ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

19 de dezembro de 2019 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação — Diretiva 2001/29/CE — Artigo 3.o, n.o 1 — Direito de comunicação ao público — Colocação à disposição — Artigo 4.o — Direito de distribuição — Esgotamento — Livros eletrónicos — Mercado virtual de livros eletrónicos em segunda mão»

No processo C‑263/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia, Países Baixos), por Decisão de 28 de março de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de abril de 2018, no processo

Nederlands Uitgeversverbond,

Groep Algemene Uitgevers

contra

Tom Kabinet Internet BV,

Tom Kabinet Holding BV,

Tom Kabinet Uitgeverij BV,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, A. Arabadjiev, A. Prechal, M. Vilaras, P. G. Xuereb, L. S. Rossi e I. Jarukaitis, presidentes de secção, E. Juhász, M. Ilešič (relator), J. Malenovský, C. Lycourgos e N. Piçarra, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretária: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 2 de abril de 2019,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Nederlands Uitgeversverbond e da Groep Algemene Uitgevers, por C. A. Alberdingk Thijm, C. F. M. de Vries e S. C. van Velze, advocaten,

em representação da Tom Kabinet Internet BV, da Tom Kabinet Holding BV e da Tom Kabinet Uitgeverij BV, por T. C. J. A. Van Engelen e G. C. Leander, advocaten,

em representação do Governo belga, por MM. J.-C. Halleux e M. Jacobs, na qualidade de agentes,

em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo dinamarquês, por P. Ngo, S. Wolff e J. Nymann‑Lindegren, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por M. Hellmann, U. Bartl, J. Möller e T. Henze, na qualidade de agentes,

em representação do Governo espanhol, por A. Rubio González e A. Sampol Pucurull, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por D. Colas e D. Segoin, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por F. De Luca, avvocato dello Stato,

em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, M. Figueiredo e T. Rendas, na qualidade de agentes,

em representação do Governo do Reino Unido, por S. Brandon, Z. Lavery, na qualidade de agentes, assistidos por N. Saunders, QC,

em representação da Comissão Europeia, por J. Samnadda, A. Nijenhuis e F. Wilman, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 10 de setembro de 2019,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, do artigo 4.o, n.os 1 e 2, e do artigo 5.o da Diretiva 2002/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO 2001, L 167, p. 10).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Nederlands Uitgeversverbond (a seguir «NUV») e a Groep Algemene Uitgevers (a seguir «GAU») à Tom Kabinet Internet BV (a seguir «Tom Kabinet»), à Tom Kabinet Holding BV e à Tom Kabinet Uitgeverij BV a propósito do fornecimento de um serviço em linha que consiste num mercado virtual de livros eletrónicos em segunda mão.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) adotou em Genebra, em 20 de dezembro de 1996, o Tratado da OMPI sobre o Direito de Autor (a seguir «TDA»), que foi aprovado, em nome da Comunidade Europeia, pela Decisão 2000/278/CE do Conselho, de 16 de março de 2000 (JO 2000, L 89, p. 6), e entrou em vigor, no que se refere à União Europeia, em 14 de março de 2010 (JO 2010, L 32, p. 1).

4

O artigo 6.o do TDA, com a epígrafe «Direito de distribuição», dispõe, no seu n.o 1:

«Os autores de obras literárias e artísticas gozam do direito exclusivo de autorizar a colocação à disposição do público do original e de cópias das suas obras, por meio da venda ou por outra forma de transferência de propriedade.»

5

O artigo 8.o deste tratado, intitulado «Direito de comunicação ao público», prevê:

«Sem prejuízo do disposto no n.o 1, alínea ii), do artigo 11.o, no n.o 1, alíneas i) e ii), do artigo 11.obis, no n.o 1, alínea ii), do artigo 11.oter, no n.o 1, alínea ii), do artigo 14.o e no n.o 1 do artigo 14.obis da Convenção de Berna, os autores de obras literárias e artísticas gozam do direito exclusivo de autorizar qualquer comunicação ao público das suas obras, por fios ou sem fios, incluindo a colocação das suas obras à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a membros do público a partir do local e no momento por eles escolhido individualmente.»

6

As declarações acordadas relativas ao TDA (a seguir designadas «declarações acordadas») foram adotadas pela Conferência Diplomática em 20 de dezembro de 1996.

7

As declarações acordadas relativamente aos artigos 6.o e 7.o do referido tratado têm a seguinte redação:

«As expressões “cópias” e “original e cópias” utilizadas nestes artigos para designar o objeto do direito de distribuição e do direito de aluguer neles previstos referem‑se exclusivamente a cópias fixadas que possam ser postas em circulação enquanto objetos materiais.»

Direito da União

Diretiva 2001/29

8

Os considerandos 2, 4, 5, 9, 10, 15, 23 a 25, 28 e 29 da Diretiva 2001/29 enunciam:

«(2)

O Conselho Europeu reunido em Corfu em 24 e 25 de junho de 1994 salientou a necessidade de criar, a nível comunitário, um enquadramento legal geral e flexível que estimule o desenvolvimento da sociedade da informação na Europa. Tal exige, nomeadamente, um mercado interno para os novos produtos e serviços. Existe já, ou está em vias de ser aprovada, importante legislação comunitária para criar tal enquadramento regulamentar. O direito de autor e os direitos conexos desempenham um importante papel neste contexto, uma vez que protegem e estimulam o desenvolvimento e a comercialização de novos produtos e serviços, bem como a criação e a exploração do seu conteúdo criativo.

