ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

13 de novembro de 2018 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União Europeia — Artigos 18.o e 21.o TFUE — Pedido dirigido a um Estado‑Membro por um Estado terceiro com vista à extradição de um cidadão da União, nacional de outro Estado‑Membro, que exerceu o seu direito de livre circulação no primeiro desses Estados‑Membros — Pedido apresentado para efeitos de execução de uma pena privativa de liberdade e não para efeitos de procedimento criminal — Proibição de extraditar aplicada apenas aos cidadãos nacionais — Restrição à livre circulação — Justificação fundada na prevenção da impunidade — Proporcionalidade»

No processo C‑247/17,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Korkein oikeus (Supremo Tribunal, Finlândia), por decisão de 12 de maio de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de maio de 2017, no processo relativo à extradição de

Denis Raugevicius,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, M. Vilaras, E. Regan, F. Biltgen e C. Lycourgos, presidentes de secção, M. Ilešič, E. Levits, L. Bay Larsen, C. G. Fernlund (relator) e S. Rodin, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: M. Aleksejev, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 14 de maio de 2018,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo finlandês, por H. Leppo, na qualidade de agente,

em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e J. Pavliš, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por T. Henze, M. Hellmann e S. Weinkauff, na qualidade de agentes,

em representação da Irlanda, por M. Browne, J. Quaney e A. Joyce, na qualidade de agentes, assistidos por M. Gray, BL,

em representação do Governo cipriota, por E. Zachariadou, E. Neofytou e M. Spiliotopoulou, na qualidade de agentes,

em representação do Governo lituano, por D. Kriaučiūnas e V. Čepaitė, na qualidade de agentes,

em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér, G. Koós e R. Kissné Berta, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por G. Eberhard, na qualidade de agente,

em representação do Governo romeno, por C.‑R. Canţăr, R. Mangu, E. Gane e C.‑M. Florescu, na qualidade de agentes,

em representação do Governo sueco, por A. Falk, H. Shev, C. Meyer‑Seitz, L. Zettergren e A. Alriksson, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por S. Grünheid, R. Troosters e M. Huttunen, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 25 de julho de 2018,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 18.o, primeiro parágrafo, e do artigo 21.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um pedido de extradição dirigido pelas autoridades russas às autoridades finlandesas relativo a Denis Raugevicius, nacional lituano e russo, para efeitos da execução de uma pena privativa de liberdade.

Quadro jurídico

Convenção Europeia de Extradição

3

O artigo 1.o da Convenção Europeia de Extradição, de 13 de dezembro de 1957 (a seguir «Convenção Europeia de Extradição»), estipula:

«As Partes Contratantes comprometem‑se a entregar reciprocamente, segundo as regras e condições determinadas pelos artigos seguintes, as pessoas perseguidas em resultado de uma infração ou procuradas para o cumprimento de uma pena ou medida de segurança pelas autoridades judiciárias da Parte requerente.»

4

O artigo 6.o desta convenção, sob a epígrafe «Extradição de nacionais», prevê:

a)

As Partes Contratantes terão a faculdade de recusar a extradição dos seus nacionais.

b)

Cada Parte Contratante poderá, mediante declaração feita no momento da assinatura ou do depósito do respetivo instrumento de ratificação ou adesão, definir, no que lhe diz respeito, o termo “nacionais” para efeitos da presente Convenção.

c)

A qualidade de nacional será apreciada no momento em que seja tomada a decisão sobre a extradição. […]

2.   Se a Parte requerida não extraditar o seu nacional, deverá, a pedido da Parte requerente, submeter o assunto às autoridades competentes, a fim de que, se for caso disso, o procedimento criminal possa ser instaurado. Para esse efeito, os autos, informações e objetos relativos à infração serão enviados gratuitamente pela via prevista no n.o 1 do artigo 12.o A Parte requerente será informada do seguimento que tiver sido dado ao pedido.»

5

O artigo 10.o da referida convenção, sob a epígrafe «Prescrição», dispõe:

«A extradição não será concedida se o procedimento criminal ou a pena estiverem extintos por prescrição, nos termos da legislação da Parte requerente ou da Parte requerida.»

