ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

26 de fevereiro de 2019 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Artigo 13.o TFUE — Bem‑estar dos animais — Regulamento (CE) n.o 1099/2009 — Proteção dos animais no momento da occisão — Métodos especiais de abate prescritos por ritos religiosos — Regulamento (CE) n.o 834/2007 — Artigo 3.o e artigo 14.o, n.o 1, alíneas b), viii) — Compatibilidade com a produção biológica — Regulamento (CE) n.o 889/2008 — Artigo 57.o, primeiro parágrafo — Logo de produção biológica da União Europeia»

No processo C‑497/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Cour administrative d’appel de Versailles (Tribunal Administrativo de Recurso de Versalhes, França), por decisão de 6 de julho de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 10 de julho de 2017, no processo

Œuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (OABA)

contra

Ministre de l’Agriculture et de l’Alimentation,

Bionoor SARL,

Ecocert France SAS,

Institut national de l’origine et de la qualité (INAO),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, F. Biltgen, K. Jürimäe e C. Lycourgos, presidentes de secção, J. Malenovský, E. Levits, L. Bay Larsen, D. Šváby (relator), C. Vajda e S. Rodin, juízes,

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: V. Giacobbo‑Peyronnel, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 19 de junho de 2018,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Œuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (OABA), por A. Monod, avocat,

em representação da Bionoor SARL, por N. Gardères, avocat,

em representação da Ecocert France SAS, por D. de Laforcade, avocat,

em representação do Governo francês, por D. Colas, S. Horrenberger e E. de Moustier, na qualidade de agentes,

em representação do Governo helénico, por G. Kanellopoulos e A. Vasilopoulou, na qualidade de agentes,

em representação do Governo norueguês, por A. Dalheim Jacobsen, T. Bjerre Leming e D. Sørlie Lund, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por A. Bouquet, A. Lewis e B. Eggers, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 20 de setembro de 2018,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 13.o TFUE, do Regulamento (CE) n.o 834/2007 do Conselho, de 28 de junho de 2007, relativo à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 2092/91 (JO 2007, L 189, p. 1), do Regulamento (CE) n.o 889/2008 da Comissão, de 5 de setembro de 2008, que estabelece normas de execução do Regulamento n.o 834/2007 (JO 2008, L 250, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (UE) n.o 271/2010, de 24 de março de 2010 (JO 2010, L 84, p. 19) (a seguir «Regulamento n.o 889/2008»), e do Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão (JO 2009, L 303, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a associação Œuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (a seguir «associação OABA») ao ministre de l’Agriculture et de l’Alimentation (Ministro da Agricultura e do setor Alimentar; a seguir «Ministro da Agricultura»), à Bionoor SARL, à Ecocert France SAS (a seguir «Ecocert») e ao Institut national de l’origine et de la qualité (INAO), a propósito de um pedido da associação OABA de proibição da publicidade e da comercialização de produtos provenientes de carne bovina da marca «Tendre France», certificados como «halal» e que comportem a menção «agricultura biológica» (a seguir «menção “AB”»).

Quadro jurídico

Direito da União

Regulamento n.o 834/2007

3

Os considerandos 1 e 3 do Regulamento n.o 834/2007 enunciam:

«(1)

A produção biológica é um sistema global de gestão das explorações agrícolas e de produção de géneros alimentícios que combina as melhores práticas ambientais, um elevado nível de biodiversidade, a preservação dos recursos naturais, a aplicação de normas exigentes em matéria de bem‑estar dos animais e método de produção em sintonia com a preferência de certos consumidores por produtos obtidos utilizando substâncias e processos naturais. O método de produção biológica desempenha, assim, um duplo papel societal, visto que, por um lado, abastece um mercado específico que responde à procura de produtos biológicos por parte dos consumidores e, por outro, fornece bens públicos que contribuem para a proteção do ambiente e o bem‑estar dos animais, bem como para o desenvolvimento rural.

[…]

(3)

O quadro jurídico [da União] que rege o setor da produção biológica deverá perseguir o objetivo de garantir uma concorrência leal e o funcionamento adequado do mercado interno dos produtos biológicos, bem como o de manter e justificar a confiança dos consumidores nos produtos rotulados como tal. Além disso, deverá procurar criar condições em que esse setor se possa desenvolver em sintonia com a evolução da produção e do mercado.»

