o, n.o 2, desta decisão‑quadro precisa que os atos descritos no seu artigo 2.o, n.o 1, não são abrangidos pelo âmbito de aplicação da referida decisão‑quadro quando praticados exclusivamente para consumo dos seus autores, tal como definido na legislação nacional.

Convenção de aplicação do Acordo de Schengen

14

A Convenção de aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns (JO 2000, L 239, p. 19), assinada em Schengen, em 19 de junho de 1990, e entrada em vigor em 26 de março de 1995, a seguir «Convenção de aplicação do Acordo de Schengen», é parte do acervo de Schengen, tal como previsto no artigo 1.o, n.o 2, da Decisão 1999/435/CE do Conselho, de 20 de maio de 1999, relativa à definição do acervo de Schengen com vista a determinar, nos termos das disposições pertinentes do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Tratado da União Europeia, o fundamento jurídico de cada uma das disposições ou decisões que o constituem (JO 1999, L 176, p. 1).

15

O artigo 71.o, n.o 1, desta convenção dispõe que as partes contratantes se comprometem, no que diz respeito à cessão direta ou indireta de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas de qualquer natureza, incluindo a canábis, bem como à detenção destes produtos e substâncias para efeitos de cessão ou exportação, a adotar, em conformidade com as convenções das Nações Unidas existentes, todas as medidas necessárias à prevenção e à repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.

Regulamento n.o 1307/2013

16

O artigo 1.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1307/2013 prevê:

«O presente regulamento estabelece:

a)

Regras comuns relativas aos pagamentos concedidos diretamente aos agricultores ao abrigo dos regimes de apoio enumerados no anexo I (“pagamentos diretos”)».

17

Nos termos do artigo 4.o, n.o 1, alínea d), deste regulamento:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

d)

“Produtos agrícolas”: os produtos, com exclusão dos produtos da pesca, enumerados no anexo I dos Tratados, bem como o algodão».

18

O artigo 32.o, n.o 6, do referido regulamento dispõe:

«As superfícies utilizadas para a produção de cânhamo só são elegíveis se o teor de tetra‑hidrocanabinol das variedades utilizadas não for superior a 0,2 %.»

19

O artigo 35.o, n.o 3, do mesmo regulamento prevê:

«A fim de preservar a saúde pública, a Comissão [Europeia] está habilitada a adotar atos delegados, nos termos do artigo 70.o, que estabelecem regras que sujeitam a concessão de pagamentos à utilização de sementes certificadas de determinadas variedades de cânhamo e o procedimento de determinação das variedades de cânhamo e de verificação do seu teor de tetra‑hidrocanabinol, a que se refere o artigo 32.o, n.o 6.»

Regulamento n.o 1308/2013

20

O artigo 1.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 1308/2013 dispõe:

«1.   O presente regulamento estabelece uma organização comum dos mercados dos produtos agrícolas, isto é, todos os produtos enumerados no anexo I dos Tratados, com exceção dos produtos da pesca e da aquicultura tal como definidos nos atos legislativos da União relativos à organização comum dos mercados dos produtos da pesca e da aquicultura.

2.   Os produtos agrícolas definidos no n.o 1 são divididos nos seguintes setores, enumerados nas partes respetivas do anexo I:

[…]

h)

Linho e cânhamo, parte VIII;

[…]»

21

O anexo I, parte VIII, deste regulamento menciona na lista dos produtos referidos no seu artigo 1.o, n.o 2, nomeadamente, o «Cânhamo (Cannabis sativa L.), em bruto ou trabalhado, mas não fiado; estopas e desperdícios de cânhamo (incluídos os desperdícios de fios e fiapos)».

22

O artigo 189.o do referido regulamento, que contém disposições especiais de importação de cânhamo, dispõe:

«1.   Os produtos a seguir indicados só podem ser importados para a União [Europeia] se forem satisfeitas as seguintes condições:

a)

O cânhamo em bruto do código NC 53021000 preenche as condições estabelecidas no artigo 32.o, n.o 6, e no artigo 35.o, n.o 3, do Regulamento [n.o 1307/2013];

b)

As sementes de variedades de cânhamo do código NC ex12079920, destinadas a sementeira, são acompanhadas da prova de que o teor de tetra‑hidrocanabinol da variedade em causa não é superior ao fixado nos termos do artigo 32.o, n.o 6, e do artigo 35.o, n.o 3, do Regulamento [n.o 1307/2013];

c)

As sementes de cânhamo não destinadas a sementeira, do código NC 12079991, só são importadas por importadores aprovados pelo Estado‑Membro, por forma a assegurar que o seu destino não é a sementeira.

2.   O presente artigo aplica‑se sem prejuízo de regras mais restritivas adotadas pelos Estados‑Membros no respeito do [Tratado FUE] e das obrigações decorrentes do [Acordo sobre a Agricultura (JO 1994, L 336, p. 22), que figura no anexo 1 A do Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (JO 1994, L 336, p. 3), aprovado em nome da Comunidade Europeia pelo artigo 1.o, n.o 1, primeiro travessão, da Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986/1994) (JO 1994, L 336, p. 1)].»

