ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

25 de julho de 2018 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados — Mutagénese — Diretiva 2001/18/CE — Artigos 2.o e 3.o — Anexos I A e I B — Conceito de “organismo geneticamente modificado” — Técnicas/métodos de modificação genética convencionalmente utilizados e considerados seguros — Novas técnicas/métodos de mutagénese — Riscos para a saúde humana e o ambiente — Margem de apreciação dos Estados‑Membros na transposição da diretiva — Diretiva 2002/53/CE — Catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas — Variedades de plantas resistentes aos herbicidas — Artigo 4.o — Admissibilidade no catálogo comum das variedades geneticamente modificadas obtidas por mutagénese — Exigência em matéria de proteção da saúde humana e do ambiente — Isenção»

No processo C‑528/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentado pelo Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França), por decisão de 3 de outubro de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 17 de outubro de 2016, no processo

Confédération paysanne,

Réseau Semences Paysannes,

Les Amis de la Terre France,

Collectif Vigilance OGM et Pesticides 16,

Vigilance OG2M,

CSFV 49,

OGM dangers,

Vigilance OGM 33,

Fédération Nature et Progrès

contra

Premier ministre,

Ministre de l’Agriculture, de l’Agroalimentaire et de la Forêt,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidente, L. Bay Larsen (relator), T. von Danwitz, J. L. da Cruz Vilaça, E. Levits, C. G. Fernlund e C. Vajda, presidentes de secção, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, C. Toader, M. Safjan, E. Jarašiūnas, S. Rodin e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: M. Bobek,

secretário: V. Giacobbo‑Peyronnel, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 3 de outubro de 2017,

considerando as observações apresentadas:

em representação da Confédération paysanne, da Réseau Semences Paysannes, da Les Amis de la Terre France, da Collectif Vigilance OGM et Pesticides 16, da Vigilance OG2M, da CSFV 49, da OGM dangers, da Vigilance OGM 33 e da Fédération Nature et Progrès, por G. Tumerelle, avocat,

em representação do Governo francês, por D. Colas, J. Traband e S. Horrenberger, na qualidade de agentes,

em representação do Governo helénico, por G. Kanellopoulos e A. Vasilopoulou, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman e M. A. M. de Ree, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por G. Eberhard, na qualidade de agente,

em representação do Governo sueco, por A. Falk, C. Meyer‑Seitz, H. Shev, L. Swedenborg e F. Bergius, na qualidade de agentes,

em representação do Governo do Reino Unido, por G. Brown, R. Fadoju e J. Kraehling, na qualidade de agentes, assistidas por C. Banner, barrister,

em representação do Parlamento Europeu, por A. Tamás, D. Warin e I. McDowell, na qualidade de agentes,

em representação do Conselho da União Europeia, por M. Moore e M. Alver, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por C. Valero, B. Eggers e I. Galindo Martín, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 18 de janeiro de 2018,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação e a validade tanto dos artigos 2.o e 3.o como dos anexos I A e I B da Diretiva 2001/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados e que revoga a Diretiva 90/220/CEE do Conselho (JO 2001, L 106, p. 1), bem como a interpretação do artigo 4.o da Diretiva 2002/53/CE do Conselho, de 13 de junho de 2002, que diz respeito ao catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas (JO 2002, L 193, p. 1), conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.o 1829/2003 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de setembro de 2003 (JO 2003, L 268, p. 1) (a seguir «Diretiva 2002/53»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Confédération paysanne, a Réseau Semences Paysannes, a Les Amis de la Terre France, a Collectif Vigilance OGM et Pesticides 16, a Vigilance OG2M, a CSFV 49, a OGM dangers, a Vigilance OGM 33 e a Fédération Nature et Progrès ao Premier ministre (Primeiro‑Ministro, França) e ao Ministre de l’Agriculture, de l’Agroalimentaire et de la Forêt (Ministro da Agricultura, do Setor Agroalimentar e da Silvicultura, França) acerca da recusa de revogar a disposição nacional segundo a qual, em princípio, não se considera que os organismos obtidos por mutagénese dão origem a uma modificação genética e de proibir o cultivo e a comercialização de variedades de colza resistentes aos herbicidas, obtidas por mutagénese.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2001/18

3

Os considerandos 4 a 6, 8, 17, 44 e 55 da Diretiva 2001/18 têm a seguinte redação:

«(4)

Os organismos vivos, quando libertados no ambiente em grande ou pequena quantidades, para fins experimentais ou sob a forma de produtos comercializados, são suscetíveis de se reproduzir no ambiente e atravessar fronteiras nacionais, afetando deste modo outros Estados‑Membros. Os efeitos dessas libertações no ambiente podem ser irreversíveis.

(5)

A proteção da saúde humana e do ambiente impõe um exame atento do controlo dos riscos resultantes da libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados (OGM).

(6)

Nos termos do Tratado, a ação da Comunidade em matéria de ambiente deve basear‑se no princípio de que devem ser tomadas medidas preventivas.

[…]

(8)

O princípio da precaução foi tomado em conta na elaboração da presente diretiva e deverá ser igualmente tomado em conta aquando da sua aplicação.

[…]

(17)

A presente diretiva não deve ser aplicável a organismos obtidos por meio de certas técnicas de modificação genética que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

[…]

(44)

Em conformidade com o Tratado, os Estados‑Membros poderão tomar outras medidas relativas à monitorização e à fiscalização, designadamente por organismos oficiais, dos produtos colocados no mercado que contenham ou sejam constituídos por OGM.

