CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 12 de janeiro de 2017 ( 1 )

Processos apensos C‑217/15 e C‑350/15

Massimo Orsi (C‑217/15)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale di Santa Maria Capua Vetere (Tribunal de Santa Maria Capua Vetere, Itália)]

«Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Legislação nacional que estabelece uma sanção administrativa e uma sanção penal pelos mesmos factos, relativos ao não pagamento do IVA — Violação do princípio ne bis in idem»

Luciano Baldetti (C‑350/15)

[pedido de decisão prejudicial apresentado Tribunale di Santa Maria Capua Vetere (Tribunal de Santa Maria Capua Vetere, Itália)]

«Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Legislação nacional que estabelece uma sanção administrativa e uma sanção penal pelos mesmos factos, relativos ao não pagamento do IVA — Violação do princípio ne bis in idem»

1. 

Em que condições é aplicável o princípio ne bis in idem quando as legislações de alguns Estados‑Membros permitem o cúmulo de sanções administrativas e penais para punir o não pagamento do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) de elevado montante? Este constitui, em síntese, o problema com o qual, uma vez mais, é confrontado o Tribunal de Justiça.

2. 

Este Tribunal estabeleceu, com o seu acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson ( 2 ), a linha a seguir pelos órgãos jurisdicionais nacionais relativamente ao direito de uma pessoa a não ser julgada mais do que uma vez por uma inobservância da obrigação de pagamento do IVA. Fê‑lo incorporando soluções desenvolvidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (a seguir «TEDH»), mas a resposta dada naquele acórdão deu origem a dificuldades e controvérsias entre os juízes de alguns Estados‑Membros, como a Itália. O Tribunal de Justiça tem agora a oportunidade de completar a sua jurisprudência sobre esta matéria.

3. 

O Tribunal de Justiça deverá completar e perfilar a sua jurisprudência nesta matéria, sobretudo depois do recente acórdão do TEDH de 15 de novembro de 2016 ( 3 ). Não obstante, esta não é a ocasião mais adequada para o fazer, uma vez que, na realidade, a resposta a ambos os reenvios prejudiciais depende do elemento do princípio ne bis in idem menos problemático, que é a identidade pessoal dos condenados.

I – Quadro jurídico

A – Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 1950 (a seguir «CEDH»)

4.

O Protocolo n.o 7 em anexo à CEDH, assinado em Estrasburgo, em 22 de novembro de 1984 (a seguir «Protocolo n.o 7»), regula no seu artigo 4.o o «direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez», nos seguintes termos:

«1.   Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infração pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.

2.   As disposições do número anterior não impedem a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afetar o resultado do julgamento.

3.   Não é permitida qualquer derrogação ao presente artigo com fundamento no artigo 15.o da Convenção.»

B – Direito da União

5.

De acordo com o artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»):

«Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.»

6.

O artigo 51.o da Carta determina o seu âmbito de aplicação:

«1.   As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados‑Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados.

2.   A presente Carta não torna o âmbito de aplicação do direito da União extensivo a competências que não sejam as da União, não cria quaisquer novas atribuições ou competências para a União, nem modifica as atribuições e competências definidas pelos Tratados.»

C – Direito italiano

7.

O artigo 13.o, n.o 1, do Decreto Legislativo n.o 471, de 18 de dezembro de 1997, que aprova a reforma das sanções tributárias não penais relativas a impostos diretos, ao imposto sobre o valor acrescentado e à receita tributária, nos termos do artigo 3.o, n.o 133, alínea q), da Lei n.o 662, de 23 de dezembro de 1996, determina ( 4 ):

