CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 2 de julho de 2015 ( 1 )

Processo C‑245/14

Thomas Cook Belgium NV

contra

Thurner Hotel GmbH

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Handelsgericht Wien (Áustria)]

«Espaço de liberdade, segurança e justiça — Cooperação em matéria civil — Regulamento (CE) n.o 1896/2006 — Procedimento europeu de injunção de pagamento — Artigo 20.o, n.o 2 — Reapreciação da injunção de pagamento europeia depois do termo do prazo para deduzir oposição — Informação falsa ou incorreta — Incompetência do tribunal que emite a injunção de pagamento europeia — Conceito de ‘circunstâncias excecionais’»

1. 

O presente processo dá ao Tribunal de Justiça oportunidade para, na prática, se pronunciar, pela primeira vez, sobre o conceito de «circunstâncias excecionais» contido no artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006 ( 2 ). Trata‑se, designadamente, de saber se, no âmbito do procedimento europeu de injunção de pagamento, a eventual incompetência do tribunal que emite a injunção de pagamento europeia, devido à eventual existência de um pacto atributivo de jurisdição celebrado entre as partes e não mencionado no formulário do requerimento, justifica, por se tratar de «circunstâncias excecionais», a reapreciação do mesmo, quando o devedor, aparentemente, teve oportunidade para deduzir oposição contra essa injunção no prazo estabelecido, e não o fez.

I – Quadro jurídico

2.

O considerando 25 do Regulamento n.o 1896/2006 tem a seguinte redação:

«Após o termo do prazo para apresentar a declaração de oposição, o requerido deverá ter, em certos casos excecionais, direito a pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia. A reapreciação em casos excecionais não deverá significar a concessão ao requerido de uma segunda oportunidade para deduzir oposição. Durante o procedimento de reapreciação, o mérito do pedido não deverá ser apreciado para além dos fundamentos decorrentes das circunstâncias excecionais invocadas pelo requerido. As outras circunstâncias excecionais poderão incluir os casos em que a injunção de pagamento europeia tenha por base informações falsas fornecidas no formulário de requerimento.»

3.

O artigo 16.o do Regulamento n.o 1896/2006, sob a epígrafe «Dedução de oposição à injunção de pagamento europeia», dispõe o seguinte:

«1.   O requerido pode apresentar uma declaração de oposição à injunção de pagamento europeia junto do tribunal de origem, utilizando o formulário normalizado F, constante do Anexo VI, que lhe é entregue juntamente com a injunção de pagamento europeia.

2.   A declaração de oposição deve ser enviada num prazo de 30 dias a contar da citação ou notificação do requerido.

3.   O requerido deve indicar na declaração de oposição que contesta o crédito em causa, não sendo obrigado a especificar os fundamentos da contestação.

4.   A declaração de oposição deve ser apresentada em suporte papel ou por quaisquer outros meios de comunicação, inclusive eletrónicos, aceites pelo Estado‑Membro de origem e disponíveis no tribunal de origem.

[…]».

4.

O artigo 20.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Reapreciação em casos excecionais», tem a seguinte redação:

«1.   Após o termo do prazo fixado no n.o 2 do artigo 16.o, o requerido tem também o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia ao tribunal competente do Estado‑Membro de origem se:

a)

i) A injunção de pagamento tiver sido citada ou notificada por um dos meios previstos no artigo 14.o,

e

ii)

A citação ou notificação tiver sido feita a tempo de permitir ao requerido preparar a sua defesa, sem que tal facto lhe possa ser imputável,

ou

b)

O requerido tiver sido impedido de contestar o crédito por motivo de força maior ou devido a circunstâncias excecionais, sem que tal facto lhe possa ser imputável,

desde que, em qualquer dos casos, atue com celeridade.

2.   Após o termo do prazo fixado no artigo 16.o, n.o 2, o requerido tem também o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia ao tribunal competente do Estado‑Membro de origem nos casos em que esta tenha sido emitida de forma claramente indevida, tendo em conta os requisitos estabelecidos no presente regulamento, ou outras circunstâncias excecionais.

3.   Se o tribunal indeferir o pedido do requerido com base no facto de que não é aplicável nenhum dos fundamentos de reapreciação enumerados nos n.os 1 e 2, a injunção de pagamento europeia mantém‑se válida.