[…]

(55)

É importante acompanhar de perto o desenvolvimento e a utilização dos OGM.»

4

Nos termos do artigo 1.o desta diretiva:

«Em conformidade com o princípio da precaução, a presente diretiva tem por objetivo a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros e a proteção da saúde humana e do ambiente quando:

são efetuadas libertações no ambiente deliberadas de organismos geneticamente modificados para qualquer fim diferente da colocação no mercado, no território da Comunidade,

são colocados no mercado, no território da Comunidade, produtos que contenham ou sejam constituídos por organismos geneticamente modificados.»

5

O artigo 2.o da referida diretiva dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

2)

“organismo geneticamente modificado” (OGM), qualquer organismo, com exceção do ser humano, cujo material genético tenha sido modificado de uma forma que não ocorre naturalmente por meio de cruzamentos e/ou de recombinação natural.

Para efeitos da presente definição:

a)

A modificação genética ocorre, pelo menos, quando são utilizadas as técnicas referidas na parte 1 do anexo I A;

b)

Não se considera que as técnicas referidas na parte 2 do anexo I A resultem em modificações genéticas;

3)

“Libertação deliberada”, qualquer introdução intencional no ambiente de um OGM ou de uma combinação de OGM sem que se recorra a medidas específicas de confinamento, com o objetivo de limitar o seu contacto com a população em geral e com o ambiente e de proporcionar a ambos um elevado nível de segurança;

[…]»

6

O artigo 3.o, n.o 1, da mesma diretiva prevê:

«A presente diretiva não é aplicável aos organismos obtidos através das técnicas de modificação genética enumeradas no anexo I B.»

7

O artigo 4.o da Diretiva 2001/18 enuncia as obrigações gerais impostas aos Estados‑Membros. O seu n.o 1 prevê:

«Os Estados‑Membros devem assegurar, em conformidade com o princípio da precaução, que sejam tomadas todas as medidas adequadas para evitar os efeitos negativos para a saúde humana e para o ambiente que possam resultar da libertação deliberada de OGM ou da sua colocação no mercado. A libertação deliberada de OGM ou a sua colocação no mercado só são autorizadas nos termos, respetivamente, da parte B ou da parte C.»

8

O artigo 36.o desta diretiva dispõe:

«1.   A Diretiva 90/220/CEE [do Conselho, de 23 de abril de 1990, relativa à libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados (JO 1990, L 117, p. 15),] é revogada com efeitos a partir de 17 de outubro de 2002.

2.   As referências feitas à diretiva revogada devem entender‑se como feitas à presente diretiva e ser lidas de acordo com o quadro de correspondência que consta do anexo VIII.»

9

Sob a epígrafe «Técnicas a que se refere o artigo 2.o, ponto 2», o anexo I A da Diretiva 2001/18 enuncia:

«PARTE 1

As técnicas de modificação genética referidas no [ponto] 2, alínea a), do artigo 2.o, são, nomeadamente:

1)

Técnicas de recombinação de ácidos nucleicos que envolvam a formação de novas combinações de material genético através da inserção de moléculas de ácidos nucleicos […]

2)

Técnicas […] que envolvam a introdução direta num organismo de material geneticamente transmissível preparado fora desse organismo […]

3)

Técnicas de fusão celular (incluindo a fusão protoplástica) ou de hibridação […]

PARTE 2

Técnicas referidas no [ponto] 2, alínea b), do artigo 2.o, cujos resultados não são considerados modificações genéticas desde que não envolvam a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de [OGM] obtidos por técnicas/métodos diferentes dos excluídos pelo anexo I B:

1)

Fertilização in vitro,

2)

Processos naturais como a conjugação, a transdução e a transformação,

3)

Indução da poliploidia.»

10

Sob a epígrafe «Técnicas referidas no artigo 3.o», o anexo I B desta diretiva prevê:

«Ficam excluídos do âmbito da presente diretiva os organismos resultantes das seguintes técnicas/métodos de modificação genética, desde que estes não envolvam a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de [OGM] diferentes dos obtidos por uma ou mais das técnicas/métodos:

1)

Mutagénese.

[…]»

Diretiva 2002/53

11

O artigo 1.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2002/53 dispõe:

«1.   A presente diretiva tem por objeto a admissão das variedades de beterrabas, de plantas forrageiras, de cereais, de batatas e plantas oleaginosas e de fibras a um catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas cujas sementes ou propágulos podem ser comercializados […]

2.   O catálogo comum de variedades é estabelecido com base nos catálogos nacionais dos Estados‑Membros.»

12

O artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53 dispõe:

«As variedades geneticamente modificadas, na aceção dos n.os 1 e 2 do artigo 2.o da Diretiva 90/220/CEE, só serão aceites se tiverem sido tomadas todas as medidas adequadas para evitar efeitos adversos para a saúde humana e o ambiente.»

13

O artigo 7.o, n.o 4, alínea a), da Diretiva 2002/53 prevê:

«No caso de uma variedade geneticamente modificada a que se refere o n.o 4 do artigo 4.o, será efetuada uma avaliação dos riscos para o ambiente semelhante à prevista na Diretiva 90/220/CEE.»