Direito francês

Código da Saúde Pública

23

O artigo L. 5132‑1 do code de la santé publique (Código da Saúde Pública), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Código da Saúde Pública»), dispõe:

«São consideradas substâncias venenosas:

[…]

2° As substâncias estupefacientes;

3° As substâncias psicotrópicas;

[…]

Entende‑se por “substâncias” os elementos químicos e os seus compostos tal como se apresentam no estado natural ou tal como são produzidos pela indústria, que contenham, eventualmente, qualquer aditivo necessário à sua introdução no mercado.

[…]»

24

O artigo L. 5132‑8, primeiro parágrafo, do Código da Saúde Pública dispõe:

«A produção, o fabrico, o transporte, a importação, a exportação, a posse, a oferta, a cessão, a aquisição e a utilização de plantas, de substâncias ou de preparações classificadas como venenosas estão sujeitos às condições definidas por decretos do Conseil d’État [(Conselho de Estado, em funções consultivas, França)].»

25

O artigo R. 5132‑86, n.os 1 e 2, do Código da Saúde Pública dispõe:

«I. — São proibidos a produção, o fabrico, o transporte, a importação, a exportação, a posse, a oferta, a cessão, a aquisição ou a utilização:

1° Da canábis, da sua planta e da sua resina, dos produtos que as contenham ou que sejam obtidos a partir da canábis, da sua planta ou da sua resina;

2° De tetra‑hidrocanabinóides, com exceção do delta9‑tetrahidrocanabinol, dos seus ésteres, éteres, sais, bem como dos sais derivados acima referidos e dos produtos que os contenham.

II. — Podem ser concedidas derrogações às disposições acima referidas para efeitos de pesquisa e controlo bem como de fabrico de derivados autorizados pelo diretor‑geral da Agence nationale de sécurité du médicament et des produits de santé [Agência Nacional para a Segurança dos Medicamentos e dos Produtos de Saúde].

A cultura, a importação, a exportação e a utilização industrial e comercial de variedades de canábis desprovidas de propriedades estupefacientes ou de produtos que contenham essas variedades podem ser autorizadas mediante proposta do diretor‑geral da Agência, por decreto dos ministros responsáveis pela agricultura, alfândegas, indústria e saúde.»

Decreto de 22 de agosto de 1990

26

O artigo 1.o do arrêté du 22 août 1990, portant application de l’article R. 5132‑86 du code de la santé publique pour le cannabis (Decreto de 22 de agosto de 1990, relativo à Aplicação do Artigo R. 5132‑86 do Código da Saúde Pública à Canábis) (JORF de 4 de outubro de 1990, p. 12041), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Decreto de 22 de agosto de 1990»), dispõe:

«Na aceção do artigo R. 5181 do código acima referido, são autorizados o cultivo, a importação, a exportação e a utilização industrial e comercial (fibras e sementes) das variedades de Cannabis sativa L. que correspondam aos seguintes critérios:

o teor de delta‑9‑tetrahidrocanabinol dessas variedades não seja superior a 0,20 %;

a determinação do teor de delta‑9‑tetra‑hidrocanabinol e a colheita de amostras com vista a essa determinação sejam efetuadas segundo o método [da União] previsto em anexo.

[…]»

Circular de 23 de julho de 2018

27

Na circulaire du ministère de la Justice, du 23 juillet 2018, ayant pour objet le régime juridique applicable aux établissements proposant à la vente au public des produits issus du cannabis (coffee shops) [Circular do Ministério da Justiça, de 23 de julho de 2018, que Tem por Objeto o Regime Jurídico Aplicável aos Estabelecimentos que Propõem Venda ao Público de Produtos Provenientes da Canábis (coffeeshops)] (2018/F/0069/FD2) (a seguir «Circular de 23 de julho de 2018»), o Decreto de 22 de agosto de 1990 é interpretado da seguinte forma:

«A cultura do cânhamo, a sua importação, exportação e utilização só são autorizadas se:

a planta for proveniente de uma das variedades de Cannabis sativa L. previstas no Decreto [de 22 de agosto de 1990],

apenas forem utilizadas as fibras e as sementes da planta,

a própria planta contiver menos de 0,20% de delta9‑tetra‑hidrocanabinol.

Contrariamente ao argumento por vezes formulado pelos estabelecimentos que oferecem para venda produtos à base de canabidiol, o teor autorizado de 0,20 % de delta9‑tetra‑hidrocanabinol aplica‑se à planta de canábis e não ao produto acabado daí resultante.

[…]

Importa precisar que o canabidiol se encontra principalmente nas folhas e nas flores da planta, e não nas fibras e sementes. Por conseguinte, no estado atual da legislação aplicável, não se afigura possível a extração do canabidiol em condições conformes com o Código da Saúde Pública.

