CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 28 de julho de 2016 ( 1 )

Processo C‑315/15

Marcela Pešková,

Jiří Peška

contra

Travel Service a.s.

[pedido de decisão prejudicial submetido pelo Obvodní soud pro Prahu 6 (Tribunal Distrital de Praga 6, República Checa)]

«Reenvio prejudicial — Transportes aéreos — Indemnização dos passageiros em caso de cancelamento ou de atraso considerável de um voo — Alcance — Isenção da obrigação de indemnização — Colisão de uma ave com um avião — Conceitos de “evento”, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça, e de “circunstâncias extraordinárias”, na aceção do Regulamento (CE) n.o 261/2004 — Conceito de “medida razoável” — Evento inerente ao exercício normal da atividade de transportadora aérea»

1. 

No presente processo, pede‑se ao Tribunal de Justiça que declare, no essencial, se as colisões de uma ave com um avião, que contenham implicado um atraso deste de mais de três horas à chegada, constituem «circunstâncias extraordinárias», na aceção do Regulamento (CE) n.o 261/2004 ( 2 ), isentando assim a transportadora aérea operadora da sua obrigação de indemnizar os passageiros por tal atraso.

2. 

Nas presentes conclusões, explicaremos os motivos pelos quais consideramos que o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que colisões de uma ave com um avião, que têm por consequência um atraso superior a três horas em relação à hora de chegada inicialmente prevista, não constituem «circunstâncias extraordinárias», na aceção desta disposição, e, assim, não podem isentar a transportadora aérea operadora da sua obrigação de indemnização.

I – Enquadramento jurídico

3.

O considerando 14 do Regulamento n.o 261/2004 indica o seguinte:

«Tal como ao abrigo da Convenção de Montreal [ ( 3 )], as obrigações a que estão sujeitas as transportadoras aéreas operadoras deverão ser limitadas ou eliminadas nos casos em que a ocorrência tenha sido causada por circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. Essas circunstâncias podem sobrevir, em especial, em caso de instabilidade política, condições meteorológicas incompatíveis com a realização do voo em causa, riscos de segurança, falhas inesperadas para a segurança do voo e greves que afetem o funcionamento da transportadora aérea.»

4.

O artigo 5.o, n.o 3, deste regulamento tem a seguinte redação:

«A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.o, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.»

5.

Nos termos do artigo 7.o, n.o 1, alínea a), do referido regulamento, em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de 250 euros para todos os voos até 1500 quilómetros.

6.

Por último, o artigo 13.o do Regulamento n.o 261/2004 prevê o seguinte:

«Se a transportadora aérea operadora tiver pago uma indemnização ou tiver cumprido outras obrigações que por força do presente regulamento lhe incumbam, nenhuma disposição do presente regulamento pode ser interpretada como limitando o seu direito de exigir indemnização, incluindo a terceiros, nos termos do direito aplicável. Em especial, o presente regulamento em nada limita o direito de uma transportadora aérea operante de pedir o seu ressarcimento a um operador turístico, ou qualquer outra pessoa, com quem tenha contrato. Do mesmo modo, nenhuma disposição do presente regulamento pode ser interpretada como limitando o direito de um operador turístico ou de um terceiro, que não seja um passageiro, com quem uma transportadora aérea operadora tenha um contrato, de pedir o seu ressarcimento ou uma indemnização à transportadora aérea operadora nos termos do direito relevante aplicável.»

II – Factos do litígio no processo principal

7.

Em 10 de agosto de 2013, Marcela Pešková e Jiří Peška realizaram um voo operado pela Travel Service a.s. (a seguir «recorrida») com partida de Burgas (Bulgária) e com destino a Ostrava (República Checa).

8.

