Processo C‑62/14

Peter Gauweiler e o.

contra

Deutscher Bundestag

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesverfassungsgericht)

«Reenvio prejudicial — Política económica e monetária — Decisões do Conselho do Banco Central Europeu (BCE) sobre diversas características técnicas respeitantes às operações monetárias definitivas do Eurosistema nos mercados secundários de obrigações soberanas — Artigos 119.° TFUE e 127.° TFUE — Atribuições do BCE e do Sistema Europeu de Bancos Centrais — Mecanismo de transmissão da política monetária — Manutenção da estabilidade dos preços — Proporcionalidade — Artigo 123.o TFUE — Proibição do financiamento monetário dos Estados‑Membros da área do euro»

Sumário — Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 16 de junho de 2015

  1. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Limites — Competência do juiz nacional — Necessidade de uma questão prejudicial e pertinência das questões suscitadas — Apreciação pelo juiz nacional

    (Artigo 267.o TFUE)

  2. Questões prejudiciais — Acórdão do Tribunal de Justiça — Efeitos

    (Artigo 267.o TFUE)

  3. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Limites — Questões que carecem manifestamente de pertinência e questões hipotéticas submetidas num contexto que exclui uma resposta útil — Competência para responder a questões submetidas no âmbito de um processo resultante de uma ação a título preventivo autorizada pelo direito nacional

    (Artigo 267.o TFUE)

  4. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Limites — Pedido de interpretação de um ato da União de alcance geral que não foi objeto de medidas de aplicação no direito nacional — Admissibilidade do recurso para o juiz nacional — Inclusão

    (Artigo 267.o TFUE)

  5. Política económica e monetária — Política monetária — Âmbito de aplicação — Programa de compra pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais de obrigações soberanas nos mercados secundários — Inclusão — Programa com consequências favoráveis para a realização dos objetivos de política económica — Irrelevância para a qualificação de medida de política monetária

    (Artigos 119.°, n.o 2, TFUE, 127.°, n.o 1, TFUE e 282.°, n.o 2, TFUE; Protocolo n.o 4 anexo aos Tratados UE e FUE, artigo 18, n.o 1)

  6. Política económica e monetária — Política monetária — Execução — Poder de apreciação do Sistema Europeu de Bancos Centrais — Fiscalização jurisdicional — Limites — Dever de fundamentação — Alcance

    (Artigos 5.°, n.o 4, TUE; artigos 119.°, n.o 2, TFUE e 127.°, n.o 1, TFUE)

  7. Atos das instituições — Fundamentação — Dever — Alcance — Apreciação do dever de fundamentação em função das circunstâncias do caso em apreço

    (Artigo 296.o, n.o 2, TFUE)

  8. Política económica e monetária — Política monetária — Execução — Programa de compra pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais de obrigações soberanas nos mercados secundários — Violação do princípio da proporcionalidade — Falta

    (Artigo 5.o, n.o 4, TUE; artigos 119.°, n.o 2, TFUE e 127.°, n.o 1, TFUE)

  9. Política económica e monetária — Política monetária — Proibição do financiamento monetário — Âmbito de aplicação — Programa de compra pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais de obrigações soberanas nos mercados secundários — Exclusão — Requisitos

    (Artigo 123.o, n.o 1, TFUE; Protocolo n.o 4 anexo aos Tratados UE e FUE, artigos 18.°, n.o 1, e 33.°; Regulamento n.o 3603/93 do Conselho, considerando 7)

  10. Política económica e monetária — Política monetária — Proibição do financiamento monetário — Objetivo — Incentivo dos Estados‑Membros a respeitarem uma política orçamental sólida

    (Artigos 119.°, n.o 2, TFUE, 123.° TFUE, 127.°, n.o 1, TFUE e 282.°, n.o 2, TFUE)

  11. Banco Central Europeu — Competências do Sistema Europeu de Bancos Centrais — Adoção de um programa de compra de obrigações soberanas nos mercados secundários — Inclusão

    (Artigos 119.° TFUE, 123.°, n.o 1, TFUE e 127.°, n.os 1 e 2, TFUE; Protocolo n.o 4 anexo aos Tratados UE e FUE, artigos 17.° a 24.°)

  1.  Em matéria prejudicial, o Tribunal de Justiça não é competente para decidir quando o órgão jurisdicional de reenvio não está vinculado pela sua interpretação. Com efeito, este último não é competente para dar, em matéria prejudicial, respostas que tenham um efeito puramente consultivo. Assim, o Tribunal não é competente para interpretar um ato do direito da União com vista a permitir ao órgão jurisdicional de reenvio decidir sobre a aplicação do direito nacional, numa situação em que o direito nacional não opera uma remissão direta e incondicional para o direito da União, mas se limita a tomar por modelo um ato do direito da União e apenas reproduz parcialmente os seus termos. Todavia, não é assim quando o pedido prejudicial tem diretamente por objeto a interpretação e a aplicação do direito da União, o que implica que o acórdão do Tribunal tem consequências concretas para a resolução do litígio nos processos principais.

