ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

20 de julho de 2017 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Seguro de responsabilidade civil automóvel — Diretiva 72/166/CEE — Artigo 3.o, n.o 1 — Segunda Diretiva 84/5/CEE — Artigo 2.o, n.o 1 — Contrato de seguro celebrado com base em falsas declarações sobre a propriedade do veículo e a identidade do seu condutor habitual — Tomador do seguro — Inexistência de interesse económico na celebração deste contrato — Nulidade absoluta do contrato de seguro — Oponibilidade aos terceiros lesados»

No processo C‑287/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), por decisão de 4 de maio de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 23 de maio de 2016, no processo

Fidelidade – Companhia de Seguros, SA

contra

Caisse Suisse de Compensation,

Fundo de Garantia Automóvel,

Sandra Cristina Crystello Pinto Moreira Pereira,

Sandra Manuela Teixeira Gomes Seemann,

Catarina Ferreira Seemann,

José Batista Pereira,

Teresa Rosa Teixeira,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, A. Arabadjiev (relator) e C. G. Fernlund, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, M. Figueiredo e M. Rebelo, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por P. Costa de Oliveira e K.‑Ph. Wojcik, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO 1972, L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113; a seguir «Primeira Diretiva»), do artigo 2.o, n.o 1, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (JO 1984, L 8, p. 17; EE 13 F15 p. 244; a seguir «Segunda Diretiva»), e do artigo 1.o da Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis (JO 1990, L 129, p. 33, a seguir «Terceira Diretiva»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Fidelidade – Companhia de Seguros, SA, à Caisse Suisse de Compensation, ao Fundo de Garantia Automóvel, a Sandra Cristina Crystello Pinto Moreira Pereira, a Sandra Manuela Teixeira Gomes Seemann, a Catarina Ferreira Seemann, a José Batista Pereira e a Teresa Rosa Teixeira a respeito da conformidade com as disposições acima referidas de uma legislação nacional que comina com a nulidade absoluta um contrato de seguro celebrado com base em falsas declarações sobre a identidade do proprietário de um veículo automóvel e do seu condutor habitual.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva dispõe:

«Cada Estado‑Membro [...] adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. Essas medidas devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.»

4

O sexto e o sétimo considerando da Segunda Diretiva enunciam:

«Considerando que é necessário prever a existência de um organismo que garanta que a vítima não ficará sem indemnização, no caso [de o] veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado; que, sem prejuízo das disposições aplicadas pelos Estados‑Membros relativamente à natureza, subsidiária ou não, da intervenção deste organismo, bem como às normas aplicáveis em matéria de sub‑rogação, é importante prever que a vítima de um sinistro ocorrido naquelas circunstâncias se possa dirigir direta e prioritariamente a esse organismo; que é, todavia, conveniente, dar aos Estados‑Membros a possibilidade de aplicarem certas exclusões limitativas no que respeita à intervenção deste organismo e de prever, no caso de danos materiais causados por um veículo não identificado, devido aos riscos de fraude, que a indemnização por tais danos possa ser limitada ou excluída;

Considerando que é do interesse das vítimas que os efeitos de certas cláusulas de exclusão sejam limitados às relações entre a seguradora e o responsável pelo acidente; que os Estados‑Membros podem, todavia, prever que, no caso de veículos roubados ou obtidos por meios violentos, o referido organismo possa intervir para indemnizar a vítima».

5

O artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva prevê que cada Estado‑Membro deve criar ou autorizar a criação de um organismo que tenha por objetivo reparar, pelo menos dentro dos limites da obrigação de seguro, os danos materiais ou corporais causados por veículos não identificados ou não segurados. Esta disposição refere, no seu terceiro parágrafo:

«Os Estados‑Membros podem [...] determinar que este organismo não intervenha, relativamente a pessoas que, por sua livre vontade, se encontrassem no veículo causador do sinistro, sempre que o organismo possa provar que elas tinham conhecimento de que o veículo não estava seguro.»

6

O artigo 2.o, n.o 1, da Segunda Diretiva tem a seguinte redação:

«Cada Estado‑Membro tomará as medidas adequadas para que qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro, emitida em conformidade com o n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva], que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por:

pessoas que não estejam expressa ou implicitamente autorizadas para o fazer;

ou

pessoas que não sejam titulares de uma carta de condução que lhes permita conduzir o veículo em causa;

ou

pessoas que não cumpram as obrigações legais de caráter técnico relativamente ao estado e condições de segurança do veículo em causa,

seja, por aplicação do n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva], considerada sem efeito no que se refere ao recurso de terceiros vítimas de um sinistro.