4

O artigo 1.o deste regulamento, sob a epígrafe «Objetivo e âmbito de aplicação», dispõe:

«1.   O presente regulamento constitui a base para o desenvolvimento sustentável da produção biológica, garantindo simultaneamente o funcionamento eficaz do mercado interno, assegurando a concorrência leal, garantindo a confiança dos consumidores e protegendo os seus interesses.

O presente regulamento estabelece os objetivos e princípios comuns destinados a estear as regras nele definidas relativamente:

a)

A todas as fases da produção, preparação e distribuição dos produtos biológicos e ao seu controlo;

b)

À utilização de indicações referentes à produção biológica na rotulagem e na publicidade.

[…]

3.   O presente regulamento é aplicável a qualquer operador que exerça atividades em qualquer fase da produção, preparação e distribuição, relativas aos produtos referidos no n.o 2.

[…]

4.   O presente regulamento é aplicável sem prejuízo de outras disposições comunitárias ou de disposições nacionais conformes com a legislação comunitária relativa aos produtos especificados no presente artigo, tais como as disposições que regem a produção, a preparação, a comercialização, a rotulagem e o controlo, incluindo a legislação em matéria de géneros alimentícios e de alimentação animal.»

5

O artigo 2.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos do disposto no presente regulamento, entende‑se por:

a)

“Produção biológica”, a utilização do método de produção conforme com as regras estabelecidas no presente regulamento em todas as fases da produção, preparação e distribuição;

b)

“Fases da produção, preparação e distribuição”, qualquer fase desde a produção primária de um produto biológico até à sua armazenagem, transformação, transporte, venda ou fornecimento ao consumidor final e, se for caso disso, a rotulagem, publicidade, importação, exportação e atividades de subcontratação;

[…]

i)

“Preparação”, as operações de conservação e/ou transformação de produtos biológicos (incluindo o abate e o corte no que diz respeito aos produtos animais), assim como o acondicionamento, a rotulagem e/ou as alterações relativas ao método de produção biológica introduzidas na rotulagem;

[…]»

6

O artigo 3.o do mesmo regulamento expõe os objetivos da produção biológica nos seguintes termos:

«A produção biológica tem os seguintes objetivos gerais:

a)

Estabelecer um sistema de gestão agrícola sustentável que:

[…]

iv)

Respeite normas exigentes de bem‑estar dos animais e, em especial, as necessidades comportamentais próprias de cada espécie;

[…]

c)

Procurar produzir uma ampla variedade de géneros alimentícios e de outros produtos agrícolas que correspondam à procura, por parte dos consumidores, de bens produzidos através de processos que não sejam nocivos para o ambiente, a saúde humana, a fitossanidade ou a saúde e o bem‑estar dos animais.»

7

O artigo 5.o, alínea h), do Regulamento n.o 834/2007, sob a epígrafe «Princípios específicos aplicáveis à agricultura», dispõe que a agricultura biológica assenta no princípio específico da «[o]bservância de um elevado nível de bem‑estar dos animais respeitando as necessidades próprias de cada espécie».

8

O artigo 14.o, deste regulamento, que tem por objeto as «[r]egras aplicáveis à produção animal», dispõe, no n.o 1:

«Para além das regras gerais de produção agrícola estabelecidas no artigo 11.o, são aplicáveis à produção animal as seguintes regras:

[…]

b)

Quanto às práticas de criação e às condições de alojamento:

[…]

viii)

Qualquer sofrimento, incluindo a mutilação, é reduzido ao mínimo durante a vida toda do animal, nomeadamente no momento do abate;

[…]»

9

O artigo 25.o do referido regulamento, dedicado aos «Logótipos da produção biológica», prevê:

«1.   O logótipo [da União Europeia] da produção biológica pode ser utilizado na rotulagem, apresentação e publicidade dos produtos que satisfazem os requisitos estabelecidos no presente regulamento.

O logótipo [da União Europeia da produção biológica] não pode ser utilizado no caso de produtos provenientes de explorações em conversão e dos géneros alimentícios a que se referem as alíneas b) e c) do n.o 4 do artigo 23.o

2.   Podem ser utilizados logótipos nacionais e privados na rotulagem, apresentação e publicidade dos produtos que satisfazem os requisitos estabelecidos no presente regulamento.

3.   A Comissão, nos termos do n.o 2 do artigo 37.o, estabelece critérios específicos no que respeita à apresentação, composição, tamanho e desenho do logótipo [da União Europeia da produção biológica].»