«Quem não efetuar, no todo ou em parte, no prazo legal, os pagamentos por conta, periódicos, de liquidação ou remanescente da parte do imposto resultante da declaração, depois da dedução, nesse caso, dos montantes dos pagamentos periódicos e por conta, mesmo que não tenham sido efetuados, está sujeito a coima no valor de 30% de cada montante não pago, mesmo quando, após a correção de erros materiais ou de cálculo detetados no controlo da declaração anual, resultar que o imposto é superior ou que o valor a deduzir é inferior. Quanto aos pagamentos efetuados com um atraso não superior a quinze dias, a coima referida no primeiro período, sem prejuízo do disposto no artigo 13.o do Decreto Legislativo n.o 472, de 18 de dezembro de 1997, será reduzida em montante igual a um quinze avos por cada dia de atraso. A mesma coima é aplicável nos casos de liquidação do imposto agravado por força dos artigos 36.°‑A e 36.°‑B do Decreto n.o 600 do Presidente da República, de 29 de setembro de 1973, e do artigo 54.o‑A do Decreto n.o 633 do Presidente da República, de 26 de outubro de 1972.» ( 5 )

8.

O Decreto Legislativo n.o 74/2000, de 10 de março de 2000 ( 6 ), relativo ao regime dos crimes em matéria de impostos diretos e de IVA (a seguir «Decreto Legislativo n.o 74/2000») regula no seu artigo 10.o‑B o «não pagamento do IVA», nos seguintes termos:

«O disposto no artigo 10.o‑A aplica‑se nos limites previstos também a quem não pague o imposto sobre o valor acrescentado, devido com base na declaração anual, no prazo previsto para o pagamento por conta relativo ao exercício fiscal seguinte.»

9.

De acordo com o artigo 10.o‑A do mesmo decreto legislativo:

«Será punido com uma pena de seis meses a dois anos de prisão quem não pagar, no prazo previsto para a apresentação da declaração anual em substituição do sujeito passivo, as retenções que resultem da certificação expedida aos substitutos, num montante superior a 50000 euros por cada exercício fiscal».

10.

Os artigos 19.° a 21.° do Decreto Legislativo n.o 74/2000, incluídos no título «Relações com o regime administrativo de sanções e entre processos», determinam, em síntese: a) que se aplique a norma especial quando um mesmo facto seja punido por uma disposição do título II e por uma disposição que preveja uma sanção administrativa; b) que o processo penal e o procedimento administrativo sejam instruídos separadamente, isto é, que nenhum deles deve ser suspenso na pendência da decisão do outro; c) que a autoridade competente estabelecerá as sanções administrativas relativas aos incumprimentos fiscais objeto da infração penal; e d) que, no entanto, tais sanções não são aplicáveis, exceto se o processo penal culminar em arquivamento ou decisão irrevogável de absolvição que exclua a relevância penal da ação, e neste último caso, o prazo para a cobrança começará a contar na data da comunicação da decisão de absolvição.

11.

Após a data da prática dos atos que suscitaram os presentes reenvios, a legislação italiana foi alterada pelo Decreto Legislativo n.o 158, de 24 de setembro de 2015 ( 7 ) (a seguir «Decreto Legislativo n.o 158/2015»), que afetou os artigos 10.°‑A e 10.°‑B do Decreto Legislativo n.o 74/2000 e introduziu outra causa adicional de exclusão da punibilidade através do novo artigo 13.o do Decreto Legislativo n.o 74/2000.

12.

Em conformidade com o artigo 7.o do Decreto Legislativo n.o 158/2015, o artigo 10.o‑A do Decreto Legislativo n.o 74/2000 tem agora a seguinte redação:

«Será punido com pena de seis meses a dois anos de prisão quem não proceder, no prazo previsto para a apresentação da declaração anual, aos pagamentos por conta devidos com base nessa declaração ou não pagar as retenções de impostos resultantes da certificação passada por quem procede às retenções, em montante superior a 150000 euros por cada exercício fiscal.»

13.

De acordo com o artigo 8.o do Decreto Legislativo n.o 158/2015, a redação do artigo 10.o‑B do Decreto Legislativo n.o 74/2000 foi alterada, com efeitos a partir de 22 de outubro de 2015:

«Será punido com pena de seis meses a dois anos de prisão quem não proceder, no prazo previsto para a apresentação da declaração anual, aos pagamentos por conta devidos com base nessa declaração ou não pagar as retenções de impostos resultantes da certificação passada por quem procede às retenções, em montante superior a 150000 euros por cada exercício fiscal.»

