CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 10 de novembro de 2016 ( 1 )

Processo C‑564/15

Tibor Farkas

contra

Nemzeti Adó‑ és Vámhivatal Dél‑alfödi Regionális Adó Főigazgatósága

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Gyulai Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Hungria)]

«Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado — Diretiva 2006/112/CE — Regime de autoliquidação — Artigo 199.o, n.o 1, alínea g) — Decisão das autoridades tributárias que declara a existência de um ‘diferencial de imposto’ a cargo do adquirente dos bens — Impossibilidade de dedução do IVA a montante — Aplicação de uma coima — Proporcionalidade da coima»

I – Introdução

1.

Tibor Farkas (a seguir «demandante») adquiriu um hangar móvel a uma sociedade comercial insolvente (a seguir «transmitente») num leilão. O demandante pagou o preço de venda, bem como o valor do IVA cobrado pelo transmitente sobre a entrega. Posteriormente, deduziu esse montante na sua declaração de IVA. No entanto, as autoridades tributárias consideraram que a operação deveria ter sido sujeita ao regime de autoliquidação. De acordo com esse regime, o demandante estava obrigado a pagar esse IVA às autoridades. Por conseguinte, as autoridades tributárias exigiram tal pagamento e, além disso, aplicaram uma coima ao demandante de valor correspondente a 50% do IVA devido.

2.

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se tais decisões das autoridades tributárias estão em conformidade com a Diretiva 2006/112 (a seguir «Diretiva IVA») ( 2 ).

3.

No entanto, antes de poder ser feita tal análise, cumpre, primeiramente, tratar uma questão prévia. Essa questão prévia, suscitada pelas questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio, diz respeito à correta aplicação do artigo 199.o, n.o 1, alínea g), da Diretiva IVA e à classificação da entrega, neste caso, como de bem móvel ou imóvel.

II – Lei aplicável

A – Direito da União

4.

O artigo 193.o da Diretiva IVA previa, à data relevante para o presente caso, que «[o] IVA é devido por sujeitos passivos que efetuem entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis, com exceção dos casos em que o imposto é devido por outra pessoa nos termos dos artigos 194.° a 199.° e 202.°».

5.

O artigo 199.o, n.o 1, alínea g), da Diretiva IVA permite aos Estados‑Membros prever que o devedor do IVA é o sujeito passivo destinatário da «entrega de um bem imóvel vendido pelo devedor no âmbito de um processo de venda coerciva».

6.

O artigo 226.o, n.o 11, da Diretiva IVA determina que, quando o adquirente ou destinatário for responsável pelo pagamento do IVA, as únicas menções que, em princípio, devem obrigatoriamente figurar nas faturas, para efeitos de IVA, são as seguintes: «a referência à disposição aplicável da presente diretiva, ou à disposição nacional correspondente, ou qualquer outra menção indicando que a entrega de bens ou a prestação de serviços beneficia de isenção ou está sujeita a autoliquidação».

B – Direito nacional

7.

O artigo 142.o, n.o 1, da Lei CXXVII de 2007, relativa ao imposto sobre o valor acrescentado (az általános forgalmi adóról szóló 2007. évi CXXVII. Törvény, a seguir «Lei do IVA»), dispõe que «o imposto será pago pelo adquirente do bem ou pelo beneficiário do serviço: […] g) em caso de entrega de bens de investimento da empresa ou de outras entregas de bens ou prestações de serviços com um valor de mercado superior a 100000 forints à data da sua execução, se sobre o sujeito passivo obrigado a essa execução impender um processo de venda coerciva ou qualquer outro processo pelo qual se determine a título definitivo a respetiva incapacidade de pagamento».

8.

Se o artigo 142.o, n.o 1, alínea g), for aplicável a uma operação, o artigo 142.o, n.o 7, da Lei do IVA determina que «o transmitente dos bens ou o prestador do serviço deve emitir uma fatura em que não conste o montante do IVA a jusante […]».

9.

De acordo com o artigo 169.o, alínea n), da Lei do IVA, no caso de a obrigação de pagamento do imposto recair sobre o adquirente ou destinatário, a fatura deve conter «a menção ‘regime de autoliquidação’».

III – Matéria de facto, tramitação do processo e questões prejudiciais

10.

