ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

27 de maio de 2014 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Tramitação prejudicial urgente — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 50.° e 52.° — Princípio ne bis in idem — Convenção de aplicação do Acordo de Schengen — Artigo 54.o — Conceitos de sanção ‘cumprida’ e ‘atualmente em curso de execução’»

No processo C‑129/14 PPU,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberlandesgericht Nürnberg (Alemanha), por decisão de 19 de março de 2014, entrado no Tribunal de Justiça em 20 de março de 2014, no processo penal contra

Zoran Spasic,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, K. Lenaerts, vice‑presidente, R. Silva de Lapuerta, M. Ilešič, L. Bay Larsen, M. Safjan, C. G. Fernlund, presidentes de secção, A. Ó Caoimh, C. Toader (relatora), D. Šváby, E. Jarašiūnas, S. Rodin e F. Biltgen, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: I. Illéssy, administrador,

visto o pedido de 19 de março de 2014 do órgão jurisdicional de reenvio, entrado no Tribunal de Justiça em 20 de março de 2014, de submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente, em conformidade com o artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal,

vista a decisão de 31 de março de 2014 da Terceira Secção do Tribunal de Justiça, de deferir este pedido,

vistos os autos e após a audiência de 28 de abril de 2014,

vistas as observações apresentadas:

em representação de Z. Spasic, por A. Schwarzer, Rechtsanwalt,

em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Kemper, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por D. Colas e F.‑X. Bréchot, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por L. Ventrella, avvocato dello Stato,

em representação do Conselho da União Europeia, por P. Plaza e Z. Kupčová, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por W. Bogensberger e R. Troosters, na qualidade de agentes,

ouvido o advogado‑geral,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 54.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen, em 19 de junho de 1990, e entrada em vigor em 26 de março de 1995 (JO 2000, L 239, p. 19, a seguir «CAAS»), relativo à aplicação do princípio ne bis in idem, bem como a compatibilidade desta disposição com o artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal movido na Alemanha contra Z. Spasic, com fundamento numa burla que este cometeu em Itália.

Quadro jurídico

Direito da União

Carta

3

O artigo 50.o da Carta, intitulado «Direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito», figura no título VI da mesma, com a epígrafe «Justiça». Tem a seguinte redação:

«Ninguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei.»

4

Segundo o artigo 6.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TUE, os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem ser interpretados de acordo com as disposições gerais constantes do título VII da Carta que regem a sua interpretação e aplicação e tendo na devida conta as anotações a que a Carta faz referência, que indicam as fontes dessas disposições.

5

Com a epígrafe «Âmbito […] dos direitos» garantidos, o artigo 52.o da Carta, que figura no título VII, «Disposições gerais», dispõe:

«1.   Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

[...]

3.   Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.

[...]

7.   Os órgãos jurisdicionais da União e dos Estados‑Membros têm em devida conta as anotações destinadas a orientar a interpretação da presente Carta.»

6

As anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17, a seguir «anotações relativas à Carta») precisam, no que respeita ao artigo 50.o da Carta, que a regra ne bis in idem se aplica não apenas entre os órgãos jurisdicionais de um mesmo Estado mas também entre os órgãos jurisdicionais de vários Estados‑Membros, o que corresponde ao acervo do direito da União. De resto, estas anotações sobre o mesmo artigo 50.o referem expressamente os artigos 54.° a 58.° da CAAS, precisando que as exceções claramente delimitadas pelas quais estes artigos permitem aos Estados‑Membros derrogar à regra ne bis in idem são abrangidas pela cláusula horizontal do artigo 52.o, n.o 1, relativa às restrições.

CAAS

7

A CAAS foi celebrada com vista a assegurar a aplicação do acordo entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen em 14 de junho de 1985 (JO 2000, L 239, p. 13).

8

O artigo 54.o da CAAS figura no capítulo 3 da mesma, intitulado «Aplicação do princípio ne bis in idem». Este artigo prevê:

«Aquele que tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma parte contratante não pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma ação judicial intentada por uma outra parte contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução ou não possa já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida.»

Protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da União

9

A CAAS foi integrada no direito da União pelo Protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da União Europeia, anexo ao Tratado da União Europeia e ao Tratado que institui a Comunidade Europeia pelo Tratado de Amesterdão (JO 1997, C 340, p. 93, a seguir «Protocolo de Schengen»), a título de «acervo de Schengen», conforme definido no anexo desse protocolo. Este último autorizou treze Estados‑Membros a instaurarem entre si uma cooperação reforçada nos domínios abrangidos pelo âmbito de aplicação do acervo de Schengen.

10

Nos termos do artigo 1.o do Protocolo de Schengen, a República Italiana também se tornou, entretanto, Estado contratante da CAAS.