14

O artigo 9.o, n.o 5, da Diretiva 2002/53 dispõe:

«Os Estados‑Membros velarão por que as variedades geneticamente modificadas que foram admitidas sejam claramente indicadas como tais no catálogo de variedades. Velarão igualmente por que qualquer pessoa que comercialize tais variedades indique claramente no seu catálogo de vendas que se trata de uma variedade geneticamente modificada.»

Direito francês

15

O artigo L. 531‑1 do code de l’environnement (Código do Ambiente) define organismo geneticamente modificado como um «organismo cujo material genético tenha sido modificado sem ser por meio de cruzamentos ou de recombinação naturais».

16

O artigo L. 531‑2 desse código prevê:

«Não estão submetidos às disposições do presente título e dos artigos L. 125‑3 e L. 515‑13 os organismos geneticamente modificados obtidos por técnicas que, pelo seu caráter natural, não se considera resultarem em modificações genéticas ou por aquelas que tenham sido objeto de utilização tradicional sem inconvenientes demonstrados para a saúde pública ou o ambiente.

A lista destas técnicas é fixada por decreto, após parecer do Haut Conseil des biotechnologies (Conselho Superior da Biotecnologia).»

17

Nos termos do artigo L. 531‑2‑1 do referido código:

«Os organismos geneticamente modificados só podem ser cultivados, comercializados ou utilizados no respeito do ambiente e da saúde pública, das estruturas agrícolas, dos ecossistemas locais e dos setores de produção e comerciais qualificados “sem organismos geneticamente modificados”, e com toda a transparência. […]

As decisões de autorização relativas aos organismos geneticamente modificados só podem ser adotadas após uma avaliação prévia independente e transparente dos riscos para o ambiente e a saúde pública. […]»

18

O artigo D. 531‑2 do mesmo código dispõe:

«As técnicas referidas no artigo L. 531‑2, que não se considera darem origem a modificações genéticas, são as seguintes:

[…]

Sob condição de não implicarem a utilização de organismos geneticamente modificados como organismos recetores ou parentais:

a)

A mutagénese,

[…]»

19

O artigo D. 531‑3 do Código do Ambiente prevê:

«As técnicas e as definições mencionadas nos artigos D. 531‑1 e D. 531‑2 são interpretadas e aplicadas em função da evolução dos conhecimentos científicos na área da engenharia genética, da genética molecular e da biologia celular.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

20

Por recurso interposto em 12 de março de 2015, os recorrentes no processo principal, um sindicato agrícola francês e oito associações cujo objeto é a proteção do ambiente e a divulgação de informação sobre os perigos que os OGM representam, pediram ao órgão jurisdicional de reenvio que anulasse a decisão tácita de indeferimento, pelo Premier ministre, do seu pedido destinado, nomeadamente, à revogação do artigo D. 531‑2 do Código do Ambiente, que transpôs a Diretiva 2001/18, que exclui a mutagénese da definição das técnicas que dão origem a uma modificação genética, na aceção do artigo L. 531‑1 do referido código, e à proibição do cultivo e da comercialização de variedades de colza resistentes aos herbicidas, obtidas por mutagénese, e ainda que ordenasse ao Premier ministre, sob cominação de uma sanção pecuniária compulsória, que tomasse todas as medidas necessárias para instaurar uma moratória sobre as variedades de plantas resistentes aos herbicidas, obtidas por mutagénese.

21

Os recorrentes no processo principal alegaram no órgão jurisdicional de reenvio, nomeadamente, que as técnicas de mutagénese evoluíram e permitem agora produzir, da mesma maneira que as técnicas de transgénese, variedades resistentes a um herbicida. Ora, as obrigações previstas na Diretiva 2001/18 não se aplicam a essas variedades, mesmo quando estas apresentem riscos para o ambiente ou a saúde decorrentes, nomeadamente, da libertação do material genético das referidas variedades que provoca o aparecimento de ervas daninhas que adquiriram o gene resistente ao herbicida, da correspondente necessidade de aumentar as quantidades e de variar os tipos de herbicidas utilizados e da poluição do ambiente que daí resulta, ou ainda dos efeitos não intencionais, como mutações não desejadas ou fora do alvo noutras partes do genoma, e da acumulação de moléculas cancerígenas ou de desreguladores endócrinos em plantas cultivadas, destinadas ao consumo humano ou animal.

22

Segundo o Premier ministre e o ministre de l’Agriculture, de l’Agroalimentaire et de la Forêt, deve ser negado provimento ao recurso pelo facto de os fundamentos dos recorrentes no processo principal não serem procedentes. Com efeito, os riscos alegados resultam não das propriedades da planta obtida graças às modificações genéticas mas das práticas de cultivo dos agricultores. Além disso, as mutações obtidas pelas novas técnicas de mutagénese dirigida são semelhantes às mutações espontâneas ou provocadas aleatoriamente, e as mutações não intencionais podem ser eliminadas na seleção varietal por técnicas de cruzamento.