Se o tribunal decidir que se justifica a reapreciação com base num dos fundamentos enumerados nos n.os 1 e 2, a injunção de pagamento europeia é declarada nula.»

II – Processo principal e questões prejudiciais

5.

A Thomas Cook Belgium NV (a seguir «Thomas Cook»), recorrente no processo a quo, é uma agência de viagens sediada em Gante (Bélgica), que presta serviços de natureza diversa no setor do turismo. Em 3 de setembro de 2009, a Thomas Cook celebrou com a Thurner Hotel GmbH (a seguir «Thurner Hotel»), uma empresa austríaca com sede em Sölden (Áustria), um contrato onde estipularam novas condições de cooperação para o período de verão de 2010. Posteriormente, face ao incumprimento da obrigação de pagamento por parte da Thomas Cook, a Thurner Hotel, que tinha disponibilizado alojamentos turísticos em Sölden nas condições fixadas no referido contrato, requereu ao Bezirksgericht für Handelssachen Wien (Áustria) a emissão de uma injunção de pagamento europeia contra a agência de viagens belga, num montante superior a 15000 euros. Justificou a competência do referido tribunal com base no facto de o lugar de cumprimento da obrigação ser na Áustria.

6.

Em 26 de junho de 2013, a Thomas Cook foi validamente citada ou notificada da injunção de pagamento europeia. Não deduziu oposição no prazo de 30 dias estabelecido no artigo 16.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006, porque, segundo alega, ainda se encontrava a efetuar pesquisas nos seus arquivos para averiguar se a injunção de pagamento controvertida era ou não justificada.

7.

Em 25 de setembro de 2013, a Thomas Cook apresentou ao Bezirksgericht für Handelssachen Wien um pedido de reapreciação da injunção de pagamento europeia ao abrigo do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006. A Thomas Cook alegou essencialmente que o tribunal que emitiu a referida injunção não era competente, uma vez que as cláusulas contratuais gerais convencionadas entre as partes continham um pacto atributivo de jurisdição a favor dos tribunais de Gante (Bélgica). Na sua opinião, a injunção de pagamento europeia, indevidamente emitida, devia ser declarada nula nos termos do artigo 20.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1896/2006, uma vez que a incompetência do tribunal que emitiu a injunção de pagamento constitui um fundamento de reapreciação em conformidade com o artigo 20.o, n.o 2, do referido regulamento.

8.

Por despacho de 28 de outubro de 2013, o Bezirksgericht für Handelssachen Wien indeferiu o pedido de reapreciação da injunção de pagamento europeia apresentada pela Thomas Cook. A Thomas Cook interpôs recurso deste despacho para o órgão jurisdicional de reenvio, no prazo previsto. Como fundamento desse recurso, a Thomas Cook invocou o considerando 25 do Regulamento n.o 1896/2006, que qualifica expressamente de «circunstâncias excecionais», para efeitos do artigo 20.o, n.o 2, desse regulamento, o facto de o pedido de injunção de pagamento europeia se ter baseado em informações falsas prestadas no formulário de requerimento. Em seu entender, no caso em apreço, o Bezirksgericht für Handelssachen Wien não declarou que não eram competentes os tribunais austríacos, mas sim os tribunais de Gante (Bélgica), por força das cláusulas contratuais gerais acordadas entre as partes. Segundo a Thomas Cook, o referido tribunal devia ter declarado que a injunção de pagamento europeia tinha sido emitida de forma claramente indevida na aceção do artigo 20.o, n.o 2, do referido regulamento.

9.

O Handelsgericht Wien decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o Regulamento n.o 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho [de 12 de dezembro de 2006], que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento, ser interpretado no sentido de que o [requerido] pode apresentar um pedido de reapreciação, pelo tribunal, da injunção de pagamento europeia, nos termos do artigo 20.o, n.o 2, desse regulamento, quando a injunção lhe foi validamente notificada, mas esta tenha sido emitida, com base nas informações contidas no formulário de requerimento, por um tribunal não competente?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: pode falar‑se de circunstâncias excecionais, na aceção do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006, [conjugado] com o considerando 25 da Comunicação n.o 2004/0055 da Comissão Europeia, de 7 de fevereiro de [2006], quando a injunção de pagamento europeia foi emitida com base em informações fornecidas no formulário de requerimento que posteriormente se revelaram incorretas, especialmente se a competência do tribunal depende dessas informações?»