[…]

(4)

Um enquadramento legal do direito de autor e dos direitos conexos, através de uma maior segurança jurídica e respeitando um elevado nível de proteção da propriedade intelectual, estimulará consideravelmente os investimentos na criatividade e na inovação, nomeadamente nas infraestruturas de rede, o que, por sua vez, se traduzirá em crescimento e num reforço da competitividade da indústria europeia, tanto na área do fornecimento de conteúdos e da tecnologia da informação, como, de uma forma mais geral, num vasto leque de setores industriais e culturais. Este aspeto permitirá salvaguardar o emprego e fomentará a criação de novos postos de trabalho.

(5)

O desenvolvimento tecnológico multiplicou e diversificou os vetores da criação, produção e exploração. Apesar de não serem necessários novos conceitos para a proteção da propriedade intelectual, a legislação e regulamentação atuais em matéria de direito de autor e direitos conexos devem ser adaptadas e complementadas para poderem dar uma resposta adequada à realidade económica, que inclui novas formas de exploração.

[…]

(9)

Qualquer harmonização do direito de autor e direitos conexos deve basear‑se num elevado nível de proteção, uma vez que tais direitos são fundamentais para a criação intelectual. A sua proteção contribui para a manutenção e o desenvolvimento da atividade criativa, no interesse dos autores, dos intérpretes ou executantes, dos produtores, dos consumidores, da cultura, da indústria e do público em geral. A propriedade intelectual é pois reconhecida como parte integrante da propriedade.

(10)

Os autores e os intérpretes ou executantes devem receber uma remuneração adequada pela utilização do seu trabalho, para poderem prosseguir o seu trabalho criativo e artístico, bem como os produtores, para poderem financiar esse trabalho. É considerável o investimento necessário para produzir produtos como fonogramas, filmes ou produtos multimédia, e serviços, como os “serviços a pedido”. É necessária uma proteção jurídica adequada dos direitos de propriedade intelectual no sentido de garantir tal remuneração e proporcionar um rendimento satisfatório desse investimento.

[…]

(15)

A Conferência Diplomática realizada sob os auspícios da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), em dezembro de 1996, conduziu à aprovação de dois novos tratados, o Tratado da OMPI sobre o Direito de Autor e o Tratado da OMPI sobre Prestações e Fonogramas, que tratam, respetivamente, da proteção dos autores e da proteção dos artistas intérpretes ou executantes e dos produtores de fonogramas. […] A presente diretiva destina‑se também a dar execução a algumas destas novas obrigações internacionais.

[…]

(23)

A presente diretiva deverá proceder a uma maior harmonização dos direitos de autor aplicáveis à comunicação de obras ao público. Esses direitos deverão ser entendidos no sentido lato, abrangendo todas as comunicações ao público não presente no local de onde provêm as comunicações. Abrangem ainda qualquer transmissão ou retransmissão de uma obra ao público, por fio ou sem fio, incluindo a radiodifusão, não abrangendo quaisquer outros atos.

(24)

O direito de colocar à disposição do público materiais contemplados no n.o 2 do artigo 3.o deve entender‑se como abrangendo todos os atos de colocação desses materiais à disposição do público não presente no local de onde prov[ê]m esses atos de colocação à disposição, não abrangendo quaisquer outros atos.

(25)

A insegurança jurídica quanto à natureza e ao nível de proteção dos atos de transmissão a pedido, através de redes, de obras protegidas pelo direito de autor ou de material protegido pelos direitos conexos deve ser ultrapassada através da adoção de uma proteção harmonizada a nível comunitário. Deve ficar claro que todos os titulares dos direitos reconhecidos pela diretiva têm o direito exclusivo de colocar à disposição do público obras ou qualquer outro material protegido no âmbito das transmissões interativas a pedido. Tais transmissões interativas a pedido caracterizam‑se pelo facto de qualquer pessoa poder aceder‑lhes a partir do local e no momento por ela escolhido.

[…]

(28)

A proteção do direito de autor nos termos da presente diretiva inclui o direito exclusivo de controlar a distribuição de uma obra incorporada num produto tangível. A primeira venda na Comunidade do original de uma obra ou das suas cópias pelo titular do direito, ou com o seu consentimento, esgota o direito de controlar a revenda de tal objeto na Comunidade. Tal direito não se esgota em relação ao original ou cópias vendidas pelo titular do direito, ou com o seu consentimento, fora da Comunidade. A Diretiva 92/100/CEE [do Conselho, de 19 de novembro de 1992, relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos aos direitos de autor em matéria de propriedade intelectual (JO 1992, L 346, p. 61)] estabelece os direitos de aluguer e comodato dos autores. O direito de distribuição previsto na presente diretiva não prejudica as disposições relativas aos direitos de aluguer e comodato previstos no capítulo I dessa diretiva.

(29)

A questão do esgotamento não é pertinente no caso dos serviços, em especial dos serviços em linha. Tal vale igualmente para as cópias físicas de uma obra ou de outro material efetuadas por um utilizador de tal serviço com o consentimento do titular do direito. Por conseguinte, o mesmo vale para o aluguer e o comodato do original e cópias de obras ou outros materiais, que, pela sua natureza, são serviços. Ao contrário do que acontece com os CD‑ROM ou os CDI, em que a propriedade intelectual está incorporada num suporte material, isto é, uma mercadoria, cada serviço em linha constitui de facto um ato que deverá ser sujeito a autorização quando tal estiver previsto pelo direito de autor ou direitos conexos.»

9

O artigo 2.o da Diretiva 2001/29, intitulado «Direito de reprodução», dispõe:

«Os Estados‑Membros devem prever que o direito exclusivo de autorização ou proibição de reproduções, diretas ou indiretas, temporárias ou permanentes, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, cabe:

a)

Aos autores, para as suas obras;

[…]»

10

O artigo 3.o desta diretiva, sob a epígrafe «Direito de comunicação de obras ao público, incluindo o direito de colocar à sua disposição outro material», prevê, nos seus n.os 1 e 3:

«1.   Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

[…]

3.   Os direitos referidos nos n.os 1 e 2 não se esgotam por qualquer ato de comunicação ao público ou de colocação à disposição do público, contemplado no presente artigo.»