O demandante adquiriu um hangar móvel num leilão eletrónico, no âmbito de uma venda coerciva dos bens do transmitente organizada pelas autoridades tributárias.

11.

O transmitente emitiu uma fatura em conformidade com as regras do sistema comum do IVA, fazendo constar o dia 26 de novembro de 2012 como data da entrega. A decisão de reenvio indica que o demandante pagou o preço de venda com IVA incluído (a seguir «primeiro montante de IVA»). Posteriormente, requereu a correspondente dedução do IVA na sua declaração de IVA.

12.

No entanto, quando a Nemzeti Adó‑ és Vámhivatal Dél alföldi Regionális Adó Főigazgatósága (Direção Regional de Finanças de Bács‑Kiskun) (a seguir «autoridade tributária de primeira instância») inspecionou a contabilidade do demandante, declarou que deveria ter sido aplicado o regime de autoliquidação previsto no artigo 142.o, n.o 1, alínea g), da Lei do IVA. Consequentemente, o demandante deveria ter pago IVA pela operação, uma vez que era o adquirente do hangar. A autoridade tributária de primeira instância declarou a existência de um «diferencial de imposto» de744000 forints a cargo do demandante. Segundo a autoridade tributária de primeira instância, essa soma correspondia ao IVA devido pela operação ao abrigo do regime de autoliquidação (a seguir «segundo montante de IVA»). A autoridade tributária de primeira instância indeferiu o pedido de reembolso dessa quantia apresentado pelo demandante, tendo‑lhe aplicado uma coima de 372000 forints.

13.

Essa decisão foi confirmada pela autoridade tributária de segunda instância, a Nemzeti Adó és Vámhivatal Dél‑alföldi Regionális Adó Főigazgatósága (Direção Regional de Finanças de Dél‑alföld) (a seguir «demandada»).

14.

O demandante impugnou essa decisão perante o Kecskeméti Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Kecskemét, Hungria). Alega que tais decisões adotadas pelas autoridades tributárias nacionais infringem o direito da União. Afirma que a demandada o privou do seu direito à dedução do IVA com base num mero erro de forma, uma vez que a fatura em causa foi emitida pelo transmitente em conformidade com o sistema de tributação comum, em vez de o ter sido nos termos do regime de autoliquidação. Destaca que o transmitente pagou o primeiro montante de IVA à administração fiscal. Por conseguinte, a administração fiscal não sofreu qualquer perda e dispunha de toda a informação necessária para determinar o montante correto de imposto.

15.

O órgão jurisdicional de reenvio partilha de algumas das dúvidas manifestadas pelo demandante. Salienta não existem indícios de evasão fiscal. Conclui que a abordagem interpretativa das autoridades tributárias não parece ser proporcional ao objetivo do regime de autoliquidação.

16.

Nesse contexto, o Kecskeméti Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság suspendeu a instância e submeteu as seguintes questões ao Tribunal de Justiça:

1)

É compatível com as disposições da Diretiva IVA, em particular com o princípio da proporcionalidade, com os objetivos de neutralidade fiscal e de prevenção da fraude fiscal, que a autoridade tributária, com base nas disposições da Lei do IVA, declare a existência de um diferencial de imposto a cargo do adquirente de um bem (ou destinatário de um serviço) no caso de o transmitente do bem (ou o prestador do serviço) emitir a fatura relativa a uma operação sujeita ao regime de autoliquidação no âmbito do sistema de tributação comum, declarando e pagando à administração fiscal o IVA correspondente à referida fatura, e o adquirente do bem (ou destinatário do serviço), por seu lado, deduza o IVA pago ao emitente da fatura, embora não possa fazer uso do seu direito à dedução relativamente ao IVA declarado como diferencial de imposto?

2)

A aplicação à escolha de um método de tributação incorreto na declaração de um diferencial de imposto de uma sanção que também implica a aplicação de uma coima fiscal de 50% mesmo que não se tenha verificado qualquer perda de receitas para a administração fiscal nem existam indícios de abuso é proporcionada?

17.

Foram apresentadas observações escritas pelos Governos húngaro e estónio, bem como pela Comissão. O Governo húngaro e a Comissão apresentaram alegações orais na audiência que teve lugar em 7 de setembro de 2016.