10.

No presente processo, apresentaram observações escritas a Thurner Hotel, os Governos alemão, austríaco e português e a Comissão Europeia. A Thomas Cook apresentou as suas observações escritas fora de prazo, pelo que não foram admitidas. Na audiência, realizada em 16 de abril de 2015 a pedido da Thomas Cook, apenas interveio a Comissão.

III – Síntese da posição das partes

11.

Em primeiro lugar, a Thurner Hotel contesta as alegações da Thomas Cook no processo a quo, sobre o seu alegado desconhecimento do incumprimento da obrigação de pagamento, por não lhe terem sido enviadas (ou, pelo menos, não no prazo previsto) as faturas correspondentes, facto que, segundo a Thomas Cook, a impediu de deduzir atempadamente a sua oposição. Em segundo lugar, contesta também que as partes tenham acordado atribuir a competência aos tribunais de Gante. De qualquer modo, do seu formulário de requerimento da injunção de pagamento europeia resultava claramente que baseava a competência do tribunal onde apresentou o referido requerimento no lugar de cumprimento das obrigações contratuais [nos termos do artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO L 12, p. 1)], motivo pelo qual a Thomas Cook podia ter deduzido oposição no prazo de 30 dias.

12.

A Thurner Hotel considera que a disposição controvertida (artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006) deve ser interpretada restritivamente. Na sua opinião, o facto de permitir, mediante a referida disposição, a dedução de exceções processuais que poderiam (e deveriam) ter sido invocadas dentro do prazo previsto para a oposição violava o princípio da segurança jurídica.

13.

O Governo austríaco também defende uma interpretação restritiva do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006, que não permitia considerar como «circunstâncias excecionais» as que já podiam ter sido invocadas pelo devedor em sede de oposição, entendimento que também é partilhado pelo Governo alemão. Segundo o Governo austríaco, apenas as injunções de pagamento europeias manifestamente ilegais ou obtidas de forma fraudulenta deviam ser objeto da reapreciação prevista no artigo 20.o, n.o 2, do referido regulamento.

14.

O Governo português refere duas situações em que o artigo 20.o, n.o 2, do referido regulamento permite apresentar um pedido de reapreciação da injunção de pagamento europeia após o esgotamento do prazo para deduzir oposição: a primeira, quando for evidente que essa injunção foi emitida de forma claramente indevida tendo em conta os requisitos estabelecidos nesse regulamento, no sentido de que a injunção foi emitida sem respeitar os requisitos de validade da sua emissão impostos pelo regulamento; e, a segunda, quando se verifiquem quaisquer outras circunstâncias excecionais. O Governo português considera que o prazo para a dedução de oposição previsto no artigo 16.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006 é concedido para se contestar a legitimidade ou a validade do crédito cuja execução se reclama, quando a injunção de pagamento europeia cumpre os requisitos de validade estabelecidos no referido regulamento. Em contrapartida, a reapreciação prevista no artigo 20.o, n.o 2, do mesmo regulamento tem por objeto impedir a execução de injunções de pagamento emitidas em violação do regulamento. Na opinião do Governo português, a emissão da injunção por um tribunal incompetente viola um requisito essencial de validade e deve poder ser impugnada num prazo superior ao previsto no artigo 16.o

15.

A Comissão propõe que seja dada uma resposta afirmativa à primeira questão prejudicial, no sentido de que, se a injunção de pagamento foi efetivamente emitida por um tribunal internacionalmente incompetente, a referida injunção foi emitida de forma indevida, tendo em conta os requisitos previstos no Regulamento n.o 1896/2006, o que dá a possibilidade de requerer a reapreciação nos termos do artigo 20.o, n.o 2, desse regulamento. Para responder à segunda questão prejudicial, há que apurar se a injunção foi emitida de forma «claramente» indevida. No caso da competência judiciária internacional, na maioria dos casos, não é «claro» se o órgão que emite a injunção é ou não competente. Ora, na opinião da Comissão, obrigar o tribunal a verificar exaustivamente, em todas as situações, se é ou não competente para emitir a injunção iria contra a finalidade do regulamento.

16.