11

O artigo 4.o desta diretiva, sob a epígrafe «Direito de distribuição», tem a seguinte redação:

«1.   Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores, em relação ao original das suas obras ou respetivas cópias, o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer forma de distribuição ao público através de venda ou de qualquer outro meio.

2.   O direito de distribuição não se esgota, na Comunidade, relativamente ao original ou às cópias de uma obra, exceto quando a primeira venda ou qualquer outra forma de primeira transferência da propriedade desse objeto, na Comunidade, seja realizada pelo titular do direito ou com o seu consentimento.»

12

O artigo 5.o da Diretiva 2001/29, sob a epígrafe «Exceções e limitações», enuncia, no seu n.o 1:

«Os atos de reprodução temporária referidos no artigo 2.o, que sejam transitórios ou episódicos, que constituam parte integrante e essencial de um processo tecnológico e cujo único objetivo seja permitir:

a)

Uma transmissão numa rede entre terceiros por parte de um intermediário, ou

b)

Uma utilização legítima

de uma obra ou de outro material a realizar, e que não tenham, em si, significado económico, estão excluídos do direito de reprodução previsto no artigo 2.o»

Diretiva 2009/24/CE

13

O artigo 4.o da Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (JO 2009, L 111, p. 16), sob a epígrafe «Atos sujeitos a autorização», dispõe:

«1.   Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 6.o, os direitos exclusivos do titular, na aceção do artigo 2.o, devem incluir o direito de efetuar ou autorizar:

[…]

c)

Qualquer forma de distribuição ao público, incluindo a locação, do original ou de cópias de um programa de computador.

2.   A primeira comercialização na Comunidade de uma cópia de um programa efetuada pelo titular dos direitos ou realizada com o seu consentimento extinguirá o direito de distribuição na Comunidade dessa mesma cópia, com exceção do direito de controlar a locação ulterior do programa ou de uma sua cópia.»

Direito neerlandês

14

O artigo 1.o da Auteurswet (Lei sobre o Direito de Autor) de 23 de setembro de 1912, na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei do Direito de Autor»), dispõe:

«O direito de autor é o direito exclusivo do autor de uma obra literária, científica ou artística, ou dos titulares do direito sobre a mesma, de a divulgar e de a reproduzir, sem prejuízo das limitações previstas na lei.»

15

O artigo 12.o, n.o 1, da Lei do Direito de Autor prevê:

«Entende‑se por divulgação ao público de uma obra literária, científica ou artística, nomeadamente:

1.o

a divulgação ao público de uma cópia, total ou parcial, de uma obra;

[…]»

16

O artigo 12b desta lei tem a seguinte redação:

«Se um exemplar de uma obra literária, científica ou artística tiver sido posto em circulação por transferência de propriedade, pela primeira vez, num Estado‑Membro da União Europeia ou num Estado parte do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu pelo seu autor ou por um titular do direito sobre a mesma, ou com o seu consentimento, a colocação em circulação desse exemplar de outra forma, excetuando o aluguer ou o comodato, não constitui uma violação do direito de autor.»

17

O artigo 13.o da referida lei dispõe:

«Por reprodução de uma obra literária, científica ou artística entende‑se a tradução, a composição musical, o registo cinematográfico ou a adaptação teatral e, em geral, cada adaptação ou reprodução, no todo ou em parte, sob uma forma modificada, que não seja considerada uma obra original.»

18

O artigo 13a da mesma lei enuncia:

«Os atos de reprodução temporária que sejam transitórios ou episódicos, que constituam parte integrante e essencial de um processo tecnológico e cujo único objetivo seja permitir:

a)

Uma transmissão numa rede entre terceiros por parte de um intermediário, ou

b)

A sua utilização legítima

e que não tenham, em si, significado económico, não são atos de reprodução de uma obra literária, científica ou artística.»

19

O artigo 16b, n.o 1, da Lei do Direito de Autor prevê:

«Não é considerada uma violação do direito de autor sobre uma obra literária, científica ou artística, a reprodução que se limita a alguns exemplares e que se destina exclusivamente à prática, ao estudo ou à utilização pela pessoa singular que procede à reprodução sem qualquer intenção comercial, direta ou indireta, ou que ordena a reprodução apenas para os seus próprios fins.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

20

A NUV e a GAU, associações cujo objeto consiste na defesa dos interesses dos editores neerlandeses, foram mandatadas por vários editores para assegurar a proteção e o respeito dos direitos de autor que lhes foram concedidos por titulares destes direitos através de licenças exclusivas.

21

A Tom Kabinet Holding é a acionista única da Tom Kabinet Uitgeverij, sociedade editora de livros, de livros eletrónicos e de bases de dados, bem como da Tom Kabinet. Esta última sociedade gere um sítio Internet no qual, em 24 de junho de 2014, iniciou um serviço em linha que consiste num mercado virtual de livros eletrónicos em segunda mão.

22

Em 1 de julho de 2014, a NUV e a GAU intentaram, com fundamento na Lei do Direito de Autor, uma providência cautelar contra a Tom Kabinet, a Tom Kabinet Holding e a Tom Kabinet Uitgeverij perante o juiz das medidas provisórias do rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos), contra esse serviço em linha. O rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) indeferiu o pedido com o fundamento de que, segundo este último, à primeira vista, não havia um grau suficiente de probabilidade da existência de uma violação do direito de autor.

23

A NUV e a GAU recorreram desta decisão para o Gerechtshof te Amsterdam (Tribunal de Recurso de Amesterdão, Países Baixos), o qual, por Acórdão de 20 de janeiro de 2015, confirmou a referida sentença, proibindo a Tom Kabinet de oferecer um serviço em linha que permitisse a venda de livros eletrónicos transferidos ilegalmente. Este acórdão não foi objeto de recurso de cassação.