Regulamento n.o 889/2008

10

O considerando 10 do Regulamento n.o 889/2008 especifica que uma das prioridades da agricultura biológica é «assegurar um elevado grau de bem‑estar dos animais».

11

O artigo 57.o deste regulamento, sob a epígrafe «Logótipo biológico da União Europeia», dispõe,

«Em conformidade com o artigo 25.o, n.o 3, do Regulamento [n.o 834/2007], o logótipo de produção biológica da União Europeia (a seguir denominado “logótipo biológico da [União Europeia]”) deve respeitar o modelo constante da parte A do [A]nexo XI do presente regulamento.

O logótipo biológico da [União Europeia] apenas é utilizado se o produto em causa for produzido em conformidade com os requisitos do Regulamento [n.o 2092/91] e dos seus regulamentos de execução, ou do Regulamento [n.o 834/2007], e os requisitos do presente regulamento.»

Regulamento n.o 1099/2009

12

Os considerandos 2, 4, 18, 20, 24 e 43 do Regulamento n.o 1099/2009 enunciam:

«(2)

A occisão de animais pode provocar dor, aflição, medo ou outras formas de sofrimento nos animais, mesmo nas melhores condições técnicas disponíveis. Certas operações associadas à occisão podem provocar stress e todas as técnicas de atordoamento apresentam inconvenientes. Os operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais deverão tomar as medidas necessárias para evitar a dor e minimizar a aflição e sofrimento dos animais durante o processo de abate ou occisão, tendo em conta as melhores práticas neste domínio e os métodos autorizados ao abrigo do presente regulamento. Por conseguinte, a dor, a aflição ou sofrimento deverão ser consideradas como evitáveis sempre que os operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais infrinjam uma das disposições do presente regulamento ou utilizem práticas autorizadas sem ter em conta a respetiva evolução técnica, provocando assim dor, aflição ou sofrimento nos animais, por negligência ou intencionalmente.

[…]

(4)

O bem‑estar dos animais é um princípio [da União] consagrado no Protocolo n.o 33 relativo à proteção e ao bem‑estar dos animais, anexo ao Tratado [CE] […]. A proteção dos animais no momento do abate ou occisão é um tema que preocupa o público e influencia a atitude dos consumidores em relação aos produtos agrícolas. Por outro lado, reforçar a proteção dos animais no momento do abate contribui para melhorar a qualidade da carne e, indiretamente, tem efeitos positivos ao nível da segurança no trabalho nos matadouros.

[…]

(18)

A Diretiva 93/119/CE [do Conselho, de 22 de dezembro de 1993, relativa à proteção dos animais no abate e/ou occisão (JO 1993, L 340, p. 21)], previa uma derrogação à obrigação de atordoamento no caso de abate religioso realizado em matadouros. Visto que as disposições [do direito da União] aplicáveis ao abate religioso foram transpostas de modo diferente em função dos contextos nacionais, e considerando que as regras nacionais têm em conta dimensões que transcendem o objetivo do presente regulamento, é importante manter a derrogação à exigência de atordoamento dos animais antes do abate, deixando, no entanto, um certo nível de subsidiariedade a cada Estado‑Membro. Assim, o presente regulamento respeita a liberdade de religião e o direito de manifestar a sua religião ou crença através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos, consagrados no artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

[…]

(20)

Muitos métodos de occisão são dolorosos para os animais. O atordoamento torna‑se, assim, necessário, para provocar nos animais um estado de inconsciência e uma perda de sensibilidade antes ou no momento da occisão. Medir a perda de consciência e de sensibilidade de um animal é uma operação complexa que deverá ser realizada de acordo com métodos aprovados cientificamente. Convém, no entanto, assegurar um acompanhamento mediante indicadores, a fim de avaliar a eficiência do procedimento em condições reais.

[…]

(24)

Dependendo da forma como são utilizados durante o processo de abate ou occisão, alguns métodos de atordoamento podem conduzir à morte de um modo que não provoca dor aos animais e minimiza a sua aflição ou o seu sofrimento. Outros métodos de atordoamento podem não conduzir à morte e os animais podem recuperar a consciência ou a sensibilidade enquanto são submetidos a outro procedimento doloroso. Por conseguinte, tais métodos deverão ser completados com outras técnicas que conduzam a uma morte certa antes da recuperação dos animais. É, pois, essencial especificar quais os métodos de atordoamento que têm de ser completados com um método de occisão.