IV – Apreciação

18.

O artigo 199.o, n.o 1, alínea g), da Diretiva IVA determina que este se aplica apenas à «entrega de um bem imóvel vendido pelo devedor no âmbito de um processo de venda coerciva». Assim, tal disposição limita claramente a sua aplicabilidade aos bens imóveis.

19.

No seu pedido, o órgão jurisdicional de reenvio afirmou que o bem adquirido pelo demandante é um «hangar móvel». No entanto, esse órgão jurisdicional é omisso quanto à sua qualificação desse hangar como bem móvel ou imóvel, com base nos factos do caso perante si.

20.

É compreensível que essa questão assumisse relevância limitada para o órgão jurisdicional de reenvio, tendo em conta a redação do direito nacional aplicável (acima reproduzido no n.o 7 das presentes conclusões). Essa qualificação é, no entanto, de importância crucial para a aplicabilidade do artigo 199.o, n.o 1, alínea g), da Diretiva IVA.

21.

Embora essa determinação deva ser feita, em última instância, pelo órgão jurisdicional de reenvio, devo assumir que um hangar móvel é, como o seu nome indica, de facto, um bem móvel (A). Irei, de seguida, analisar o cenário improvável de uma qualificação de um hangar móvel como bem imóvel (B).

A – Se um hangar móvel fosse um bem móvel

22.

Não oferece dúvidas que o artigo 199.o, n.o 1, alínea g), da Diretiva IVA apenas se aplica aos bens imóveis.

23.

O Governo húngaro confirmou na audiência que o artigo 142.o, n.o 1, alínea g), da Lei do IVA se destina a transpor o artigo 199.o, n.o 1, alínea g), da Diretiva IVA ( 3 ). Também confirmou que o artigo 142.o, n.o 1, alínea g), da Lei do IVA se aplica a bens móveis e a bens imóveis da mesma forma.

24.

Daqui resulta que, se o artigo 142.o, n.o 1, alínea g), da Lei do IVA foi aplicado a bens móveis, na medida em que o hangar móvel devesse ser qualificado como tal, o regime de autoliquidação foi aplicado para além do âmbito de aplicação material do artigo 199.o, n.o 1, alínea g), da Diretiva IVA.

25.

A questão correlacionada consiste em saber se um Estado‑Membro pode alargar o âmbito de aplicação material do artigo 199.o, n.o 1, alínea g), neste sentido. Creio que não, pelas seguintes razões.

26.

Em primeiro lugar, a regra básica sobre o responsável pelo pagamento do IVA encontra‑se prevista no artigo 193.o da Diretiva IVA ( 4 ). Esse dispositivo determina que o IVA é devido pelo sujeito passivo que efetue entregas de bens ou prestações de serviços tributáveis.

27.

Ao mesmo tempo, essa disposição também estabelecia, à data relevante para o presente caso, que o imposto podia ser pago «por outra pessoa» nos termos dos artigos 194.° a 199.° e 202.° da Diretiva IVA.

28.

Daqui resulta que a regra do regime de autoliquidação ancorada nessas disposições constitui uma exceção à regra geral prevista no artigo 193.o Consequentemente, o âmbito de aplicação dessas disposições deve ser objeto de interpretação estrita ( 5 ). No presente contexto, isso significa que apenas podem ocorrer exceções à regra geral quando tal estiver expressamente previsto na Diretiva IVA.

29.

Em segundo lugar, a leitura combinada dos artigos 193.° e 199.°, n.o 1, alínea g), da Diretiva IVA demonstra que a determinação do responsável pelo pagamento do IVA em caso de entrega de bens imóveis no âmbito de um processo de venda coerciva foi totalmente harmonizada. Tal como o Tribunal de Justiça explicou anteriormente, o artigo 199.o, n.o 1, alínea g), foi introduzido ( 6 ), juntamente com outros fundamentos para a aplicação do regime de autoliquidação contido no artigo 199.o, para permitir a todos os Estados‑Membros aplicarem medidas derrogatórias; anteriormente, estas medidas tinham sido autorizadas apenas a alguns Estados‑Membros para combater a fraude e evasão fiscais em determinados setores, ou em relação a operações específicas ( 7 ).

30.