11

O artigo 2.o, n.o 1, do referido protocolo tem a seguinte redação:

«[...]

O Conselho [da União Europeia] [...] determinará, nos termos das disposições pertinentes dos Tratados, a base jurídica de cada uma das disposições ou decisões que constituem o acervo de Schengen.

No que respeita a essas disposições e decisões e de acordo com a base jurídica que o Conselho tenha determinado, o Tribunal de Justiça [da União Europeia] exercerá a competência que lhe é atribuída pelas pertinentes disposições aplicáveis dos Tratados. […]

Enquanto não tiverem sido tomadas as medidas acima previstas, e sem prejuízo do disposto no n.o 2 do artigo 5.o, as disposições ou decisões que constituem o acervo de Schengen são consideradas atos baseados no título VI do Tratado da União Europeia.»

12

A Decisão 1999/436/CE do Conselho, de 20 de maio de 1999, que determina, nos termos das disposições pertinentes do Tratado que institui a Comunidade Europeia e do Tratado da União Europeia, a base jurídica de cada uma das disposições ou decisões que constituem o acervo de Schengen (JO L 176, p. 17), foi adotada em aplicação do artigo 2.o, n.o 1, do Protocolo de Schengen. Resulta do artigo 2.o da Decisão 1999/436 e do seu anexo A que o Conselho designou o artigo 34.o UE e o artigo 31.o UE como bases jurídicas dos artigos 54.° a 58.° da CAAS.

Protocolo (n.o 19) relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia

13

O Protocolo (n.o 19) relativo ao acervo de Schengen integrado no âmbito da União Europeia (JO 2008, C 115, p. 290), anexo ao Tratado FUE, autorizou 25 Estados‑Membros, no quadro jurídico e institucional da União, a instaurarem entre si uma cooperação reforçada nos domínios abrangidos pelo acervo de Schengen. Assim, nos termos do artigo 2.o deste protocolo:

«O acervo de Schengen é aplicável aos Estados‑Membros a que se refere o artigo 1.o, sem prejuízo do disposto no artigo 3.o do Ato de Adesão de 16 de abril de 2003 e no artigo 4.o do Ato de Adesão de 25 de abril de 2005. O Conselho substitui o Comité Executivo criado pelos acordos de Schengen.»

Protocolo (n.o 36) relativo às disposições transitórias

14

O artigo 9.o do Protocolo (n.o 36) relativo às disposições transitórias (JO 2008, C 115, p. 322), anexo ao Tratado FUE, tem a seguinte redação:

«Os efeitos jurídicos dos atos das instituições, órgãos e organismos da União adotados com base no Tratado [UE] antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa são preservados enquanto esses atos não forem revogados, anulados ou alterados em aplicação dos Tratados. O mesmo se aplica às convenções celebradas entre os Estados‑Membros com base no Tratado [UE].»

15

O artigo 10.o, n.os 1 e 3, deste protocolo prevê:

«1.   A título transitório, e no que diz respeito aos atos da União no domínio da cooperação policial e da cooperação judiciária em matéria penal adotados antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, as competências das instituições serão as seguintes, à data de entrada em vigor do referido Tratado: não serão aplicáveis as competências conferidas à Comissão nos termos do artigo 258.o [TFUE,] e as competências conferidas ao Tribunal de Justiça da União Europeia nos termos do título VI do Tratado [UE], na versão em vigor até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa, permanecerão inalteradas, inclusivamente nos casos em que tenham sido aceites nos termos do n.o 2 do artigo 35.o [UE].

[…]

3.   Em qualquer caso, a disposição transitória a que se refere o n.o 1 deixará de produzir efeitos cinco anos após a data de entrada em vigor do Tratado de Lisboa.

[…]»

Decisão‑Quadro 2002/584/JAI

16

O artigo 1.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO L 81, p. 24, a seguir «Decisão‑Quadro 2002/584»), dispõe:

«O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.»

17

Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2002/584, o mandado de detenção europeu pode ser emitido, designadamente, quando tiver sido decretada uma pena ou aplicada uma medida de segurança, por sanções de duração não inferior a quatro meses.

18

Pode ser recusada a execução de um mandado de detenção europeu pelos motivos indicados nos artigos 3.° e 4.° da mesma decisão‑quadro.

Decisão‑Quadro 2005/214/JAI

19

Nos termos do artigo 2.o da Decisão‑Quadro 2005/214/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sanções pecuniárias (JO L 76, p. 16), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009 (JO L 81, p. 24, a seguir «Decisão‑Quadro 2005/214»), «[o] princípio do reconhecimento mútuo deverá aplicar‑se às sanções pecuniárias impostas pelas autoridades judiciárias ou administrativas, a fim de facilitar a aplicação dessas sanções num Estado‑Membro que não seja o Estado em que as sanções são impostas».