A Comissão propõe que se restrinja o alcance do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006 em conformidade com o disposto no Regulamento (UE) n.o 1215/2012 ( 3 ), para que só seja possível impugnar a injunção de pagamento europeia, depois do termo do prazo de dedução da oposição, quando tenham sido violadas disposições atributivas da competência judiciária internacional especialmente pensadas para proteger a parte mais frágil numa relação jurídica, ou nos casos previstos no artigo 24.o do Regulamento n.o 1215/2012 (competências exclusivas), para o qual remete o artigo 45.o, n.o 1, alínea e), ii), do mesmo regulamento. Em nenhum destes casos é possível enquadrar a eventual violação de um pacto atributivo de jurisdição como o que parece estar na origem deste processo, de modo que não se pode afirmar que a injunção foi emitida de forma «claramente» indevida.

17.

Por conseguinte, segundo a Comissão, ficaria por determinar se se verificam «outras circunstâncias excecionais» na aceção do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006. A Comissão propõe que esse conceito seja interpretado restritivamente, limitando‑o aos casos de abuso doloso do procedimento de injunção de pagamento, o que deve ser demonstrado em cada caso concreto ( 4 ).

18.

O Governo alemão considera que nem todos os dados incorretos ou falsos constantes do formulário de requerimento permitem a sua impugnação ao abrigo do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006. A reapreciação da injunção de pagamento europeia só se justifica quando da ponderação dos interesses de ambas as partes resulte que a sua execução é intolerável («unerträglich») para uma delas. O Governo alemão cita também o despacho Novontech‑Zala ( 5 ), relativo ao artigo 20.o do Regulamento n.o 1896/2006, no qual o Tribunal de Justiça declarou, relativamente ao prazo de oposição de 30 dias, que «quando […] o incumprimento do referido prazo se dever a uma falta de diligência do representante do requerido, tal situação, desde que pudesse ter sido facilmente evitada, não resulta de circunstâncias excecionais na aceção [do artigo 20.o, n.os 1, alínea b), e 2]». Na opinião do Governo alemão, este raciocínio também deve ser aplicado no sentido de não se considerar «circunstâncias excecionais» algo que seja invocado por quem o poderia ter facilmente evitado. Além do mais, iria contra os objetivos do Regulamento n.o 1896/2006 (nomeadamente de celeridade e de redução de despesas) admitir que se possa reapreciar uma injunção de pagamento europeia contra a qual poderia ter sido deduzida oposição no prazo fixado (oposição que, além disso, nem sequer necessita de ser fundamentada, como dispõe o artigo 16.o, n.o 3, do referido regulamento).

19.

Para o Governo alemão, o facto de o requerente da injunção de pagamento europeia e a contraparte não estarem de acordo quanto à competência judiciária internacional não é nada «excecional» e, no caso em apreço, a Thomas Cook podia ter invocado sem grandes dificuldades, deduzindo oposição, a incompetência do tribunal que emitiu a injunção. Por último, o Governo alemão considera que, embora o tribunal que acabou por emitir a injunção não fosse internacionalmente competente, se trata, em todo o caso, de um órgão imparcial e independente de um Estado‑Membro, que não tem motivo para, na sua decisão, ter ignorado ou violado os interesses da Thomas Cook.

IV – Análise

A – Considerações preliminares

20.

O órgão jurisdicional de reenvio submete ao Tribunal de Justiça duas questões prejudiciais. Na primeira, pergunta se, com base no artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006, se pode apresentar um pedido de reapreciação de uma injunção de pagamento europeia emitida por um tribunal incompetente devido às informações relativas à competência constantes do formulário de requerimento; com a segunda (que só se submete no caso de ser dada uma resposta afirmativa à primeira), pretende que se determine se o facto de a injunção ser emitida em virtude de informações relativas à competência, que posteriormente se revelaram incorretas, configura uma situação de «circunstâncias excecionais» na aceção da referida disposição.

21.

Na minha opinião, como sugere o Governo alemão nas suas observações, as duas questões podem ser fundidas numa única, reformulada nos seguintes termos:

«Deve o artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006, conjugado com o seu considerando 25, ser interpretado no sentido de que configura uma situação de «circunstâncias excecionais» que permitem ao requerido a quem tenha sido validamente notificada a injunção de pagamento europeia apresentar um pedido de reapreciação judicial da mesma o facto de esta injunção ter sido emitida com base em informações constantes do formulário de requerimento, que posteriormente se revelaram incorretas, especialmente se a competência do tribunal depender dessas informações?»