Todavia, a disposição ou a cláusula a que se refere o primeiro travessão do n.o 1 pode ser oponível às pessoas que, por sua livre vontade[,] se encontrassem no veículo causador do sinistro, sempre que a seguradora possa provar que elas tinham conhecimento de que o veículo tinha sido roubado.

[…]»

7

O quarto considerando da Terceira Diretiva enuncia:

«Considerando que deve ser garantido que as vítimas de acidentes de veículos automóveis recebam tratamento idêntico, independentemente dos locais da Comunidade onde ocorram os acidentes.»

8

O artigo 1.o, primeiro parágrafo, desta diretiva dispõe:

«Sem prejuízo do n.o 1, segundo parágrafo, do artigo 2.o da [Segunda Diretiva], o seguro referido no n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva] cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, resultantes da circulação de um veículo.»

Direito português

9

A Primeira Diretiva foi transposta para o direito português pelo Decreto‑Lei n.o 522/85 — Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, de 31 de dezembro de 1985. Este decreto‑lei, conforme alterado pelo Decreto‑Lei n.o 72‑A/2003 — Lei do Seguro Obrigatório, de 14 de abril de 2003, em vigor à data dos factos que estão na origem do litígio no processo principal (a seguir «Decreto‑Lei n.o 522/85»), prevê, no seu artigo 1.o, n.o 1, a obrigação de segurar um veículo terrestre a motor, nos seguintes termos:

«Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semirreboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar‑se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade.»

10

O artigo 2.o do Decreto‑Lei n.o 522/85, relativo aos sujeitos da obrigação de segurar, tem a seguinte redação:

«1   — A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, excetuando‑se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a referida obrigação recai, respetivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.

2   — Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior.

[…]»

11

O artigo 14.o do mesmo decreto‑lei, relativo à oponibilidade de exceções aos lesados, dispõe:

«Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do n.o 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro.»

12

O Código Comercial português trata dos seguros no seu título XV. Os seus artigos 428.° e 429.° têm a seguinte redação:

«Artigo 428.o Por conta de quem pode ser contratado o seguro

O seguro pode ser contratado por conta própria ou por conta de outrem.

§ 1.°   Se aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tem interesse na cousa segurada, o seguro é nulo.

§ 2.°   Se não se declarar na apólice que o seguro é por conta de outrem, considera‑se contratado por conta de quem o fez.

[…]

Artigo 429.o Nulidade do seguro por inexatidões ou omissões

Toda a declaração inexata, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato, tornam o seguro nulo.

§ único Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má‑fé, o segurador terá direito ao prémio.»

Factos no processo principal e questão prejudicial

13

Em 20 de maio de 2004, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes, por um lado, um veículo automóvel conduzido por J. M. Teixeira Pereira e pertencente a S. C. Crystello Pinto Moreira Pereira, por outro, um motociclo conduzido pelo respetivo proprietário, E. Seemann. Do acidente resultou a morte dos condutores dos dois veículos.

14

A Caisse Suisse de Compensation intentou, em 11 de janeiro de 2010, uma ação judicial contra o Fundo de Garantia Automóvel e S. C. Crystello Pinto Moreira Pereira, na qual pretende obter o reembolso da quantia de 285980,54 euros paga aos familiares do seu segurado, E. Seemann.

15

Os referidos réus invocaram exceção de ilegitimidade passiva, por, na data do acidente, existir contrato de seguro válido celebrado com a, atualmente, denominada Fidelidade – Companhia de Seguros, SA (a seguir «seguradora»), que cobria a responsabilidade civil do veículo automóvel. Chamada à demanda, esta sociedade veio alegar que o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel é inválido pelo facto de o tomador deste seguro ter prestado falsas declarações na data em que celebrou o contrato, alegando que era o proprietário do veículo e o seu condutor habitual.

16

A sentença do tribunal de primeira instância considerou o contrato de seguro inválido, sendo esta invalidade oponível aos lesados. Chamado a pronunciar‑se em sede de recurso, o Tribunal da Relação do Porto (Portugal) considerou o contrato de seguro inválido, mas que tal invalidade é inoponível aos lesados. A seguradora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, invocando a nulidade absoluta do contrato de seguro em causa e a oponibilidade dessa nulidade ao lesado, E. Seemann, e à Caisse Suisse de Compensation.

17

No que respeita à interpretação da Primeira, Segunda e Terceira Diretivas sobre Seguro Automóvel, o órgão jurisdicional de reenvio considera que se suscitam dúvidas quanto à questão da oponibilidade aos lesados da nulidade absoluta do contrato de seguro, como a prevista no artigo 428.o, § 1.°, do Código Comercial português.