23

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os métodos de mutagénese convencionais in vivo foram utilizados durante várias décadas sem criar riscos identificados para o ambiente ou a saúde. Em contrapartida, desde a adoção da Diretiva 2001/18, foram obtidas novas variedades, nomeadamente as resistentes aos herbicidas, graças às técnicas de mutagénese aleatória aplicadas in vitro em células vegetais e às técnicas/métodos de mutagénese dirigida que aplicam novas técnicas de engenharia genética, como a mutagénese dirigida por oligonucleotídeos ou a mutagénese por nuclease dirigida. Ora, é impossível determinar com segurança a existência e a importância dos riscos que essas novas variedades resistentes a um herbicida representam para o ambiente e a saúde humana e animal, uma vez que, até à data, as únicas avaliações dos riscos foram realizadas no âmbito do processo de autorização de colocação no mercado de produtos fitofarmacêuticos aos quais estas variedades se tornaram resistentes.

24

O órgão jurisdicional de reenvio considera que esses riscos são em parte semelhantes aos que poderiam resultar de sementes produzidas por transgénese. Com efeito, no que se refere nomeadamente às mutações obtidas pelas novas técnicas de mutagénese dirigida, a alteração direta do genoma que elas implicam provoca os mesmos efeitos que a introdução de um gene estranho, próprio à transgénese. Por outro lado, uma vez que o desenvolvimento de novas técnicas de mutagénese permite uma aceleração na produção de modificações do património genético muito superior às que podem ocorrer de modo natural ou aleatório, é multiplicada a possibilidade de se verificarem danos resultantes de modificações não intencionais do genoma ou das propriedades da planta assim obtida.

25

Nestas condições, o Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Os organismos obtidos por mutagénese constituem [OGM] na aceção do artigo 2.o da Diretiva [2001/18], embora estejam excluídos, nos termos do artigo 3.o e do anexo I B [desta] diretiva, das obrigações impostas relativamente à libertação e à colocação no mercado de [OGM]? Em especial, as técnicas de mutagénese, nomeadamente as novas técnicas de mutagénese dirigida que aplicam procedimentos de engenharia genética, podem ser consideradas técnicas incluídas entre as que são enumeradas no anexo I A, para o qual o artigo 2.o remete? Consequentemente, devem os artigos 2.o e 3.o e os anexos I A e I B da Diretiva [2001/18] ser interpretados no sentido de que excluem das medidas de precaução, de avaliação de impact[o] e de rastreabilidade todos os organismos e sementes obtidos por mutagénese ou excluem apenas os organismos obtidos através dos métodos convencionais de mutagénese aleatória por radiações ionizantes ou exposição a agentes químicos mutagénicos que já existiam antes de estes textos serem adotados?

2)

As variedades obtidas por mutagénese constituem variedades geneticamente modificadas, na aceção do artigo 4.o da Diretiva [2002/53], que não estão isentas das obrigações estabelecidas nesta diretiva? O âmbito desta diretiva é, pelo contrário, idêntico ao que resulta dos artigos 2.o e 3.o e do anexo I B da Diretiva [2001/18], e isenta igualmente as variedades obtidas por mutagénese das obrigações estabelecidas na Diretiva [2002/53] para a inscrição de variedades geneticamente modificadas no catálogo comum das espécies de plantas agrícolas?

3)

Os artigos 2.o e 3.o e o anexo I B da Diretiva [2001/18], relativa à libertação deliberada no ambiente de [OGM], na medida em que excluem a mutagénese do alcance das obrigações previstas na diretiva, constituem uma medida de harmonização completa que proíbe os Estados‑Membros de submeter os organismos obtidos por mutagénese à totalidade ou a parte das obrigações previstas na [referida] diretiva ou a qualquer outra obrigação ou os Estados‑Membros dispõem, no momento da respetiva transposição, de uma margem de apreciação para definirem o regime a aplicar aos organismos obtidos por mutagénese?

4)

A validade dos artigos 2.o e 3.o, e dos anexos I A e I B da Diretiva [2001/18], à luz do princípio da precaução garantido pelo artigo 191.o, n.o 2, [TFUE], na parte em que estas disposições não submetem os [OGM] obtidos por mutagénese a medidas de precaução, de avaliação de impacto e de rastreabilidade, pode ser questionada atendendo à evolução dos procedimentos da engenharia genética, ao aparecimento de novas variedades de plantas obtidas graças a estas técnicas e às atuais incertezas científicas sobre os respetivos impactos e sobre os riscos potenciais daí resultantes para o ambiente e para a saúde humana e animal?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

26

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, antes de mais, se o artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2001/18 deve ser interpretado no sentido de que os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese constituem OGM, na aceção desta disposição. Em seguida, esse órgão jurisdicional pergunta se o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, desta diretiva e à luz do seu considerando 17, deve ser interpretado no sentido de que esses organismos só estão excluídos do âmbito de aplicação da referida diretiva se tiverem sido obtidos por meio de técnicas de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

Quanto à qualificação de «OGM» dos organismos obtidos por mutagénese

27

O artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2001/18 define OGM como qualquer organismo, com exceção do ser humano, cujo material genético tenha sido modificado de uma forma que não ocorre naturalmente por meio de cruzamentos e/ou de recombinação natural.

28

Tendo em conta as informações prestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, há que considerar, por um lado, que as mutações provocadas pelas técnicas/métodos de mutagénese como as que estão em causa no processo principal, cuja aplicação se destina a produzir variedades de espécies de plantas resistentes a um herbicida, constituem modificações do material genético de um organismo, na aceção do artigo 2.o, ponto 2, desta diretiva.