24

A partir de 8 de junho de 2015, a Tom Kabinet alterou os serviços oferecidos até então e substituiu‑os pelo «Toms Leesclub» (clube de leitura de Tom, a seguir «clube de leitura»), no âmbito do qual a Tom Kabinet é um comerciante de livros eletrónicos. O clube de leitura oferece aos seus membros, mediante o pagamento de uma quantia em dinheiro, livros eletrónicos em segunda mão que foram comprados pela Tom Kabinet ou doados a esta última a título gratuito pelos membros deste clube. Neste último caso, os referidos membros devem fornecer a hiperligação de transferência do livro em causa e declarar que não conservaram uma cópia desse livro. A Tom Kabinet transfere em seguida o livro eletrónico do sítio Internet do vendedor e apõe neste a sua própria marca de água digital, o que permite confirmar que se trata de um exemplar adquirido legalmente.

25

Inicialmente, os livros eletrónicos disponíveis através do clube de leitura podiam ser comprados a um preço fixo de 1,75 euros por livro eletrónico. Após o pagamento, o membro podia transferir o livro eletrónico do sítio Internet da Tom Kabinet e revendê‑lo posteriormente a esta última. A filiação no clube de leitura estava sujeita ao pagamento pelo membro de uma quota mensal de 3,99 euros. Qualquer livro eletrónico fornecido gratuitamente por um membro permitia‑lhe beneficiar de um desconto de 0,99 euros sobre a quota relativa ao mês seguinte.

26

A partir de 18 de novembro de 2015, a adesão ao clube de leitura deixou de exigir o pagamento de uma quota mensal. Por um lado, o preço de cada livro eletrónico passou a ser de 2 euros. Por outro lado, os membros do clube de leitura precisam igualmente de «créditos» para poderem adquirir um livro eletrónico no âmbito do clube de leitura, créditos estes que podem ser obtidos fornecendo a este um livro eletrónico, a título gratuito ou oneroso. Tais créditos também podem ser comprados por ocasião da encomenda.

27

A NUV e a GAU intentaram uma ação no rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia, Países Baixos), na qual pediam que a Tom Kabinet, a Tom Kabinet Holding e a Tom Kabinet Uitgeverij fossem proibidas, sob cominação de uma sanção pecuniária compulsória, de violar os direitos de autor das suas filiadas através da colocação à disposição ou da reprodução de livros eletrónicos. Em especial, consideram que a Tom Kabinet efetua, no âmbito do clube de leitura, uma comunicação ao público não autorizada de livros eletrónicos.

28

Num Acórdão interlocutório de 12 de julho de 2017, o órgão jurisdicional de reenvio considerou que os livros eletrónicos em causa devem ser qualificados de obras, na aceção da Diretiva 2001/29, e que a oferta da Tom Kabinet, nas circunstâncias em causa no processo principal, não constitui uma comunicação ao público dessas obras, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva.

29

Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio observa que as respostas às questões de saber se a colocação à disposição à distância por transferência, mediante pagamento, de um livro eletrónico para uma utilização por período ilimitado é suscetível de constituir um ato de distribuição, na aceção do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, e se o direito de distribuição pode, portanto, esgotar‑se, na aceção do artigo 4.o, n.o 2, desta diretiva, não são evidentes. Interroga‑se igualmente se, em caso de revenda de um livro eletrónico, o titular do direito de autor pode opor‑se, com fundamento no artigo 2.o da referida diretiva, aos atos de reprodução necessários para uma transmissão legítima, entre adquirentes posteriores, do exemplar em relação ao qual o direito de distribuição está, eventualmente, esgotado. A resposta a esta questão também não decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

30

Foi nestas condições que o rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva [2001/29] ser interpretado no sentido de que também se entende por “qualquer forma de distribuição ao público através de venda ou de qualquer outro meio”“em relação ao original das suas obras ou respetivas cópias” a colocação à disposição à distância, por meio de transferência (download), para utilização, durante um período de tempo ilimitado, de livros eletrónicos (ou seja, cópias digitais de livros protegidos por direitos de autor), mediante um preço destinado a permitir que o titular do direito de autor obtenha uma remuneração que corresponde ao valor económico da cópia da obra de que é proprietário?

2)

Em caso de resposta afirmativa à questão 1, o direito de distribuição esgota‑se, na União, relativamente ao original ou às cópias de uma obra, conforme referido no artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva [2001/29], quando seja realizada pelo titular do direito ou com o seu consentimento, na União, a primeira venda ou outra transferência desse objeto, incluindo‑se para o efeito a colocação à disposição à distância, por meio de transferência (download), para utilização, durante um período de tempo ilimitado, de livros eletrónicos (ou seja, cópias digitais de livros protegidos por direitos de autor), mediante um preço destinado a permitir que o titular do direito de autor obtenha uma remuneração que corresponde ao valor económico da cópia da obra de que é proprietário?

3)

Deve o artigo 2.o da Diretiva [2001/29] ser interpretado no sentido de que a transferência entre os sucessivos adquirentes da cópia legalmente adquirida cujo direito de distribuição se esgotou inclui uma autorização para os atos de reprodução referidos nesse artigo, na medida em que estes sejam necessários para a utilização legítima do exemplar? Em caso afirmativo, em que condições?

4)

Deve o artigo 5.o da Diretiva [2001/29] ser interpretado no sentido de que o titular do direito de autor já não se pode opor aos atos de reprodução necessários a uma transferência entre sucessivos adquirentes da cópia legalmente adquirida cujo direito de distribuição se esgotou? Em caso afirmativo, em que condições?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

31

A título preliminar, importa recordar que, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. Com efeito, o Tribunal de Justiça tem por missão interpretar todas as disposições do direito da União de que os órgãos jurisdicionais nacionais necessitem para decidir dos litígios que lhes são submetidos, ainda que essas disposições não sejam expressamente referidas nas questões que lhe são apresentadas por esses órgãos jurisdicionais (Acórdão de 13 de setembro de 2016, Rendón Marín, C‑165/14, EU:C:2016:675, n.o 33 e jurisprudência referida).