14.

De acordo com o artigo 7.o do Decreto‑Lei n.o 269, de 30 de setembro de 2003 ( 8 ), relativo à aplicabilidade das sanções administrativas de caráter fiscal exclusivamente às pessoas coletivas:

«1.   As sanções administrativas relativas às obrigações fiscais específicas de uma sociedade ou de uma entidade dotada de personalidade jurídica impendem exclusivamente sobre essas pessoas coletivas.

2.   O disposto no n.o 1 é aplicável às infrações ainda não impugnadas ou relativamente às quais a sanção não tenha sido decidida à data da entrada em vigor do presente Decreto.

Nos casos previstos no presente artigo aplica‑se o disposto no Decreto Legislativo de 18 de dezembro de 1997, n.o 472, desde que seja compatível.»

II – Litígios nacionais e questões prejudiciais

15.

O Tribunal de Justiça deve dar resposta a duas questões prejudiciais semelhantes, formuladas pelo Tribunale di Santa Maria Capua Vetere (Tribunal de Santa Maria Capua Vetere, Itália) nos processos C‑217/15 e C‑350/15.

16.

O processo C‑217/15 decorre de um processo penal instaurado contra M. Orsi, na qualidade de representante legal da sociedade Servizi Ambiente e Commercio s.r.l., pelo não pagamento, no prazo estabelecido, de 1014288,00 euros a título de IVA relativo ao exercício fiscal de 2011.

17.

O processo penal foi instaurado por denúncia da Agenzia dell’Entrate (Administração Tributária italiana) à Procura della Repubblica (Ministério Público), na qual se alega que a empresa da qual M. Orsi era representante legal não tinha procedido à liquidação do IVA, o que constituía um crime tipificado no artigo 10.o‑B, conjugado com o artigo 10.o‑A, do Decreto Legislativo n.o 74/2000. No decurso desse processo penal, M. Orsi recorreu da decisão de arresto preventivo dos seus bens.

18.

Antes de ser aberto o processo penal, a infração fiscal tinha sido objeto de inspeção pela Administração Tributária italiana que, para além de proceder à liquidação da dívida de M. Orsi, lhe aplicou também uma coima equivalente a 30% do seu montante. Concluídas as diligências no âmbito do controlo, as partes chegaram a um acordo nos termos do qual a Agenzia delle Entrate renunciou à coima prevista e aceitou que M. Orsi pagasse apenas o IVA, o que pôs termo ao procedimento, visto não haver impugnação.

19.

Neste contexto, o Tribunale di Santa Maria Capua Vetere (Tribunal de Santa Maria Capua Vetere) decidiu submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«É compatível com o direito da União, no sentido do artigo 4.o [do Protocolo n.o 7 da CEDH] e do artigo 50.o [da Carta], a disposição prevista no artigo 10.o‑B do Decreto Legislativo n.o 74/2000, na parte em que permite apreciar a responsabilidade penal de uma pessoa que, pelo mesmo facto (não pagamento do IVA), já tenha sido objeto de uma decisão definitiva da Administração Tributária do Estado, mediante a qual lhe foi imposta uma sanção administrativa correspondente a 30% do imposto não pago?»

20.

O processo C‑350/15 deriva de factos muito semelhantes. L. Baldetti, na sua qualidade de representante legal da sociedade Evoluzione Maglia s.r.l., tinha declarado ter em dívida ao Estado o montante de 1071836 euros a título de IVA relativo aos exercícios fiscais de 2010 e 2011, que não tinha pagado no prazo estabelecido. A Administração Tributária desencadeou um processo de inspeção contra ele, enquanto representante da referida empresa, no contexto do qual procedeu à liquidação da dívida fiscal e aplicou as coimas correspondentes. Concluídas as diligências no âmbito da inspeção, a Administração Tributária acordou com o contribuinte que este deveria proceder ao pagamento do imposto em dívida e de 50% das coimas, renunciando aquela aos restantes 50%, o que pôs termo ao procedimento, visto não ter sido impugnado.