Este voo tinha o seguinte trajeto programado: Praga (República Checa) — Burgas — Brno (República Checa) — Burgas — Ostrava. No trajeto Praga — Burgas, foi constatada uma falha técnica numa válvula, cuja reparação necessitou de uma hora e quarenta e cinco minutos. No momento da aterragem em Brno, a recorrida alega que o avião colidiu com uma ave, motivo pelo qual se procedeu a um controlo deste avião por um técnico da recorrida e que veio de Slaný (República Checa). O Obvodní soud pro Prahu 6 (Tribunal Distrital de Praga 6, República Checa) precisa que já tinha sido realizado um controlo por outra sociedade. Todavia, o proprietário do avião, Sunwing, não o tinha autorizado. Por conseguinte, o técnico da recorrida controlou novamente a área da colisão mas este controlo não revelou nada.

9.

Tendo a falha técnica numa válvula e a colisão do avião com uma ave causado um atraso de cinco horas e vinte minutos na chegada a Ostrava, M. Pešková e J. Peška apresentaram, por petição entrada no órgão jurisdicional de reenvio em 26 de novembro de 2013, uma reclamação na qual pediam à recorrida o montante de 250 euros de indemnização nos termos do artigo 7.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 261/2004.

10.

Por acórdão de 22 de maio de 2014, o Obvodní soud pro Prahu 6 (Tribunal Distrital de Praga 6) deferiu o pedido apresentado com fundamento no facto de que estes dois eventos tinham causado o atraso e que não podiam ser qualificados de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, deste regulamento. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, é evidente que faz plenamente parte da competência da recorrida determinar por que método, enquanto transportadora aérea, resolve os problemas administrativos e técnicos implicados na «operacionalidade» de um avião depois de uma colisão com uma ave. Referiu igualmente que a recorrida não demonstrou que tudo fez para evitar um atraso do voo, uma vez que apenas se limitou a afirmar que «era necessário», depois da colisão com a ave, esperar pela chegada do técnico autorizado.

11.

A recorrida interpôs recurso desta decisão em 2 de julho de 2014. Por despacho de 17 de julho de 2014, o Městský soud v Praze (Tribunal Municipal de Praga, República Checa) declarou este recurso inadmissível, uma vez que aquela decisão se pronunciou sobre duas pretensões distintas, nenhuma das quais excedia o montante de 10000 coroas checas (CZK) (aproximadamente 365 euros).

12.

Em consequência, a recorrida interpôs recurso no Ústavní soud (Tribunal Constitucional, República Checa) do acórdão proferido em 22 de maio de 2014 pelo Obvodní soud pro Prahu 6 (Tribunal Distrital de Praga 6). Por acórdão de 20 de novembro de 2014, o Ústavní soud (Tribunal Constitucional) anulou o acórdão de 22 de maio de 2014, com o fundamento de que este violava o direito fundamental da recorrida a um processo equitativo e o direito fundamental a um órgão jurisdicional estabelecido por lei, uma vez que o Obvodní soud pro Prahu 6 (Tribunal Distrital de Praga 6), enquanto órgão jurisdicional de última instância, estava obrigado a submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, por força do artigo 267.o TFUE. O Ústavní soud (Tribunal Constitucional) observou igualmente que o Tribunal de Justiça não emitiu, até agora, uma interpretação completa do Regulamento n.o 261/2004 quanto à natureza da responsabilidade no seguimento da colisão entre um avião e uma ave em conjugação com outros eventos de outra natureza, no caso em apreço eventos técnicos. Além disso, em seu entender, não resulta claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça nem deste regulamento que tais circunstâncias possam ser consideradas «circunstâncias extraordinárias», na aceção do artigo 5.o, n.o 3, do referido regulamento.

13.

Por conseguinte, neste contexto, o Obvodní soud pro Prahu 6 (Tribunal Distrital de Praga 6) decidiu, mediante reenvio prejudicial, questionar o Tribunal de Justiça.

III – Questões prejudiciais

14.

Tendo dúvidas quanto à interpretação que deve ser dada ao Regulamento n.o 261/2004, o Obvodní soud pro Prahu 6 (Tribunal Distrital de Praga 6) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

A colisão entre um avião e uma ave constitui um “evento” na aceção do n.o 22 do acórdão de 22 de dezembro de 2008, [Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)], ou uma “circunstância extraordinária” na aceção do considerando 14 do Regulamento […] n.o 261/2004 […] ou [tal colisão] não está abrangida por nenhum desses conceitos?