18

Com efeito, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça há divergências de interpretação. Uma primeira corrente pronunciou‑se no sentido de que o contrato de seguro é absolutamente nulo quando o tomador do seguro declara falsamente ser proprietário do veículo e o seu condutor habitual, com o intuito de conseguir que a seguradora celebre o contrato de seguro e/ou que o faça em condições menos onerosas para o segurado. A nulidade absoluta assenta, designadamente, na falta do requisito legal do «interesse» do tomador do seguro, exigido pelo artigo 428.o, § 1.°, do Código Comercial português. Por aplicação do artigo 14.o do Decreto‑Lei n.o 522/85, a nulidade absoluta é, segundo esta corrente jurisprudencial, oponível ao lesado. Esta orientação tem presente que o lesado sempre se encontra protegido através do Fundo de Garantia Automóvel.

19

De acordo com a segunda corrente, considera‑se que, no contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o requisito legal do «interesse» do tomador do seguro se encontra derrogado pela possibilidade de o contrato ser celebrado por terceiro. Por conseguinte, a questão deve ser resolvida à luz do regime específico das falsas declarações na celebração do contrato de seguro, que é apenas a nulidade relativa, não é oponível ao lesado.

20

Nestas condições, o Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 3.o, n.o 1, da [Primeira Diretiva], o artigo 2.o, n.o 1, da [Segunda Diretiva], e o artigo 1.o, da [Terceira Diretiva], relativas à aproximação das legislações dos Estados‑Membros, respeitantes ao seguro da responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, opõem‑se a uma legislação nacional que comine com a nulidade absoluta o contrato de seguro, em consequência das falsas declarações sobre a propriedade do veículo automóvel, assim como sobre a identidade do seu condutor habitual, sendo o contrato celebrado por quem não tem interesse económico na circulação do veículo e estando subjacente o intuito fraudulento dos intervenientes (tomador, proprietário e condutor habitual) de obter a cobertura dos riscos de circulação, mediante: (i) a celebração de contrato que a seguradora não celebraria se conhecesse a identidade do tomador; (ii) o pagamento de um prémio inferior ao devido, em razão da idade do condutor habitual?»

Quanto à questão prejudicial

21

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, o artigo 2.o, n.o 1, da Segunda Diretiva e o artigo 1.o da Terceira Diretiva devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.

22

Importa recordar que o objetivo da Primeira e da Segunda Diretiva, como resulta do seu preâmbulo, é, por um lado, assegurar a livre circulação tanto dos veículos com estacionamento habitual no território da União Europeia como das pessoas que neles viajam e, por outro, garantir que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C‑300/10, EU:C:2012:656, n.o 26 e jurisprudência referida).

23

Para estes efeitos, o artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, tal como precisado e completado pela Segunda e Terceira Diretivas, impõe aos Estados‑Membros que assegurem que a responsabilidade civil relativa à circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro e precisa, nomeadamente, os tipos de danos e os terceiros lesados que esse seguro deve cobrir (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.o 28).

24

No que respeita aos direitos reconhecidos aos terceiros lesados, o artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva opõe‑se a que a companhia de seguros da responsabilidade civil automóvel possa invocar disposições legais ou cláusulas contratuais para recusar indemnizar os terceiros lesados de um acidente causado por um veículo segurado (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.o 33 e jurisprudência referida).

25

O Tribunal de Justiça declarou também que o artigo 2.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Segunda Diretiva mais não faz do que recordar esta obrigação no que respeita às disposições legais ou às cláusulas contratuais de uma apólice de seguro referida neste artigo que excluam da cobertura do seguro de responsabilidade civil automóvel os danos causados aos terceiros lesados em virtude da utilização ou da condução do veículo segurado por pessoas não autorizadas a conduzi‑lo, por pessoas sem carta de condução ou por pessoas que não cumpram as obrigações legais de ordem técnica relativamente ao estado e à segurança do referido veículo (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.o 34 e jurisprudência referida).

26

É certo que, em derrogação a essa obrigação, o artigo 2.o, n.o 1, segundo parágrafo, da Segunda Diretiva prevê que certos lesados poderão não ser indemnizados pela companhia de seguros, tendo em conta a situação que eles próprios tenham criado, a saber, as pessoas que por sua livre vontade se encontravam no veículo causador do sinistro, quando a seguradora prove que sabiam que esse veículo tinha sido furtado. Todavia, e como o Tribunal de Justiça já declarou, o artigo 2.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Segunda Diretiva não pode ser derrogado a não ser nesta situação específica (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.o 35).