Decisão‑Quadro 2008/909/JAI

20

O artigo 3.o, intitulado «Objetivo e âmbito de aplicação», da Decisão‑Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia (JO L 327, p. 27), dispõe:

«1.   A presente decisão‑quadro tem por objetivo estabelecer as regras segundo as quais um Estado‑Membro, tendo em vista facilitar a reinserção social da pessoa condenada, reconhece uma sentença e executa a condenação imposta.

2.   A presente decisão‑quadro é aplicável independentemente de a pessoa condenada se encontrar no Estado de emissão ou no Estado de execução.

[...]»

Decisão‑Quadro 2009/948/JAI

21

O considerando 3 da Decisão‑Quadro 2009/948/JAI do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativa à prevenção e resolução de conflitos de exercício de competência em processo penal (JO L 328, p. 42), enuncia:

«As medidas previstas na presente decisão‑quadro destinam‑se a prevenir situações em que a mesma pessoa seja objeto em diferentes Estados‑Membros de processos penais paralelos relativos aos mesmos factos, podendo daí resultar o trânsito em julgado das decisões desses processos em dois ou mais Estados‑Membros. A decisão‑quadro procura, portanto, evitar a violação do princípio ne bis in idem, estabelecido no artigo 54.o da [CAAS] [...]»

22

Nos termos do artigo 5.o, n.o 1, desta decisão‑quadro, caso haja razões fundadas para crer que corre um processo paralelo noutro Estado‑Membro, a autoridade competente de um Estado‑Membro contacta a autoridade competente desse outro Estado‑Membro para confirmar a existência desse processo paralelo, a fim de dar início a consultas diretas.

Direitos nacionais

Direito alemão

23

Nos termos do § 7, n.o 1, do Código Penal (Strafgesetzbuch), intitulado «Aplicabilidade aos atos constitutivos de uma infração cometida no estrangeiro noutros casos»:

«[O] direito penal alemão é aplicável aos atos constitutivos de uma infração cometida no estrangeiro contra um alemão, quando o ato seja também punido no Estado onde foi cometido ou quando o lugar onde o ato foi cometido não esteja abrangido por nenhuma jurisdição penal.»

24

O § 263 do Código Penal, intitulado «Fraude», tem a seguinte redação:

«(1)   Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro uma vantagem material ilícita, causar um prejuízo patrimonial a outra pessoa, provocando ou mantendo um erro por meio de falsos pretextos, dissimulação ou supressão de factos verdadeiros, pode incorrer numa pena de cinco anos de prisão ou numa pena de multa.

[...]

(3)   Nos casos especialmente graves, a pena é de prisão de seis a dez anos.

1.

Um caso deve, em princípio, ser considerado especialmente grave quando o autor atua a título profissional ou enquanto membro de um bando [...]»

25

Por força do § 1 da Lei sobre o recurso ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias para se pronunciar a título prejudicial no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal ao abrigo do artigo 35.o UE (Gesetz betreffend die Anrufung des Gerichtshofs der Europäischen Gemeinschaften im Wege des Vorabentscheidungsverfahrens auf dem Gebiet der polizeilichen Zusammenarbeit und der justitiellen Zusammenarbeit in Strafsachen nach Art. 35 des EU‑Vertrages), de 6 de agosto de 1998 (BGBl. 1998 I, p. 2035), todos os órgãos jurisdicionais alemães podem submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial no domínio referido no artigo 35.o UE, tendo por objeto a validade e a interpretação de decisões‑quadro, a interpretação de convenções ou ainda a validade e a interpretação de medidas de execução relativas a convenções nesse domínio.

Direito italiano

26

O artigo 640.o, n.o 1, do Código Penal, intitulado «Burla», dispõe:

«Quem, por meio de artifícios ou de manobras fraudulentas, induzindo alguém em erro com intenção de obter um benefício para si ou para outra pessoa, causar um prejuízo a um terceiro, será punido com pena de prisão de seis meses a três anos e com pena de multa de 51 a 1 032 euros.

[...]»

27

O artigo 444.o, n.o 1, do Código de Processo Penal prevê:

«O arguido e o Ministério Público podem solicitar ao tribunal a aplicação de uma sanção de substituição, do tipo e na medida indicados, ou de um sanção pecuniária, reduzida até ao máximo de um terço, ou de uma pena de prisão, quando esta, tendo em conta as circunstâncias e reduzida até ao máximo de um terço, não exceder cinco anos, por si só ou acompanhada de uma sanção pecuniária.»