32

Para este efeito, o Tribunal de Justiça pode extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (Acórdão de 13 de setembro de 2016, Rendón Marín, C‑165/14, EU:C:2016:675, n.o 34 e jurisprudência referida).

33

No caso em apreço, embora, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunte ao Tribunal de Justiça, em substância, se a expressão «qualquer forma de distribuição ao público através de venda ou de qualquer outro meio»«em relação ao original das […] obras [dos autores] ou respetivas cópias», referida no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, abrange «a colocação à disposição à distância, por meio de transferência (download), para utilização, durante um período de tempo ilimitado, de livros eletrónicos […], mediante um preço», resulta dos fundamentos da decisão de reenvio que se coloca a questão de saber, no âmbito do litígio pendente no referido órgão jurisdicional, se o fornecimento, por transferência, para utilização permanente, de um livro eletrónico constitui um ato de distribuição, na aceção do artigo 4.o, n.o 1, ou se esse fornecimento está abrangido pelo conceito de «comunicação ao público», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva. A relevância desta questão no litígio no processo principal reside na questão de saber se esse fornecimento está sujeito à regra do esgotamento do direito de distribuição prevista no artigo 4.o, n.o 2, da referida diretiva ou se, pelo contrário, escapa a essa regra, como expressamente previsto no artigo 3.o, n.o 3, da mesma diretiva no que diz respeito ao direito de comunicação ao público.

34

À luz destas considerações, há que reformular a primeira questão submetida no sentido de que, com a mesma, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o fornecimento por transferência, para utilização permanente, de um livro eletrónico está abrangido pelo conceito de «comunicação ao público», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, ou pelo conceito de «distribuição ao público», previsto no artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva.

35

Conforme decorre do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, os autores beneficiam do direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a colocação à disposição do público das suas obras por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

36

Quanto ao artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva, este prevê que os autores dispõem do direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer forma de distribuição ao público através de venda ou de qualquer outro meio, em relação ao original das suas obras ou respetivas cópias, esgotando‑se esse direito, em aplicação do artigo 4.o, n.o 2, da referida diretiva, em caso de primeira venda ou de qualquer outra forma de primeira transferência da propriedade na União do original da obra ou respetiva cópia pelo titular do direito ou com o seu consentimento.

37

Nem estas disposições nem nenhuma outra disposição da Diretiva 2001/29 permitem, apenas à luz da sua redação, determinar se o fornecimento por transferência, para utilização permanente, de um livro eletrónico constitui uma comunicação ao público, em especial uma colocação à disposição do público de uma obra por forma a torná‑la acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido, ou um ato de distribuição, na aceção desta diretiva.

38

Segundo jurisprudência constante, na interpretação de uma disposição do direito da União importa ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto, os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte e, se for caso disso, a sua origem (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de dezembro de 2017, Acacia e D’Amato, C‑397/16 e C‑435/16, EU:C:2017:992, n.o 31; e de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o., C‑621/18, EU:C:2018:999, n.o 47 e jurisprudência referida). Por outro lado, os diplomas do direito da União devem ser interpretados, tanto quanto possível, à luz do direito internacional, em especial quando esses diplomas visam precisamente dar cumprimento a um acordo internacional celebrado pela União (Acórdãos de 7 de dezembro de 2006, SGAE,C‑306/05, EU:C:2006:764, n.o 35; de 13 de maio de 2015, Dimensione Direct Sales e Labianca, C‑516/13, EU:C:2015:315, n.o 23; e de 19 de dezembro de 2018, Syed, C‑572/17, EU:C:2018:1033, n.o 20 e jurisprudência referida).

39

Em primeiro lugar, é de notar que, conforme resulta do considerando 15 da Diretiva 2001/29, esta diretiva destina‑se, nomeadamente, a dar execução a algumas das obrigações que incumbem à União por força do TDA. Por conseguinte, os conceitos de «comunicação ao público» e de «distribuição ao público», previstos no artigo 3.o, n.o 1, e no artigo 4.o, n.o 1, desta diretiva, devem, na medida do possível, ser interpretados em conformidade com as definições constantes, respetivamente, do artigo 8.o e do artigo 6.o, n.o 1, do TDA (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de abril de 2008, Peek & Cloppenburg, C‑456/06, EU:C:2008:232, n.o 31, e de 19 de dezembro de 2018, Syed, C‑572/17, EU:C:2018:1033, n.o 21 e jurisprudência referida).

40

A este respeito, o artigo 6.o, n.o 1, do TDA define o direito de distribuição como o direito exclusivo dos autores de autorizar a colocação à disposição do público do original e de cópias das suas obras, por meio da venda ou por outra forma de transferência de propriedade. Ora, resulta dos próprios termos das declarações acordadas relativamente aos artigos 6.o e 7.o do TDA que «[a]s expressões “cópias” e “original e cópias” utilizadas nestes artigos para designar o objeto do direito de distribuição e do direito de aluguer neles previstos [se referem] exclusivamente a cópias fixadas que possam ser postas em circulação enquanto objetos materiais», pelo que o referido artigo 6.o, n.o 1, não pode abranger a distribuição de obras imateriais como livros eletrónicos.