[…]»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

28

B S e C A são os antigos dirigentes da Catlab SAS, uma sociedade criada em 2014 para a comercialização do Kanavape, de kits alpha‑cat para analisar a qualidade do canabidiol («CBD») e de óleo de cânhamo. O Kanavape é um cigarro eletrónico cujo líquido contém CBD, e cuja distribuição devia ser efetuada através da Internet e de uma rede de vendedores de cigarros eletrónicos. O CBD é geralmente extraído da Cannabis sativa ou «cânhamo», na medida em que esta variedade contém naturalmente uma taxa elevada de CBD e contém uma taxa reduzida de tetra‑hidrocanabinol (a seguir «THC»).

29

O CBD utilizado no Kanavape foi produzido na República Checa utilizando a planta de Cannabis sativa no seu todo, a qual tinha igualmente sido cultivada no local. Foi importado para França pela Catlab, que o acondicionou em cartuchos de cigarros eletrónicos.

30

Na sequência de uma campanha de comunicação para promover o lançamento do Kanavape levada a cabo pela Catlab em 2014, foi instaurado um inquérito e o processo foi submetido à Agence nationale de sécurité du médicament et des produits de santé [Agência Nacional para a Segurança dos Medicamentos e dos Produtos de Saúde (ANSM)].

31

O laboratório da ANSM analisou os cartuchos de Kanavape que se encontravam no mercado e, embora se pudessem verificar diferenças consideráveis no teor de CBD desses cartuchos, a taxa de THC presente nos produtos examinados era sempre inferior ao limite legalmente autorizado. Em julho de 2016, na sequência da reunião da sua comissão de estupefacientes e psicotrópicos, a ANSM comunicou que não considerava o Kanavape um «medicamento».

32

Por Sentença de 8 de janeiro de 2018, o tribunal correctionnel de Marseille (Tribunal Correcional de Marselha, França) declarou, nomeadamente, B S e C A culpados de várias infrações, entre as quais infrações à legislação relativa às substâncias venenosas. Os recorrentes no processo principal foram condenados, respetivamente, a 18 e a 15 meses de prisão com pena suspensa, bem como em 10000 euros de multa cada um. No plano civil, foram condenados solidariamente no pagamento de 5000 euros a título de reparação do prejuízo sofrido pelo Conseil national de l’ordre des pharmaciens [Conselho Nacional da Ordem dos Farmacêuticos (CNOP)] e de 600 euros em aplicação do Código de Processo Penal.

33

Os recorrentes no processo principal interpuseram recurso desta sentença na cour d’appel d’Aix‑en‑Provence (Tribunal de Recurso de Aix‑en‑Provence, França), respetivamente, em 11 e 12 de janeiro de 2018. No órgão jurisdicional de reenvio, sustentam, em particular, que a proibição da comercialização do CBD proveniente da planta de Cannabis sativa no seu todo é contrária ao direito da União.

34

O órgão jurisdicional de reenvio explica que o CBD não parece ter «efeitos psicoativos reconhecidos». Com efeito, observa que a Organização Mundial da Saúde (OMS), num relatório de 2017, recomendou que aquele fosse retirado da lista dos produtos dopantes, que o CBD não consta como tal da Convenção Única, que a ANSM concluiu, em 25 de junho de 2015, pela inexistência de dados suficientes para o classificar como «nocivo» e, por último, que o perito designado no âmbito do inquérito penal que deu origem aos processos penais instaurados contra os recorrentes no processo principal concluiu que o CBD tinha um «efeito fraco ou nulo no sistema nervoso central». Além disso, o CBD não é expressamente referido nos textos que se destinam a ser aplicados ao cânhamo industrial nem nos relativos à canábis estupefaciente.

35

No entanto, uma vez que o CBD presente no Kanavape é proveniente da planta de Cannabis sativa no seu todo, deve ser considerado um produto proveniente de partes dessa planta que não as sementes e as fibras, cuja comercialização, segundo o artigo 1.o do Decreto de 22 de agosto de 1990, conforme interpretado pela Circular de 23 de julho de 2018, não é autorizada.

36

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se sobre a conformidade desta disposição com o direito da União, considerando que o «[c]ânhamo (Cannabis sativa) em bruto, macerado, espadelado ou assedado, penteado ou tratado por qualquer outra forma, mas não fiado; estopa e desperdícios, de cânhamo (incluindo o cânhamo de trapo)» figura no capítulo 57 da nomenclatura do SH, à qual é feita referência no anexo I dos Tratados, e que, por conseguinte, deve ser considerado um produto agrícola, na aceção do artigo 38.o TFUE, que estabelece um mercado interno baseado na livre circulação de mercadorias.

37

Considera que, na medida em que a taxa de THC no cânhamo comercializado legalmente nos outros Estados‑Membros é inferior a 0,2 %, como sucede no processo principal, o CBD não pode ser qualificado de «estupefaciente». Com efeito, segundo os Acórdãos de 26 de outubro de 1982, Wolf (221/81, EU:C:1982:363), e de 28 de março de 1995, Evans Medical e Macfarlan Smith (C‑324/93, EU:C:1995:84), só pode ter essa qualificação o produto cuja nocividade está demonstrada ou é geralmente reconhecida e cuja importação e comercialização é proibida em todos os Estados‑Membros.

38

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio considera que os Regulamentos n.os 1307/2013 e 1308/2013 são aplicáveis ao cânhamo.