B – Apreciação da questão

22.

O artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006, sob a epígrafe «Reapreciação em casos excecionais», dispõe que, «após o termo do prazo fixado no n.o 2 do artigo 16.o, o requerido tem também o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia ao tribunal competente do Estado‑Membro de origem nos casos em que esta tenha sido emitida de forma claramente indevida, tendo em conta os requisitos estabelecidos no presente regulamento ou outras circunstâncias excecionais», circunstâncias que, segundo o considerando 25 do Regulamento n.o 1896/2006, ao qual o órgão jurisdicional de reenvio faz expressa referência ( 6 ), poderiam abranger o facto de «a injunção de pagamento europeia se ter baseado em informações falsas fornecidas no formulário de requerimento».

23.

Ora, na minha opinião, tanto a exigência prevista no próprio artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006, de que a injunção tenha sido «emitida de forma claramente indevida», como a indicação contida no considerando 25, de que «[a] reapreciação em casos excecionais não significa que o requerido deva ter uma segunda oportunidade para deduzir oposição», apoiam a tese de que a via da «reapreciação em circunstâncias excecionais» tem de ser objeto de aplicação estrita. Assim, em princípio, concordo com o Governo alemão quanto ao facto de que nem toda a informação falsa ou incorreta prestada no formulário de requerimento pode justificar a reapreciação da injunção de pagamento europeia nos termos do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006.

24.

Também seria contrária à aplicação extensiva de uma via pensada exclusivamente para casos excecionais a própria configuração do procedimento europeu de injunção de pagamento, que, em termos gerais, apenas confere ao devedor uma única possibilidade de reagir à pretensão do credor — a oposição do artigo 16.o do Regulamento n.o 1896/2006 —, mas que, precisamente por isso, está sujeita a muito poucas exigências formais (deve ser apresentada por escrito no prazo de 30 dias) e a nenhuma exigência material (não tem de ser fundamentada) ( 7 ).

25.

Por conseguinte, considero que o artigo 20.o, n.o 2, lido em conjugação com o considerando 25 do Regulamento n.o 1896/2006, deve ser objeto de interpretação estrita, como defendido por todos os intervenientes que apresentaram observações, com exceção do Governo português.

26.

Em circunstâncias como as do presente processo, isso significa que, no que respeita às informações prestadas pelo requerente no formulário do requerimento, a via da reapreciação não deve ser aberta quando o devedor (em especial, quando, como aqui, se trata de um profissional) já teve oportunidade de verificar, ao analisar a injunção de pagamento europeia validamente notificada, que as informações em que o tribunal que a emitiu se baseou (isto é, as informações prestadas pelo requerente) eram inexatas, incorretas ou falsas. Ou seja, concordo com a Thurner Hotel e o Governo austríaco em que não são «circunstâncias excecionais», que justifiquem a reapreciação da injunção, as informações falsas ou incorretas contra as quais o devedor já teve oportunidade de reagir através da dedução de oposição. Em definitivo, considero que as «informações falsas» a que alude o considerando 25 do Regulamento n.o 1896/2006 se devem restringir àquelas cuja falsidade ou incorreção só se revela ou está em condições de ser apreciada pelo devedor num momento efetivamente posterior, depois de decorrido o prazo previsto no artigo 16.o, n.o 2, do referido regulamento, o que deve ser apreciado caso a caso pelo tribunal nacional.

27.

Por conseguinte, a título de conclusão provisória, considero que só configurará uma situação de «circunstâncias excecionais» que permitirão ao devedor apresentar o pedido de reapreciação da injunção de pagamento europeia ao abrigo do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006 o facto de essa injunção se basear em informações contidas no formulário de requerimento que se revelaram falsas ou incorretas num momento efetivamente posterior, após o termo do prazo para deduzir oposição, o que o devedor terá de demonstrar em cada caso. Por outras palavras, se a injunção se baseia em informações constantes do formulário de requerimento, cuja falsidade ou incorreção pôde ser verificada pelo devedor dentro do prazo fixado no artigo 16.o, n.o 2, do referido regulamento para deduzir oposição, o que deve ser apreciado pelo tribunal nacional, não se estará perante «circunstâncias excecionais» que justifiquem a reapreciação.

28.