29

Por outro lado, uma vez que, como resulta da decisão de reenvio, as referidas técnicas/métodos implicam, para algumas delas, o recurso a agentes mutagénicos químicos ou físicos e, para outras, o recurso à engenharia genética, essas mesmas técnicas/métodos modificam o material genético de um organismo de uma forma que não ocorre naturalmente, na aceção da referida disposição.

30

Daqui resulta que os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese devem ser considerados OGM na aceção do artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2001/18.

31

Esta interpretação é corroborada pela sistemática geral dessa diretiva, que faz parte dos elementos a tomar em consideração na sua interpretação.

32

Com efeito, há que salientar que a definição de um OGM que figura no artigo 2.o, ponto 2, da referida diretiva é explicitada por uma distinção entre as técnicas cuja utilização resulta numa modificação genética e aquelas que não se considera resultarem nessa modificação genética.

33

A este respeito, o artigo 2.o, ponto 2, alínea a), da Diretiva 2001/18 precisa que, para efeitos da definição de OGM, a modificação genética é obtida pelo menos através da utilização das técnicas enumeradas na parte 1 do anexo I A desta diretiva.

34

Ora, embora esta parte 1 do anexo I A da referida diretiva não vise expressamente as técnicas/métodos de mutagénese, esta circunstância não é suscetível de excluir que os organismos obtidos por meio destas técnicas/métodos estejam compreendidos na definição de OGM que figura no artigo 2.o, ponto 2, da mesma diretiva.

35

Com efeito, importa salientar, por um lado, que, como resulta da expressão «nomeadamente» que figura no proémio da parte 1 do anexo I A da Diretiva 2001/18, a lista das técnicas de modificação genética que esta parte contém não é taxativa. Por conseguinte, esta lista não pode ser considerada como exclusiva de técnicas de modificação genética diferentes das que são aí expressamente previstas.

36

Por outro lado, há que salientar que o legislador da União Europeia não incluiu a mutagénese na lista taxativa das técnicas que não resultam em modificações genéticas, referidas no artigo 2.o, ponto 2, alínea b), da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com a parte 2 do seu anexo I A.

37

Pelo contrário, a mutagénese é expressamente mencionada, no anexo I B desta diretiva, como uma das técnicas/métodos de «modificação genética» a que se refere o artigo 3.o, n.o 1, dessa diretiva, relativo aos organismos que devem ser excluídos do seu âmbito de aplicação.

38

Em face destes elementos, o artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2001/18 deve ser interpretado no sentido de que os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese constituem OGM na aceção desta disposição.

Quanto à exclusão de certas técnicas/métodos de mutagénese do âmbito de aplicação da Diretiva 2001/18

39

Resulta do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, relativo às isenções, que esta diretiva não se aplica aos organismos obtidos através das técnicas de modificação genética enumeradas no anexo I B desta diretiva.

40

A este respeito, o referido anexo I B enumera as técnicas/métodos de modificação genética que produzem organismos que, desde que não envolvam a utilização de moléculas recombinantes de ácidos nucleicos ou de OGM diferentes dos obtidos por uma ou mais das técnicas/métodos enumeradas no referido anexo, devem ser excluídos do âmbito de aplicação da referida diretiva. Entre essas técnicas/métodos, o ponto 1 do mesmo anexo menciona a mutagénese.

41

Antes de mais, há que sublinhar que, enquanto disposição derrogatória da exigência de submeter os OGM às obrigações previstas na Diretiva 2001/18, o artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma, deve ser objeto de interpretação estrita [v., por analogia, Acórdão de 17 de abril de 2018, Comissão/Polónia (Floresta Białowieża), C‑441/17, EU:C:2018:255, n.o 189 e jurisprudência referida].

42

Por outro lado, na interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos da regulamentação de que faz parte (Acórdão de 27 de abril de 2017, Pinckernelle, C‑535/15, EU:C:2017:315, n.o 31).

43

No que respeita, antes de mais, à redação do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, n.o 1, da mesma, importa salientar que este, ao referir‑se, de uma maneira geral, à mutagénese, não dá, por si só, uma indicação determinante dos tipos de técnicas/métodos que o legislador da União pretendeu precisamente excluir do âmbito de aplicação da referida diretiva.

44

No tocante, em seguida, ao contexto em que essa exclusão se insere, há que salientar que o legislador da União precisou no considerando 17 da Diretiva 2001/18 as condições em que determinados OGM devem ser excluídos do âmbito de aplicação desta diretiva.

45

Esse considerando 17 enuncia que a Diretiva 2001/18 não deve ser aplicável a organismos obtidos por meio de certas técnicas de modificação genética que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

46

Por conseguinte, o âmbito de aplicação da derrogação prevista no artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma, deve ser determinado à luz dos esclarecimentos assim fornecidos pelo legislador da União.

47

A este respeito, importa sublinhar que o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a pronunciar‑se, em especial, sobre técnicas/métodos de mutagénese dirigida que implicam o recurso à engenharia genética, que surgiram ou se desenvolveram principalmente desde a adoção da Diretiva 2001/18 e cujos riscos para o ambiente ou a saúde humana não podem ainda ser estabelecidos com certeza.