6

Nos termos do artigo 17.o da mesma convenção:

«Se a extradição é solicitada simultaneamente por vários Estados, ou seja, pelo mesmo facto, seja por factos diferentes, a Parte requerida tomará uma decisão tendo em conta todas as circunstâncias e, em especial, a gravidade relativa e o lugar das infrações, as datas respetivas dos pedidos, a nacionalidade da pessoa reclamada e a possibilidade de uma extradição posterior a um outro Estado.»

7

A República da Finlândia fez uma declaração, na aceção do artigo 6.o da Convenção Europeia de Extradição (a seguir «declaração»), nos seguintes termos:

«Para efeitos da presente Convenção, o termo “nacionais” designa os nacionais da Finlândia, da Dinamarca, da Islândia, da Noruega e da Suécia, bem como os estrangeiros com domicílio nesses Estados.»

Direito finlandês

8

Nos termos do § 9, terceiro parágrafo, da Constituição finlandesa, na versão aplicável aos factos no processo principal, «[n]enhum cidadão finlandês pode ser extraditado ou transferido para outro país contra a sua vontade. No entanto, a lei pode prever que um cidadão finlandês possa, em virtude de uma infração ou para efeitos de um processo […], ser extraditado ou transferido para um país no qual os direitos do Homem e a sua proteção judicial sejam garantidos».

9

Por força do § 2 da rikoksen johdosta tapahtuvasta luovuttamisesta annettu laki (456/1970) [Lei (456/1970) relativa à extradição por infração, a seguir «lei relativa à extradição»], um cidadão finlandês não pode ser extraditado.

10

O § 14, primeiro parágrafo, da lei relativa à Extradição prevê:

«O Ministério da Justiça decide se deve deferir o pedido de extradição.»

11

O § 16, primeiro parágrafo, desta lei dispõe:

«Se, no momento do inquérito ou num ato enviado ao Ministério da Justiça antes de ter sido proferida uma decisão no processo, a pessoa que é objeto de um pedido de extradição tiver declarado que considera que os requisitos legais da extradição não estão reunidos, o Ministério, se o pedido de extradição não for imediatamente indeferido, pede o parecer do Korkein oikeus [(Supremo Tribunal, Finlândia)] antes de tomar uma decisão sobre o processo. O Ministério pode solicitar um parecer igualmente noutros casos, quando o considerar necessário.»

12

O § 17 da lei relativa à extradição tem a seguinte redação:

«Compete ao Korkein Oikeus [(Supremo Tribunal)] analisar, à luz do disposto nos §§ 1 a 10 da presente lei e das disposições correspondentes de um acordo internacional que vincula a Finlândia, se o pedido de extradição pode ser deferido.

Caso o Korkein Oikeus [(Supremo Tribunal)] considere que há um obstáculo à extradição, não é possível deferir o pedido de extradição.»

13

Uma pena privativa de liberdade pronunciada por um tribunal de um Estado que não faz parte da União Europeia pode ser cumprida na Finlândia em aplicação da kansainvälisestä yhteistoiminnasta eräiden rikosoikeudellisten seuraamusten täytäntöönpanos[s]a annettu laki (21/1987) [Lei (21/1987) sobre a cooperação internacional no âmbito da execução de determinadas sanções penais]. O § 3 desta lei prevê:

«Uma pena proferida por um tribunal de um Estado estrangeiro pode ser executada na Finlândia se:

1)

a condenação tiver adquirido força de caso julgado e for executória no Estado em que foi proferida;

[…]

3)

o Estado no qual a pena tiver sido proferida o tiver pedido ou o tiver consentido.

Uma pena privativa de liberdade pode ser executada na Finlândia em conformidade com o primeiro parágrafo se a pessoa condenada for um cidadão finlandês ou um nacional estrangeiro que reside de modo permanente na Finlândia e se a pessoa condenada em tal tiver consentido. […]»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14

Em 1 de fevereiro de 2011, D. Raugevicius foi declarado culpado, por um tribunal russo, de um crime em matéria de estupefacientes, que consiste na detenção, sem intenção de venda, de uma mistura contendo 3,040 gramas de heroína, pelo qual foi condenado a prisão com pena suspensa.

15

Em 16 de novembro de 2011, um tribunal com sede na região de Leninegrado (Rússia) revogou a suspensão devido ao desrespeito das obrigações de controlo e condenou D. Raugevicius a uma pena de prisão de quatro anos.