21.

No entanto, a Administração Tributária italiana denunciou ao Ministério Público o não pagamento do IVA por parte de L. Baldetti, na sua qualidade de representante legal da empresa, conduta que considerava constitutiva do crime tipificado no artigo 10.o‑B do Decreto Legislativo n.o 74/2000. Nesse processo penal, L. Baldetti recorreu da decisão de arresto preventivo dos seus bens.

22.

Neste contexto, o Tribunale di Santa Maria Capua Vetere (Tribunal de Santa Maria Capua Vetere) entendeu ser necessário submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial, idêntica à submetida no processo C‑217/15:

«É compatível com o direito da União, no sentido do artigo 4.o [do Protocolo n.o 7 da CEDH] e do artigo 50.o [da Carta], a disposição prevista no artigo 10.o‑B do Decreto Legislativo n.o 74/2000, na parte em que permite apreciar a responsabilidade penal de uma pessoa que, pelo mesmo facto (não pagamento do IVA), já tenha sido objeto de uma decisão definitiva da Administração Tributária do Estado, mediante a qual lhe foi imposta uma sanção administrativa correspondente a 30% do imposto não pago?»

23.

Dada a sua semelhança, o Tribunal de Justiça apensou estes dois processos com o processo C‑524/15, Menci, igualmente relativo à dupla aplicação de sanções fiscais e penais em Itália por não pagamento de IVA. Terminada a fase escrita, foi realizada uma audiência em 8 de setembro de 2016, na qual não participaram M. Orsi nem L. Baldetti, e só a defesa de L. Menci, o Governo italiano e a Comissão Europeia apresentaram os seus argumentos.

24.

Apesar de ter sido anunciada para 17 de novembro de 2016 a leitura das conclusões conjuntas para os três processos até então apensos, a prolação do acórdão do TEDH no processo A e B c. Noruega ( 9 ) aconselhou que aquela fosse adiada. Essa mesma razão determinou que o presidente da Quarta Secção do Tribunal de Justiça decidisse, em 30 de novembro de 2016, separar o processo Menci dos processos Orsi e Baldetti, ao abrigo do artigo 54.o, n.os 2 e 3, conjugado com o artigo 11.o, n.o 4, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

III – Análise das questões prejudiciais

25.

Nos dois reenvios prejudiciais pergunta‑se, em síntese, ao Tribunal de Justiça, se o artigo 50.o da Carta, lido em conjugação com o artigo 4.o do Protocolo n.o 7, é compatível com uma legislação nacional, como a italiana, que permite o cúmulo de sanções fiscais e penais para punir os mesmos atos, que consistem na omissão do pagamento do IVA.

26.

O princípio ne bis in idem aparece no direito da União com diversas matizes ( 10 ) cujo tratamento não foi ainda uniformizado pelo Tribunal de Justiça, apesar dos apelos nesse sentido de alguns advogados‑gerais ( 11 ).

27.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre a aplicação do princípio ne bis in idem ao cúmulo de sanções fiscais e penais como resposta do Estado ao não pagamento de impostos (especificamente, do IVA) foi estabelecida no acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson.

28.

No acórdão Åkerberg Fransson ( 12 ), tendo aceitado a sua competência para responder ao reenvio prejudicial ( 13 ), o Tribunal de Justiça assegurou que o princípio ne bis in idem«não se opõe a que um Estado‑Membro imponha, para os mesmos factos de inobservância das obrigações de declaração em matéria de IVA, sucessivamente uma sobretaxa fiscal e uma sanção penal, desde que a primeira sanção não revista caráter penal, o que compete ao órgão jurisdicional nacional verificar» ( 14 ). A liberdade de escolha das sanções aplicáveis de que dispõem os Estados‑Membros justifica‑se pela necessidade de garantir a cobrança da totalidade das receitas provenientes do IVA e, assim, a proteção dos interesses financeiros da União ( 15 ).