2)

No caso de a colisão entre um avião e uma ave constituir uma “circunstância extraordinária”, na aceção do considerando 14 do Regulamento [n.o 261/2004], podem mecanismos de controlo preventivo colocados, em particular, nas imediações dos aeroportos (como, por exemplo, o afastamento das aves pelo ruído, a colaboração com ornitólogos, a eliminação de espaços típicos de ajuntamento ou de voo das aves, o afastamento pela luz, etc.) ser considerados medidas razoáveis a ser adotadas pela transportadora aérea para evitar tal colisão? O que constitui, neste caso, um “evento” na aceção do n.o 22 do acórdão [de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)]?

3)

No caso de a colisão entre um avião e uma ave constituir um “evento” na aceção do n.o 22 do acórdão [de 22 de dezembro de 2008, Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771)], pode também ser considerada uma “ocorrência” na aceção do considerado 14 do Regulamento [n.o 261/2004] e, em tal caso, pode o conjunto de medidas técnicas e administrativas que a transportadora aérea deve adotar após a colisão entre um avião e uma ave, que não causou, no entanto, danos ao avião, ser considerado uma circunstância extraordinária na aceção do considerando 14 [deste] regulamento?

4)

No caso de o conjunto de medidas técnicas e administrativas adotado após a colisão entre um avião e uma ave, que não causou, no entanto, danos ao avião, constituir uma “circunstância extraordinária” na aceção do considerando 14 do Regulamento [n.o 261/2004], pode ser exigido à transportadora aérea que tome em consideração, enquanto medidas razoáveis, aquando da planificação dos voos, o risco de poder ser necessário adotar essas medidas técnicas e administrativas após uma colisão entre o avião e uma ave e que tenha essa circunstância já em conta nos horários dos voos?

5)

Como deve ser apreciada a obrigação da transportadora aérea de indemnização dos danos na aceção do artigo 7.o do Regulamento [n.o 261/2004] no caso em que o atraso é causado não só pelas medidas administrativas e técnicas adotadas após a colisão entre um avião e uma ave que não causou danos ao avião, mas igualmente, em larga medida, pela reparação de uma falha técnica sem relação com a referida colisão?»

IV – Apreciação

A – Observações preliminares

15.

O exame da causa submetida ao Tribunal de Justiça leva‑nos a formular, por razões de clareza, a seguinte questão.

16.

Em matéria de indemnização dos passageiros em caso de atraso da transportadora aérea, a jurisprudência do Tribunal de Justiça apresenta, em meu entender, a dupla característica de ser, por um lado, precisa e, por outra, protetora dos passageiros. Ao ler determinados desenvolvimentos das observações escritas submetidas ao Tribunal de Justiça, dos quais alguns evocam, designadamente, ‑ ainda que apensas a propósito da indemnização de um dano eventual ‑ «custos insuportáveis», não podemos deixar de nos interrogar se esta inflexão jurisprudencial, pois, para nós, é disso que se trata, solicitada pelas partes não decorre do facto de se considerar que a jurisprudência atual implica uma carga financeira excessiva para as companhias aéreas.

17.

Podemos entender isso. Mas, ainda que seja essa a realidade, a solução adequada para corrigir esse efeito eventualmente excessivo passa, na minha opinião, por uma alteração legislativa e não por uma adaptação da jurisprudência que, por um lado, atribui ao Tribunal de Justiça um papel que não nos parece ser exatamente o seu e, por outro, pode esbater as linhas já traçadas com precisão. O Tribunal de Justiça traçou essas linhas utilizando o seu método normal de interpretação e em função dos termos empregues e dos motivos expostos pelo legislador da União.

18.