16

Em 12 de julho de 2016, foi emitido um mandado de detenção internacional contra D. Raugevicius.

17

Em 12 de dezembro de 2016, D. Raugevicius foi condenado, na Finlândia, por um tribunal de primeira instância a uma medida de proibição de viajar para fora desse Estado‑Membro.

18

Em 27 de dezembro de 2016, a Federação Russa dirigiu às autoridades finlandesas um pedido destinado a que D. Raugevicius fosse detido e extraditado para a Rússia para fins de execução de uma pena privativa de liberdade.

19

D. Raugevicius opôs‑se à sua extradição invocando, nomeadamente, o facto de viver na Finlândia há muito tempo e de ser pai de duas crianças residentes neste Estado‑Membro e com nacionalidade finlandesa.

20

Em 7 de fevereiro de 2017, o Ministério da Justiça apresentou ao Korkein oikeus (Supremo Tribunal) um pedido de parecer relativo à questão de saber se existe algum obstáculo jurídico à extradição de D. Raugevicius para a Rússia.

21

O Korkein oikeus (Supremo Tribunal) considera que é um «órgão jurisdicional», na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 267.o TFUE, mesmo quando intervém para emitir um parecer no âmbito de um pedido de extradição. Afirma que cumpre os critérios relativos a este conceito, que foram recordados pelo Tribunal de Justiça, nomeadamente no seu Acórdão de 19 de dezembro de 2012, Epitropos tou Elegktikou Synedriou (C‑363/11, EU:C:2012:825, n.o 18), tendo em conta a sua origem legal, a sua residência, o caráter vinculativo da sua jurisdição, a natureza contraditória do processo, a aplicação que faz das regras de direito, bem como a sua independência. Além disso, foi‑lhe efetivamente submetido um litígio, uma vez que D. Raugevicius impugnou a sua extradição, e o Ministério da Justiça não considerou que havia que indeferir imediatamente o pedido da Federação Russa. Por último, o Korkein oikeus (Supremo Tribunal) acrescenta que o parecer que deve proferir é vinculativo, no sentido de que o pedido de extradição em causa não pode ser deferido se considerar que existe um obstáculo à extradição solicitada.

22

O órgão jurisdicional de reenvio considera que, no Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630), o Tribunal de Justiça considerou, com fundamento nos artigos 18.o e 21.o TFUE, que as regras aplicáveis em matéria de extradição são suscetíveis de afetar a liberdade de nacionais dos outros Estados‑Membros de circular e de residir no território dos Estados‑Membros. Por conseguinte, há que examiná‑las igualmente do ponto de vista da não discriminação.

23

O Korkein oikeus (Supremo Tribunal) refere, no entanto, a existência de diferenças entre o presente processo, relativo a um pedido de extradição para efeitos de cumprimento de uma pena, e o processo que deu origem a esse acórdão, relativo a um pedido de extradição para efeitos de procedimento criminal.

24

Em especial, este órgão jurisdicional salienta que, embora exista, em princípio, uma obrigação, para o Estado‑Membro requerido, de proceder criminalmente contra os seus próprios nacionais caso não extradite estes últimos, não existe obrigação equivalente de fazer cumprir, no seu território, a pena a que foram condenados por um país terceiro.

25

Nestas condições, o Korkein oikeus (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Devem as disposições nacionais relativas à extradição por uma infração penal ser avaliadas da mesma forma no que respeita à livre circulação de nacionais de outro Estado‑Membro, independentemente da questão de saber se um pedido de extradição de um Estado terceiro, assente numa convenção de extradição, é apresentado para efeitos da execução de uma pena de prisão ou — como sucede no processo Petruhhin [que deu origem ao Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630)] — para efeitos de exercício da ação penal? É relevante o facto de a pessoa cuja extradição é requerida possuir, a par da cidadania da União, também a nacionalidade do Estado que apresentou o pedido de extradição?

2)

Um regime jurídico nacional nos termos do qual um Estado‑Membro só não extradita os seus próprios nacionais, para efeitos da execução de uma pena fora do território da União Europeia, desfavorece injustificadamente os nacionais de outro Estado‑Membro? Num caso de execução de uma pena, devem também ser aplicados mecanismos do direito da União que permitam concretizar um objetivo por si só legítimo de forma menos intrusiva? Como se deve responder a um pedido de extradição, caso o mesmo tenha sido comunicado ao outro Estado‑Membro em aplicação deste tipo de mecanismos, mas este não tenha tomado quaisquer medidas a respeito do seu nacional, por exemplo devido à existência de obstáculos jurídicos?»