28

Segundo o artigo 656.o, n.o 5, do Código de Processo Penal, o Ministério Público pode suspender a execução da pena privativa de liberdade, se esta for inferior a três anos. Se o condenado não apresentar um pedido de medida alternativa à prisão, o Ministério Público revoga a suspensão de execução, nos termos do artigo 656.o, n.o 8, do mesmo código.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

29

Resulta do pedido de decisão prejudicial e dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que Z. Spasic, cidadão sérvio, é acusado pelo Staatsanwaltschaft Regensburg (Ministério Público de Ratisbona, Alemanha) de ter cometido, em 20 de março de 2009, um crime de burla, enquanto membro de um grupo organizado, em Milão (Itália). A vítima, Wolfgang Soller, de nacionalidade alemã, depois de ter sido contactado por um cúmplice de Z. Spasic, entregou a este último a quantia de 40000 euros em notas de pequeno valor, em troca de notas de 500 euros, que, posteriormente, se comprovou serem falsas.

30

Tendo sido alvo de um mandado de detenção europeu emitido em 27 de agosto de 2009 pela Staatsanwaltschaft Innsbruck (Áustria) por outros delitos perpetrados segundo o mesmo modus operandi, Z. Spasic foi detido na Hungria, em 8 de outubro de 2009, e posteriormente entregue às autoridades austríacas. Foi condenado neste Estado‑Membro numa pena privativa de liberdade de sete anos e seis meses, tendo esta decisão de 26 de agosto de 2010 transitado em julgado.

31

Em 25 de fevereiro de 2010, o Amtsgericht Regensburg (Tribunal do Cantão de Ratisbona) emitiu um mandado de detenção nacional com fundamento na burla cometida em Milão, que serviu de base à emissão, pela Staatsanwaltschaft Regensburg, de um mandado de detenção europeu, em 5 de março de 2010.

32

O Tribunale ordinario di Milano (Tribunal de Milão, Itália), por decisão de 18 de junho de 2012, transitada em julgado em 7 de julho de 2012, condenou Z. Spasic, declarado contumaz, por um lado, numa pena privativa de liberdade de um ano e, por outro, no pagamento de uma multa de 800 euros, com fundamento na burla cometida em 20 de março de 2009 em Milão. Resulta desta decisão do Tribunale ordinario di Milano que Z. Spasic, detido na Áustria, apresentou uma confissão por escrito, com base na qual o juiz nacional aplicou o artigo 640.o do Código Penal e o artigo 444.o do Código de Processo Penal. O Ministério Público no Tribunale ordinario de Milano suspendeu a execução em aplicação do artigo 656.o, n.o 5, deste último código.

33

Por decisão de 5 de janeiro de 2013, o Ministério Público revogou a suspensão de execução da pena e ordenou a detenção do condenado, para cumprimento da pena privativa de liberdade de um ano acima referida, e o pagamento da multa no montante de 800 euros.

34

Em 20 de novembro de 2013, o Amtsgericht Regensburg emitiu um novo mandado de detenção nacional alargado contra Z. Spasic, cujo ponto I respeita aos factos constitutivos da burla em grupo organizado, praticados em Milão, em 20 de março de 2009, em prejuízo de W. Soller, os quais já eram objeto do mandado de detenção nacional de 25 de fevereiro de 2010, e o ponto II, a outros factos.

35

Z. Spasic está em prisão preventiva na Alemanha, desde 6 de dezembro de 2013, data em que, em execução do mandado de detenção europeu de 5 de março de 2010, as autoridades austríacas o entregaram às autoridades alemãs.

36

Z. Spasic contestou no Amtsgericht Regensburg a decisão que ordenou a manutenção da sua detenção, tendo alegado, no essencial, que, por força do princípio ne bis in idem, não podia ser julgado, na Alemanha, pelos factos praticados em Milão em 20 de março de 2009, uma vez que já tinha sido objeto de uma condenação definitiva e executória pelo Tribunale ordinario di Milano, por esses mesmos factos.

37

Por despacho de 13 de janeiro de 2014, o Amtsgericht Regensburg negou provimento ao seu recurso e remeteu o processo ao Landgericht Regensburg (Tribunal Regional de Ratisbona). Em 23 de janeiro de 2014, Z. Spasic pagou, por transferência bancária, a quantia de 800 euros, a título da multa aplicada pelo Tribunale ordinario di Milano, e apresentou a prova desse pagamento no Landgericht Regensburg.

38

Por decisão de 28 de janeiro de 2014, o Landgericht Regensburg confirmou o despacho do Amtsgericht Regensburg, tendo precisado que a manutenção da prisão preventiva podia ser validamente fundamentada nos factos descritos no ponto I do mandado de detenção de 20 de novembro de 2013, isto é, os factos praticados em Milão em 20 de março de 2009, visados na decisão do Tribunale ordinario di Milano.