39

Por outro lado, embora o artigo 189.o do Regulamento n.o 1308/2013 autorize a importação de cânhamo em bruto sob certas condições e fixe limitações relativas a determinadas sementes, este artigo 189.o«aplica‑se sem prejuízo de regras mais restritivas adotadas pelos Estados‑Membros no respeito do [Tratado FUE] e das obrigações decorrentes do [Acordo sobre a Agricultura, que figura no anexo 1 A do Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio]».

40

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio considera que não estão preenchidos os requisitos cumulativos impostos pelo Tribunal de Justiça para considerar que uma medida nacional «mais restritiva», na aceção do referido artigo 189.o, é conforme com o Tratado FUE.

41

Com efeito, parece‑lhe que o objetivo de saúde pública já foi tomado em consideração no Regulamento n.o 1308/2013, na medida em que este regulamento limita o seu âmbito de aplicação apenas às variedades que oferecem garantias no que respeita ao teor em substâncias inebriantes e fixa, por um lado, uma limitação relativa às sementes e, por outro, uma taxa de 0,2 % para o teor de THC do cânhamo.

42

Além disso, não lhe parece que se possa invocar o princípio da proporcionalidade na medida em que, na Circular de 23 de julho de 2018, a República Francesa invoca, para justificar a proibição do CBD de origem natural, uma proibição que não se pode estender à comercialização de CBD de síntese com características e efeitos idênticos.

43

Nestas circunstâncias, a cour d’appel d’Aix‑en‑Provence (Tribunal de Recurso de Aix‑en‑Provence) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Devem os Regulamentos […] n.os 1307/2013 e 1308/2013, bem como o princípio da livre circulação de mercadorias, ser interpretados no sentido de que as disposições derrogatórias estabelecidas pelo Decreto de 22 de agosto de 1990 preveem uma restrição contrária ao direito da [União], ao limitar o cultivo de cânhamo, a sua industrialização e a sua comercialização apenas às fibras e [às sementes]?»

Quanto à questão prejudicial

44

Embora o órgão jurisdicional de reenvio refira, na redação da sua questão, a limitação do «cultivo de cânhamo, [d]a sua industrialização e [d]a sua comercialização apenas às fibras e [às sementes]», resulta das suas próprias explicações que a questão submetida só é pertinente para o processo principal na medida em que visa a conformidade com o direito da União de uma regulamentação nacional que proíbe a comercialização do CBD quando este é extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo e não apenas das suas fibras e sementes.

45

Por conseguinte, há que considerar que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os Regulamentos n.os 1307/2013 e 1308/2013, bem como os artigos 34.o e 36.o TFUE, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional na medida em que esta proíbe a comercialização do CBD quando este é extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo e não apenas das suas fibras e sementes.

Quanto à interpretação dos Regulamentos n.os 1307/2013 e 1308/2013

46

O âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1308/2013 é definido no seu artigo 1.o, n.o 1, como estabelecendo uma organização comum dos mercados dos produtos agrícolas, isto é, todos os produtos enumerados no anexo I dos Tratados, com exceção dos produtos da pesca e da aquicultura tal como definidos nos atos legislativos da União relativos à organização comum dos mercados dos produtos da pesca e da aquicultura.

47

Quando as disposições do Regulamento n.o 1307/2013 se referem aos produtos agrícolas, visam, segundo o seu artigo 4.o, n.o 1, alínea d), os produtos, com exclusão dos produtos da pesca, enumerados no anexo I dos Tratados, bem como o algodão.

48

A este respeito, importa precisar que o anexo I dos Tratados, para o qual remetem estas disposições, contém, nomeadamente, uma referência à posição 5701 da nomenclatura do SH, atual posição 5302 desta. Está abrangido por essa posição o «[c]ânhamo (Cannabis sativa) em bruto, macerado, espadelado ou assedado, penteado ou tratado por qualquer outra forma, mas não fiado; estopa e desperdícios, de cânhamo (incluindo o cânhamo de trapo)».

49

Segundo as notas explicativas do SH, que contribuem significativamente para a interpretação do alcance das diferentes posições pautais, sem, contudo, serem juridicamente vinculativas (Acórdão de 13 de setembro de 2018, Vision Research Europe, C‑372/17, EU:C:2018:708, n.o 23), a posição 5302 abrange «[o] cânhamo em bruto, tal como se apresenta depois de colhido, debulhado ou não», «[o] cânhamo macerado, cujas fibras, descoladas parcialmente da cana, ainda lhe estão aderentes», «[o] cânhamo espadelado, ou seja unicamente a filaça, constituída por feixes de fibras (filamentos têxteis) que ultrapassam, por vezes, 2 m de comprimento», «[a] filaça de cânhamo penteada ou tratada por qualquer outro processo para fiação (mas não fiada), apresentada, geralmente, em fitas ou mechas» e «[as] estopas e desperdícios filamentosos de cânhamo».

50

C A sustentou, sem ter sido contestado pelos outros interessados no processo no Tribunal de Justiça, que o CBD em causa no processo principal era extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo pelo processo de extração por dióxido de carbono (CO2).