Quanto às questões prejudiciais

26

Com as suas questões, que há que analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que, perante um pedido de extradição, apresentado por um país terceiro, de um cidadão da União que exerceu o seu direito de livre circulação, para efeitos não de procedimento criminal mas da execução de uma pena privativa de liberdade, o Estado‑Membro requerido, cujo direito nacional proíbe a extradição dos seus próprios nacionais para fora da União com vista à execução de uma pena e prevê a possibilidade de essa pena proferida no estrangeiro ser cumprida no seu território, é obrigado a verificar se existe uma medida alternativa à extradição, menos lesiva para o exercício do seu direito de livre circulação.

27

A este respeito, importa recordar que um cidadão da União, como D. Raugevicius, nacional de um Estado‑Membro, no caso em apreço, a República da Lituânia, que se deslocou para outro Estado‑Membro, no presente caso, a República da Finlândia, fez uso da sua liberdade de circulação, pelo que a sua situação está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 18.o TFUE, que consagra o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade (v., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 31).

28

Além disso, uma regra nacional que proíbe a extradição apenas dos cidadãos finlandeses introduz uma diferença de tratamento entre estes e os nacionais dos outros Estados‑Membros. Ao fazê‑lo, tal regra cria uma desigualdade de tratamento suscetível de afetar a liberdade de circulação destes últimos na União (v., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 32).

29

A circunstância de um nacional de um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro ao qual foi dirigido o pedido de extradição, como D. Raugevicius, ter igualmente a nacionalidade do Estado terceiro autor desse pedido não invalida esta constatação. Com efeito, a dupla nacionalidade de um Estado‑Membro e de um Estado terceiro não pode privar o interessado das liberdades que para ele decorrem do direito da União enquanto nacional de um Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 7 de julho de 1992, Micheletti e o., C‑369/90, EU:C:1992:295, n.o 15).

30

Daqui resulta que, numa situação como está em causa no processo principal, a desigualdade de tratamento que consiste em permitir a extradição de um cidadão da União, nacional de outro Estado‑Membro, como D. Raugevicius, traduz‑se numa restrição à liberdade de circulação, na aceção do artigo 21.o TFUE (Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 33).

31

Tal restrição só pode ser justificada se se basear em considerações objetivas e se for proporcionada ao objetivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional (Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 34 e jurisprudência referida).

32

A este respeito, o Tribunal de Justiça admitiu que o objetivo de evitar o risco de impunidade das pessoas que tenham cometido uma infração deve ser considerado legítimo e justificar uma medida restritiva, desde que esta seja necessária à proteção dos interesses que a mesma visa garantir e na medida em que tais objetivos não possam ser alcançados através de medidas menos restritivas (Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.os 37 e 38).

33

Deste modo, o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 39 do Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630), que a extradição é um procedimento que visa lutar contra a impunidade de uma pessoa que se encontre num território diferente daquele em que pretensamente cometeu uma infração. Nesse acórdão, que dizia respeito a um pedido de extradição para efeitos de procedimento criminal, o Tribunal de Justiça salientou, nesse mesmo número, que a não extradição dos nacionais é geralmente compensada pela possibilidade de o Estado‑Membro requerido proceder criminalmente contra os seus próprios nacionais por infrações graves cometidas fora do seu território, apesar de esse Estado‑Membro ser, regra geral, incompetente para julgar esses factos quando nem o autor nem a vítima da suposta infração têm a nacionalidade desse Estado‑Membro. O Tribunal de Justiça concluiu que a extradição permite, assim, evitar que infrações cometidas no território de um Estado por pessoas que fugiram desse Estado fiquem impunes.

34

Não obstante, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se essas considerações se aplicam igualmente no caso de um pedido de extradição para efeitos da execução de uma pena.