Como teremos oportunidade de referir ao longo da exposição do nosso raciocínio, querer recusar considerar a analogia presente entre várias situações em nome de distinções semânticas, que não vemos que princípio jurídico as impõe, equivaleria, na realidade, a remeter para uma análise casuística que ou faz do Tribunal de Justiça, jurisdição suprema da União, um juiz de facto, ou leva a abandonar a solução ao juiz nacional com todos os riscos de divergências daí resultantes.

19.

Parece‑nos existir aí um risco de imprecisão e, por conseguinte, de insegurança jurídica.

20.

Assim, a solução lógica e em conformidade com o papel normal das instituições à luz das suas respetivas competências consiste, segundo nós, em adotar uma solução legislativa que venha corrigir um texto cuja redação inicial gerou consequências que o legislador da União considera não dever manter.

B – Quanto às questões prejudiciais

21.

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, se o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que colisões de uma ave com um avião, que têm por consequência um atraso superior a três horas em relação à hora de chegada inicialmente prevista, devem ser consideradas «circunstâncias extraordinárias», na aceção desta disposição, isentando assim a transportadora aérea da sua obrigação de indemnização dos passageiros aéreos.

22.

Recordamos que, nos termos do artigo 5.o, n.o 3, deste regulamento, uma transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.o, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.

23.

O Tribunal de Justiça precisou que, uma vez que constitui uma derrogação ao princípio do direito à indemnização dos passageiros, este artigo 5.o, n.o 3, deve ser interpretado de forma estrita ( 4 ).

24.

Além disso, as circunstâncias que rodeiam um evento apenas podem ser qualificadas de «extraordinárias», na aceção do referido artigo 5.o, n.o 3, se estiverem relacionadas com um evento que, à semelhança dos enumerados no considerando 14 desse Regulamento n.o 261/2004, não é inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e que, devido à sua natureza ou à sua origem, escapa ao controlo efetivo desta última ( 5 ).

25.

A este respeito, resulta das observações submetidas ao Tribunal de Justiça no presente processo que existe alguma confusão entre estes dois requisitos. Com efeito, é possível ler que, quando um evento não é previsível e escapa ao controlo efetivo da transportadora aérea, deve automaticamente ser qualificado de «circunstâncias extraordinárias», na aceção do Regulamento n.o 261/2004.

26.

Ora, os requisitos enumerados pelo Tribunal de Justiça na jurisprudência referida são cumulativos. Deste modo, um evento constitui uma circunstância extraordinária quando, por um lado, não é inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea e, por outro, devido à sua natureza ou à sua origem, escapa ao controlo efetivo desta transportadora.

27.

Por conseguinte, a inexistência de um destes requisitos impede que os eventos sejam qualificados de «circunstâncias extraordinárias». O mesmo sucede quanto à colisão entre uma ave e um avião. Com efeito, se, devido à sua natureza ou à sua origem, escapa ao controlo efetivo da transportadora aérea, não pode, em contrapartida, ser considerada como não sendo inerente ao exercício normal da sua atividade.

28.

O perigo de acidentes com animais na atividade do transporte aéreo é um fenómeno conhecido de que os agentes envolvidos têm plena consciência. Com efeito, desde a fase da construção do avião, as partes deste que são mais sensíveis à colisão com uma ave — nomeadamente, o motor e o para‑brisas do cockpit — são objeto de testes necessários para que o avião possa obter o certificado de navegabilidade que o autoriza a voar ( 6 ). Deste modo, para testar a resistência do avião a uma colisão com pássaros, os construtores aeronáuticos utilizam muitas vezes «canhões de frangos» que projetam cadáveres de pássaros à velocidade a que o avião voa na altitude em que é frequente encontrar tais pássaros, ou seja, na descolagem e na aterragem. Assim, a estrutura do avião deve ser capaz de resistir à colisão com aves de diferentes tamanhos consoante o modelo do avião e o modelo do motor ( 7 ).

29.