48

Ora, como sublinha em substância o órgão jurisdicional de reenvio, os riscos associados à utilização dessas novas técnicas/métodos de mutagénese podem revelar‑se semelhantes aos que resultam da produção e da difusão de OGM por transgénese. Assim, decorre dos elementos de que dispõe o Tribunal de Justiça, por um lado, que a modificação direta do material genético de um organismo por mutagénese permite obter os mesmos efeitos que a introdução de um gene estranho no referido organismo e, por outro, que o desenvolvimento dessas novas técnicas/métodos permite produzir variedades geneticamente modificadas a um ritmo e em quantidades não comparáveis com as que resultam da aplicação de métodos tradicionais de mutagénese aleatória.

49

Acresce que, como precisa o considerando 4 da Diretiva 2001/18, os organismos vivos, quando libertados no ambiente em grande ou pequena quantidade, para fins experimentais ou sob a forma de produtos comercializados, são suscetíveis de se reproduzir no ambiente e atravessar fronteiras nacionais, afetando deste modo outros Estados‑Membros. Os efeitos dessas libertações no ambiente podem ser irreversíveis. Do mesmo modo, o considerando 5 dessa diretiva dispõe que a proteção da saúde humana impõe um exame atento do controlo dos riscos resultantes dessas libertações.

50

De resto, no considerando 8 da referida diretiva, foi salientado que o princípio da precaução foi tomado em consideração na elaboração da diretiva e que o mesmo princípio deverá ser igualmente tido em conta na sua aplicação. Além disso, no considerando 55 da Diretiva 2001/18, foi posta a tónica na necessidade de acompanhar de perto o desenvolvimento e a utilização dos OGM.

51

Nestas condições, o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma, não pode ser interpretado no sentido de que exclui do âmbito de aplicação dessa diretiva organismos obtidos por meio de novas técnicas/métodos de mutagénese que surgiram ou foram principalmente desenvolvidas desde a adoção da referida diretiva. Com efeito, essa interpretação levaria a ignorar a intenção do legislador da União, refletida no considerando 17 desta diretiva, de excluir do seu âmbito de aplicação apenas os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

52

Esta conclusão é corroborada pelo objetivo da Diretiva 2001/18, que visa, como resulta do seu artigo 1.o, em conformidade com o princípio da precaução, proteger a saúde humana e o ambiente, por um lado, quando são efetuadas libertações no ambiente deliberadas de OGM para qualquer fim diferente da colocação no mercado, no território da União, e, por outro, quando são colocados no mercado, no território da União, produtos que contenham ou sejam constituídos por OGM.

53

Com efeito, como previsto no artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, incumbe aos Estados‑Membros assegurar, em conformidade com o princípio da precaução, que sejam tomadas todas as medidas adequadas para evitar os efeitos negativos para a saúde humana e o ambiente que possam resultar da libertação deliberada de OGM ou da sua colocação no mercado. Isto implica, em especial, que tal libertação deliberada ou colocação no mercado só possa ocorrer no termo de procedimentos de avaliação dos riscos previstos, respetivamente, na parte B e na parte C da referida diretiva. Ora, como exposto no n.o 48 do presente acórdão, os riscos para o ambiente ou a saúde humana associados à utilização das novas técnicas/métodos de mutagénese a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere podem revelar‑se semelhantes aos que resultam da produção e da difusão de OGM por transgénese. Decorre daqui que a interpretação da derrogação que figura no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma, que exclui do âmbito de aplicação desta diretiva os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese, sem qualquer distinção, compromete o objetivo de proteção prosseguido pela referida diretiva e viola o princípio da precaução que esta pretende aplicar.

54

Tendo em conta estas considerações, há que responder à primeira questão da seguinte forma:

o artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2001/18 deve ser interpretado no sentido de que os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese constituem OGM na aceção desta disposição, e

o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, desta diretiva e à luz do seu considerando 17, deve ser interpretado no sentido de que só estão excluídos do âmbito de aplicação da referida diretiva os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

Quanto à segunda questão

55

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53 deve ser interpretado no sentido de que estão isentas das obrigações que essa disposição prevê as variedades obtidas por meio de técnicas/métodos de mutagénese.

56

A este respeito, importa recordar que a Diretiva 2002/53 tem por objeto, como resulta do seu artigo 1.o, n.o 1, a admissão das variedades de espécies agrícolas num catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas cujas sementes ou propágulos podem ser comercializados, sendo o referido catálogo comum estabelecido em conformidade com o n.o 2 do mesmo artigo, com base nos catálogos nacionais dos Estados‑Membros.

57

O artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53 dispõe que, no que se refere às variedades geneticamente modificadas, na aceção dos n.os 1 e 2 do artigo 2.o da Diretiva 90/220, essas variedades só serão aceites se tiverem sido tomadas todas as medidas adequadas para evitar efeitos adversos para a saúde humana e o ambiente.

58

Quanto, em primeiro lugar, ao alcance do conceito de «variedades geneticamente modificadas», referido no artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53, importa salientar que esta disposição, sem mencionar expressamente as variedades obtidas por meio de técnicas/métodos de mutagénese, remete para as definições contidas no artigo 2.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 90/220.

59

A este respeito, como precisa o artigo 36.o da Diretiva 2001/18, tendo a Diretiva 90/220 sido revogada, as referências feitas a esta última devem ser entendidas como feitas à Diretiva 2001/18. Por conseguinte, segundo o quadro de correspondência que figura no anexo VIII dessa diretiva, há que entender a referência contida no artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53 como remetendo para o artigo 2.o, pontos 1 e 2, da Diretiva 2001/18.