35

Este órgão jurisdicional tem dúvidas a este respeito alegando que, embora a Convenção Europeia de Extradição preveja, no seu artigo 6.o, n.o 2, a possibilidade de o Estado requerido instaurar um procedimento criminal contra aos seus nacionais que esse mesmo Estado não extradita, não impõe a um Estado que recusa a extradição dos seus nacionais que adote medidas que visem a execução de uma pena pronunciada por um tribunal de outro Estado parte nesta convenção. O referido órgão jurisdicional e vários dos governos que apresentaram observações no Tribunal de Justiça consideram, igualmente, que a instauração de novo procedimento criminal contra uma pessoa que já foi julgada e condenada no Estado requerente é suscetível de ser contrária ao princípio ne bis in idem segundo o qual uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pela mesma infração.

36

No entanto, embora o princípio ne bis in idem, tal como é garantido pelo direito nacional, possa constituir um obstáculo ao procedimento criminal instaurado por um Estado‑Membro contra pessoas visadas por um pedido de extradição para fins de execução de uma pena, também é verdade que, para evitar o risco de deixar impunes essas pessoas, existem mecanismos no direito nacional e/ou no direito internacional que permitem que essas pessoas cumpram as suas penas, nomeadamente, no Estado do qual são nacionais, aumentando, assim, as probabilidades de reintegração social após o cumprimento das suas penas.

37

É esse o caso, designadamente, da Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, de 21 de março de 1983, de que todos os Estados‑Membros, tal como a Federação Russa, são partes. Com efeito, esta convenção permite a uma pessoa que foi condenada no território de um Estado signatário da referida convenção, em conformidade com o artigo 2.o desta última, pedir para ser transferida para o território do seu país de origem para aí cumprir a condenação que lhe foi infligida, indicando os considerandos da mesma convenção que o objetivo dessa transferência é, designadamente, favorecer a reinserção social das pessoas condenadas, ao permitir aos estrangeiros que são privados da sua liberdade em consequência de uma infração penal que cumpram a sua condenação no seu meio social de origem (v., neste sentido, Acórdão de 20 de janeiro de 2005, Laurin Effing, C‑302/02, EU:C:2005:36, n.os 12 e 13).

38

Além disso, alguns Estados, como a República da Finlândia, preveem igualmente a possibilidade de os seus próprios nacionais cumprirem no seu território uma pena proferida noutro Estado.

39

Por conseguinte, no que respeita a um pedido de extradição com vista à execução de uma pena, há que salientar, por um lado, que, embora o Estado‑Membro requerido possa não proceder criminalmente contra os seus próprios nacionais, existem, no entanto, mecanismos para que estes possam cumprir a sua pena no território desse Estado‑Membro. Por outro lado, em contrapartida, a extradição permite evitar que os cidadãos da União que não são nacionais do referido Estado‑Membro se eximam à execução da sua pena.

40

Na medida em que, como foi recordado no n.o 33 do presente acórdão, a extradição pode evitar o risco de impunidade dos nacionais de Estados‑Membros diferentes do Estado‑Membro requerido e onde a regulamentação nacional em causa no processo principal permite extraditar os nacionais de Estados‑Membros diferentes da República da Finlândia, importa examinar o caráter proporcionado desta regulamentação verificando se existem medidas que permitam alcançar de modo igualmente eficaz este objetivo, mas que seriam menos ofensivas da liberdade de circulação destes últimos nacionais (Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 41), tendo em conta todas as circunstâncias do processo, de facto e de direito.

41

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que D. Raugevicius se opôs à sua extradição, com o fundamento de que vivia na Finlândia desde há muito tempo e que é pai de duas crianças de nacionalidade finlandesa, residentes nesse Estado‑Membro. Estas circunstâncias não foram postas em causa no âmbito do processo no Tribunal de Justiça. Assim, não se pode excluir que o D. Raugevicius possa ser considerado um cidadão estrangeiro que reside de modo permanente na Finlândia, na aceção do § 3, n.o 2, da Lei sobre a cooperação internacional no âmbito da execução de determinadas sanções penais.

42

Ora, se for esse o caso, resulta desta disposição que D. Raugevicius pode cumprir no território finlandês a pena à qual foi condenado na Rússia, desde que este último Estado bem como o próprio D. Raugevicius em tal consintam.