[…]

(43)

No abate sem atordoamento deverá ser praticada uma incisão precisa na garganta com uma faca afiada, para minimizar o sofrimento. Além disso, se os animais não forem imobilizados mecanicamente após a incisão, o processo de sangria pode ser mais demorado, o que prolongará desnecessariamente o sofrimento dos animais. Os bovinos, ovinos e caprinos são as espécies mais frequentemente abatidas através deste procedimento. Por conseguinte, os ruminantes abatidos sem atordoamento deverão ser imobilizados individualmente e mecanicamente.»

13

Nos termos do artigo 2.o do Regulamento n.o 1099/2009, sob a epígrafe «Definições»:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

f)

“Atordoamento”, qualquer processo intencional que provoque a perda de consciência e sensibilidade sem dor, incluindo qualquer processo de que resulte a morte instantânea;

g)

“Rito religioso”, uma série de atos relacionados com o abate de animais, prescritos por uma religião;

[…]»

14

O artigo 3.o deste regulamento, sob a epígrafe «Requisitos gerais aplicáveis à occisão e às operações complementares», dispõe, no n.o 1:

«Deve poupar‑se aos animais qualquer dor, aflição ou sofrimento evitáveis durante a occisão e as operações complementares.»

15

O artigo 4.o do referido regulamento, dedicado aos «[m]étodos de atordoamento», prevê:

«1.   Os animais só podem ser mortos após atordoamento efetuado em conformidade com os métodos e requisitos específicos relacionados com a aplicação desses métodos especificados no anexo I. A perda de consciência e sensibilidade é mantida até à morte do animal.

Os métodos referidos no anexo I que não resultem em morte instantânea (adiante referidos como «atordoamento simples») são seguidos, o mais rapidamente possível, por um processo que assegure a morte, tal como sangria, mielotomia, eletrocussão ou exposição prolongada a anóxia.

[…]

4.   Os requisitos previstos no n.o 1 não se aplicam aos animais que são objeto dos métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos, desde que o abate seja efetuado num matadouro.»

Direito francês

16

O artigo L. 641‑13 do code rural et de la pêche maritime (Código Rural e da Pesca Marítima) dispõe, na versão aplicável ao litígio no processo principal:

«Podem usufruir da menção “agricultura biológica” os produtos agrícolas, transformados ou não, que preencham os requisitos da regulamentação [da União] relativa à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos ou, sendo caso disso, as condições definidas nos cadernos de encargos homologados por portaria do ou dos ministros competentes, sob proposta do [INAO]».

Litígio no processo principal e questão prejudicial

17

Em 24 de setembro de 2012, a associação OABA dirigiu ao Ministro da Agricultura um pedido para, designadamente, pôr termo à publicidade e à comercialização de hambúrgueres de carne bovina da marca «Tendre France», certificados como «halal» e nos quais figura a menção «AB», a que se refere o artigo L. 641‑13 do Código Rural e da Pesca Marítima e emitida pela Ecocert, organismo de certificação de direito privado que opera por conta e sob a autoridade do INAO. Na mesma data, pediu ao INAO que fosse proibido uso da referida menção na carne bovina proveniente de animais abatidos sem atordoamento prévio.

18

Tendo esses pedidos sido tacitamente indeferidos, a associação OABA, por requerimento de 23 de janeiro de 2013, interpôs um recurso por excesso de poder no Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França).

19

Por acórdão de 20 de outubro de 2014, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu, nomeadamente, por um lado, relativamente ao pedido da associação OABA de anulação da recusa tácita do Ministro da Agricultura e do INAO de proibir o uso da menção «AB» nos produtos de carne bovina provenientes de animais abatidos sem atordoamento, que o direito da União definiu taxativamente as regras da produção biológica de bovinos, sem remeter para a adoção de textos de aplicação pelos Estados‑Membros e sem que tais textos sejam necessários para a sua plena eficácia. Assim, o poder regulamentar francês não tem competência para introduzir disposições nacionais destinadas a reiterar, especificar ou completar o direito da União. Consequentemente, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) julgou improcedentes os pedidos da associação OABA.

20

Por outro lado, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) considerou que o pedido dessa associação de anulação da recusa tácita da Ecocert em tomar, em aplicação do Regulamento n.o 834/2007, medidas de cessação da publicidade e da comercialização de produtos da marca «Tendre France» certificados como «halal» e nos quais figura a menção «AB», não podia ser diferido em primeira e última instância. Consequentemente, remeteu para o tribunal administratif de Montreuil (Tribunal Administrativo de Montreuil, França) a decisão dessa parte do processo.