60

Como se observa no n.o 30 do presente acórdão, os organismos resultantes de técnicas/métodos de mutagénese como as que estão em causa no processo principal devem ser considerados abrangidos pelo conceito de OGM contido no artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2001/18. Por conseguinte, as variedades obtidas por meio de técnicas/métodos de mutagénese, como aquelas a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere, devem ser igualmente consideradas abrangidas pelo conceito de «variedades geneticamente modificadas» referido no artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53.

61

Quanto, em segundo lugar, à questão de saber se certas variedades geneticamente modificadas não são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53, importa certamente observar que esta disposição não remete expressamente para a derrogação prevista no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma.

62

Contudo, há que salientar que o artigo 7.o, n.o 4, alínea a), da Diretiva 2002/53 dispõe que, no caso de uma variedade geneticamente modificada a que se refere o artigo 4.o, n.o 4, dessa diretiva, será efetuada uma avaliação dos riscos para o ambiente semelhante à prevista na Diretiva 90/220, devendo esta última referência, em conformidade com o que foi recordado no n.o 59 do presente acórdão, ser entendida como feita à Diretiva 2001/18.

63

Aliás, o Tribunal de Justiça declarou a este respeito, no n.o 63 do Acórdão de 16 de julho de 2009, Comissão/Polónia (C‑165/08, EU:C:2009:473), que, quando uma variedade geneticamente modificada beneficia de uma autorização ao abrigo das disposições da Diretiva 2001/18, todas as medidas adequadas relativas a essa variedade são supostas terem sido tomadas para evitar os riscos para a saúde humana, na aceção do artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53.

64

Ora, como salientou o advogado‑geral no n.o 161 das suas conclusões, seria incoerente impor às variedades geneticamente modificadas na aceção da Diretiva 2002/53 obrigações em matéria de avaliação dos riscos para a saúde e o ambiente de que estão expressamente isentas pela Diretiva 2001/18.

65

Por conseguinte, a referência ao conceito de OGM que figura no artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2001/18, contido no artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53, para determinar se uma variedade é geneticamente modificada, deve ser interpretada no sentido de que abrange a derrogação relativa aos organismos obtidos por mutagénese, prevista no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma.

66

A este respeito, importa recordar que, como se concluiu no n.o 54 do presente acórdão, a derrogação prevista no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18 só diz respeito aos organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

67

Daqui resulta que são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53 e das obrigações em matéria de proteção da saúde e do ambiente que esta disposição impõe com vista à admissão das variedades no catálogo comum as variedades geneticamente modificadas obtidas por meio de técnicas/métodos de mutagénese como as que estão em causa no processo principal, com exclusão das variedades obtidas por meio de técnicas/métodos de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

68

Em face do exposto, há que responder à segunda questão que o artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53 deve ser interpretado no sentido de que estão isentas das obrigações previstas nessa disposição as variedades geneticamente modificadas obtidas por meio de técnicas/métodos de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

Quanto à terceira questão

69

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma, deve ser interpretado no sentido de que tem por efeito privar os Estados‑Membros da faculdade de submeter às obrigações previstas nesta diretiva ou a outras obrigações os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese excluídos do âmbito de aplicação da referida diretiva.

Quanto à admissibilidade

70

A título preliminar, a Comissão Europeia interroga‑se sobre a admissibilidade da terceira questão, uma vez que, no âmbito do processo pendente no órgão jurisdicional de reenvio, os recorrentes no processo principal contestam a legalidade da disposição nacional em causa no processo principal, no caso concreto o artigo D. 531‑2 do Código do Ambiente, não na parte em que esta disposição sujeita os organismos obtidos por mutagénese a obrigações não previstas na Diretiva 2001/18, mas sim na medida em que a referida disposição isenta estes organismos do quadro regulamentar previsto pelas medidas nacionais de transposição da referida diretiva.

71

Segundo a Comissão, na medida em que a Diretiva 2001/18 exclui do seu âmbito de aplicação os organismos obtidos por mutagénese, não proíbe os Estados‑Membros de adotarem medidas que regulamentem esses organismos, desde que sejam respeitadas outras regras do direito da União, como, nomeadamente, as relativas à livre circulação de mercadorias. Por conseguinte, a questão de saber se os Estados‑Membros podem adotar medidas que regulamentem esses organismos apresenta caráter hipotético.

72

A este propósito, há que começar por recordar que, nos termos de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo previsto pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões colocadas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se [Acórdão de 22 de fevereiro de 2018, Kubota (UK) e EP Barrus, C‑545/16, EU:C:2018:101, n.o 18 e jurisprudência referida].

73

Com efeito, no âmbito do procedimento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituído pelo artigo 267.o TFUE, as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional, na aceção do referido artigo, quando, designadamente, os requisitos respeitantes ao conteúdo do pedido de decisão prejudicial que figuram no artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça não forem respeitados, quando for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União, solicitadas pelo órgão jurisdicional nacional, não têm nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal ou quando o problema for hipotético [Acórdão de 22 de fevereiro de 2018, Kubota (UK) e EP Barrus, C‑545/16, EU:C:2018:101, n.o 19 e jurisprudência referida].