    A este respeito, o artigo 267.o TFUE institui um procedimento de cooperação direta entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros. No quadro desse processo, fundado numa nítida separação de funções entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça, a apreciação dos factos da causa é da competência do tribunal nacional, ao qual compete apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça, tendo o Tribunal de Justiça apenas competência para se pronunciar sobre a interpretação ou a validade de um diploma da União com base nos factos que lhe são indicados pelo órgão jurisdicional. Consequentemente, desde que as questões colocadas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se.

    Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas.

    (cf. n.os 12 a 15, 24 e 25)

  2.  V. texto da decisão.

    (cf. n.o 16)

  3.  Tratando‑se de um reenvio prejudicial sobre a validade de decisões do Conselho do Banco Central Europeu relativas a um programa de compra de obrigações soberanas, a circunstância de esse programa não ter sido aplicado e só o poder ser após a adoção de novos atos jurídicos não priva o recurso no processo principal do seu objeto, uma vez que o direito nacional em causa permite, em certas condições, a concessão de uma proteção jurisdicional preventiva nessa situação. Ora, embora seja verdade que o recurso nos processos principais, destinado a prevenir a violação de direitos ameaçados, deve necessariamente fundar‑se em previsões, por natureza incertas, não é menos certo que é autorizado pelo direito nacional. Por conseguinte, na medida em que, no âmbito de um processo previsto no artigo 267.o TFUE, a interpretação do direito nacional é da exclusiva competência desse órgão jurisdicional, o facto de as decisões controvertidas ainda não terem sido executadas e de só o poderem ser depois da adoção de novos atos jurídicos não pode, portanto, levar a que se negue que o pedido prejudicial responde a uma necessidade objetiva para a solução dos litígios que o referido órgão jurisdicional foi chamado a dirimir.

    (cf. n.os 27 e 28)

  4.  Quando, nos termos do direito nacional, as partes num litígio submetido ao Tribunal de Justiça a título prejudicial podem interpor um recurso de fiscalização da legalidade da intenção ou da obrigação do Governo do Estado‑Membro em causa de dar cumprimento a um ato da União, a possibilidade de os particulares invocarem perante os órgãos jurisdicionais nacionais a invalidade de um ato da União de alcance geral não está subordinada à condição de este ato já ter efetivamente sido objeto de medidas de aplicação adotadas em virtude do direito nacional. Basta, a este respeito, que o órgão jurisdicional nacional seja chamado a conhecer de um litígio real em que se coloque, a título incidental, a questão da validade deste ato.

    (cf. n.o 29)

  5.  A fim de determinar se uma medida faz parte da política monetária, importa ter principalmente em conta os objetivos dessa medida. Os meios que esta implementa com vista a alcançar esses objetivos são igualmente pertinentes.

    Enquadra‑se no domínio da política monetária um programa de compra pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) de obrigações soberanas nos mercados secundários, que visa preservar simultaneamente uma transmissão adequada da política monetária e a unicidade dessa política. Em primeiro lugar, por um lado, o objetivo de preservação da unicidade da política monetária contribui para a realização dos objetivos dessa política, na medida em que esta deve, em conformidade com o artigo 119.o, n.o 2, TFUE, ser única. Por outro lado, o objetivo de preservação de uma transmissão adequada da política monetária é simultaneamente suscetível de preservar a unicidade da referida política e de contribuir para o objetivo principal da mesma, que é a manutenção da estabilidade dos preços. Esta análise não pode ser posta em causa pelo facto de o referido programa poder eventualmente contribuir igualmente para a estabilidade da área do euro, que faz parte da política económica. Com efeito, não se pode equiparar uma medida de política monetária a uma medida de política económica apenas porque é suscetível de ter efeitos indiretos na estabilidade da área do euro.

    Em segundo lugar, resulta claramente do artigo 18.o, n.o 1, do Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu, que figura no capítulo IV do mesmo, que, a fim de alcançarem os objetivos e de desempenharem as atribuições do SEBC, como resultam do direito primário, o BCE e os bancos centrais nacionais podem, em princípio, intervir nos mercados financeiros comprando e vendendo firme instrumentos negociáveis, denominados em euros. No que respeita ao caráter seletivo do programa anunciado no comunicado de imprensa, importa recordar que esse programa se destina a corrigir as perturbações do mecanismo de transmissão da política monetária geradas pela situação específica das obrigações soberanas emitidas por determinados Estados‑Membros, e o mero facto de o referido programa se limitar especificamente a essas obrigações soberanas não é, pois, suscetível de implicar, por si só, que os instrumentos que o SEBC utiliza não fazem parte da política monetária. Por outro lado, nenhuma disposição do Tratado FUE impõe ao SEBC que intervenha nos mercados de capitais através de medidas gerais necessariamente aplicáveis a todos os Estados da área do euro.