Na minha opinião, pelas razões que exporei a seguir, o facto de a competência do tribunal que emite a injunção depender das informações falsas ou incorretas prestadas no formulário de requerimento — que é a situação a que se refere precisamente o Handelsgericht Wien — tão‑pouco leva a uma conclusão diferente.

29.

Segundo o considerando 16 do Regulamento n.o 1896/2006, «[o] tribunal deverá analisar o requerimento [de uma injunção de pagamento europeia], bem como a questão da competência […], com base nas informações constantes do formulário de requerimento», sem que esta análise tenha necessariamente de ser efetuada por um juiz ( 8 ). Entre os requisitos que, segundo o artigo 8.o do Regulamento n.o 1896/2006, devem ser analisados, com base no formulário correspondente, pelo tribunal ao qual é apresentado um requerimento de injunção de pagamento europeia, figura a competência judiciária internacional (artigo 6.o do regulamento). Assim, quem analisa o requerimento de uma injunção de pagamento europeia limita‑se a verificar se o código numérico (dos 13 possíveis) do critério de competência do tribunal indicado pelo requerente no formulário normalizado A do Anexo I do Regulamento n.o 1896/2006 é verosímil nos termos do disposto no Regulamento n.o 44/2001 ( 9 ), para o qual remete o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1896/2006 relativamente à competência judiciária ( 10 ).

30.

Por outro lado, ao ser citado ou notificado da injunção de pagamento europeia através do formulário normalizado E do Anexo V do Regulamento n.o 1896/2006, o devedor é informado, na alínea c), de maneira bem visível, não só de que pode deduzir oposição no prazo de 30 dias e das consequências se o não fizer como também de que «[a] presente injunção é emitida apenas com base nas informações fornecidas pelo requerente, que não foram verificadas pelo tribunal».

31.

Assim, no presente processo, e uma vez que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a injunção de pagamento foi validamente notificada à Thomas Cook, há que considerar que a referida empresa sabia, desde que recebeu a notificação (data em que começa a correr o prazo para deduzir oposição), que a referida injunção tinha sido emitida apenas com base nas informações prestadas pela Thurner Hotel no formulário normalizado A do Anexo I do Regulamento n.o 1896/2006. Consequentemente, ainda que dos autos não conste se a Thomas Cook recebeu efetivamente cópia do referido formulário A, a empresa belga em causa podia presumir que a Thurner Hotel não tinha mencionado no seu requerimento a existência de um pacto atributivo de jurisdição celebrado entre as partes (na medida em que a injunção provinha de um tribunal austríaco e não de um tribunal de Gante) e que, em princípio, quem tinha efetuado a análise com base nas informações contidas no formulário não sabia necessariamente da existência do referido pacto ( 11 ).

32.

A este respeito, considero ainda, tendo em conta que o artigo 24.o do Regulamento n.o 44/2001 admite, de maneira geral, uma extensão tácita da competência se o requerido comparecer perante um tribunal diferente do inicialmente convencionado entre as partes ( 12 ), que não se deve qualificar, sem mais, de «informações falsas» no sentido do considerando 25 do Regulamento n.o 1896/2006 o facto de a requerente da injunção de pagamento europeia — para ver a reação do devedor — indicar como critério atributivo da competência ao tribunal austríaco o lugar de cumprimento das obrigações (artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001) ( 13 ). Como o Tribunal de Justiça já declarou relativamente às disposições equivalentes da Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (a seguir «Convenção de Bruxelas») ( 14 ), «não há qualquer razão decorrente da economia geral ou dos objetivos da Convenção para se considerar estarem as partes num pacto atributivo de jurisdição na aceção do artigo 17.o [artigo 23.o do Regulamento n.o 44/2001] impedidas de submeter um litígio a um órgão jurisdicional diferente do estipulado no pacto» ( 15 ).

33.

Há também que ter em conta que a simples existência de um pacto dessa natureza nas condições contratuais gerais acordadas entre as partes não significa que o mesmo seja válido nos termos do artigo 23.o do referido regulamento ( 16 ). A apreciação da sua validade formal, em caso de litígio entre as partes, exigiria uma análise mais aprofundada, por parte do tribunal que conhece do processo, do que a que é exigida no âmbito do artigo 8.o do Regulamento n.o 1896/2006, mesmo que aquele seja informado da existência desse pacto no formulário de requerimento da injunção de pagamento europeia. Por isso, considero que, caso o requerente de uma injunção de pagamento europeia ponha em causa a validade ou a eficácia do pacto atributivo de jurisdição contido nas cláusulas contratuais gerais, não está obrigado a invocá‑lo no formulário em que requer a emissão da injunção de pagamento europeia, uma vez que esses aspetos nunca poderão ser discutidos no contexto do procedimento europeu de injunção de pagamento.