74

No caso em apreço, como precisa o órgão jurisdicional de reenvio, o exame do recurso interposto pelos recorrentes no processo principal implica determinar a margem de apreciação de que dispõem os Estados‑Membros no âmbito da transposição da Diretiva 2001/18, a fim de estabelecer se, no caso em apreço, as autoridades francesas tinham ou não, no que se refere aos organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese excluídos do âmbito de aplicação dessa diretiva, a faculdade de submeter tais organismos às obrigações resultantes da referida diretiva ou a outras obrigações.

75

Com efeito, resulta da decisão de reenvio que esse recurso visa, em substância, ordenar às autoridades francesas que sujeitem às disposições do Código do Ambiente relativas aos OGM variedades de plantas que se tornaram resistentes a um herbicida, por mutagénese, independentemente da técnica/método de mutagénese utilizada.

76

Daqui resulta que a terceira questão prejudicial não é de natureza hipotética e, por conseguinte, deve ser considerada admissível.

Quanto ao mérito

77

Como se concluiu no n.o 54 do presente acórdão, os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese que não têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e não têm um índice de segurança longamente comprovado são abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2001/18 e estão, portanto, sujeitos às obrigações que daí decorrem.

78

Em contrapartida, não são abrangidos pelo âmbito de aplicação da referida diretiva, por força do seu artigo 3.o, n.o 1, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma, os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

79

Por conseguinte, e na medida em que o legislador da União não regulamentou estes últimos organismos, os Estados‑Membros têm a faculdade de definir o respetivo regime jurídico, sujeitando‑os, no respeito do direito da União, em especial das regras relativas à livre circulação de mercadorias constantes dos artigos 34.o a 36.o TFUE, às obrigações previstas na Diretiva 2001/18 ou a outras obrigações.

80

Com efeito, o legislador da União excluiu esses mesmos organismos do âmbito de aplicação desta diretiva, sem precisar de todo o regime jurídico a que podem estar sujeitos. Em especial, não resulta da referida diretiva que a circunstância de os organismos resultantes de técnicas/métodos de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado serem excluídos desse âmbito de aplicação implica que as pessoas interessadas podem proceder livremente à sua libertação deliberada no ambiente ou à colocação no mercado, no território da União, de produtos que contenham ou sejam constituídos por esses organismos.

81

Consequentemente, a derrogação que figura no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma, não pode ser interpretada no sentido de que impede os Estados‑Membros de legislar neste domínio.

82

Nestas condições, há que responder à terceira questão que o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma, na medida em que exclui do âmbito de aplicação desta diretiva os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado, deve ser interpretado no sentido de que não tem por efeito privar os Estados‑Membros da faculdade de, no respeito do direito da União, em especial das disposições relativas à livre circulação de mercadorias constantes dos artigos 34.o a 36.o TFUE, submeter esses organismos às obrigações previstas nessa diretiva ou a outras obrigações.

Quanto à quarta questão

83

Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, em substância, sobre a validade, à luz do princípio da precaução, conforme garantido pelo artigo 191.o, n.o 2, TFUE, do artigo 2.o da Diretiva 2001/18 e do seu artigo 3.o, lido em conjugação com o anexo I B dessa diretiva.

84

A este respeito, há que salientar que, como resulta da decisão de reenvio, a resposta a esta questão só seria necessária se o Tribunal de Justiça interpretasse o artigo 2.o da Diretiva 2001/18 e o seu artigo 3.o, lido em conjugação com o anexo I B da mesma, no sentido de que exclui do âmbito de aplicação da referida diretiva todos os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese, independentemente da técnica utilizada. Ora, não é esse o caso, uma vez que, como resulta da resposta à primeira questão, os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese que não têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e não têm um índice de segurança longamente comprovado estão, à semelhança de outros OGM que são abrangidos pelo âmbito de aplicação da referida diretiva, sujeitos às obrigações previstas na mesma.

85

Nestas condições, não há que responder à quarta questão.

Quanto às despesas

86

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2001/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à libertação deliberada no ambiente de organismos geneticamente modificados e que revoga a Diretiva 90/220/CEE do Conselho, deve ser interpretado no sentido que os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese constituem organismos geneticamente modificados na aceção dessa disposição.

O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, desta diretiva e à luz do seu considerando 17, deve ser interpretado no sentido de que só estão excluídos do âmbito de aplicação da referida diretiva os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

 

2)

O artigo 4.o, n.o 4, da Diretiva 2002/53/CE do Conselho, de 13 de junho de 2002, que diz respeito ao catálogo comum das variedades das espécies de plantas agrícolas, conforme alterada pelo Regulamento (CE) n.o 1829/2003 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de setembro de 2003, deve ser interpretado no sentido de que estão isentos das obrigações previstas nessa disposição as variedades geneticamente modificadas obtidas por meio de técnicas/métodos de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado.

 

3)

O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/18, lido em conjugação com o anexo I B, ponto 1, da mesma, na medida em que exclui do âmbito de aplicação desta diretiva os organismos obtidos por meio de técnicas/métodos de mutagénese que têm sido convencionalmente utilizadas num certo número de aplicações e têm um índice de segurança longamente comprovado, deve ser interpretado no sentido de que não tem por efeito privar os Estados‑Membros da faculdade de, no respeito do direito da União, em especial das regras relativas à livre circulação de mercadorias constantes dos artigos 34.o a 36.o TFUE, submeter esses organismos às obrigações previstas nessa diretiva ou a outras obrigações.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.