    Além disso, a circunstância de a execução desse programa estar sujeita ao respeito integral dos programas de ajustamento macroeconómico não é suscetível de alterar esta conclusão. É certo que não se exclui que um programa de compra de obrigações soberanas que apresente essa característica seja suscetível de reforçar, de maneira incidental, o incentivo de respeitar esses programas de ajustamento e de favorecer assim, em certa medida, a realização dos objetivos de política económica que estes prosseguem. Contudo, estes efeitos indiretos não podem implicar que tal programa deva ser equiparado a uma medida de política económica, já que decorre dos artigos 119.°, n.o 2, TFUE, 127.°, n.o 1, TFUE e 282.°, n.o 2, TFUE que, sem prejuízo do objetivo da estabilidade dos preços, o SEBC apoiará as políticas económicas gerais na União.

    (cf. n.os 46 a 49, 51, 52, 54 a 59)

  6.  Decorre dos artigos 119.°, n.o 2, TFUE e 127.°, n.o 1, TFUE, lidos em conjugação com o artigo 5.o, n.o 4, TUE, que um programa de compras de obrigações no âmbito da política monetária só pode ser validamente adotado e executado desde que as medidas que comporta sejam proporcionadas aos objetivos dessa política. No que toca à fiscalização jurisdicional do respeito do princípio da proporcionalidade, sendo o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) chamado, quando elabora e executa um programa de operações de open market, a efetuar escolhas de natureza técnica e previsões e apreciações complexas, há que reconhecer‑lhe, nesse âmbito, um amplo poder de apreciação.

    Dito isto, no caso de uma instituição da União dispor de um amplo poder de apreciação, a fiscalização do respeito de certas garantias processuais assume uma importância fundamental. Entre estas garantias figura a obrigação de o SEBC examinar, cuidadosamente e de forma imparcial, todos os elementos pertinentes da situação em causa e fundamentar as suas decisões de forma suficiente. A este respeito, a circunstância, de uma análise fundamentada da situação económica da área do euro ser objeto de contestações não é suficiente, enquanto tal, para pôr em causa a conclusão do Tribunal de Justiça quanto à inexistência de erro manifesto de apreciação, dado que, tendo em conta o caráter controverso que revestem habitualmente as questões de política monetária e o amplo poder de apreciação do SEBC, a este último não se pode exigir mais do que a utilização dos seus conhecimentos económicos e dos meios técnicos necessários de que dispõe para efetuar a mesma análise com toda a diligência e precisão.

    (cf. n.os 66, 68, 69, 74 e 75)

  7.  V. texto da decisão.

    (cf. n.o 70)

  8.  A compra, nos mercados secundários, pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), de obrigações soberanas de Estados‑Membros da área do euro cujas taxas de juro se caracterizaram por uma grande volatilidade e por disparidades extremas devido, nomeadamente, a prémios de risco excessivos destinados a cobrir um risco de colapso da área do euro pode contribuir para a descida dessas taxas ao dissipar os receios injustificados de colapso da área do euro e, assim, contribuir para o recuo ou mesmo para o desaparecimento desses prémios.

    Neste contexto, o SEBC podia considerar que uma tal evolução das taxas de juro é suscetível de facilitar a transmissão da sua política monetária e de preservar a unicidade dessa política. O SEBC podia validamente considerar que um programa como o anunciado nesse comunicado é adequado para contribuir para os objetivos por si prosseguidos e, logo, para a manutenção da estabilidade dos preços. Tal programa não excede manifestamente o que é necessário para alcançar esses objetivos, uma vez que, nomeadamente, este só permite a compra de obrigações soberanas nos mercados secundários na medida em que tal compra seja necessária para alcançar os objetivos desse programa e que essas compras cessarão assim que esses objetivos tiverem sido alcançados.

    Tal programa apenas tem por objeto, em última análise, uma parte limitada das obrigações soberanas emitidas pelos Estados da área do euro, de modo que os compromissos que o Banco Central Europeu pode assumir aquando da execução desse programa são, de facto, circunscritos e limitados. Nestas condições, afigura‑se que um programa cujo volume está assim limitado poderia ser validamente adotado pelo SEBC sem fixar um limite quantitativo anteriormente à sua execução, podendo esse limite, de resto, fragilizar a eficácia do programa. Há ainda que observar que esse programa identifica os Estados‑Membros cujas obrigações podem ser compradas com base em critérios ligados aos objetivos prosseguidos e não na sequência de uma seleção arbitrária.

    Por outro lado, ao ponderar os diferentes interesses em presença, o SEBC procede de forma a evitar efetivamente que possam produzir‑se, na execução do programa em causa, inconvenientes manifestamente desproporcionados relativamente aos objetivos prosseguidos. Nestas condições, tal programa não viola o princípio da proporcionalidade.

    (cf. n.os 72, 76, 77, 80 a 82, 87, 88, 90 a 92)

  9.  Resulta da redação do artigo 123.o, n.o 1, TFUE que esta disposição proíbe toda e qualquer assistência financeira do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) a um Estado‑Membro, sem, porém, excluir, de maneira geral, a faculdade de o SEBC recomprar aos credores desse Estado títulos previamente emitidos por este último. Assim, o artigo 18.o, n.o 1, do Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu permite ao SEBC, a fim de alcançar os seus objetivos e de desempenhar as suas atribuições, intervir nos mercados financeiros, nomeadamente, comprando e vendendo firme instrumentos negociáveis, de que fazem parte as obrigações soberanas, sem sujeitar essa autorização a condições particulares, sob pena de violar a própria natureza das operações de open market.