51

Assim, esse produto não constitui, como salientou o advogado‑geral no n.o 35 das suas conclusões, nem cânhamo em bruto, uma vez que não provém do arranque, nem cânhamo macerado ou espadelado, nem filaça, uma vez que o processo de extração do CBD não implica a separação das fibras do resto da planta.

52

Por conseguinte, contrariamente ao que alegam os recorrentes no processo principal, há que notar que não se pode considerar que o CBD extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo esteja abrangido pela posição 5701 da nomenclatura do SH, atual posição 5302 desta, referida no anexo I dos Tratados.

53

Assim sendo, há que observar que o capítulo 29 da nomenclatura do SH compreende os produtos químicos orgânicos e que a posição 2932 desta engloba os compostos heterocíclicos exclusivamente de heteroátomo(s) de oxigénio, em que se inclui, nomeadamente, o THC, um canabidiol como o CBD.

54

Segundo as notas explicativas do SH, são abrangidos pelo capítulo 29 da nomenclatura do SH os compostos de constituição química definida apresentados isoladamente, sendo estes compostos substâncias constituídas por uma espécie molecular cuja composição é definida por uma relação constante entre os seus elementos e que pode ser representada por um diagrama estrutural único e que pode conter impurezas.

55

Assim, na medida em que o produto em causa no processo principal é apresentado de tal forma que o único componente que abrange é o CBD, fora as impurezas, está abrangido pela posição 2932 da nomenclatura do SH.

56

Decorre do que precede que, uma vez que a lista dos produtos agrícolas referidos no anexo I dos Tratados não menciona a posição 2932 da nomenclatura do SH, o CBD presente na planta de Cannabis sativa no seu todo não pode ser considerado um produto agrícola e, portanto, não pode ser considerado um produto abrangido pelos Regulamentos n.os 1307/2013 e 1308/2013.

57

Com efeito, como salientou o advogado‑geral no n.o 36 das suas conclusões, estes só visam os produtos que figuram no artigo 4.o, n.o 1, alínea d), do Regulamento n.o 1307/2013 e no artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1308/2013.

58

Nestas circunstâncias, há que concluir que os Regulamentos n.os 1307/2013 e 1308/2013 devem ser interpretados no sentido de que não se aplicam ao CBD.

Quanto à interpretação dos artigos 34.o e 36.o TFUE

59

A título preliminar, há que recordar que, dado que a nocividade dos estupefacientes, incluindo os estupefacientes à base de cânhamo, como a canábis, é geralmente reconhecida, a sua comercialização é proibida em todos os Estados‑Membros, com exceção de um comércio estritamente controlado tendo em vista uma utilização para fins médicos e científicos (Acórdão de 16 de dezembro de 2010, Josemans, C‑137/09, EU:C:2010:774, n.o 36).

60

Esta situação jurídica é conforme com diferentes instrumentos internacionais nos quais os Estados‑Membros cooperaram ou aos quais aderiram, como a Convenção Única e a Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas. As medidas previstas por estas convenções foram posteriormente reforçadas e completadas pela Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, celebrada em Viena, em 20 de dezembro de 1988 (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1582, n.o 1‑27627), na qual todos os Estados‑Membros e a União são partes. A referida situação jurídica é igualmente justificada à luz do direito da União, e especificamente da Decisão‑Quadro 2004/757 e do artigo 71.o, n.o 1, da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen (v., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2010, Josemans, C‑137/09, EU:C:2010:774, n.os 37 a 40).

61

Daqui resulta que os estupefacientes que não se encontram num circuito vigiado pelas autoridades competentes tendo em vista a sua utilização para fins médicos e científicos estão abrangidos, pela sua própria natureza, por uma proibição de importação e de comercialização no território de todos os Estados‑Membros (Acórdão de 16 de dezembro de 2010, Josemans, C‑137/09, EU:C:2010:774, n.o 41).

62

Uma vez que a introdução de estupefacientes não abrangidos por esse circuito estritamente vigiado no circuito económico e comercial da União está proibida, as pessoas que comercializam esses produtos não podem invocar a aplicação das liberdades de circulação e o princípio da não discriminação, relativamente à atividade que consiste na comercialização de canábis (Acórdão de 16 de dezembro de 2010, Josemans, C‑137/09, EU:C:2010:774, n.o 42).

63

Por conseguinte, há que determinar se o CBD em causa no processo principal constitui um estupefaciente, na aceção da jurisprudência referida nos n.os 59 a 62 do presente acórdão.

64

A este respeito, importa salientar que esta substância não está prevista na Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas nem na Ação Comum 97/396, às quais é feita referência no artigo 1.o, ponto 1, alínea b), da Decisão‑Quadro 2004/757.

65

Assim, importa determinar se o CBD em causa no processo principal é visado pela Convenção Única à qual se faz referência no artigo 1.o, ponto 1, alínea a), da Decisão‑Quadro 2004/757 e que é igualmente mencionada no artigo 71.o, n.o 1, da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen.