29.

Mas o Tribunal estabeleceu um limite para o cúmulo de sanções fiscais e penais: «quando a sanção fiscal reveste caráter penal, na aceção do artigo 50.o da Carta, e transita em julgado é que a referida disposição se opõe a que seja intentado um processo‑crime pelos mesmos factos contra a mesma pessoa». É assim possível o cúmulo de sanções fiscais com sanções penais, mas não a aplicação de uma sanção nominalmente administrativa que, na realidade, seja de índole repressiva, conjuntamente com outra penal ( 16 ).

30.

Por sua vez, para determinar quando é que uma sanção fiscal tem caráter penal, o Tribunal de Justiça utilizou, como já referi, os «critérios Engel», que tinha declarado anteriormente no acórdão Bonda ( 17 ). Com efeito, o TEDH desenvolveu critérios específicos e autónomos, desde o acórdão Engel e o. c. Países Baixos ( 18 ), para clarificar o conceito de «acusação em matéria penal» do artigo 6.o da CEDH e o conceito de «pena» do artigo 7.o da CEDH, perante medidas de direito administrativo sancionatório de caráter repressivo. Em especial, para interpretar o artigo 4.o do Protocolo n.o 7, recorreu a esses critérios, a saber ( 19 ), a qualificação jurídica da infração no direito nacional, a natureza da infração e a natureza e intensidade ou gravidade da sanção aplicada ao infrator.

31.

No seu acórdão Åkerberg Fransson, o Tribunal de Justiça não aplicou ele próprio os «critérios Engel» a uma legislação como a sueca, antes tendo confiado essa tarefa ao tribunal nacional de reenvio, com a advertência de que apenas poderia concluir que o cúmulo de sanções fiscais e penais era contrário ao artigo 50.o da Carta se as restantes sanções fossem efetivas, proporcionadas e dissuasivas ( 20 ).

32.

Com base nestas premissas, há que analisar se, nos litígios principais, se verificam os três elementos necessários para a aplicação do princípio ne bis in idem, isto é: a) a identidade da pessoa a quem as sanções são aplicadas; b) a duplicação de processos sancionatórios; e c) a identidade dos factos em juízo.

33.

Quanto à identidade da pessoa punida, não existem decisões específicas do Tribunal de Justiça e é escassa a jurisprudência do TEDH, uma vez que se trata do elemento menos problemático do princípio ne bis in idem. Em alguns acórdãos, o TEDH e o Tribunal de Justiça praticamente subsumem o elemento da identidade da pessoa punida com o da identidade dos factos em juízo (idem) ( 21 ).

34.

No seu acórdão Pirttimäki c. Finlândia ( 22 ), o TEDH analisou um caso em que a Administração finlandesa aplicou sanções fiscais a várias sociedades por quotas, de titularidade britânica, mas realmente controladas por Pirttimäki e outros cidadãos finlandeses; mais tarde foram instaurados processos penais contra Pirttimäki e esses outros cidadãos por fraude fiscal, por não terem declarado os dividendos recebidos dessas sociedades. O TEDH considerou não ser aplicável o princípio ne bis in idem do artigo 4.o do Protocolo n.o 7, porque no procedimento administrativo as sanções fiscais foram aplicadas às empresas, enquanto o processo penal foi dirigido contra pessoas singulares (Pirttimäki e outros), que tinham personalidade jurídica distinta dessas empresas, apesar de terem participado nas suas decisões ( 23 ).

35.

Creio que este critério é o mais adequado para interpretar também o artigo 50.o da Carta.

36.