A harmonização resultante não permite aos Estados‑Membros alargarem, por vontade própria, o âmbito material da exceção prevista no artigo 199.o, n.o 1, alínea g), da Diretiva IVA.

31.

Em terceiro lugar, a única forma possível de um Estado‑Membro se afastar da regra comum contida nos artigos 193.° e 199.°, n.o 1, alínea g), é obtendo uma derrogação com base no artigo 395.o da Diretiva IVA. Essa disposição confere aos Estados‑Membros a possibilidade de requererem o direito a «introduzirem medidas especiais derrogatórias da [Diretiva IVA] para simplificar a cobrança do imposto ou para evitar certas fraudes ou evasões fiscais».

32.

Por conseguinte, a Hungria poderia ter alargado o âmbito da exceção prevista no artigo 199.o, n.o 1, alínea g), através de uma derrogação concedida por uma decisão do Conselho baseada no artigo 395.o da Diretiva IVA ( 8 ).

33.

Na audiência, foi confirmado que não foi concedida à Hungria nenhuma derrogação individual.

34.

Como não foi concedida à Hungria uma derrogação fundada no artigo 395.o da Diretiva IVA, esse Estado‑Membro está impedido de aplicar o regime de autoliquidação à entrega de um hangar móvel, como acontece no processo nacional.

35.

Daqui resulta que, nas circunstâncias do processo nacional, a Diretiva IVA deveria ser interpretada no sentido de obstar ao alargamento da aplicação do regime de autoliquidação a bens móveis entregues no âmbito de um processo de venda coerciva.

36.

Os factos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio indicam que o demandante e o transmitente agiram em conformidade com a Diretiva IVA quando submeteram a entrega do hangar móvel ao regime normal do IVA.

37.

Se o órgão jurisdicional de reenvio considerar, com base nos factos do caso em apreço, que o hangar móvel é, efetivamente, um bem móvel, esse órgão está obrigado a retirar de tal facto as conclusões necessárias, em conformidade com a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça.

38.

Na medida do possível, a legislação nacional deve ser interpretada em conformidade com as disposições relevantes do direito da União ( 9 ). No entanto, tal como o Tribunal de Justiça reconheceu, a interpretação em conformidade com o direito da União tem os seus limites. Essa obrigação não pode servir de fundamento a uma interpretação contra legem do direito nacional ( 10 ). Quando a interpretação conforme com o direito da União se revelar impossível, o órgão jurisdicional nacional tem a obrigação de garantir a plena eficácia do direito da União, não aplicando, se necessário, disposições incompatíveis do direito nacional, não sendo necessária a revogação prévia dessas disposições ( 11 ). A possibilidade de um órgão jurisdicional nacional conhecer oficiosamente de questões de direito da União está condicionada à observância do princípio da equivalência, ou seja, esse órgão jurisdicional deverá estar obrigado, numa situação comparável, a conhecer oficiosamente de questões de direito nacional ( 12 ).

B – Se o hangar móvel fosse um bem imóvel

39.

Pelas razões descritas acima, considero que a apreciação do presente processo pode terminar aqui.

40.

Se o órgão jurisdicional de reenvio, não obstante, concluísse, com base nos factos perante si, que o hangar móvel era um bem imóvel, o que pelo seu próprio nome se afigura bastante improvável, apresento uma orientação concisa alternativa na secção seguinte, a fim de auxiliar plenamente o órgão jurisdicional de reenvio.

41.

Em primeiro lugar, irei apresentar algumas observações preliminares sobre a distinção que deve ser feita entre os pagamentos dos primeiro e segundo montantes de IVA (1). Seguidamente, analisarei a questão de saber se as autoridades tributárias tinham o direito de exigir ao demandante que cumprisse com as suas obrigações de IVA ao abrigo do regime de autoliquidação, indeferindo simultaneamente o seu pedido de dedução do IVA a montante (2). Finalmente, apreciarei a proporcionalidade da coima aplicada ao demandante (3).

1. Distinção entre os primeiro e segundo montantes de IVA

42.

Deve ser esclarecido que as questões examinadas na próxima subsecção abrangem, sobretudo, os direitos e as obrigações fiscais que emergem para o demandante da sua relação com as autoridades tributárias no que respeita ao segundo montante de IVA. Em contrapartida, estas questões não dizem respeito aos direitos e obrigações que emergem da relação entre o demandante, o transmitente e a administração fiscal referente ao primeiro montante de IVA.