39

Z. Spasic interpôs recurso desta decisão do Landgericht Regensburg para o Oberlandesgericht Nürnberg (Tribunal Regional Superior de Nuremberga). Alega, em substância, que as disposições limitativas do artigo 54.o da CAAS não podem validamente restringir o alcance do artigo 50.o da Carta e que, uma vez que pagou a multa de 800 euros, devia ser posto em liberdade.

40

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, que refere que remete, quanto a este aspeto, para a jurisprudência constante do Bundesgerichtshof (Tribunal Federal de Justiça), o artigo 54.o da CAAS constitui uma disposição limitativa, na aceção do artigo 52.o, n.o 1, da Carta. Por conseguinte, o princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 50.o da Carta, é aplicável nas condições previstas no artigo 54.o da CAAS. No entanto, esse órgão jurisdicional salienta que o Tribunal de Justiça nunca se pronunciou sobre a compatibilidade do artigo 54.o da CAAS com o artigo 50.o da Carta nem sobre a incidência do facto de a pessoa condenada pela mesma decisão numa pena de prisão e no pagamento de uma multa apenas executar esta segunda sanção.

41

Nestas condições, o Oberlandesgericht Nürnberg decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O artigo 54.o da [CAAS], ao sujeitar a aplicação do princípio ne bis in idem à condição de, em caso de condenação, a sanção ter sido cumprida ou estar atualmente em curso de execução ou não poder já ser executada, segundo a legislação da parte contratante em que a decisão de condenação foi proferida, é compatível com o artigo 50.o da [Carta]?

2)

A referida condição, prevista no artigo 54.o da [CAAS], também se verifica quando apenas tenha sido executada uma parte (no presente caso: a multa) da sanção, composta por duas partes autónomas (no presente caso: uma pena privativa da liberdade e uma multa), aplicada no Estado em que a decisão de condenação foi proferida?»

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

42

Resulta da decisão de reenvio que o pedido de decisão prejudicial se baseia no artigo 267.o TFUE, enquanto as questões submetidas respeitam à CAAS, Convenção que se enquadra no título VI do Tratado UE, na sua versão aplicável antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa.

43

A este respeito, é ponto assente que o regime previsto no artigo 267.o TFUE é aplicável à competência prejudicial do Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 35.o UE, por sua vez aplicável até 1 de dezembro de 2014, sob reserva das condições previstas nesta última disposição (v., neste sentido, acórdão Santesteban Goicoechea, C‑296/08 PPU, EU:C:2008:457, n.o 36).

44

A República Federal da Alemanha fez uma declaração, nos termos do artigo 35.o, n.o 2, UE, pela qual aceitou a competência do Tribunal de Justiça para se pronunciar de acordo com as modalidades previstas no n.o 3, alínea b), deste artigo, como resulta da informação relativa à data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 1 de maio de 1999 (JO L 114, p. 56).

45

Nestas condições, o facto de a decisão de reenvio não mencionar o artigo 35.o UE, mas sim o artigo 267.o TFUE, não pode, por si só, acarretar a incompetência do Tribunal para responder às questões submetidas pelo Oberlandesgericht Nürnberg (v., neste sentido, acórdão Santesteban Goicoechea, EU:C:2008:457, n.o 38).

46

Decorre das considerações precedentes que o Tribunal é competente para responder às questões submetidas.

Quanto à tramitação urgente

47

O Oberlandesgericht Nürnberg pediu que o presente reenvio prejudicial fosse submetido à tramitação urgente prevista no artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 107.o do Regulamento de Processo deste último.

48

O órgão jurisdicional de reenvio fundamentou o seu pedido referindo que a justificação da detenção de Z. Spasic depende da resposta do Tribunal às questões prejudiciais.

49

Por decisão de 31 de março de 2014, sob proposta da juíza‑relatora, ouvido o advogado‑geral, o Tribunal decidiu, com base no artigo 267.o, n.o 4, TFUE e no artigo 107.o do seu Regulamento de Processo, deferir o pedido do órgão jurisdicional nacional de submeter o reenvio prejudicial a tramitação urgente.

Quanto às questões prejudiciais

50

A título preliminar, importa observar que, embora o artigo 54.o da CAAS subordine a aplicação do princípio ne bis in idem à condição de a execução da sanção já não ser possível, esta condição não é aplicável no âmbito do processo principal, uma vez que resulta dos elementos dos autos submetidos ao Tribunal, confirmados na audiência, que, segundo o direito italiano, a pena privativa de liberdade em que Z. Spasic foi condenado nesse Estado‑Membro ainda é exequível.

Quanto à primeira questão

51

Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 54.o da CAAS, que subordina a aplicação do princípio ne bis in idem à condição de que, em caso de condenação, a sanção «tenha sido cumprida» ou esteja «atualmente em curso de execução» ou não possa já ser executada (a seguir «condição de execução»), é compatível com o artigo 50.o da Carta, que garante esse princípio.