41

A exposição de motivos da proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, de 10 de dezembro de 1997 [COM(97) 628 final, a seguir «proposta de diretiva»], na origem da Diretiva 2001/29, inscreve‑se no seguimento desta constatação. Com efeito, ali se salienta que os termos «incluindo a colocação […] à disposição do público [das obras dos autores] por forma a torná‑las acessíveis a membros do público a partir do local e no momento por eles escolhido individualmente» que figuram no artigo 8.o do TDA e que foram retomados, em substância, no artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva, refletem a proposta que tinha sido feita quanto a este ponto pela Comunidade Europeia e os seus Estados‑Membros durante as negociações, e dizem respeito às «atividades interativas».

42

Em segundo lugar, nesta mesma exposição de motivos da proposta de diretiva, a Comissão Europeia sublinhou também que esta proposta «proporcion[ava] uma oportunidade para criar uma situação de igualdade de tratamento coerente para distribuição por meios eletrónicos e de forma tangível do material protegido e para estabelecer uma distinção clara entre estas duas categorias».

43

Neste contexto, a Comissão observou que a transmissão interativa «a pedido» constitui uma nova forma de exploração da propriedade intelectual, sobre a qual os Estados‑Membros consideraram que deveria ser abrangida pelo direito de controlar a comunicação ao público, esclarecendo que geralmente o direito de distribuição, que só se aplica à distribuição de cópias materiais, não abrange essa transmissão.

44

Também na referida exposição, a Comissão acrescentou que a expressão «comunicação ao público» de uma obra abrange os atos de transmissão interativa «a pedido», confirmando assim que o direito de comunicação ao público é igualmente aplicável quando estão implicadas diversas pessoas não relacionadas (membros do público) que podem ter acesso individual a partir de diferentes locais e em diferentes momentos a uma obra publicamente acessível num sítio Internet, esclarecendo que esse direito cobre qualquer comunicação «diferente da distribuição de cópias materiais», estando as cópias materiais que podem ser postas em circulação como objetos tangíveis, por seu lado, sujeitas ao direito de distribuição.

45

Resulta, assim, desta mesma exposição de motivos que a intenção na base da proposta de diretiva era fazer com que qualquer comunicação ao público de uma obra, diferente da distribuição de cópias materiais da mesma, fosse abrangida não pelo conceito de «distribuição ao público», objeto do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, mas pelo de «comunicação ao público», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva.

46

Em terceiro lugar, há que salientar que esta interpretação é corroborada pelo objetivo desta diretiva, conforme enunciado no respetivo preâmbulo, e pelo contexto em que se inscrevem o artigo 3.o, n.o 1, e o artigo 4.o, n.o 1, da referida diretiva.

47

Com efeito, resulta dos considerandos 2 e 5 da Diretiva 2001/29 que esta visa criar, a nível da União, um enquadramento legal geral e flexível que estimule o desenvolvimento da sociedade da informação e adaptar e complementar a legislação e regulamentação atuais em matéria de direito de autor e direitos conexos para dar resposta ao desenvolvimento tecnológico que deu origem a novas formas de exploração das obras protegidas (Acórdão de 24 de novembro de 2011, Circul Globus Bucureşti, C‑283/10, EU:C:2011:772, n.o 38).

48

Além disso, resulta dos considerandos 4, 9 e 10 da referida diretiva que esta tem por objetivo principal instaurar um elevado nível de proteção dos autores, permitindo‑lhes receber uma remuneração adequada pela utilização das suas obras, nomeadamente quando são comunicadas ao público (v., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2015, SBS Belgium, C‑325/14, EU:C:2015:764, n.o 14 e jurisprudência referida).

49

A fim de alcançar este objetivo, o conceito de «comunicação ao público» deve, como sublinha o considerando 23 da Diretiva 2001/29, ser entendido em sentido lato, abrangendo todas as comunicações ao público não presente no local de onde provêm as comunicações e, assim, qualquer transmissão ou retransmissão de uma obra ao público, por fio ou sem fio, incluindo a radiodifusão (v., neste sentido, Acórdãos de 7 de dezembro de 2006, SGAE, C‑306/05, EU:C:2006:764, n.o 36, e de 13 de fevereiro de 2014, Svensson e o., C‑466/12, EU:C:2014:76, n.o 17 e jurisprudência referida).

50

O considerando 25 desta diretiva acrescenta que os titulares dos direitos por ela reconhecidos têm o direito exclusivo de colocar à disposição do público obras ou qualquer outro material protegido no âmbito das transmissões interativas a pedido, caracterizando‑se tais transmissões interativas a pedido pelo facto de qualquer pessoa poder aceder‑lhes a partir do local e no momento por ela escolhido.

51

Por outro lado, os considerandos 28 e 29 da Diretiva 2001/29, relativos ao direito de distribuição, enunciam, respetivamente, que este direito inclui o direito exclusivo de controlar «a distribuição de uma obra incorporada num produto tangível» e que a questão do esgotamento do direito não se coloca no caso dos serviços, em especial no caso dos serviços em linha, precisando‑se que, contrariamente aos CD‑ROM ou aos CDI, em que a propriedade intelectual está incorporada num suporte material, isto é, uma mercadoria, cada serviço em linha constitui de facto um ato que deverá ser sujeito a autorização quando tal estiver previsto pelo direito de autor ou direitos conexos.

52

Em quarto lugar, uma interpretação do direito de distribuição, previsto no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, no sentido de que este direito apenas se aplica à distribuição de obras incorporadas num suporte tangível decorre igualmente do artigo 4.o, n.o 2, desta diretiva, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, relativo ao esgotamento desse direito, tendo este último declarado que o legislador da União, ao utilizar, no considerando 28 desta diretiva, as expressões «produto tangível» e «tal objeto», pretendeu conceder aos autores o controlo da primeira colocação no mercado da União de cada objeto tangível que incorpora a sua criação intelectual (Acórdão de 22 de janeiro de 2015, Art & Allposters International, C‑419/13, EU:C:2015:27, n.o 37).