43.

Do ponto de vista da aplicação do regime de autoliquidação, e supondo que esse regime fosse efetivamente aplicável à operação em causa, o pagamento do primeiro montante de IVA foi um erro. Esse erro deveria ter sido corrigido entre o demandante e o transmitente, e entre o transmitente e a administração fiscal ( 13 ).

44.

O Tribunal de Justiça considerou anteriormente que o reembolso do IVA faturado incorretamente é uma questão que compete aos Estados‑Membros regular ( 14 ), em condições que respeitem o duplo requisito da equivalência e da efetividade ( 15 ). No que diz respeito ao requisito da efetividade em particular, saliento as circunstâncias bastante específicas em que a venda do hangar móvel ocorreu, ou seja, que o transmitente estava insolvente no momento da venda e que a venda coerciva foi organizada pelas autoridades tributárias ( 16 ).

45.

Qualquer que seja o procedimento nacional para o reembolso do primeiro montante de IVA, é importante salientar que esse montante deve ser, em princípio, devolvido pela administração fiscal ao transmitente e/ou ao demandante.

46.

É por isso que sou da opinião de que o primeiro montante de IVA que foi pago à administração fiscal não é diretamente relevante para a apreciação das obrigações do demandante ao abrigo do regime de autoliquidação. Não obstante, esse mesmo facto é, na minha opinião, relevante para a apreciação do direito do demandante à dedução, bem como para a avaliação da proporcionalidade da coima.

2. Responsabilidade do demandante pelo IVA e direito à dedução

47.

À luz destas observações, sou da opinião de que a primeira questão prejudicial deve ser interpretada como tendo por objeto verificar se o princípio da neutralidade do IVA impede as autoridades tributárias de exigirem a um sujeito passivo que tenha pago indevidamente IVA ao fornecedor o pagamento do IVA ao abrigo do regime de autoliquidação e de negarem a esse sujeito passivo o direito à dedução do IVA a montante, nos casos em que não exista fraude da sua parte.

48.

Supondo que o regime de autoliquidação se aplica nestas circunstâncias, o demandante era, de facto, responsável pelo pagamento do IVA devido pela entrega do hangar. Isto significa que não deveria ter sido cobrado IVA sobre essa entrega e que da fatura deveria ter constado que era aplicável o regime de autoliquidação, conforme previsto no artigo 169.o, alínea n), da Lei do IVA.

49.

Isto também significa que, tal como a Comissão salienta, o demandante tinha a obrigação de declarar o IVA às autoridades tributárias. Por conseguinte, na hipótese de o hangar constituir um bem imóvel, estas autoridades tinham o direito de exigir ao demandante que cumprisse com as suas obrigações ao abrigo do regime de autoliquidação ( 17 ).

50.

A validade da decisão das autoridades tributárias de indeferirem o pedido de dedução do IVA a montante apresentado pelo demandante é, no entanto, um outro assunto.

51.

O Tribunal de Justiça considerou que o direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode ser limitado ‑ sem prejuízo, em princípio, dos casos de fraude ou abuso ( 18 ).

52.

O órgão jurisdicional de reenvio esclarece que não existe qualquer indício de fraude fiscal cometida pelo demandante. Curiosamente, as autoridades tributárias no processo principal reconheceram que o demandante tinha, efetivamente, direito à dedução desse IVA a montante. O Governo húngaro concordou com esta posição.

53.

Apesar disto, os factos deste caso demonstram que o demandante foi, em última análise, privado do direito a essa dedução.

54.

Como e porque é que tal aconteceu permanece pouco claro para mim. Compreendo que, quando as autoridades tributárias verificaram o desrespeito do demandante pelo regime de autoliquidação, tenham declarado que o segundo montante de IVA se tornou um «diferencial de imposto» ‑ presumivelmente uma dívida fiscal. Assim, afigura‑se que, por força da lei ou da prática administrativa das autoridades tributárias, o segundo montante de IVA foi transformado numa dívida fiscal à qual não se aplica o direito à dedução.

55.