    Todavia, o SEBC não pode validamente comprar obrigações soberanas nos mercados secundários em condições que deem, na prática, à sua intervenção um efeito equivalente ao da compra direta de obrigações soberanas junto das autoridades e dos organismos públicos dos Estados‑Membros, pondo assim em causa a eficácia da proibição enunciada no artigo 123.o, n.o 1, TFUE. Entretanto, como recorda o sétimo considerando do Regulamento n.o 3603/93, que especifica as definições necessárias à aplicação das proibições enunciadas no artigo [123.° TFUE] e no artigo [125.°, n.o 1, TFUE], as compras efetuadas no mercado secundário não podem ser validamente utilizadas para iludir o objetivo visado pelo artigo 123.o TFUE. Daqui resulta que quando o BCE procede à compra de obrigações soberanas nos mercados secundários deve rodear a sua intervenção de garantias suficientes para a conciliar com a proibição do financiamento monetário decorrente do artigo 123.o, n.o 1, TFUE.

    Na verdade, tratando‑se de um programa de compra pelo SEBC de obrigações soberanas nos mercados secundários, apesar da existência de garantias que permitem evitar que as condições de emissão das referidas obrigações sejam alteradas pelas certeza de que serão recompradas pelo SEBC após a sua emissão, a intervenção do SEBC continua a ser suscetível de ter uma certa influência no funcionamento dos mercados primário e secundário da dívida soberana. No entanto, esta circunstância não é decisiva, pois essa influência constitui um efeito inerente às compras nos mercados secundários autorizadas pelo Tratado FUE, efeito de resto indispensável para permitir a utilização eficaz dessas compras no âmbito da política monetária.

    De resto, a circunstância de esse programa poder expor o BCE a um risco significativo de perdas, admitindo que está demonstrada, não enfraquece de modo algum as garantias que envolvem o referido programa com vista a evitar que o incentivo aos Estados‑Membros no sentido de conduzirem uma política orçamental sólida seja eliminado. Por outro lado, um banco central, como o Banco Central Europeu, tem de tomar decisões que, como as operações de open market, comportam inevitavelmente um risco de perdas para o banco. A este respeito, o artigo 33.o do Protocolo relativo ao SEBC e ao BCE prevê precisamente o modo como devem ser repartidas as perdas do BCE, sem enquadrar especificamente os riscos que este está autorizado a assumir para realizar os objetivos da política monetária. Por outro lado, embora a não reivindicação de um tratamento privilegiado exponha eventualmente o BCE a uma depreciação do valor do seu crédito decidida pelos outros credores do Estado‑Membro em causa, não se pode deixar de observar que se trata de um risco inerente à compra de obrigações nos mercados secundários, operação que foi autorizada pelos autores dos Tratados, sem estar sujeita à concessão ao BCE do estatuto de credor privilegiado.

    (cf. n.os 94 a 97, 101, 102, 107, 108, 123, 125 e 126)

  10.  O artigo 123.o TFUE tem por objetivo incitar os Estados‑Membros a respeitar uma política orçamental sólida, evitando que um financiamento monetário dos défices públicos ou um acesso privilegiado das autoridades públicas aos mercados financeiros conduza a um endividamento excessivo ou a défices excessivos dos Estados‑Membros. Este objetivo seria eludido se o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) prosseguisse um programa suscetível de eliminar o incentivo aos Estados‑Membros em causa no sentido de conduzirem uma política orçamental sólida. Com efeito, uma vez que resulta dos artigos 119.°, n.o 2, TFUE, 127.°, n.o 1, TFUE e 282.°, n.o 2, TFUE que, sem prejuízo do objetivo da estabilidade dos preços, o SEBC apoiará as políticas económicas gerais na União, as ações levadas a cabo pelo SEBC com base no artigo 123.o TFUE não podem ser suscetíveis de violar a eficácia dessas políticas, eliminando o incentivo aos Estados‑Membros em causa no sentido de conduzirem uma política orçamental sólida.

    De resto, a condução da política monetária implica que se atue permanentemente sobre as taxas de juro e as condições de refinanciamento dos bancos, o que tem necessariamente consequências nas condições de financiamento do défice público dos Estados‑Membros.

    (cf. n.os 100, 109 e 110)

  11.  Os artigos 119.° TFUE, 123.°, n.o 1, TFUE e 127.°, n.os 1 e 2, TFUE, bem como os artigos 17.° a 24.° do Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu, devem ser interpretados no sentido de que autorizam o Sistema Europeu de Bancos Centrais a adotar um programa de compra de obrigações soberanas nos mercados secundários.

    (cf. n.o 127 e disp.)