66

No que se refere à interpretação de uma convenção internacional, como a Convenção Única, importa recordar que, em conformidade com jurisprudência constante, um tratado internacional deve ser interpretado em função dos termos em que está redigido e à luz dos seus objetivos. Os artigos 31.o da Convenção de Viena, de 23 de maio de 1969, sobre o Direito dos Tratados (Recueil des traités des Nations unies, vol. 1155, p. 331), e da Convenção de Viena, de 21 de março de 1986, sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais (Documents officiels de la Conférence des Nations unies sur le droit des traités entre États et organisations internationales ou entre organisations internationales, vol. II, p. 91), que exprimem neste sentido o direito internacional geral consuetudinário, precisam, a este respeito, que um tratado deve ser interpretado de boa‑fé, segundo o sentido comum que se deve atribuir aos termos do tratado no seu contexto, e à luz dos respetivos objeto e fim (v., neste sentido, Acórdão de 10 de janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C‑344/04, EU:C:2006:10, n.o 40).

67

Resulta do preâmbulo da Convenção Única que as partes se declaram, nomeadamente, preocupadas com a saúde física e moral da humanidade, bem como conscientes do dever que lhes incumbe de prevenir e combater a toxicomania.

68

Nos termos do artigo 1.o, n.o 1, alínea j), da Convenção Única, o termo «estupefacientes» designa toda a substância dos quadros I e II desta convenção, quer seja natural, quer seja sintética. Figuram no quadro I da referida convenção, nomeadamente, a canábis, a resina de canábis, bem como os extratos e tinturas de canábis.

69

Além disso, os termos «canábis» e «planta de canábis» são definidos no artigo 1.o, n.o 1, alíneas b) e c), da Convenção Única, respetivamente, como «a extremidade dos ramos floridos ou frutificados da planta de cânhamo (com a exclusão das sementes e das folhas que não sejam acompanhadas de sumidades), cuja seiva não tenha sido extraída, qualquer que seja a sua aplicação» e como «toda a planta do género canábis».

70

No caso vertente, resulta dos elementos dos autos ao dispor do Tribunal de Justiça que o CBD em causa no processo principal é extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo e não apenas das sementes e das folhas dessa planta, com exclusão da extremidade dos ramos floridos ou frutificados.

71

Nestas circunstâncias, é verdade que uma interpretação literal das disposições da Convenção Única poderia levar à conclusão de que, na medida em que o CBD é extraído de uma planta do género canábis e que esta planta é utilizada no seu todo, incluindo a extremidade dos ramos floridos ou frutificados, aquele constitui um extrato de canábis, na aceção do quadro I desta convenção e, por conseguinte, um «estupefaciente», na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea j), da referida convenção.

72

Todavia, importa salientar que decorre dos elementos dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe e que estão resumidos no n.o 34 do presente acórdão que, com base nos dados científicos disponíveis, não se afigura que o CBD em causa no processo principal tenha efeitos psicotrópicos e nocivos para a saúde humana. Ademais, segundo esses elementos dos autos, a variedade de canábis de que essa substância foi extraída, que foi legalmente cultivada na República Checa, tem um teor de THC não superior a 0,2 %.

73

Ora, como resulta do n.o 67 do presente acórdão, a Convenção Única baseia‑se, nomeadamente, num objetivo de proteção da saúde física e moral da humanidade. Por conseguinte, há que ter em conta este objetivo na interpretação das disposições desta convenção.

74

Esta abordagem impõe‑se tanto mais quanto uma leitura dos comentários sobre a Convenção Única publicados pela Organização das Nações Unidas relativos à definição de «canábis» para efeitos desta convenção conduz à conclusão de que, atendendo ao objetivo e ao espírito geral da referida convenção, esta definição está intrinsecamente relacionada com o estado do conhecimento científico quanto à nocividade dos produtos derivados da canábis na saúde humana. A título exemplificativo, resulta, assim, em particular, desses comentários que a exclusão da definição de canábis que figura no artigo 1.o, n.o 1, alínea b), da mesma convenção, da extremidade dos ramos floridos ou frutificados cuja resina foi extraída era justificada pela circunstância de essas extremidades só conterem uma quantidade insignificante do princípio psicoativo.

75

Tendo em conta estes elementos, que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, há que considerar que, uma vez que, no estado atual dos conhecimentos científicos recordados no n.o 34 do presente acórdão, o CBD não contém princípio psicoativo, seria contrário ao objetivo e ao espírito geral da Convenção Única incluí‑lo na definição de «estupefacientes», na aceção desta convenção, enquanto extrato de canábis.

76

Daqui resulta que o CBD em causa no processo principal não constitui um estupefaciente, na aceção da Convenção Única.

77

Por outro lado, importa ainda acrescentar que, como a Comissão também salientou, o CBD em causa no processo principal foi legalmente produzido e comercializado na República Checa.

78

À luz do exposto, há que concluir que os artigos 34.o e 36.o TFUE são aplicáveis ao CBD em causa no processo principal.