Tal significa, presumivelmente, que os custos do demandante correspondentes a esse IVA a montante já não podem ser deduzidos. Em minha opinião, tal resultado opõe‑se ao princípio da neutralidade do IVA, inerente ao sistema comum do IVA ( 19 ), no sentido de que se destina a libertar completamente os sujeitos passivos do ónus do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas ( 20 ) e garantir que é unicamente o consumidor final quem suporta o IVA ( 21 ).

56.

A minha conclusão provisória é, por conseguinte, que o princípio da neutralidade do IVA não impede as autoridades tributárias de exigirem a um sujeito passivo, que tenha pago indevidamente IVA ao fornecedor, o pagamento do IVA ao abrigo do regime de autoliquidação. No entanto, o princípio da neutralidade do IVA impede as autoridades tributárias de negarem a esse sujeito passivo o direito à dedução do IVA a montante que este não tenha declarado corretamente ao abrigo do regime de autoliquidação, não havendo prova de fraude da sua parte.

3. Proporcionalidade da coima

57.

A conclusão de que o demandante foi incorretamente impedido de exercer o seu direito à dedução não significa que as autoridades tributárias não tinham o direito de lhe aplicar uma coima pelo incumprimento das suas obrigações no âmbito do regime de autoliquidação. O direito à dedução e a obrigação de pagar uma coima pelo incumprimento das obrigações que condicionam o exercício desse direito são duas questões distintas.

58.

O Tribunal de Justiça considerou que, uma vez que a Diretiva IVA não prevê um regime sancionatório aplicável aos casos de incumprimento das obrigações dos sujeitos passivos referidas nessa diretiva, compete aos Estados‑Membros escolher as sanções que considerem apropriadas. Estes devem, contudo, exercer essa competência na observância do direito da União e dos seus princípios gerais ( 22 ).

59.

Tal como a Comissão salientou nas suas observações escritas, o princípio da proporcionalidade é um desses princípios ( 23 ).

60.

Para verificar se esse princípio é respeitado, o órgão jurisdicional nacional deve certificar‑se de que a respetiva sanção não excede o necessário para alcançar os objetivos de assegurar a cobrança exata do imposto e evitar a fraude ( 24 ). Deve ter‑se em conta, nomeadamente, a natureza e a gravidade da infração, bem como as modalidades de determinação do montante da mesma ( 25 ).

61.

O Governo húngaro explicou na audiência que a disposição nacional aplicável, ou seja, o artigo 170.o da Lei XCII de 2003 relativa aos impostos (adózás rendjéről szóló 2003. évi XCII. Törvény), prevê uma coima à taxa de 50% em caso de incumprimento. Essa taxa foi aplicada ao demandante.

62.

O Governo húngaro também explicou que, de acordo com o artigo 171.o da Lei relativa aos impostos, a taxa de 50% pode ser reduzida, ou a coima fiscal não ser de todo aplicável, em situações excecionais, quando o sujeito passivo tiver atuado com a diligência devida.

63.

A legislação nacional aplicável parece permitir que a sanção seja adaptada e atenuada de acordo com as especificidades do caso concreto ( 26 ). Por conseguinte, quando apreciada a um nível abstrato, a legislação nacional afigura‑se estar em conformidade com o princípio da proporcionalidade.

64.

Compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se essa legislação foi ou não aplicada de forma proporcional no caso concreto do demandante. No entanto, vários elementos merecem destaque no contexto do presente processo.

65.

Em primeiro lugar, afigura‑se não existir qualquer comportamento fraudulento por parte do demandante. Tanto o primeiro como o segundo montantes de IVA foram pagos às autoridades tributárias. Em segundo lugar, a decisão de reenvio não menciona qualquer atraso especial por parte do demandante no pagamento do segundo montante de IVA, para além do resultante da incompreensão, pelo demandante, do regime de autoliquidação. Em terceiro lugar, o artigo 142.o, n.o 7, da Lei do IVA indica que a responsabilidade pela emissão da fatura em conformidade com o regime de autoliquidação recai sobre o transmitente. Ressalte‑se que o transmitente emitiu uma fatura que não estava em conformidade com as regras aplicáveis do regime de autoliquidação e que tal aconteceu no âmbito de um processo de venda coerciva organizado pelas autoridades tributárias.