53

É certo que, como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça declarou, no que respeita ao esgotamento do direito de distribuição das cópias de programas de computador, referido no artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2009/24, que não resulta dessa disposição que esse esgotamento esteja limitado às cópias de programas de computador que se encontram num suporte material, havendo, pelo contrário, que considerar que a referida disposição, referindo‑se sem mais precisões à «comercialização […] de uma cópia de um programa», não faz nenhuma distinção em função da forma material ou imaterial da cópia em causa (Acórdão de 3 de julho de 2012, UsedSoft, C‑128/11, EU:C:2012:407, n.o 55).

54

Todavia, como salienta, corretamente, o órgão jurisdicional de reenvio e como sublinhou o advogado‑geral no n.o 67 das suas conclusões, um livro eletrónico não é um programa de computador, pelo que não há que lhe aplicar a regulamentação específica da Diretiva 2009/24.

55

A este respeito, por um lado, como o Tribunal de Justiça indicou expressamente nos n.os 51 e 56 do Acórdão de 3 de julho de 2012, UsedSoft (C‑128/11, EU:C:2012:407), a Diretiva 2009/24, que diz especificamente respeito à proteção dos programas de computador, constitui uma lex specialis relativamente à Diretiva 2001/29. Ora, das disposições pertinentes da Diretiva 2009/24 resulta claramente a vontade do legislador da União de equiparar, para efeitos da proteção prevista na referida diretiva, as cópias materiais e imateriais desses programas de computador, de modo que o esgotamento do direito de distribuição previsto no artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2009/24 visa o conjunto destas cópias (v., neste sentido, Acórdão de 3 de julho de 2012, UsedSoft, C‑128/11, EU:C:2012:407, n.os 58 e 59).

56

Essa equiparação das cópias materiais e imateriais de obras protegidas para efeitos das disposições pertinentes da Diretiva 2001/29 não foi, em contrapartida, desejada pelo legislador da União quando adotou esta diretiva. Com efeito, como recordado no n.o 42 do presente acórdão, resulta dos trabalhos preparatórios da mesma que se pretendeu estabelecer uma distinção clara entre a distribuição eletrónica e a distribuição material de conteúdos protegidos.

57

Por outro lado, o Tribunal de Justiça salientou, no n.o 61 do Acórdão de 3 de julho de 2012, UsedSoft (C‑128/11, EU:C:2012:407), que, do ponto de vista económico, a comercialização de um programa de computador num suporte material e a comercialização de um programa de computador através da sua transferência a partir da Internet são semelhantes, constituindo o meio de transmissão em linha o equivalente funcional da entrega de um suporte material, pelo que a interpretação do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2009/24 à luz do princípio da igualdade de tratamento justifica que estas duas modalidades de transmissão sejam tratadas de maneira comparável.

58

Contudo, não se pode considerar que o fornecimento de um livro num suporte material e o fornecimento de um livro eletrónico sejam equivalentes do ponto de vista económico e funcional. Com efeito, como salientou o advogado‑geral no n.o 89 das suas conclusões, as cópias digitais desmaterializadas, contrariamente aos livros num suporte material, não se deterioram com a utilização, de modo que as cópias em segunda mão são substitutos perfeitos das cópias novas. Além disso, as trocas dessas cópias não requerem esforço nem custos adicionais, pelo que um mercado paralelo de segunda mão é suscetível de afetar o interesse de os titulares receberem uma remuneração adequada pelas suas obras de forma muito mais significativa do que o mercado em segunda mão de objetos materiais, em violação do objetivo recordado no n.o 48 do presente acórdão.

59

Mesmo no caso de se dever considerar que um livro eletrónico é um material complexo (v., neste sentido, Acórdão de 23 de janeiro de 2014, Nintendo e o., C‑355/12, EU:C:2014:25, n.o 23), que compreende não só uma obra protegida mas também um programa de computador que pode beneficiar da proteção da Diretiva 2009/24, haveria que considerar que esse programa tem apenas um caráter acessório em relação à obra contida nesse livro. Com efeito, como salientou o advogado‑geral no n.o 67 das suas conclusões, um livro eletrónico é protegido em razão do seu conteúdo, que deve, portanto, ser considerado o seu elemento essencial, de modo que a circunstância de um programa de computador poder fazer parte de um livro eletrónico para permitir a sua leitura não pode conduzir à aplicação de tais disposições específicas.

60

O órgão jurisdicional de reenvio expõe ainda que o fornecimento de um livro eletrónico, em circunstâncias como as do processo principal, não preenche as condições estabelecidas pelo Tribunal de Justiça para ser qualificado de comunicação ao público, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29. Em particular, o referido órgão jurisdicional salienta, por um lado, que na falta de comunicação do próprio conteúdo da obra protegida na oferta de venda do livro eletrónico na plataforma do clube de leitura, não pode estar em causa um ato de comunicação. Por outro lado, faltaria a existência de um público, uma vez que o livro eletrónico só é colocado à disposição de um único membro do clube de leitura.

61

A este respeito, resulta do artigo 3.o n.o 1, da Diretiva 2001/29 que o conceito de «comunicação ao público» associa dois elementos cumulativos, a saber, um ato de comunicação de uma obra e a comunicação desta última a um público (Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein, C‑610/15, EU:C:2017:456, n.o 24 e jurisprudência referida).

62

No que respeita, em primeiro lugar, à questão de saber se o fornecimento de um livro eletrónico, como o que está em causa no processo principal, constitui um ato de comunicação, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, há que salientar, como se recordou no n.o 49 do presente acórdão, que o conceito de «comunicação ao público», na aceção desta última disposição, abrange qualquer transmissão ou retransmissão de uma obra ao público não presente no local de onde provém a comunicação, por fio ou sem fio.