43

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, o estatuto de cidadão da União tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros (v., nomeadamente, Acórdãos de 20 de setembro de 2001, Grzelczyk, C‑184/99, EU:C:2001:458, n.o 31; de 8 de março de 2011, Ruiz Zambrano, C‑34/09, EU:C:2011:124, n.o 41; e de 5 de junho de 2018, Coman e o., C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 30).

44

Qualquer cidadão da União pode, por conseguinte, invocar a proibição de discriminação em razão da nacionalidade que figura no artigo 18.o TFUE, em todas as situações abrangidas pelo domínio de aplicação ratione materiae do direito da União, incluindo essas situações, como no presente caso, o exercício da liberdade fundamental de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros consagrada no artigo 21.o TFUE (v. Acórdãos de 4 de outubro de 2012, Comissão/Áustria, C‑75/11, EU:C:2012:605, n.o 39, e de 11 de novembro de 2014, Dano, C‑333/13, EU:C:2014:2358, n.o 59).

45

Além disso, embora, na falta de regras de direito da União que regem a extradição de nacionais dos Estados‑Membros para a Rússia, os Estados‑Membros continuem a ser competentes para adotar tais regras, esses mesmos Estados‑Membros são obrigados a exercer essa competência no respeito pelo direito da União, designadamente a proibição de discriminação prevista no artigo 18.o TFUE bem como a liberdade de circular e de residir no território dos Estados‑Membros garantida no artigo 21.o, n.o 1.

46

Ora, tendo em conta o objetivo que consiste em evitar o risco de impunidade, os nacionais finlandeses, por um lado, e os nacionais de outros Estados‑Membros que residem de modo permanente na Finlândia e que demonstrem assim um grau de integração certo na sociedade desse Estado, por outro, encontram‑se numa situação comparável (v., por analogia, Acórdão de 6 de outubro de 2009, Wolzenburg, C‑123/08, EU:C:2009:616, n.o 67). Compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar que D. Raugevicius se insere nesta categoria de nacionais de outros Estados‑Membros.

47

Por conseguinte, os artigos 18.o e 21.o TFUE requerem que os nacionais de outros Estados‑Membros que residam de modo permanente na Finlândia e que são objeto de um pedido de extradição por um país terceiro, para fins de execução de uma pena privativa de liberdade, beneficiem da regra que proíbe a extradição aplicada aos nacionais finlandeses, e possam, nas mesmas condições que estes últimos, cumprir a sua pena no território finlandês.

48

Se, pelo contrário, não se puder considerar que um cidadão como D. Raugevicius reside de modo permanente no Estado‑Membro requerido, a questão da sua extradição é regulada com base no direito nacional ou no direito internacional aplicável.

49

Há que precisar igualmente que, na hipótese de o Estado‑Membro requerido ponderar extraditar um nacional de outro Estado‑Membro a pedido de um país terceiro, esse primeiro Estado‑Membro deve verificar se a extradição não viola os direitos consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nomeadamente no seu artigo 19.o (v., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin, C‑182/15, EU:C:2016:630, n.o 60).

50

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que, perante um pedido de extradição, apresentado por um país terceiro, de um cidadão da União que tenha exercido o seu direito de livre circulação, para efeitos não de procedimento criminal mas da execução de uma pena privativa de liberdade, o Estado‑Membro requerido, cujo direito nacional proíbe a extradição dos seus próprios nacionais para fora da União para fins da execução de uma pena e prevê a possibilidade de essa pena proferida no estrangeiro ser cumprida no seu território, é obrigado a assegurar a esse cidadão da União, desde que este resida de modo permanente no seu território, um tratamento idêntico ao que reserva aos seus próprios nacionais em matéria de extradição.

Quanto às despesas

51

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

Os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que, perante um pedido de extradição, apresentado por um país terceiro, de um cidadão da União Europeia que tenha exercido o seu direito de livre circulação, para efeitos não de procedimento criminal mas da execução de uma pena privativa de liberdade, o Estado‑Membro requerido, cujo direito nacional proíbe a extradição dos seus próprios nacionais para fora da União para fins da execução de uma pena e prevê a possibilidade de essa pena proferida no estrangeiro ser cumprida no seu território, é obrigado a assegurar a esse cidadão da União, desde que este resida de modo permanente no seu território, um tratamento idêntico ao que reserva aos seus próprios nacionais em matéria de extradição.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: finlandês.