66.

Ao considerar estes elementos específicos, é discutível, como sugerido pela Comissão, que a coima à taxa de 50% tenha sido aplicada após uma verdadeira avaliação individual do caso do demandante. Como salientado acima, no entanto, compete ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se o princípio da proporcionalidade foi respeitado no caso em apreço.

V – Conclusão

67.

À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões colocadas pelo Kecskeméti Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság nos seguintes termos:

Na ausência de uma derrogação específica concedida com fundamento no artigo 395.o da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, a entrega de um bem móvel no âmbito de um processo de venda coerciva não pode, de acordo com o artigo 199.o, n.o 1, alínea g), dessa diretiva, ser sujeita ao regime de autoliquidação.


( 1 )   Língua original: inglês.

( 2 )   Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1).

( 3 )   O Governo húngaro sugeriu que o artigo 142.o, n.o 1, alínea g), da Lei do IVA também se destina a transpor o artigo 199.o, n.o 1, alínea f), da Diretiva IVA. No entanto, é difícil ver como é que essa disposição é relevante no caso em apreço, porque o artigo 199.o, n.o 1, alínea f), incide sobre a «entrega de bens após a cessão de um direito de reserva de propriedade a um cessionário que exerce esse direito».

( 4 )   Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Macikowski (C‑499/13, EU:C:2014:2351, n.o 29).

( 5 )   Acórdão de 26 de maio de 2016, Envirotec Denmark (C—550/14, EU:C:2016:354, n.o 33 e jurisprudência aí referida).

( 6 )   Pela Diretiva 2006/69/CE do Conselho, de 24 de julho de 2006, que altera a Diretiva 77/388/CEE no que se refere a certas medidas destinadas a simplificar o procedimento de cobrança do imposto sobre o valor acrescentado e a lutar contra a fraude ou evasão fiscais, e que revoga certas decisões que concedem derrogações (JO 2006, L 221, p. 9). Acórdão de 13 de junho de 2013, Promociones y Construcciones BJ 200 (C‑125/12, EU:C:2013:392, n.o 24).

( 7 )   Considerando 1 do preâmbulo da Diretiva 2006/69/CE e considerando 42 do preâmbulo da Diretiva IVA, que expressa o objetivo prosseguido pelo artigo 199.o, n.o 1, alínea g), da Diretiva IVA. Tal como o Tribunal de Justiça notou, essa «disposição permite às autoridades fiscais cobrar o IVA aplicado às operações em causa, quando a capacidade do devedor para solver as suas obrigações de IVA estiver comprometida». Acórdão de 13 de junho de 2013, Promociones y Construcciones BJ 200 (C‑125/12, EU:C:2013:392, n.os 25 e 28).

( 8 )   O artigo 395.o, n.o 1, da diretiva determina que: «O Conselho, deliberando por unanimidade sob proposta da Comissão, pode autorizar os Estados‑Membros a introduzirem medidas especiais derrogatórias da presente diretiva para simplificar a cobrança do imposto ou para evitar certas fraudes ou evasões fiscais […]».

( 9 )   Acórdãos de 19 de abril de 2016, DI (C‑441/14, EU:C:2016:278, n.o 42); de 15 de janeiro de 2014, Association de médiation sociale (C—176/12, EU:C:2014:2, n.o 38); de 19 de dezembro de 2013, Koushkaki (C‑84/12, EU:C:2013:862, n.os 75 a 76).

( 10 )   V. acórdãos de 28 de julho de 2016, JZ, C‑294/16 PPU, EU:C:2016:610, n.o 33); acórdão de 19 de abril de 2016, DI (C‑441/14, EU:C:2016:278, n.o 32 e jurisprudência referida); de 11 de novembro de 2015, Klausner Holz Niedersachsen (C‑505/14, EU:C:2015:742, n.os 31 e 32 e jurisprudência aí referida); acórdão de 30 de abril de 2014, Kásler e Káslerné Rábai (C‑26/13, ECLI:EU:C:2014:282, n.o 65).

( 11 )   Recentemente, nomeadamente, de 8 de setembro de 2015, Taricco e o. (C‑105/14, EU:C:2015:555, n.o 49 e jurisprudência aí referida).