52

A este respeito, importa salientar que a redação do artigo 54.o da CAAS difere da do artigo 50.o da Carta, ao subordinar a aplicação do princípio ne bis in idem à condição de execução.

53

O Tribunal reconheceu que a aplicação do princípio ne bis in idem, enunciado no artigo 50.o da Carta, a processos‑crime como os que são objeto do litígio no processo principal pressupõe que as medidas já adotadas contra o arguido por meio de uma decisão transitada em julgado revistam caráter penal (acórdão Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.o 33), o que não é contestado no caso em apreço.

54

Neste contexto, para responder à primeira questão submetida, importa, antes de mais, recordar que as anotações relativas à Carta, a respeito do seu artigo 50.o, que, de acordo com os artigos 6.°, n.o 1, terceiro parágrafo, TUE e 52.°, n.o 7, da Carta, foram elaboradas com vista a orientar a interpretação desta última e devem ser tidas devidamente em conta tanto pelos órgãos jurisdicionais da União como pelos dos Estados‑Membros, referem expressamente o artigo 54.o da CAAS entre as disposições visadas pela disposição horizontal do artigo 52.o, n.o 1, da Carta.

55

Daqui decorre que a condição suplementar contida no artigo 54.o da CAAS constitui uma restrição do princípio ne bis in idem que é compatível com o artigo 50.o da Carta, uma vez que esta restrição está coberta pelas anotações relativas à Carta a respeito deste último artigo, para as quais remetem diretamente as disposições do artigo 6.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TUE e do artigo 52.o, n.o 7, da Carta. Em todo o caso e independentemente dos termos utilizados nas anotações relativas à Carta a respeito do referido artigo 50.o, a condição de execução que subordina a proteção mais ampla oferecida por este artigo 50.o a uma condição suplementar constitui uma restrição do direito consagrado no referido artigo, na aceção do artigo 52.o da Carta.

56

Em conformidade com o artigo 52.o, n.o 1, primeiro período, da Carta, qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela mesma deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos. De acordo com o segundo período do mesmo número, na observância do princípio da proporcionalidade, só podem ser introduzidas restrições a esses direitos e liberdades se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

57

No caso em apreço, não se contesta que a restrição do princípio ne bis in idem deve ser considerada prevista por lei, na aceção do artigo 52.o, n.o 1, da Carta, uma vez que resulta do artigo 54.o da CAAS.

58

Quanto ao conteúdo essencial do referido princípio, importa salientar que, como os Governos alemão e francês alegaram nas suas observações, a condição de execução prevista no artigo 54.o da CAAS não põe em causa o princípio ne bis in idem enquanto tal. Com efeito, a referida condição visa, designadamente, evitar que uma pessoa que foi definitivamente condenada num primeiro Estado contratante já não possa ser julgada pelos mesmos factos num segundo Estado contratante e acabe por ficar impune quando o primeiro Estado não tenha dado execução à pena aplicada (v., neste sentido, acórdão Kretzinger, C‑288/05, EU:C:2007:441, n.o 51).

59

Daqui resulta que se deve considerar que uma disposição como o artigo 54.o da CAAS respeita o conteúdo essencial do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta.

60

No entanto, há que verificar se a restrição decorrente da condição de execução prevista no artigo 54.o da CAAS é proporcionada, o que exige que se examine, antes de mais, se se pode considerar que esta condição responde a um objetivo de interesse geral no sentido do artigo 52.o, n.o 1, da Carta e se, na afirmativa, respeita o princípio da proporcionalidade no sentido da mesma disposição.

61

A este respeito, recorde‑se, desde já, que, nos termos do artigo 3.o, n.o 2, TUE, a União proporciona aos seus cidadãos um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas, em que é assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos nas fronteiras externas, bem como de prevenção da criminalidade e combate a este fenómeno.

62

Como resulta do artigo 67.o, n.o 3, TFUE, o objetivo definido para a União, de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça, implica a necessidade de a União envidar esforços para garantir um elevado nível de segurança, através de medidas de prevenção da criminalidade e de combate à mesma, através de medidas de coordenação e de cooperação entre autoridades policiais e judiciárias e outras autoridades competentes, bem como através do reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria penal e, se necessário, através da aproximação das legislações penais.

63

Ora, a condição de execução prevista no artigo 54.o da CAAS insere‑se neste contexto, na medida em que, conforme recordado no n.o 58 do presente acórdão, visa evitar, no espaço de liberdade, segurança e justiça, a impunidade de que poderiam beneficiar as pessoas condenadas num Estado‑Membro da União por sentença penal transitada em julgado.