Segundo o que consta dos autos, nestes litígios a sanção fiscal recaiu sobre duas pessoas coletivas sob a forma de sociedade (Servizi Ambiente e Commercio s.r.l., no primeiro caso, e Evoluzione Maglia s.r.l., no segundo), enquanto o processo penal foi instaurado contra os respetivos representantes legais. Concordo com o Governo italiano quanto ao facto de que esta circunstância impede que se fale de uma dupla punição (ou de um duplo processo) aplicada à mesma pessoa, uma vez que não se pode equiparar a sanção fiscal aplicada a uma sociedade por quotas à abertura de um processo penal contra o seu representante legal, mesmo quando se trate, nos dois casos, do mesmo não pagamento de IVA.

37.

Nestes dois casos, repito, não se verifica a condição da identidade pessoal entre os arguidos e punidos por via administrativa e por via penal, indispensável para aplicar o direito garantido pelo artigo 50.o da Carta. A inexistência dessa condição torna desnecessário que o Tribunal de Justiça de pronuncie sobre a eventual verificação dos restantes elementos necessários à aplicação do princípio ne bis in idem.

38.

Assim, proponho que se responda às questões formuladas nos reenvios prejudiciais C‑217/15 e C‑350/15 no sentido de que o direito protegido pelo artigo 50.o da Carta não é aplicável quando, ainda que estando em causa a mesma falta de pagamento do IVA, as sanções fiscais tenham sido aplicadas a uma sociedade comercial e o destinatário do processo penal tenha sido o seu representante legal.

IV – Conclusão

39.

Em face do exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais nos seguintes termos:

«O artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, interpretado à luz do artigo 4.o do Protocolo n.o 7 da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, não é aplicável quando, em caso de dualidade de processos e sanções de caráter administrativo e de caráter penal pelos mesmos factos, as sanções fiscais são aplicadas a uma pessoa coletiva, como uma sociedade comercial, e o processo penal é instaurado contra uma pessoa singular, mesmo quando seja representante legal daquela.»


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105).

( 3 ) V. TEDH, acórdão de 15 de novembro de 2016, A e B c. Noruega (CE:ECHR:2016:1115JUD002413011).

( 4 ) Decreto Legislativo 18 dicembre 1997, n.o 471, Riforma delle sanzioni tributarie non penali in materia di imposte dirette, di imposta sul valore aggiunto e di riscossione dei tributi, a norma dell’articolo 3, comma 133, lettera q), della legge 23 dicembre 1996, n.o 662 (GURI n.o 5, de 8 de janeiro de 1998 — Suplemento ordinário, n.o 4).

( 5 ) Decreto Legislativo 18 dicembre de 1997, n.o 472, Disposizioni generali in materia di sanzioni amministrative per le violazioni di norme tributarie, a norma del’articolo 3, comma 133, della legge 23 dicembre 1996, n.o 662. (GURI n.o 5, de 8 de janeiro de 1998 — Suplemento ordinário, n.o 4), que prevê no seu artigo 13.o a possibilidade de reduções das sanções por não pagamento de impostos.

( 6 ) Decreto Legislativo 10 marzo 2000, n.o 74, Nuova disciplina dei reati in materia di imposte sui redditi e sul valore aggiunto, a norma dell’art. 9 della legge 25 giugno 1999, n.o 205 (GURI n.o 76, de 31 de março de 2000).

( 7 ) Decreto Legislativo 24 settembre 2015, n.o 158, Revisione del sistema sanzionatorio, in attuazione dell’articolo 8, comma 1, della legge 11 marzo 2014, n.o 23 (GURI n.o 233, de 7 de outubro de 2015 — Suplemento ordinário, n.o 55).

( 8 ) Decreto‑legge 30 settembre 2003, n.o 269, Disposizioni urgenti per favorire lo sviluppo e per la correzione dell’andamento dei conti pubblici (GURI n.o 229, de 2 de outubro de 2003 — Suplemento ordinário, n.o 157).