34.

Assim, entendo que, nestas circunstâncias, só configurará uma situação de «circunstâncias excecionais» que permitirão ao devedor apresentar o pedido de reapreciação da injunção de pagamento europeia ao abrigo do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006 o facto de essa injunção se basear em informações contidas no formulário de requerimento que se revelaram falsas ou incorretas num momento efetivamente posterior, após o termo do prazo para deduzir oposição, mesmo que dessas informações dependa a competência do tribunal, em especial quando o requerente não tiver mencionado a existência de um eventual pacto atributivo de jurisdição celebrado entre as partes.

35.

Por conseguinte, entendo que se deve responder à questão prejudicial submetida pelo Handelsgericht Wien que, nas circunstâncias do presente processo, o artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006, conjugado com o seu considerando 25, deve ser interpretado no sentido de que não configura uma situação de «circunstâncias excecionais» que permitem ao requerido validamente notificado de uma injunção de pagamento europeia apresentar um pedido de reapreciação judicial da mesma o simples facto de essa injunção ter sido emitida com base em informações falsas ou incorretas constantes do formulário de requerimento, mesmo que dessas informações dependa a competência do tribunal — em especial quando o requerente não tiver mencionado a existência de um eventual pacto atributivo de jurisdição celebrado entre as partes —, salvaguardando‑se sempre a possibilidade de o devedor poder provar perante o tribunal nacional que só num momento efetivamente posterior ao termo do prazo para deduzir oposição, fixado no artigo 16.o, n.o 2, do referido regulamento, teve conhecimento da falsidade ou incorreção das informações contidas no formulário de requerimento.

V – Conclusão

36.

Tendo em conta as considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo ao Handelsgericht Wien:


( 1 )   Língua original: espanhol.

( 2 )   Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento (JO L 399, p. 1). No despacho Novontech‑Zala (C‑324/12, EU:C:2013:205), o Tribunal de Justiça já declarou que a inobservância do prazo para apresentar a declaração de oposição a uma injunção de pagamento europeia, devido ao comportamento negligente do mandatário do requerido, não justifica uma reapreciação dessa injunção de pagamento, pois essa inobservância não pode ser qualificada de circunstâncias excecionais na aceção do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1896/2006. No acórdão eco cosmetics e Raiffeisenbank St. Georgen (C‑119/13 e C‑120/13, EU:C:2014:2144), o Tribunal de Justiça declarou que o procedimento do artigo 20.o do referido regulamento não é aplicável quando se verifique que uma injunção de pagamento europeia não foi citada ou notificada em conformidade com os requisitos mínimos estabelecidos nos artigos 13.° a 15.° desse regulamento.

( 3 )   Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO L 351, p. 1).

( 4 )   Na sua opinião, não parece que tal ocorra no presente processo, em que a Thurner Hotel baseou a competência judiciária internacional do Bezirksgericht für Handelssachen Wien no lugar de cumprimento das obrigações contratuais, em conformidade com o artigo 5.o do Regulamento n.o 44/2001.

( 5 )   C‑324/12, EU:C:2013:205, n.o 21.

( 6 )   Na redação da segunda questão prejudicial, o Handelsgericht Wien faz referência ao «considerando 25 da Comunicação da Comissão de 7 de fevereiro de 2006 (COD 2004/0055)». Entendo que se está a referir à Proposta alterada de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de fevereiro de 2006, que cria um procedimento europeu de injunção de pagamento [COM (2006) 57 final], que introduziu no texto o considerando 25 do regulamento atualmente em vigor.

( 7 )   Em princípio, a dedução de oposição tem por consequência, segundo o artigo 17.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1896/2006, que a ação prossegue nos tribunais competentes do Estado‑Membro de origem, de acordo com as normas do correspondente processo civil comum. No âmbito desse procedimento, pode, por exemplo, discutir‑se a questão da competência judiciária internacional, designadamente, no que respeita ao presente processo, a validade e os efeitos de um pacto atributivo de jurisdição celebrado entre as partes.