64

Por conseguinte, não se pode contestar que a condição de execução prevista no artigo 54.o da CAAS seja apta a alcançar o objetivo prosseguido. Com efeito, em caso de não execução da sanção aplicada, ao permitir que as autoridades de um Estado contratante julguem pelos mesmos factos uma pessoa definitivamente condenada noutro Estado contratante, evita‑se o risco de o referido condenado ficar impune por ter deixado o território do Estado onde foi condenado.

65

Quanto ao caráter necessário da condição de execução para responder ao objetivo de interesse geral de evitar, no espaço de liberdade, segurança e justiça, a impunidade das pessoas condenadas num Estado‑Membro da União por sentença penal transitada em julgado, há que salientar que existem efetivamente, ao nível da União, como a Comissão alegou nas suas observações escritas e na audiência, muitos instrumentos para facilitar a cooperação entre os Estados‑Membros em matéria penal.

66

A este respeito, importa mencionar a Decisão‑Quadro 2009/948, cujo artigo 5.o obriga as autoridades dos diferentes Estados‑Membros que reivindicam competências concorrentes para intentar processos penais relativos aos mesmos factos a darem início a consultas diretas a fim de chegarem a consenso sobre uma solução eficaz para evitar as consequências negativas decorrentes da existência de processos paralelos.

67

Tais consultas diretas podem, se for caso disso, por um lado, conduzir à emissão de um mandado de detenção europeu pelas autoridades do Estado‑Membro do órgão jurisdicional que proferiu uma sentença penal transitada em julgado, com base nas disposições da Decisão‑Quadro 2002/584, para efeitos da execução das sanções impostas. Por outro lado, essas mesmas consultas podem conduzir, com base nas disposições das Decisões‑Quadro 2005/214 e 2008/909, a que as sanções impostas por um órgão jurisdicional penal de um Estado‑Membro sejam executadas noutro Estado‑Membro (v., quanto à interpretação da Decisão‑Quadro 2005/214, acórdão Baláž, C‑60/12, EU:C:2013:733).

68

Ora, tais instrumentos de entreajuda não impõem uma condição de execução análoga à do artigo 54.o da CAAS e, portanto, não são suscetíveis de assegurar a realização completa do objetivo prosseguido.

69

Com efeito, embora seja verdade que estes mecanismos são suscetíveis de facilitar a execução das decisões no interior da União, não é menos verdade que a sua utilização está subordinada a diversas condições e depende, em última análise, de uma decisão do Estado‑Membro do órgão jurisdicional que proferiu uma sentença penal transitada em julgado, não estando esse Estado‑Membro sujeito a uma obrigação de direito da União de assegurar a execução efetiva das sanções decorrentes dessa sentença. Por conseguinte, as possibilidades oferecidas a esse Estado‑Membro por estas decisões‑quadro não são suscetíveis de garantir que seja evitada, no espaço de liberdade, segurança e justiça, a impunidade das pessoas condenadas na União por uma sentença penal transitada em julgado, quando o primeiro Estado de condenação não tenha dado execução à pena aplicada.

70

Por outro lado, embora a Decisão‑Quadro 2008/909 permita considerar a execução de uma pena privativa de liberdade num Estado‑Membro diferente do Estado do órgão jurisdicional que proferiu essa condenação, impõe‑se constatar que, por força do seu artigo 4.o, esta possibilidade está condicionada, simultaneamente, ao consentimento da pessoa condenada e ao facto de o Estado‑Membro que proferiu a condenação ter a certeza de que a execução da condenação pelo Estado de execução contribuirá para alcançar o objetivo de facilitar a reinserção social da pessoa condenada. Daqui decorre que o sistema instaurado por esta decisão‑quadro não tem por principal objetivo combater a impunidade das pessoas condenadas na União por uma sentença penal transitada em julgado e não é suscetível de assegurar a realização completa deste objetivo.

71

Além disso, importa sublinhar que a condição de execução da CAAS implica que, na hipótese de as circunstâncias particulares do caso concreto e de a atitude do Estado da primeira condenação terem permitido que a sanção proferida tenha sido cumprida ou esteja atualmente em curso de execução, se necessário, utilizando os instrumentos previstos pelo direito da União para facilitar a execução das penas, uma pessoa definitivamente julgada por um Estado‑Membro já não pode ser julgada pelos mesmos factos noutro Estado‑Membro. Consequentemente, tais processos só terão lugar, no quadro instaurado pelo artigo 54.o da CAAS, se, por qualquer motivo, o sistema atualmente previsto pelo direito da União não for suficiente para excluir a impunidade das pessoas condenadas na União por uma sentença penal transitada em julgado.

72

Daqui decorre que a condição de execução prevista no artigo 54.o da CAAS não excede o necessário para evitar, num contexto transfronteiriço, a impunidade das pessoas condenadas num Estado‑Membro da União por uma sentença penal transitada em julgado.