Processo C‑62/14

Peter Gauweiler e o.

contra

Deutscher Bundestag

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesverfassungsgericht)

«Reenvio prejudicial — Política económica e monetária — Decisões do Conselho do Banco Central Europeu (BCE) sobre diversas características técnicas respeitantes às operações monetárias definitivas do Eurosistema nos mercados secundários de obrigações soberanas — Artigos 119.° TFUE e 127.° TFUE — Atribuições do BCE e do Sistema Europeu de Bancos Centrais — Mecanismo de transmissão da política monetária — Manutenção da estabilidade dos preços — Proporcionalidade — Artigo 123.o TFUE — Proibição do financiamento monetário dos Estados‑Membros da área do euro»

Sumário — Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 16 de junho de 2015

  1. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Limites — Competência do juiz nacional — Necessidade de uma questão prejudicial e pertinência das questões suscitadas — Apreciação pelo juiz nacional

    (Artigo 267.o TFUE)

  2. Questões prejudiciais — Acórdão do Tribunal de Justiça — Efeitos

    (Artigo 267.o TFUE)

  3. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Limites — Questões que carecem manifestamente de pertinência e questões hipotéticas submetidas num contexto que exclui uma resposta útil — Competência para responder a questões submetidas no âmbito de um processo resultante de uma ação a título preventivo autorizada pelo direito nacional

    (Artigo 267.o TFUE)

  4. Questões prejudiciais — Competência do Tribunal de Justiça — Limites — Pedido de interpretação de um ato da União de alcance geral que não foi objeto de medidas de aplicação no direito nacional — Admissibilidade do recurso para o juiz nacional — Inclusão

    (Artigo 267.o TFUE)

  5. Política económica e monetária — Política monetária — Âmbito de aplicação — Programa de compra pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais de obrigações soberanas nos mercados secundários — Inclusão — Programa com consequências favoráveis para a realização dos objetivos de política económica — Irrelevância para a qualificação de medida de política monetária

    (Artigos 119.°, n.o 2, TFUE, 127.°, n.o 1, TFUE e 282.°, n.o 2, TFUE; Protocolo n.o 4 anexo aos Tratados UE e FUE, artigo 18, n.o 1)

  6. Política económica e monetária — Política monetária — Execução — Poder de apreciação do Sistema Europeu de Bancos Centrais — Fiscalização jurisdicional — Limites — Dever de fundamentação — Alcance

    (Artigos 5.°, n.o 4, TUE; artigos 119.°, n.o 2, TFUE e 127.°, n.o 1, TFUE)

  7. Atos das instituições — Fundamentação — Dever — Alcance — Apreciação do dever de fundamentação em função das circunstâncias do caso em apreço

    (Artigo 296.o, n.o 2, TFUE)

  8. Política económica e monetária — Política monetária — Execução — Programa de compra pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais de obrigações soberanas nos mercados secundários — Violação do princípio da proporcionalidade — Falta

    (Artigo 5.o, n.o 4, TUE; artigos 119.°, n.o 2, TFUE e 127.°, n.o 1, TFUE)

  9. Política económica e monetária — Política monetária — Proibição do financiamento monetário — Âmbito de aplicação — Programa de compra pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais de obrigações soberanas nos mercados secundários — Exclusão — Requisitos

    (Artigo 123.o, n.o 1, TFUE; Protocolo n.o 4 anexo aos Tratados UE e FUE, artigos 18.°, n.o 1, e 33.°; Regulamento n.o 3603/93 do Conselho, considerando 7)

  10. Política económica e monetária — Política monetária — Proibição do financiamento monetário — Objetivo — Incentivo dos Estados‑Membros a respeitarem uma política orçamental sólida

    (Artigos 119.°, n.o 2, TFUE, 123.° TFUE, 127.°, n.o 1, TFUE e 282.°, n.o 2, TFUE)

  11. Banco Central Europeu — Competências do Sistema Europeu de Bancos Centrais — Adoção de um programa de compra de obrigações soberanas nos mercados secundários — Inclusão

    (Artigos 119.° TFUE, 123.°, n.o 1, TFUE e 127.°, n.os 1 e 2, TFUE; Protocolo n.o 4 anexo aos Tratados UE e FUE, artigos 17.° a 24.°)

  1.  Em matéria prejudicial, o Tribunal de Justiça não é competente para decidir quando o órgão jurisdicional de reenvio não está vinculado pela sua interpretação. Com efeito, este último não é competente para dar, em matéria prejudicial, respostas que tenham um efeito puramente consultivo. Assim, o Tribunal não é competente para interpretar um ato do direito da União com vista a permitir ao órgão jurisdicional de reenvio decidir sobre a aplicação do direito nacional, numa situação em que o direito nacional não opera uma remissão direta e incondicional para o direito da União, mas se limita a tomar por modelo um ato do direito da União e apenas reproduz parcialmente os seus termos. Todavia, não é assim quando o pedido prejudicial tem diretamente por objeto a interpretação e a aplicação do direito da União, o que implica que o acórdão do Tribunal tem consequências concretas para a resolução do litígio nos processos principais.