21

Por sentença de 21 de janeiro de 2016, o tribunal administratif de Montreuil (Tribunal Administrativo de Montreuil) julgou esse pedido improcedente.

22

A associação OABA recorreu dessa sentença para o órgão jurisdicional de reenvio, a cour administrative d’appel de Versailles (Tribunal Administrativo de Recurso de Versalhes, França). Em apoio desse recurso, alega que a menção «AB» não pode ser aposta nos produtos provenientes de animais abatidos sem atordoamento prévio, visto que esse método de abate não obedece ao requisito de «normas exigentes de bem‑estar dos animais», previsto nos artigos 3.o e 5.o do Regulamento n.o 834/2007.

23

Sustenta também que, embora o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009 admita a derrogação ao princípio do atordoamento prévio ao abate no quadro de abates rituais de animais de criação, essa derrogação visa apenas prosseguir objetivos de polícia sanitária e de igual respeito pelas convicções e tradições religiosas.

24

A certificação concedida pela Ecocert às carnes certificadas como «halal» provenientes de animais abatidos sem atordoamento prévio viola, além disso, o princípio da confiança dos consumidores relativamente aos produtos biológicos.

25

Tanto o Ministro da Agricultura como a Bionoor, a Ecocert e o INAO concluem pedindo que seja negado provimento ao recurso interposto pela associação OABA.

26

Em primeiro lugar, o Ministro da Agricultura sustenta que nem o Regulamento n.o 834/2007 nem o Regulamento n.o 889/2008 se opõem expressamente à derrogação, nos termos do artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, à regra do atordoamento prévio no quadro particular do abate ritual.

27

Em seguida, a Bionoor alega que não existe nenhuma incompatibilidade, à luz tanto do direito da União como do direito interno, entre a certificação «halal» e a menção «AB», uma vez que a exigência de um abate com atordoamento prévio equivaleria a acrescentar uma condição que o direito positivo não prevê expressamente.

28

Além disso, ainda que o direito da União consagre o princípio do abate com atordoamento prévio, este poderá ser derrogado em nome do livre exercício de cultos.

29

Por último, a Ecocert, cujos pedidos o INAO apoia, considera que não resulta dos objetivos do Regulamento n.o 834/2007, incluindo o objetivo de atingir «normas exigentes de bem‑estar dos animais», uma incompatibilidade de princípio entre a produção biológica e o abate ritual destinado a garantir a liberdade de exercício do culto.

30

O princípio da confiança do consumidor não é, de resto, violado, dado que o uso da menção «AB» foi devidamente autorizado.

31

O órgão jurisdicional de reenvio observa que nenhuma disposição dos Regulamentos n.os 834/2007, 889/2008 e 1099/2009 define expressamente a ou as formas de abate de animais que são aptas a satisfazer os objetivos de bem‑estar dos animais e de redução do sofrimento dos animais atribuídos à produção biológica.

32

Nestas condições, a resposta a dar ao fundamento segundo o qual as carnes provenientes de animais que foram objeto de um abate ritual sem atordoamento prévio não podem usufruir do uso da menção «AB», que é determinante para a decisão do litígio principal, revela uma séria dificuldade de interpretação do direito da União.

33

Neste contexto, a cour administrative d’appel de Versailles (Tribunal Administrativo de Recurso de Versalhes) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«As regras aplicáveis do direito da União […] que resultam designadamente:

do artigo 13.o [TFUE],

do Regulamento [n.o 834/2007], cujas modalidades de execução foram estabelecidas pelo Regulamento [n.o 889/2008],

e do Regulamento [n.o 1099/2009]

devem ser interpretadas no sentido de que autorizam ou proíbem a atribuição do rótulo europeu de “[AB]” a produtos com origem em animais que foram objeto de um abate ritual sem atordoamento prévio, efetuado nas condições estabelecidas no Regulamento [n.o 1099/2009]?»

Quanto à questão prejudicial

34

A título preliminar, há que salientar que, ao referir‑se respetivamente a um rótulo europeu «AB» e à menção «AB», o órgão jurisdicional de reenvio e as partes no processo principal pretendam visar, na realidade, o logótipo biológico da União Europeia na aceção do artigo 25.o do Regulamento n.o 834/2007 e do artigo 57.o do Regulamento n.o 889/2008.