27

Por conseguinte, há que considerar que a circunstância de a companhia de seguros ter celebrado esse contrato com base em omissões ou em falsas declarações do tomador do seguro não é suscetível de lhe permitir invocar disposições legais sobre a nulidade do contrato e de a opor ao terceiro lesado para se exonerar da sua obrigação, decorrente do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, de o indemnizar por um acidente causado pelo veículo segurado.

28

O mesmo se pode dizer da circunstância de o tomador do seguro não ser o condutor habitual do veículo.

29

Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que a circunstância de um veículo ser conduzido por uma pessoa não designada na apólice de seguro desse veículo, tendo especialmente em conta o objetivo de proteção dos lesados de acidentes de circulação prosseguido pela Primeira, Segunda e Terceira Diretivas, não permite considerar que tal veículo não está segurado nos termos do artigo 1.o, n.o 4, terceiro parágrafo, da Segunda Diretiva (acórdão de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company Limited e Evans, C‑442/10, EU:C:2011:799, n.o 40).

30

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga também o Tribunal de Justiça sobre a questão de saber se, no caso de um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel em vigor e para se subtrair à sua obrigação de indemnizar os terceiros lesados de um acidente causado pelo veículo segurado, uma companhia de seguros tem o direito de invocar uma disposição legal, como o artigo 428.o, § 1.°, do Código Comercial português, que prevê a nulidade de um contrato de seguro, se aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tiver interesse económico na celebração desse contrato.

31

Há que salientar que tal questão diz respeito aos requisitos legais de validade do contrato de seguro, que não são regidos pelo direito da União, mas sim pelo direito dos Estados‑Membros.

32

No entanto, estes últimos têm a obrigação de garantir que a responsabilidade civil aplicável de acordo com o seu direito nacional esteja coberta por um seguro conforme com as disposições das três diretivas supramencionadas. Decorre igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os Estados‑Membros devem exercer as suas competências neste domínio, no respeito do direito da União, e que as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas do seu efeito útil (acórdão de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C‑300/10, EU:C:2012:656, n.os 30 e 31 e jurisprudência referida).

33

Ora, como a Comissão Europeia salientou, o direito à indemnização dos lesados do acidente é suscetível de se encontrar afetado pelas condições de validade do contrato de seguro, como as cláusulas gerais previstas no artigo 248.o, § 1.°, e no artigo 249.o, primeiro parágrafo, do Código Comercial português.

34

Assim, tais disposições podem determinar que os terceiros lesados não sejam indemnizados e, por conseguinte, prejudicar o efeito útil das referidas diretivas.

35

Esta constatação não pode ser posta em causa pela possibilidade de o Fundo de Garantia Automóvel pagar uma indemnização ao lesado. Com efeito, a intervenção do organismo referido no artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva foi concebida como uma medida de último recurso, prevista unicamente para o caso de os danos serem causados por um veículo relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de seguro referida no artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, isto é, um veículo relativamente ao qual não há contrato de seguro. Essa restrição explica‑se pelo facto de esta disposição, tal como foi recordado no n.o 23 do presente acórdão, obrigar os Estados‑Membros a assegurarem que, sem prejuízo das derrogações previstas no artigo 4.o daquela diretiva, todos os proprietários ou detentores de um veículo com estacionamento habitual no seu território celebrem um contrato com uma companhia de seguros, de modo a garantir, dentro dos limites definidos pelo direito da União, a sua responsabilidade civil resultante do referido veículo (v., neste sentido, acórdão de 11 de julho de 2013, Csonka e o., C‑409/11, EU:C:2013:512, n.os 30 e 31).

36

Ora, como foi recordado no n.o 29 do presente acórdão, a circunstância de um veículo ser conduzido por uma pessoa não designada na apólice de seguro desse veículo não permite considerar que este não está segurado nos termos do artigo 1.o, n.o 4, terceiro parágrafo, da Segunda Diretiva.

37

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva e o artigo 2.o, n.o 1, da Segunda Diretiva devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.

Quanto às despesas

38

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara:

 

O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, e o artigo 2.o, n.o 1, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tem por efeito que seja oponível aos terceiros lesados a nulidade de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, nulidade essa que resulta de falsas declarações iniciais do tomador do seguro sobre a identidade do proprietário e do condutor habitual do veículo em causa ou do facto de que a pessoa por quem ou em nome de quem esse contrato de seguro é celebrado não tinha interesse económico na celebração do referido contrato.

 

Regan

Arabadjiev

Fernlund

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 20 de julho de 2017.

O secretário

A. Calot Escobar

O presidente da Sexta Secção

E. Regan


( *1 ) Língua do processo: português.