( 9 ) V. TEDH, acórdão de 15 de novembro de 2016, A e B c. Noruega (CE:ECHR:2016:1115JUD002413011)

( 10 ) Remeto para a obra de Van Bockel, B., The ne bis in idem principle in EU Law, Kluwer, 2010. V., também, Oliver, P.; Bombois, T., «Ne bis in idem en droit européen: un principe à plusieurs variantes», Journal de droit européen, 2012, pp. 266 a 272; e Tomkin, J., «Article 50, Right not to be tried or punished twice in criminal proceedings for the same criminal offence», in Peers, S., Hervey, T., Kenner, J., e Ward, A., The EU Charter of Fundamental Rights: a commentary, Hart Publishing, Oxford, 2014, pp. 1373 a 1412.

( 11 ) V. conclusões da advogada‑geral J. Kokott apresentadas em 15 de dezembro de 2011 no processo Bonda (C‑489/10, EU:C:2011:845, n.o 33), e as restantes conclusões aí referidas.

( 12 ) O caso ali discutido era semelhante a este: Å. Fransson tinha sido punido por via administrativa por não ter pagado montantes elevados de IVA e, uma vez terminado aquele processo, foi intentado contra ele outro processo, desta vez penal, pelos mesmos factos.

( 13 ) O Tribunal de Justiça declarou ser competente por serem aplicáveis os artigos 2.°, 250.°, n.o 1, e 273.° da Diretiva 2006/112 e o artigo 325.o TFUE, tratando‑se de um caso de aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n. .° 1, da Carta. Desde então, a aplicação da Carta a estes processos não é controvertida. Pelo contrário, as sanções fiscais e penais decretadas em Itália por não pagamento de imposto sobre o rendimento não comportam a aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, razão pela qual o Tribunal de Justiça se declarou manifestamente incompetente para resolver una questão prejudicial no despacho de 15 de abril de 2015, Burzio (C‑497/14, EU:C:2015:251).

( 14 ) Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 37).

( 15 ) Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 34).

( 16 ) O Regulamento (CE, Euratom) n.o 2988/95 do Conselho, de 18 de dezembro de 1995, relativo à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias (JO 1995, L 312, p. 1), contém no seu artigo 6.o disposições destinadas a garantir o respeito pelo ne bis in idem que pretendem evitar o cúmulo das sanções administrativas da União com sanções penais dos Estados‑Membros.

( 17 ) Acórdão de 5 de junho de 2012, Bonda (C‑489/10, EU:C:2012:319, n.o 37), que versava sobre o concurso de um processo penal, na Polónia, com sanções administrativas da União aplicadas a beneficiários de ajudas agrícolas. V., ainda, acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 35).

( 18 ) V. TEDH, acórdão de 8 de junho de 1976, CE:ECHR:1976:1123JUD000510071, § 82.

( 19 ) V. TEDH, acórdão de 10 de fevereiro de 2015, Kiiveri c. Finlândia (CE:ECHR:2015:0210JUD005375312), § 30 e jurisprudência aí referida.

( 20 ) Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson (C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 36). Na sequência deste acórdão, o Tribunal Supremo sueco alterou a sua jurisprudência e, em duas decisões de junho e julho de 2013, considerou que a legislação sueca que permitia o cúmulo de sanções fiscais e penais devido ao não pagamento de IVA violava o princípio ne bis in idem.

( 21 ) Por exemplo, o TEDH, no seu acórdão de 10 de fevereiro de 2009, Zolotukhin c. Rússia (CE:ECHR:2009:0210JUD001493903), § 84, descreve a identidade dos factos como o «conjunto de circunstâncias de facto concretas relativas ao mesmo infrator e indissoluvelmente ligadas entre si no tempo e no espaço»; o sublinhado é meu.

( 22 ) V. TEDH, acórdão de 20 de maio de 2014, Pirttimäki c. Finlândia (CE:ECHR:2014:0520JUD00352321), §§ 5 e 52.

( 23 ) V., ainda, decisões do TEDH de 2 de outubro de 2003, Isaksen c. Noruega (CE:ECHR:2003:1002DEC001359602), e de 14 de setembro de 1999, Ponsetti e Chesnel c. França (CE:ECHR:1999:0914DEC003685597).