    A este respeito, o artigo 267.o TFUE institui um procedimento de cooperação direta entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros. No quadro desse processo, fundado numa nítida separação de funções entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça, a apreciação dos factos da causa é da competência do tribunal nacional, ao qual compete apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça, tendo o Tribunal de Justiça apenas competência para se pronunciar sobre a interpretação ou a validade de um diploma da União com base nos factos que lhe são indicados pelo órgão jurisdicional. Consequentemente, desde que as questões colocadas sejam relativas à interpretação ou à validade de uma regra de direito da União, o Tribunal é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se.

    Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas.

    (cf. n.os 12 a 15, 24 e 25)

  2.  V. texto da decisão.

    (cf. n.o 16)

  3.  Tratando‑se de um reenvio prejudicial sobre a validade de decisões do Conselho do Banco Central Europeu relativas a um programa de compra de obrigações soberanas, a circunstância de esse programa não ter sido aplicado e só o poder ser após a adoção de novos atos jurídicos não priva o recurso no processo principal do seu objeto, uma vez que o direito nacional em causa permite, em certas condições, a concessão de uma proteção jurisdicional preventiva nessa situação. Ora, embora seja verdade que o recurso nos processos principais, destinado a prevenir a violação de direitos ameaçados, deve necessariamente fundar‑se em previsões, por natureza incertas, não é menos certo que é autorizado pelo direito nacional. Por conseguinte, na medida em que, no âmbito de um processo previsto no artigo 267.o TFUE, a interpretação do direito nacional é da exclusiva competência desse órgão jurisdicional, o facto de as decisões controvertidas ainda não terem sido executadas e de só o poderem ser depois da adoção de novos atos jurídicos não pode, portanto, levar a que se negue que o pedido prejudicial responde a uma necessidade objetiva para a solução dos litígios que o referido órgão jurisdicional foi chamado a dirimir.

    (cf. n.os 27 e 28)

  4.  Quando, nos termos do direito nacional, as partes num litígio submetido ao Tribunal de Justiça a título prejudicial podem interpor um recurso de fiscalização da legalidade da intenção ou da obrigação do Governo do Estado‑Membro em causa de dar cumprimento a um ato da União, a possibilidade de os particulares invocarem perante os órgãos jurisdicionais nacionais a invalidade de um ato da União de alcance geral não está subordinada à condição de este ato já ter efetivamente sido objeto de medidas de aplicação adotadas em virtude do direito nacional. Basta, a este respeito, que o órgão jurisdicional nacional seja chamado a conhecer de um litígio real em que se coloque, a título incidental, a questão da validade deste ato.

    (cf. n.o 29)

  5.  A fim de determinar se uma medida faz parte da política monetária, importa ter principalmente em conta os objetivos dessa medida. Os meios que esta implementa com vista a alcançar esses objetivos são igualmente pertinentes.

    Enquadra‑se no domínio da política monetária um programa de compra pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) de obrigações soberanas nos mercados secundários, que visa preservar simultaneamente uma transmissão adequada da política monetária e a unicidade dessa política. Em primeiro lugar, por um lado, o objetivo de preservação da unicidade da política monetária contribui para a realização dos objetivos dessa política, na medida em que esta deve, em conformidade com o artigo 119.o, n.o 2, TFUE, ser única. Por outro lado, o objetivo de preservação de uma transmissão adequada da política monetária é simultaneamente suscetível de preservar a unicidade da referida política e de contribuir para o objetivo principal da mesma, que é a manutenção da estabilidade dos preços. Esta análise não pode ser posta em causa pelo facto de o referido programa poder eventualmente contribuir igualmente para a estabilidade da área do euro, que faz parte da política económica. Com efeito, não se pode equiparar uma medida de política monetária a uma medida de política económica apenas porque é suscetível de ter efeitos indiretos na estabilidade da área do euro.

    Em segundo lugar, resulta claramente do artigo 18.o, n.o 1, do Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu, que figura no capítulo IV do mesmo, que, a fim de alcançarem os objetivos e de desempenharem as atribuições do SEBC, como resultam do direito primário, o BCE e os bancos centrais nacionais podem, em princípio, intervir nos mercados financeiros comprando e vendendo firme instrumentos negociáveis, denominados em euros. No que respeita ao caráter seletivo do programa anunciado no comunicado de imprensa, importa recordar que esse programa se destina a corrigir as perturbações do mecanismo de transmissão da política monetária geradas pela situação específica das obrigações soberanas emitidas por determinados Estados‑Membros, e o mero facto de o referido programa se limitar especificamente a essas obrigações soberanas não é, pois, suscetível de implicar, por si só, que os instrumentos que o SEBC utiliza não fazem parte da política monetária. Por outro lado, nenhuma disposição do Tratado FUE impõe ao SEBC que intervenha nos mercados de capitais através de medidas gerais necessariamente aplicáveis a todos os Estados da área do euro.