35

Nestas condições, há que considerar que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o Regulamento n.o 834/2007, nomeadamente os seus artigos 3.o e 14.o, n.o 1, alínea b), viii), lido à luz do artigo 13.o TFUE, deve ser interpretado no sentido de que autoriza a aposição do logótipo biológico da União Europeia nos produtos provenientes de animais que foram objeto de abate ritual sem atordoamento prévio, efetuado em conformidade com as condições fixadas no Regulamento n.o 1099/2009, nomeadamente no seu artigo 4.o, n.o 4.

36

A este respeito, cabe notar que o considerando 1 do Regulamento n.o 834/2007 enuncia que a produção biológica, que é um sistema global de gestão das explorações agrícolas e de produção de géneros alimentícios, se caracteriza pela «aplicação de normas exigentes em matéria de bem‑estar dos animais», ao passo que o considerando 10 do Regulamento n.o 889/2008 reconhece o bem‑estar dos animais como «uma prioridade da criação animal biológica». O artigo 3.o, alínea a), iv), e alínea c), do Regulamento n.o 834/2007 dispõe também que a produção biológica visa, nomeadamente, «[e]stabelecer um sistema de gestão agrícola sustentável que […] [r]espeite normas exigentes de bem‑estar dos animais» e «produzir uma ampla variedade de géneros alimentícios e de outros produtos agrícolas que correspondam à procura, por parte dos consumidores, de bens produzidos através de processos que não sejam nocivos para […] o bem‑estar dos animais». O artigo 5.o, alínea h), do referido regulamento prevê ainda que a agricultura biológica visa a «[o]bservância de um elevado nível de bem‑estar dos animais respeitando as necessidades próprias de cada espécie».

37

A obrigação de minimizar o sofrimento dos animais, que está consagrada no artigo 14.o, n.o 1, alínea b), viii), do Regulamento n.o 834/2007, contribui para concretizar este objetivo, que consiste em assegurar um elevado nível de bem‑estar dos animais.

38

Ao sublinhar, em várias ocasiões, a sua vontade de assegurar um elevado nível de bem‑estar dos animais no quadro da agricultura biológica, o legislador da União quis frisar que este modo de produção agrícola se caracteriza pela observância de normas reforçadas em matéria de bem‑estar dos animais em todos os lugares e em todas as fases da produção em que é possível melhorar ainda mais o bem‑estar.

39

De acordo, nomeadamente, com o seu artigo 1.o, n.o 3, o Regulamento n.o 834/2007 é aplicável a qualquer operador que exerça atividades em qualquer fase da produção, preparação e distribuição, relativas aos produtos referidos no n.o 2 desta disposição. Ora, nos termos do artigo 2.o, alínea i), do referido regulamento, a «preparação» inclui, nomeadamente, o abate dos animais.

40

A este respeito, este regulamento limita‑se a afirmar, no artigo 14.o, n.o 1, alínea b), viii), que «[q]ualquer sofrimento, incluindo a mutilação, é reduzido ao mínimo durante a vida toda do animal, nomeadamente no momento do abate».

41

É certo que nenhuma das disposições do Regulamento n.o 834/2007 ou do Regulamento n.o 889/2008 define expressamente o modo ou os modos de abate dos animais adequados para minimizar o sofrimento dos animais e, por conseguinte, para concretizar o objetivo de assegurar um elevado nível de bem‑estar dos animais.

42

Todavia, o Regulamento n.o 834/2007 não pode ser lido independentemente do Regulamento n.o 1099/2009.

43

Com efeito, por um lado, este último regulamento regula especificamente o abate dos animais.

44

Por outro lado, a proteção do bem‑estar dos animais constitui o objetivo principal do Regulamento n.o 1099/2009, como decorre do próprio título deste regulamento e do seu considerando 2, isto, de acordo com o artigo 13.o TFUE, por força do qual a União e os Estados‑Membros devem ter plenamente em conta as exigências do bem‑estar dos animais, quando formulam e executam a sua política (v., neste sentido, Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o., C‑426/16, EU:C:2018:335, n.os 63 e 64).

45

A este respeito, o Regulamento n.o 1099/2009 contribui, como enunciam os seus considerandos 4 e 24, respetivamente, para o «reforçar a proteção dos animais no momento do abate» e favorecer «alguns métodos de atordoamento [que] podem conduzir à morte de um modo que não provoca dor aos animais e minimiza a sua aflição ou o seu sofrimento».