79

A este respeito, importa recordar que a livre circulação de mercadorias entre Estados‑Membros é um princípio fundamental do Tratado FUE que encontra expressão na proibição, enunciada no artigo 34.o TFUE, das restrições quantitativas à importação entre os Estados‑Membros, bem como de quaisquer medidas de efeito equivalente (Acórdão de 18 de junho de 2019, Áustria/Alemanha, C‑591/17, EU:C:2019:504, n.o 119).

80

Segundo jurisprudência constante, a proibição de medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas, estabelecida no artigo 34.o TFUE, visa qualquer medida dos Estados‑Membros suscetível de entravar, direta ou indiretamente, atual ou potencialmente, o comércio na União (Acórdão de 18 de junho de 2019, Áustria/Alemanha, C‑591/17, EU:C:2019:504, n.o 120).

81

Por outro lado, uma medida, mesmo que não tenha por objeto ou por efeito tratar de forma menos favorável os produtos provenientes de outros Estados‑Membros, está igualmente abrangida pelo conceito de «medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas», na aceção do artigo 34.o TFUE, se entravar o acesso ao mercado de um Estado‑Membro de produtos originários de outros Estados‑Membros (Acórdão de 18 de junho de 2019, Áustria/Alemanha, C‑591/17, EU:C:2019:504, n.o 121).

82

No caso vertente, é pacífico que a proibição de comercializar o CBD legalmente produzido noutro Estado‑Membro, quando é extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo, e não apenas das suas fibras e sementes, constitui uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas, na aceção do artigo 34.o TFUE.

83

Contudo, resulta de jurisprudência constante que tal medida pode ser justificada por uma das razões de interesse geral enumeradas no artigo 36.o TFUE ou por exigências imperativas. Em ambos os casos, a disposição nacional deve ser adequada para garantir a realização do objetivo prosseguido e não ir além do que é necessário para o alcançar (Acórdão de 18 de junho de 2019, Áustria/Alemanha, C‑591/17, EU:C:2019:504, n.o 122).

84

Por outro lado, uma medida restritiva só pode ser considerada adequada para garantir a realização do objetivo pretendido se responder efetivamente à intenção de o alcançar de uma maneira coerente e sistemática (Acórdão de 23 de dezembro de 2015, Scotch Whisky Association e o., C‑333/14, EU:C:2015:845, n.o 37).

85

Na medida em que a República Francesa alega que a sua regulamentação que proíbe a comercialização dos produtos provenientes de partes da planta de canábis que não as suas fibras e sementes visa a proteção da saúde pública que figura no artigo 36.o TFUE, há que recordar que a saúde e a vida das pessoas ocupam o primeiro lugar entre os bens e interesses protegidos pelo Tratado FUE e que cabe aos Estados‑Membros decidir o nível a que pretendem assegurar a proteção da saúde pública e o modo como esse nível deve ser alcançado. Dado que esse nível pode variar de um Estado‑Membro para outro, há que reconhecer aos Estados‑Membros uma margem de apreciação (Acórdão de 19 de outubro de 2016, Deutsche Parkinson Vereinigung, C‑148/15, EU:C:2016:776, n.o 30).

86

Este poder de apreciação relativo à proteção da saúde pública é particularmente importante quando estiver demonstrado que, no estado atual da investigação científica, subsistem incertezas quanto a certas substâncias utilizadas pelos consumidores (v., neste sentido, Acórdão de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França, C‑333/08, EU:C:2010:44, n.o 86).

87

Uma vez que o artigo 36.o TFUE prevê uma exceção, de interpretação estrita, à livre circulação de mercadorias no interior da União, compete às autoridades nacionais que a invocam demonstrar, em cada caso concreto, tendo em conta os resultados da investigação científica internacional, que a sua regulamentação é necessária para proteger de forma efetiva os interesses visados pela referida disposição e, nomeadamente, que a comercialização do produto em questão representa um risco real para a saúde pública que deve ser avaliado de forma aprofundada (Acórdão de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França, C‑333/08, EU:C:2010:44, n.os 87 e 88).

88

Uma decisão de proibição da comercialização, que constitui, aliás, o entrave mais restritivo às trocas relativamente aos produtos legalmente fabricados e comercializados noutros Estados‑Membros, apenas pode ser adotada quando o alegado risco real para a saúde pública estiver suficientemente demonstrado com base nos dados científicos mais recentes que estejam disponíveis na data da adoção dessa decisão. Em tal contexto, a avaliação do risco que o Estado‑Membro é obrigado a efetuar tem por objeto a apreciação do grau de probabilidade dos efeitos nefastos para a saúde humana da utilização dos produtos proibidos e a gravidade desses potenciais efeitos (Acórdão de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França, C‑333/08, EU:C:2010:44, n.o 89).

89

Ao exercerem o seu poder de apreciação relativo à proteção da saúde pública, os Estados‑Membros devem respeitar o princípio da proporcionalidade. Os meios que escolhem devem, por conseguinte, ser limitados ao que é efetivamente necessário para assegurar a proteção da saúde pública, ser proporcionados ao objetivo assim prosseguido, o qual não poderia ser alcançado por medidas menos restritivas das trocas comerciais intracomunitárias (Acórdão de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França, C‑333/08, EU:C:2010:44, n.o 90).