Os construtores aeronáuticos não são os únicos a ter em conta o perigo de acidentes com animais. Com efeito, na maioria dos aeroportos, são utilizados diferentes métodos para afugentar aves e outros animais ao longo das pistas, tais como lançamento de foguetes, tochas de laser ou ainda imitações de gritos. De igual modo, para reduzir a atratividade de uma zona situada nas proximidades de um aeroporto, podem ser adotadas medidas específicas, como a drenagem de pântanos ou a proibição de culturas muito atrativas para aves ( 8 ).

30.

É igualmente sabido que alguns períodos são mais favoráveis do que outros à colisão com aves, designadamente, as estações mais perigosas são os períodos migratórios e o período de voo das aves jovens que não estão habituadas aos aviões e os momentos do dia mais perigosos são o amanhecer e o crepúsculo ( 9 ).

31.

As colisões de uma ou de várias aves com um avião são, por conseguinte, um fenómeno habitual e conhecido dos diferentes agentes económicos que operam nos transportes aéreos. De acordo com um estudo americano sobre o perigo de acidentes com animais do ano de 2011, foram reportadas 99411 colisões de um animal com um avião desde a criação da base de dados da Federal Aviation Administration (FAA) em 1990. Na grande maioria dos casos — nomeadamente, 97,4% —, tratava‑se de uma colisão que envolvia uma ave ( 10 ). Em França, são registadas anualmente cerca de 700 colisões de aves com um avião ( 11 ).

32.

Os próprios pilotos desempenham uma função importante na gestão do perigo de acidentes com animais, antes, durante ou depois do voo. Com efeito, antes do voo, os pilotos têm acesso às informações disponíveis relativas à presença, ou não, de aves no aeroporto de partida e de destino, ou nas proximidades destes, através de mensagens publicadas pelas agências governamentais de controlo da navegação aérea ( 12 ). Se existir risco, os pilotos podem requerer uma intervenção para afastar os pássaros. Durante a rolagem, os pilotos também devem observar atentamente a pista a fim de detetarem qualquer presença de aves e, se necessário, assinalá‑la. Por último, todas as colisões com aves devem ser registadas ( 13 ).

33.

Assim, importa constatar que a colisão de uma ave com um avião não constitui de forma alguma um evento que se situa «fora do ordinário» ( 14 ), pelo contrário. A frequência deste tipo de colisão, a sua tomada em consideração na conceção do avião, na gestão dos aeroportos, bem como nas diferentes fases de voo demonstram cabalmente, em nosso entender, que tal evento é, de facto, inerente ao exercício normal da atividade de transportadora aérea. Um raciocínio contrário levaria a qualificar juridicamente de «extraordinário» um evento que é perfeitamente ordinário.

34.

O risco é certo, conhecido, tido em conta e presente desde que o avião descola ou aterra, ou seja, é indissociável da própria atividade aeronáutica. Parece‑nos claro, além disso, que ninguém pode seriamente contestar essa característica.

35.

A finalidade pretendida é, na realidade, transferir para o passageiro o incómodo resultante da verificação desse risco.

36.

Para alcançar esse resultado, é necessário, como sublinhávamos nas observações preliminares, que o Tribunal de Justiça se debruce sobre a sua jurisprudência decorrente do acórdão de 17 de setembro de 2015, van der Lans (C‑257/14, EU:C:2015:618). Ora, existe, em nosso entender, uma analogia inegável entre as duas situações consideradas, ainda que as partes o contestem.

37.

Com efeito, não vemos nenhuma razão que nos leve a adotar um raciocínio diferente do que o Tribunal de Justiça adotou nesse acórdão. Com efeito, indicou que uma avaria provocada pela falha prematura de determinadas peças de uma aeronave constitui, sem dúvida, um evento imprevisível. No entanto, acrescentou, essa avaria permanece intrinsecamente associada ao sistema de funcionamento muito complexo do aparelho, que a transportadora aérea explora em condições, designadamente meteorológicas, muitas vezes difíceis, ou mesmo extremas, entendendo‑se, por outro lado, que nenhuma peça de uma aeronave é inalterável ( 15 ). O Tribunal de Justiça concluiu que, no âmbito da atividade de uma transportadora aérea, esse acontecimento imprevisível é inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea, sendo essa transportadora confrontada, regularmente, com esse tipo de problemas técnicos imprevistos ( 16 ).