73

Todavia, no âmbito da aplicação em concreto da condição de execução do artigo 54.o da CAAS a um caso preciso, não se pode excluir que, com base no artigo 4.o, n.o 3, TUE e nos instrumentos jurídicos de direito derivado da União em matéria penal, referidos pela Comissão, os órgãos jurisdicionais competentes promovam contactos entre si e deem início a consultas para verificar se há uma verdadeira intenção de o Estado‑Membro da primeira condenação proceder à execução das sanções impostas.

74

Atendendo às considerações precedentes, importa responder à primeira questão que o artigo 54.o da CAAS, que subordina a aplicação do princípio ne bis in idem à condição de que, em caso de condenação, a sanção «tenha sido cumprida» ou esteja «atualmente em curso de execução», é compatível com o artigo 50.o da Carta, que garante esse princípio.

Quanto à segunda questão

75

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 54.o da CAAS deve ser interpretado no sentido de que o simples pagamento da multa penal aplicada a uma pessoa condenada, pela mesma decisão de um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, numa pena privativa de liberdade a que não foi dada execução não permite considerar que a sanção foi cumprida ou que está em curso de execução, na aceção desta disposição.

76

Para responder a esta questão, importa, antes de mais, recordar que o direito penal material e processual dos Estados‑Membros não foi objeto de harmonização a nível da União.

77

O princípio ne bis in idem enunciado no artigo 54.o da CAAS visa não só evitar, no espaço de liberdade, segurança e justiça, a impunidade das pessoas condenadas na União por uma sentença penal transitada em julgado mas também garantir a segurança jurídica através do respeito das decisões dos órgãos públicos transitadas em julgado, na falta de harmonização ou de aproximação das legislações penais dos Estados‑Membros.

78

No contexto do processo principal, como o Governo italiano confirmou da audiência, Z. Spasic foi condenado em duas sanções principais, a saber, a pena privativa de liberdade e a pena de multa.

79

Mesmo na falta de harmonização das legislações penais dos Estados‑Membros, a aplicação uniforme do direito da União requer, segundo jurisprudência constante, que uma disposição que não remeta para o direito desses Estados seja objeto de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição em que se insere e o objetivo prosseguido (v., neste sentido, acórdãos van Esbroeck, EU:C:2006:165, n.o 35; Mantello, C‑261/09, EU:C:2010:683, n.o 38; e Baláž, EU:C:2013:733, n.o 26).

80

Embora o artigo 54.o da CAAS disponha, utilizando o singular, que é necessário que «a sanção tenha sido cumprida», esta condição abrange, claramente, a situação em que foram aplicadas duas penas principais, como as que estão em causa no processo principal, a saber, uma pena privativa de liberdade e a condenação no pagamento de uma multa.

81

Com efeito, uma interpretação diferente esvaziaria de sentido o princípio ne bis in idem enunciado no artigo 54.o da CAAS e comprometeria a aplicação útil do referido artigo.

82

Importa concluir desta circunstância que, desde que uma das duas sanções aplicadas não tenha sido «cumprida», na aceção do artigo 54.o da CAAS, não se pode considerar que esta condição esteja preenchida.

83

Quanto à questão de saber se a situação em causa no processo principal corresponde à condição, igualmente prevista no artigo 54.o da CAAS, segundo a qual, para que o princípio ne bis in idem possa ser aplicável, a sanção deve estar «atualmente em curso de execução», é ponto assente que Z. Spasic nem sequer começou a cumprir a sua pena privativa de liberdade em Itália (v., neste sentido, acórdão Kretzinger, EU:C:2007:441, n.o 63).

84

Tratando‑se de duas penas pronunciadas a título principal, também não se pode considerar que, pelo facto de a multa ter sido paga, a sanção esteja «atualmente em curso de execução», na aceção do artigo 54.o da CAAS.

85

Atendendo às considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 54.o da CAAS deve ser interpretado no sentido de que o simples pagamento da multa penal aplicada a uma pessoa condenada, pela mesma decisão de um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, numa pena privativa de liberdade a que não foi dada execução não permite considerar que a sanção foi cumprida ou que está em curso de execução, na aceção desta disposição.

Quanto às despesas

86

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 54.o da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinada em Schengen, em 19 de junho de 1990, e entrada em vigor em 26 de março de 1995, que subordina a aplicação do princípio ne bis in idem à condição de que, em caso de condenação, a sanção «tenha sido cumprida» ou esteja «atualmente em curso de execução», é compatível com o artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que garante esse princípio.

 

2)

O artigo 54.o desta Convenção deve ser interpretado no sentido de que o simples pagamento da multa penal aplicada a uma pessoa condenada, pela mesma decisão de um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, numa pena privativa de liberdade a que não foi dada execução não permite considerar que a sanção foi cumprida ou que está em curso de execução, na aceção desta disposição.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.