( 8 )   Mais, o artigo 8.o do Regulamento n.o 1896/2006 admite, inclusivamente, que essa análise possa assumir a forma de um procedimento automatizado.

( 9 )   Concretamente, o artigo 6.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1896/2006 dispõe, no que interessa para o presente processo (no qual não se encontra implicado nenhum consumidor), que, «[p]ara efeitos da aplicação do presente regulamento, a competência judiciária é determinada em conformidade com as regras do direito comunitário aplicáveis na matéria, designadamente o Regulamento (CE) n.o 44/2001». O Regulamento n.o 44/2001 foi substituído, a partir de 10 de janeiro de 2015, pelo Regulamento n.o 1215/2012, que não era aplicável no momento em que ocorreram os factos do presente processo.

( 10 )   Segundo Kormann, J. M., in Das neue Europäische Mahnverfahren im Vergleich zu den Mahnverfahren in Deutschland und Österreich, Jena, Jenaer Wissenschaftliche Verlagsgesellschaft, 2007, p. 96, «só é possível efetuar uma análise de verosimilhança através da comparação com os dados relativos a crédito principal».

( 11 )   Deve ter‑se em conta que, segundo o artigo 7.o, n.o 2, alínea e), do Regulamento n.o 1896/2006, nesta fase, o requerente da injunção de pagamento europeia só tem de juntar uma descrição das provas que sustentam o pedido, pelo que é mais do que provável que, ao efetuar a análise referida no artigo 8.o, o tribunal ao qual é apresentado o requerimento nem sequer disponha do contrato celebrado entre as partes.

( 12 )   O artigo 24.o do Regulamento n.o 44/2001 admite que, embora tenha sido celebrado entre as partes um pacto atributivo de jurisdição, o requerente pode intentar a ação num tribunal diferente do convencionado e o requerido aceitar tacitamente a competência desse tribunal, comparecendo perante ele, o que deixaria validamente sem efeito o pacto atributivo de jurisdição que pudessem ter anteriormente celebrado (salvo nos casos de competência exclusiva nos termos do artigo 22.o do Regulamento n.o 44/2001). Neste sentido, o Tribunal de Justiça já declarou, precisamente, quanto ao procedimento europeu de injunção de pagamento, que «uma oposição à injunção de pagamento europeia que não contenha uma contestação da competência do tribunal do Estado‑Membro de origem não pode ser considerada como uma comparência, na aceção do artigo 24.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001», mesmo no caso de o requerido ter formulado, na oposição deduzida, alegações sobre o mérito da causa (acórdão Goldbet Sportwetten, C‑144/12, EU:C:2013:393). V. também, em geral, sobre o referido artigo 24.o, o acórdão Cartier parfums‑lunettes e Axa Corporate Solutions assurances (C‑1/13, EU:C:2014:109, n.os 34 e segs.).

( 13 )   Tendo em conta, além do mais, que a Thurner Hotel contesta a existência do pacto atributivo de jurisdição a que a Thomas Cook se refere (v. n.os 2 e 3 das observações da Thurner Hotel).

( 14 )   JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186; conforme alterada pelas posteriores convenções relativas à adesão dos novos Estados‑Membros a essa Convenção.

( 15 )   Acórdão Elefanten Schuh (150/80, EU:C:1981:148, n.o 10). V. também o acórdão ČPP Vienna Insurance Group (C‑111/09, EU:C:2010:290, n.os 21 e segs.). A este respeito, deve também recordar‑se que o artigo 35.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 não impede que seja reconhecida uma decisão adotada em violação de um pacto atributivo de jurisdição celebrado nos termos do artigo 23.o do mesmo. Só impede que sejam reconhecidas as decisões adotadas em violação do disposto nas secções 3 (Competência em matéria de seguros), 4 (Competência em matéria de contratos celebrados por consumidores) e 6 (Competências exclusivas) do capítulo II do referido regulamento, ou no caso previsto no seu artigo 72.o

( 16 )   V., a este respeito, Mankowski, P., «Artikel 23 Brüssel I‑VO», in T. Rauscher (ed.): Europäisches Zivilprozess‑ und Kollisionsrecht EuZPR/EuIPR, Munique, Sellier, 2006, pp. 411 e segs., nomeadamente os n.os 16 e segs.