38.

Na audiência, foi avançado que um evento como uma avaria provocada pela falha prematura de uma peça de um avião e um evento como a colisão de um avião com uma ave não podem ser comparados na medida em que o primeiro é uma causa endógena e o segundo é uma causa exógena, ou seja, a causa é interna ou externa ao avião. No entanto, cabe perguntar qual o fundamento jurídico a retirar desse mero elemento com consequências tão diametralmente opostas que conduzem a uma violação tão forte da proteção do consumidor.

39.

Esse argumento que faz depender a aplicação de um princípio jurídico da questão de saber se o risco está situado no interior da estrutura do avião ou no exterior deste não muda nada relativamente à natureza jurídica do evento. Independentemente de esse risco se situar no interior ou no exterior da fuselagem, a única característica útil à luz jurisprudência do Tribunal de Justiça é saber se é ou não inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea, o que pensamos ter demonstrado.

40.

Dito de outro modo, considerar esse critério proposto pelas partes equivaleria a uma reviravolta numa jurisprudência pacífica mediante a substituição de um critério jurídico por um critério puramente material que vem anular o primeiro. No interior ou no exterior do avião, o risco continua inerente ao exercício normal da atividade da transportadora aérea.

41.

Vemos bem a vantagem, aliás, na realidade, não contestada pelas partes, que seria para as companhias aéreas bem como a correlativa desvantagem que os consumidores sofreriam. É por isso que, se existe uma necessidade de ponderação económica desses diferentes interesses por uma alteração jurídica, nos parece que compete apenas ao legislador da União promovê‑la.

42.

Do mesmo modo, na audiência, foi feita alusão a situações de atraso causadas por condições meteorológicas gravíssimas que justificariam, nesse caso, ser qualificadas de «circunstâncias extraordinárias». Todavia, parece‑nos excessivo assimilar o encontro de um avião com uma ave durante a fase de descolagem ou de aterragem a um evento da natureza do invocado na audiência.

43.

Só poderia ser de outro modo se o voo da ave impedisse temporariamente um avião de descolar ou o forçasse a uma aterragem de emergência noutro aeroporto. Só essa situação nos parece ser comparável, por raciocínio de analogia, com a criada por circunstâncias meteorológicas excecionais.

44.

Por conseguinte, consideramos que o artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 deve ser interpretado no sentido de que colisões de uma ave com um avião, que têm por consequência um atraso superior a três horas em relação à hora de chegada inicialmente prevista, não constituem «circunstâncias extraordinárias», na aceção desta disposição, e, assim, não podem isentar a transportadora aérea operadora da sua obrigação de indemnização.

45.

Além disso, importa precisar que, em conformidade com o artigo 13.o deste regulamento, a transportadora aérea, quando paga tal indemnização, pode exigir indemnização, incluindo a terceiros, nos termos do direito nacional aplicável. Esta indemnização é, pois, suscetível de atenuar, se não mesmo de eliminar, o encargo financeiro suportado pela mesma transportadora em consequência das suas obrigações que decorrem do referido regulamento ( 17 ). Deste modo, se a transportadora aérea operadora considerar que era da responsabilidade da gestão do aeroporto adotar medidas suficientes para afastar os pássaros e que, em seu entender, isso não sucedeu, pode, consequentemente, instaurar uma ação de indemnização.

46.

Atendendo à resposta dada à primeira questão, consideramos que não é necessário responder às segunda a quarta questões.

47.

Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, na realidade, como é que devem ser entendidos os dois eventos que causaram um atraso de cinco horas e vinte minutos na chegada à luz do direito à indemnização de que beneficiam os passageiros aéreos do voo atrasado por força do Regulamento n.o 261/2004.