    Além disso, a circunstância de a execução desse programa estar sujeita ao respeito integral dos programas de ajustamento macroeconómico não é suscetível de alterar esta conclusão. É certo que não se exclui que um programa de compra de obrigações soberanas que apresente essa característica seja suscetível de reforçar, de maneira incidental, o incentivo de respeitar esses programas de ajustamento e de favorecer assim, em certa medida, a realização dos objetivos de política económica que estes prosseguem. Contudo, estes efeitos indiretos não podem implicar que tal programa deva ser equiparado a uma medida de política económica, já que decorre dos artigos 119.°, n.o 2, TFUE, 127.°, n.o 1, TFUE e 282.°, n.o 2, TFUE que, sem prejuízo do objetivo da estabilidade dos preços, o SEBC apoiará as políticas económicas gerais na União.

    (cf. n.os 46 a 49, 51, 52, 54 a 59)

  6.  Decorre dos artigos 119.°, n.o 2, TFUE e 127.°, n.o 1, TFUE, lidos em conjugação com o artigo 5.o, n.o 4, TUE, que um programa de compras de obrigações no âmbito da política monetária só pode ser validamente adotado e executado desde que as medidas que comporta sejam proporcionadas aos objetivos dessa política. No que toca à fiscalização jurisdicional do respeito do princípio da proporcionalidade, sendo o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) chamado, quando elabora e executa um programa de operações de open market, a efetuar escolhas de natureza técnica e previsões e apreciações complexas, há que reconhecer‑lhe, nesse âmbito, um amplo poder de apreciação.

    Dito isto, no caso de uma instituição da União dispor de um amplo poder de apreciação, a fiscalização do respeito de certas garantias processuais assume uma importância fundamental. Entre estas garantias figura a obrigação de o SEBC examinar, cuidadosamente e de forma imparcial, todos os elementos pertinentes da situação em causa e fundamentar as suas decisões de forma suficiente. A este respeito, a circunstância, de uma análise fundamentada da situação económica da área do euro ser objeto de contestações não é suficiente, enquanto tal, para pôr em causa a conclusão do Tribunal de Justiça quanto à inexistência de erro manifesto de apreciação, dado que, tendo em conta o caráter controverso que revestem habitualmente as questões de política monetária e o amplo poder de apreciação do SEBC, a este último não se pode exigir mais do que a utilização dos seus conhecimentos económicos e dos meios técnicos necessários de que dispõe para efetuar a mesma análise com toda a diligência e precisão.

    (cf. n.os 66, 68, 69, 74 e 75)

  7.  V. texto da decisão.

    (cf. n.o 70)

  8.  A compra, nos mercados secundários, pelo Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), de obrigações soberanas de Estados‑Membros da área do euro cujas taxas de juro se caracterizaram por uma grande volatilidade e por disparidades extremas devido, nomeadamente, a prémios de risco excessivos destinados a cobrir um risco de colapso da área do euro pode contribuir para a descida dessas taxas ao dissipar os receios injustificados de colapso da área do euro e, assim, contribuir para o recuo ou mesmo para o desaparecimento desses prémios.

    Neste contexto, o SEBC podia considerar que uma tal evolução das taxas de juro é suscetível de facilitar a transmissão da sua política monetária e de preservar a unicidade dessa política. O SEBC podia validamente considerar que um programa como o anunciado nesse comunicado é adequado para contribuir para os objetivos por si prosseguidos e, logo, para a manutenção da estabilidade dos preços. Tal programa não excede manifestamente o que é necessário para alcançar esses objetivos, uma vez que, nomeadamente, este só permite a compra de obrigações soberanas nos mercados secundários na medida em que tal compra seja necessária para alcançar os objetivos desse programa e que essas compras cessarão assim que esses objetivos tiverem sido alcançados.

    Tal programa apenas tem por objeto, em última análise, uma parte limitada das obrigações soberanas emitidas pelos Estados da área do euro, de modo que os compromissos que o Banco Central Europeu pode assumir aquando da execução desse programa são, de facto, circunscritos e limitados. Nestas condições, afigura‑se que um programa cujo volume está assim limitado poderia ser validamente adotado pelo SEBC sem fixar um limite quantitativo anteriormente à sua execução, podendo esse limite, de resto, fragilizar a eficácia do programa. Há ainda que observar que esse programa identifica os Estados‑Membros cujas obrigações podem ser compradas com base em critérios ligados aos objetivos prosseguidos e não na sequência de uma seleção arbitrária.

    Por outro lado, ao ponderar os diferentes interesses em presença, o SEBC procede de forma a evitar efetivamente que possam produzir‑se, na execução do programa em causa, inconvenientes manifestamente desproporcionados relativamente aos objetivos prosseguidos. Nestas condições, tal programa não viola o princípio da proporcionalidade.