46

Além disso, nos termos do artigo 3.o do Regulamento n.o 1099/2009, «[d]eve poupar‑se aos animais qualquer dor, aflição ou sofrimento evitáveis durante a occisão». Este preceito geral aplicável à occisão dos animais é, em particular, concretizado no artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento, que prevê, por um lado, que «[o]s animais só podem ser mortos após atordoamento» e, por outro, que «[a] perda de consciência e sensibilidade é mantida até à morte do animal».

47

O artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009, lido em conjugação com o considerando 20 deste regulamento, estabelece, assim, o princípio do atordoamento dos animais antes da sua occisão e tradu‑lo mesmo numa obrigação. Com efeito, como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 43 das suas conclusões, estudos científicos demonstraram que o atordoamento constitui a técnica que menos afeta o bem‑estar dos animais no momento do abate.

48

Embora o artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, lido à luz do considerando 18 deste regulamento, admita a prática do abate ritual, em que os animais podem ser mortos sem atordoamento prévio, esta forma de abate, que só a título derrogatório é autorizada na União e unicamente a fim de assegurar o respeito da liberdade religiosa (v., neste sentido, Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o., C‑426/16, EU:C:2018:335, n.os 55 a 57), não atenua a dor, a aflição ou o sofrimento dos animais tão eficazmente como o abate precedido de atordoamento, que, de acordo com o artigo 2.o, alínea f), deste regulamento, lido à luz do seu considerando 20, é necessário para provocar nos animais um estado de inconsciência e de perda de sensibilidade para reduzir consideravelmente o seu sofrimento.

49

A este respeito, cabe observar que, embora o Regulamento n.o 1099/2009 especifique, no seu considerando 43, que o abate sem atordoamento prévio exige uma incisão precisa na garganta com uma faca afiada para «minimizar» o sofrimento, a utilização de tal técnica não permite reduzir «ao mínimo» o sofrimento no sentido do artigo 14.o, n.o 1, alínea b), viii), do Regulamento n.o 834/2007.

50

Assim, contrariamente ao que tanto o Governo francês como os recorridos no processo principal alegam nas observações escritas, os métodos específicos de abate prescritos por ritos religiosos, sem atordoamento prévio e que são admitidos pelo artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, não equivalem, em termos de garantia de um elevado nível de bem‑estar dos animais no momento da occisão, ao método de abate com atordoamento prévio, em princípio imposto pelo artigo 4.o, n.o 1, deste regulamento.

51

Importa ainda salientar que o considerando 3 do Regulamento n.o 834/2007 enuncia o objetivo de «manter e justificar a confiança dos consumidores nos produtos rotulados como [produtos biológicos]». A este respeito, importa assegurar que aos consumidores seja dada a garantia de que os produtos que ostentam o logótipo biológico da União Europeia foram efetivamente obtidos em conformidade com as mais elevadas normas, nomeadamente em matéria de bem‑estar dos animais.

52

Atendendo às considerações expostas, há que responder à questão submetida que o Regulamento n.o 834/2007, nomeadamente os seus artigos 3.o e 14.o, n.o 1, alínea b), viii), lido à luz do artigo 13.o TFUE, deve ser interpretado no sentido de que não autoriza a aposição do logótipo biológico da União Europeia nos produtos provenientes de animais que foram objeto de abate ritual sem atordoamento prévio, efetuado em conformidade com as condições fixadas no Regulamento n.o 1099/2009, nomeadamente no seu artigo 4.o, n.o 4.

Quanto às despesas

53

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

O Regulamento (CE) n.o 834/2007 do Conselho, de 28 de junho de 2007, relativo à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 2092/91, nomeadamente os seus artigos 3.o e 14.o, n.o 1, alínea b), viii), lido à luz do artigo 13.o TFUE, deve ser interpretado no sentido de que não autoriza a aposição do logótipo biológico da União Europeia, referido no artigo 57.o, primeiro parágrafo, do Regulamento (CE) n.o 889/2008 da Comissão, de 5 de setembro de 2008, que estabelece normas de execução do Regulamento n.o 834/2007, conforme alterado pelo Regulamento (UE) n.o 271/2010, de 24 de março de 2010, nos produtos provenientes de animais que foram objeto de abate ritual sem atordoamento prévio, efetuado em conformidade com as condições fixadas no Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão, nomeadamente no seu artigo 4.o, n.o 4.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.