63

Além disso, no que respeita ao conceito de «colocação à disposição do público», na aceção da mesma disposição, que faz parte do conceito, mais lato, de «comunicação ao público», o Tribunal de Justiça declarou que, para ser qualificado de ato de colocação à disposição do público, um ato deve preencher cumulativamente as duas condições enunciadas nessa disposição, a saber, permitir ao público interessado aceder ao objeto protegido em causa, tanto no local como no momento que cada um escolhe individualmente (v., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 2015, C More Entertainment, C‑279/13, EU:C:2015:199, n.os 24 e 25), sem que seja determinante que as pessoas que compõem esse público utilizem ou não essa possibilidade (v., neste sentido, Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein, C‑610/15, EU:C:2017:456, n.o 31 e jurisprudência referida).

64

No que respeita, especificamente, à colocação à disposição do público de uma obra ou de um objeto protegido por forma a torná‑los acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido, resulta da exposição de motivos da proposta de diretiva que «o ato decisivo é o de “colocar a obra à disposição do público”, oferecendo a obra num local publicamente acessível, que antecede a fase da sua “transmissão a pedido” efetiva» e que «[n]ão é relevante saber se essa obra foi efetivamente descarregada por qualquer pessoa ou não».

65

No caso em apreço, é pacífico que a Tom Kabinet coloca as obras em causa à disposição de qualquer pessoa que se inscreva no sítio Internet do clube de leitura, podendo essa pessoa aceder às mesmas a partir do local e no momento por ela escolhido, de modo que o fornecimento desse serviço deve ser considerado como a comunicação de uma obra, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29, não sendo necessário que a referida pessoa utilize essa possibilidade descarregando efetivamente o livro eletrónico a partir desse sítio Internet.

66

Em segundo lugar, para serem abrangidas pelo conceito de «comunicação ao público», na aceção desta disposição, é ainda necessário que as obras protegidas sejam efetivamente comunicadas a um público (v., neste sentido, Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein, C‑610/15, EU:C:2017:456, n.o 40 e jurisprudência referida), visando a referida comunicação um número indeterminado de destinatários potenciais (Acórdão de 7 de dezembro de 2006, SGAE, C‑306/05, EU:C:2006:764, n.o 37 e jurisprudência referida).

67

Ora, decorre igualmente da exposição de motivos da proposta de diretiva, por um lado, como se recordou no n.o 44 do presente acórdão, que o direito de comunicação ao público é igualmente aplicável quando estão implicadas diversas pessoas não relacionadas (membros do público) que podem ter acesso individual a partir de diferentes locais e em diferentes momentos a uma obra publicamente acessível num sítio Internet e, por outro lado, que o público se compõe dos seus membros individualmente considerados.

68

A este respeito, o Tribunal de Justiça já teve a ocasião de precisar, por um lado, que o conceito de «público» contém um certo limiar de minimis, o que exclui deste conceito um conjunto de pessoas afetadas demasiado pequeno, e, por outro, que importa ter em conta os efeitos cumulativos que resultam da colocação à disposição de uma obra protegida, por transferência, aos potenciais destinatários. Há, portanto, que ter em conta, nomeadamente, o número de pessoas que podem ter acesso à mesma obra paralelamente, mas também o número de entre elas que podem ter sucessivamente acesso à mesma (v., neste sentido, Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein, C‑610/15, EU:C:2017:456, n.o 41 e jurisprudência referida).

69

Ora, no caso em apreço, atendendo à circunstância, sublinhada no n.o 65 do presente acórdão, de qualquer pessoa interessada poder tornar‑se membro do clube de leitura, bem como à falta de uma medida técnica, no âmbito da plataforma deste clube, que permita garantir que uma única cópia de uma obra pode ser transferida durante o período em que o utilizador de uma obra tem efetivamente acesso à mesma e que, expirado esse período, a cópia transferida por esse utilizador já não é suscetível de ser por este utilizada (v., por analogia, Acórdão de 10 de novembro de 2016, Vereniging Openbare Bibliotheken, C‑174/15, EU:C:2016:856), há que considerar que o número de pessoas que podem ter acesso, paralela ou sucessivamente, à mesma obra através desta plataforma é significativo. Por conseguinte, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio tendo em conta todos os elementos pertinentes, deve considerar‑se que a obra em causa foi comunicada a um público, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29.

70

Por último, o Tribunal de Justiça declarou que, para ser qualificada de comunicação ao público, uma obra protegida deve ser comunicada segundo uma técnica específica, diferente das utilizadas até então ou, na sua falta, junto de um público novo, isto é, um público que não tenha sido tomado em consideração pelos titulares do direito de autor quando autorizaram a comunicação inicial da sua obra ao público (Acórdão de 14 de junho de 2017, Stichting Brein, C‑610/15, EU:C:2017:456, n.o 28 e jurisprudência referida).

71

No caso em apreço, uma vez que a colocação à disposição de um livro eletrónico é, em geral, conforme salientado pela NUV e pela GAU, acompanhada de uma licença de utilização que autoriza apenas a leitura, pelo utilizador que transferiu o livro eletrónico em causa, a partir do seu próprio equipamento, há que considerar que uma comunicação como a efetuada pela Tom Kabinet é feita a um público que não foi tomado em consideração pelos titulares do direito de autor e, portanto, a um público novo, na aceção da jurisprudência referida no número anterior do presente acórdão.

72

À luz de todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o fornecimento ao público por transferência, para utilização permanente, de um livro eletrónico está abrangido pelo conceito de «comunicação ao público», e, concretamente, pelo conceito de «colocação à disposição do público [das obras dos autores] por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29.

Quanto às questões segunda a quarta

73

Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder às questões segunda a quarta.

Quanto às despesas

74

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

O fornecimento ao público por transferência, para utilização permanente, de um livro eletrónico está abrangido pelo conceito de «comunicação ao público», e, concretamente pelo conceito de «colocação à disposição do público [das obras dos autores] por forma a torná‑las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.