( 12 )   V., neste sentido, acórdão de 12 de fevereiro de 2008, Willy Kempter KG (C‑2/06, ECLI:EU:C:2008:78, n.os 45 e 46). Adicionalmente, v. acórdãos de 14 de dezembro de 1995, van Schijndel e van Veen (C‑430/93 e C‑431/93, EU:C:1995:441, n.os 13, 14 e 22), de 24 de outubro de 1996, Kraaijeveld e o. (C‑72/95, EU:C:1996:404, n.os 57, 58 e 60).

( 13 )   V., neste sentido, acórdão de 6 de fevereiro de 2014, Fatorie (C—424/12, EU:C:2014:50, n.os 40 a 43).

( 14 )   Acórdão de 11 de abril de 2013, Rusedespred (C‑138/12, ECLI:EU:C:2013:233, n.os 25 e 26 e jurisprudência aí referida).

( 15 )   Acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C—35/05, EU:C:2007:167, n.os 37 e 40 e jurisprudência aí referida).

( 16 )   V., por analogia, acórdão de 15 de março de 2007, Reemtsma Cigarettenfabriken (C—35/05, EU:C:2007:167, n.o 41).

( 17 )   Tal como o Tribunal de Justiça salientou, no regime de autoliquidação, «não há qualquer pagamento de IVA entre o prestador e o beneficiário de serviços, sendo este último, no que toca às operações efetuadas, devedor do IVA a montante, podendo simultaneamente, em princípio, deduzir esse mesmo IVA de modo que nenhum montante será devido à Administração Fiscal». Acórdão de 6 de fevereiro de 2014, Fatorie (C‑424/12, EU:C:2014:50, n.o 29).

( 18 )   V. conclusões do advogado‑geral M. Szpunar nos processos apensos Staatssecretaris van Financiën e o. (C‑131/13, C‑163/13 e C‑164/13, EU:C:2014:2217, n.o 42). Acórdão de 18 de dezembro de 2014, Schoenimport Italmoda Mariano Previti e o. (C‑131/13, C‑163/13 e C‑164/13, EU:C:2014:2455, n.o 48). V., também, acórdão de 21 de fevereiro de 2006, Halifax e o. (C‑255/02, EU:C:2006:121, n.o 84 e jurisprudência aí referida). V., também neste sentido, acórdão de 6 de julho de 2006, Kittel e Recolta Recycling (C‑439/04 e C‑440/04, EU:C:2006:446, n.os 45 a 47).

( 19 )   Acórdãos de 2 de julho de 2015, NLB Leasing (C 209/14, EU:C:2015:440, n.o 40 e jurisprudência aí referida) e de 23 de abril de 2015, GST — Sarviz Germania (C‑111/14, EU:C:2015:267, n.o 34 e jurisprudência aí referida).

( 20 )   Acórdão de 6 de fevereiro de 2014, Fatorie (C‑424/12, EU:C:2014:50, n.o 31 e jurisprudência aí referida).

( 21 )   Acórdão de 7 de novembro de 2013, Tulică e Plavoşin (C‑249/12 e C‑250/12, EU:C:2013:722, n.o 34). V., também, conclusões do advogado‑geral Y. Bot no processo Sjelle Autogenbrug (C‑471/15, EU:C:2016:724, n.o 24 in fine).

( 22 )   Acórdão de 20 de junho de 2013, Rodopi M 91 (C‑259/12, EU:C:2013:414, n.o 31 e jurisprudência aí referida).

( 23 )   Acórdão de 6 de março de 2014, Siragusa (C‑206/13, EU:C:2014:126, n.o 34 e jurisprudência aí referida).

( 24 )   Acórdão de 23 de abril de 2015, GST — Sarviz Germania (C‑111/14, EU:C:2015:267, n.o 34 e jurisprudência aí referida).

( 25 )   Acórdão de 20 de junho de 2013, Rodopi M 91 (C‑259/12, EU:C:2013:414, n.o 38 e jurisprudência aí referida).

( 26 )   Acórdão de 20 de junho de 2013, Rodopi M 91 (C‑259/12, EU:C:2013:414, n.o 40). Confrontar com o acórdão de 19 de julho de 2012, Rēdlihs (C‑263/11, EU:C:2012:497, n.os 50 a 52).