48.

Resulta dos factos em apreço no processo principal, conforme apresentados pelo órgão jurisdicional de reenvio, que o atraso resultante da falha técnica foi de uma hora e quarenta e cinco minutos. Após a colisão de uma ave com o avião, o atraso acumulado destes dois eventos foi de cinco horas e vinte minutos. Assim, esta colisão provocou um atraso de três horas e trinta e cinco minutos. Ora, na medida em que, conforme apreciamos anteriormente, as colisões de uma ave com um avião não constituem «circunstâncias extraordinárias», na aceção do Regulamento n.o 261/2004, o mero atraso resultante da colisão de uma ave com o avião é suficiente para fundamentar o direito à indemnização de que beneficiam os passageiros aéreos do voo em causa. Por conseguinte, entendemos que não é necessário examinar a quinta questão.

V – Conclusão

49.

Tendo em consideração o exposto, propomos que o Tribunal de Justiça responda ao Obvodní soud pro Prahu 6 (Tribunal Distrital de Praga 6, República Checa) o seguinte:

O artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91, deve ser interpretado no sentido de que colisões de uma ave com um avião, que têm por consequência um atraso superior a três horas em relação à hora de chegada inicialmente prevista, não constituem «circunstâncias extraordinárias», na aceção desta disposição, e, assim, não podem isentar a transportadora aérea operadora da sua obrigação de indemnização.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91 (JO 2004, L 46, p. 1).

( 3 ) Convenção para a unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, em 28 de maio de 1999, foi assinada pela Comunidade Europeia em 9 de dezembro de 1999 e aprovada em seu nome pela Decisão 2001/539/CE do Conselho, de 5 de abril de 2001 (JO 2001, L 194, p. 38).

( 4 ) Acórdão de 17 de setembro de 2015, van der Lans (C‑257/14, EU:C:2015:618, n.o 35 e jurisprudência referida).

( 5 ) V. acórdão de 17 de setembro de 2015, van der Lans (C‑257/14, EU:C:2015:618, n.o 36 e jurisprudência referida).

( 6 ) V. Decisão n.o 2003/9/RM da Agência Europeia para a Segurança da Aviação (AESA), de 24 de outubro de 2003, no endereço Internet seguinte: https://www.easa.europa.eu/system/files/dfu/decision_ED_2003_09_RM.pdf.

( 7 ) V. pp. 60 e seguintes desta decisão.

( 8 ) V. nota de informação técnica da Direção‑Geral da Aviação Civil do mês de março de 2007 no endereço Internet seguinte: http://www.stac.aviation‑civile.gouv.fr/publications/documents/peril_animalier.pdf.

( 9 ) Idem.

( 10 ) V. síntese do Airport Cooperative Research Program (ACRP), sob a epígrafe «Bird harassment, repellent, and deterrent techniques for use on and near airports», disponível no endereço Internet seguinte: http://onlinepubs.trb.°rg/onlinepubs/acrp/acrp_syn_023.pdf.

( 11 ) V. estatísticas do Serviço técnico da aviação civil no endereço Internet seguinte: http://www.stac.aviation‑civile.gouv.fr/risque_animalier/picaweb.php.

( 12 ) Estas mensagens são designadas por Notice to Airmen (NOTAM).

( 13 ) V., endereço Internet seguinte: http://www.stac.aviation‑civile.gouv.fr/risque_animalier/prevention.php.

( 14 ) V., acórdão de 31 de janeiro de 2013, McDonagh (C‑12/11, EU:C:2013:43, n.o 29).

( 15 ) Acórdão de 17 de setembro de 2015, van der Lans (C‑257/14, EU:C:2015:618, n.o 41).

( 16 ) Acórdão de 17 de setembro de 2015, van der Lans (C‑257/14, EU:C:2015:618, n.o 42).

( 17 ) V. acórdão de 17 de setembro de 2015, van der Lans (C‑257/14, EU:C:2015:618, n.o 46 e jurisprudência referida).