90

É verdade que a apreciação a que o Estado‑Membro tem de proceder pode revelar que existe um grande grau de incerteza científica e prática a esse respeito. Tal incerteza, indissociável do conceito de precaução, influencia o alcance do poder de apreciação do Estado‑Membro, repercutindo‑se, assim, nas modalidades de aplicação do princípio da proporcionalidade. Nestas circunstâncias, há que admitir que um Estado‑Membro pode, ao abrigo do princípio da precaução, adotar medidas de proteção sem ter de esperar que a realidade e gravidade de tais riscos estejam plenamente demonstradas. Contudo, a avaliação do risco não se pode basear em considerações puramente hipotéticas (Acórdão de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França, C‑333/08, EU:C:2010:44, n.o 91).

91

Uma aplicação correta do princípio da precaução pressupõe, em primeiro lugar, a identificação das consequências potencialmente negativas para a saúde pública da utilização proposta do produto cuja comercialização é proibida e, em segundo lugar, uma avaliação global do risco para a saúde baseada nos dados científicos disponíveis mais fiáveis e nos resultados mais recentes da investigação internacional (Acórdão de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França, C‑333/08, EU:C:2010:44, n.o 92).

92

Quando for impossível determinar com certeza a existência ou o alcance do risco alegado devido à natureza insuficiente, não conclusiva ou imprecisa dos resultados dos estudos levados a cabo, mas persista a probabilidade de um prejuízo real para a saúde pública na hipótese de o risco se realizar, o princípio da precaução justifica a adoção de medidas restritivas, sem prejuízo de as mesmas deverem ser não discriminatórias e objetivas (Acórdão de 28 de janeiro de 2010, Comissão/França, C‑333/08, EU:C:2010:44, n.o 93).

93

É certo que é à luz da jurisprudência referida nos n.os 83 a 92 do presente acórdão que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se a proibição de comercializar o CBD legalmente produzido noutro Estado‑Membro, quando é extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo e não apenas das suas fibras e sementes, é adequada para garantir a realização do objetivo da proteção da saúde pública e não vai além do necessário para o alcançar. Todavia, incumbe ao Tribunal de Justiça fornecer‑lhe todas as indicações necessárias para o guiar nessa apreciação.

94

No que respeita à apreciação da questão de saber se esta proibição é adequada para garantir a realização do objetivo da proteção da saúde pública, há que salientar que, durante a audiência, se verificou que a referida proibição não afetaria a comercialização do CBD de síntese com as mesmas propriedades que o CBD extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo e que poderia ser utilizado como substituto deste último. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar esta circunstância que, se fosse demonstrada, seria suscetível de indicar que a regulamentação no processo principal não é adequada para alcançar, de forma coerente e sistemática, esse objetivo.

95

No que se refere à necessidade da proibição de comercializar o CBD quando este é extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo e não apenas das suas fibras e sementes, importa indicar que a República Francesa não tem de demonstrar que a propriedade perigosa desse produto é idêntica à dos estupefacientes como as substâncias que figuram nos quadros I e II da Convenção Única. Não é menos verdade que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar os dados científicos disponíveis e que lhe tenham sido apresentados, a fim de garantir, à luz da jurisprudência referida nos n.os 88 a 92 do presente acórdão e tendo em conta as considerações formuladas no n.o 72 deste acórdão, que o risco real alegado para a saúde pública não parece estar baseado em considerações puramente hipotéticas.

96

Em face do exposto, há que responder à questão submetida que os artigos 34.o e 36.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que proíbe a comercialização do CBD legalmente produzido noutro Estado‑Membro, quando seja extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo e não apenas das suas fibras e sementes, a menos que esta regulamentação seja adequada para garantir a realização do objetivo de proteção da saúde pública e não vá além do que é necessário para o alcançar. Os Regulamentos n.os 1307/2013 e 1308/2013 devem ser interpretados no sentido de que não se aplicam a tal regulamentação.

Quanto às despesas

97

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

Os artigos 34.o e 36.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que proíbe a comercialização do canabidiol (CBD) legalmente produzido noutro Estado‑Membro, quando seja extraído da planta de Cannabis sativa no seu todo e não apenas das suas fibras e sementes, a menos que esta regulamentação seja adequada para garantir a realização do objetivo de proteção da saúde pública e não vá além do que é necessário para o alcançar. O Regulamento (UE) n.o 1307/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, que estabelece regras para os pagamentos diretos aos agricultores ao abrigo de regimes de apoio no âmbito da política agrícola comum e que revoga o Regulamento (CE) n.o 637/2008 do Conselho e o Regulamento (CE) n.o 73/2009 do Conselho, e o Regulamento (UE) n.o 1308/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de dezembro de 2013, que estabelece uma organização comum dos mercados dos produtos agrícolas e que revoga os Regulamentos (CEE) n.o 922/72, (CEE) n.o 234/79, (CE) n.o 1037/2001 e (CE) n.o 1234/2007 do Conselho, devem ser interpretados no sentido de que não se aplicam a tal regulamentação.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.