    (cf. n.os 72, 76, 77, 80 a 82, 87, 88, 90 a 92)

  9.  Resulta da redação do artigo 123.o, n.o 1, TFUE que esta disposição proíbe toda e qualquer assistência financeira do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) a um Estado‑Membro, sem, porém, excluir, de maneira geral, a faculdade de o SEBC recomprar aos credores desse Estado títulos previamente emitidos por este último. Assim, o artigo 18.o, n.o 1, do Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu permite ao SEBC, a fim de alcançar os seus objetivos e de desempenhar as suas atribuições, intervir nos mercados financeiros, nomeadamente, comprando e vendendo firme instrumentos negociáveis, de que fazem parte as obrigações soberanas, sem sujeitar essa autorização a condições particulares, sob pena de violar a própria natureza das operações de open market.

    Todavia, o SEBC não pode validamente comprar obrigações soberanas nos mercados secundários em condições que deem, na prática, à sua intervenção um efeito equivalente ao da compra direta de obrigações soberanas junto das autoridades e dos organismos públicos dos Estados‑Membros, pondo assim em causa a eficácia da proibição enunciada no artigo 123.o, n.o 1, TFUE. Entretanto, como recorda o sétimo considerando do Regulamento n.o 3603/93, que especifica as definições necessárias à aplicação das proibições enunciadas no artigo [123.° TFUE] e no artigo [125.°, n.o 1, TFUE], as compras efetuadas no mercado secundário não podem ser validamente utilizadas para iludir o objetivo visado pelo artigo 123.o TFUE. Daqui resulta que quando o BCE procede à compra de obrigações soberanas nos mercados secundários deve rodear a sua intervenção de garantias suficientes para a conciliar com a proibição do financiamento monetário decorrente do artigo 123.o, n.o 1, TFUE.

    Na verdade, tratando‑se de um programa de compra pelo SEBC de obrigações soberanas nos mercados secundários, apesar da existência de garantias que permitem evitar que as condições de emissão das referidas obrigações sejam alteradas pelas certeza de que serão recompradas pelo SEBC após a sua emissão, a intervenção do SEBC continua a ser suscetível de ter uma certa influência no funcionamento dos mercados primário e secundário da dívida soberana. No entanto, esta circunstância não é decisiva, pois essa influência constitui um efeito inerente às compras nos mercados secundários autorizadas pelo Tratado FUE, efeito de resto indispensável para permitir a utilização eficaz dessas compras no âmbito da política monetária.

    De resto, a circunstância de esse programa poder expor o BCE a um risco significativo de perdas, admitindo que está demonstrada, não enfraquece de modo algum as garantias que envolvem o referido programa com vista a evitar que o incentivo aos Estados‑Membros no sentido de conduzirem uma política orçamental sólida seja eliminado. Por outro lado, um banco central, como o Banco Central Europeu, tem de tomar decisões que, como as operações de open market, comportam inevitavelmente um risco de perdas para o banco. A este respeito, o artigo 33.o do Protocolo relativo ao SEBC e ao BCE prevê precisamente o modo como devem ser repartidas as perdas do BCE, sem enquadrar especificamente os riscos que este está autorizado a assumir para realizar os objetivos da política monetária. Por outro lado, embora a não reivindicação de um tratamento privilegiado exponha eventualmente o BCE a uma depreciação do valor do seu crédito decidida pelos outros credores do Estado‑Membro em causa, não se pode deixar de observar que se trata de um risco inerente à compra de obrigações nos mercados secundários, operação que foi autorizada pelos autores dos Tratados, sem estar sujeita à concessão ao BCE do estatuto de credor privilegiado.

    (cf. n.os 94 a 97, 101, 102, 107, 108, 123, 125 e 126)

  10.  O artigo 123.o TFUE tem por objetivo incitar os Estados‑Membros a respeitar uma política orçamental sólida, evitando que um financiamento monetário dos défices públicos ou um acesso privilegiado das autoridades públicas aos mercados financeiros conduza a um endividamento excessivo ou a défices excessivos dos Estados‑Membros. Este objetivo seria eludido se o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) prosseguisse um programa suscetível de eliminar o incentivo aos Estados‑Membros em causa no sentido de conduzirem uma política orçamental sólida. Com efeito, uma vez que resulta dos artigos 119.°, n.o 2, TFUE, 127.°, n.o 1, TFUE e 282.°, n.o 2, TFUE que, sem prejuízo do objetivo da estabilidade dos preços, o SEBC apoiará as políticas económicas gerais na União, as ações levadas a cabo pelo SEBC com base no artigo 123.o TFUE não podem ser suscetíveis de violar a eficácia dessas políticas, eliminando o incentivo aos Estados‑Membros em causa no sentido de conduzirem uma política orçamental sólida.

    De resto, a condução da política monetária implica que se atue permanentemente sobre as taxas de juro e as condições de refinanciamento dos bancos, o que tem necessariamente consequências nas condições de financiamento do défice público dos Estados‑Membros.

    (cf. n.os 100, 109 e 110)

  11.  Os artigos 119.° TFUE, 123.°, n.o 1, TFUE e 127.°, n.os 1 e 2, TFUE, bem como os artigos 17.° a 24.° do Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu, devem ser interpretados no sentido de que autorizam o Sistema Europeu de Bancos Centrais a adotar um programa de compra de obrigações soberanas nos mercados secundários.

    (cf. n.o 127 e disp.)