ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

21 de janeiro de 2015 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Diretiva 93/13/CEE — Contratos celebrados entre profissionais e consumidores — Contratos de mútuo hipotecário — Cláusulas de juros de mora — Cláusulas abusivas — Processo de execução hipotecária — Redução do montante dos juros — Competências do tribunal nacional»

Nos processos apensos C‑482/13, C‑484/13, C‑485/13 e C‑487/13,

que têm por objeto pedidos de decisão prejudicial apresentados nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Juzgado de Primera Instancia e Instrucción de Marchena (Espanha), por decisões de 12 de agosto de 2013, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 10 de setembro de 2013, nos processos

Unicaja Banco SA

contra

José Hidalgo Rueda,

María del Carmen Vega Martín,

Gestión Patrimonial Hive SL,

Francisco Antonio López Reina,

Rosa María Hidalgo Vega (C‑482/13),

e

Caixabank SA

contra

Manuel María Rueda Ledesma (C‑484/13),

Rosario Mesa Mesa (C‑484/13),

José Labella Crespo (C‑485/13),

Rosario Márquez Rodríguez (C‑485/13),

Rafael Gallardo Salvat (C‑485/13),

Manuela Márquez Rodríguez (C‑485/13),

Alberto Galán Luna (C‑487/13),

Domingo Galán Luna (C‑487/13),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente de secção, S. Rodin, E. Levits (relator), M. Berger e F. Biltgen (juízes),

advogado‑geral: N. Wahl,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 10 de setembro de 2014,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Unicaja Banco SA, por J. Almoguera Valencia, abogado,

em representação do Caixabank SA, por J. Rodríguez Cárcamo e B. García Gómez, abogados,

em representação do Governo espanhol, por A. Rubio González e S. Centeno Huerta, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por J. Rius, M. van Beek e G. Valero Jordana, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de outubro de 2014,

profere o presente

Acórdão

1

Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 6.o da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29).

2

Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem, por um lado, o Unicaja Banco SA (a seguir «Unicaja Banco») a J. Hidalgo Rueda, a M. del Carmen Vega Martín, à Gestión Patrimonial Hive SL, a F. A. López Reina e a R. M. Hidalgo Vega, por outro lado, o Caixabank SA (a seguir «Caixabank»), em primeiro lugar, a M. M. Rueda Ledesma e a R. Mesa Mesa, em segundo lugar, a J. Labella Crespo, a R. Márquez Rodríguez, a R. Gallardo Salvat e a M. Márquez Rodríguez, bem como, em terceiro lugar, a A. Galán Luna e a D. Galán Luna, a propósito da cobrança de dívidas não pagas decorrentes de contratos de mútuo hipotecário celebrados entre essas partes nos processos principais.

Quadro jurídico

Diretiva 93/13

3

O artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 prevê:

«As disposições da presente diretiva não se aplicam às cláusulas contratuais decorrentes de disposições legislativas ou regulamentares imperativas, bem como das disposições ou dos princípios previstos nas convenções internacionais de que os Estados‑Membros ou a Comunidade sejam parte, nomeadamente no domínio dos transportes.»

4

O artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva tem a seguinte redação:

«Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.»

5

O artigo 4.o, n.o 1, da referida diretiva especifica:

«[…] o caráter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.»

6

O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 dispõe:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

7

Em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, da referida diretiva:

«Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.»

Direito espanhol

8

Em direito espanhol, a proteção dos consumidores contra as cláusulas abusivas foi, em primeiro lugar, assegurada pela Lei Geral 26/1984 relativa à proteção dos consumidores e utentes (Ley General 26/1984 para la Defensa de los Consumidores y Usuarios), de 19 de julho de 1984 (BOE n.o 176, de 24 de julho de 1984, p. 21686).

9

A Lei Geral 26/1984 foi seguidamente alterada pela Lei 7/1998 sobre as condições gerais dos contratos (Ley 7/1998 sobre condiciones generales de la contratación), de 13 de abril de 1998 (BOE n.o 89, de 14 de abril de 1998, p. 12304), que transpôs a Diretiva 93/13 para o direito interno espanhol.

10

Estas disposições foram retomadas pelo Real Decreto Legislativo 1/2007 que reformula a Lei geral relativa à proteção dos consumidores e utentes e outras leis complementares (Real Decreto Legislativo 1/2007 por el que se aprueba el texto refundido de la Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios y otras leyes complementarias), de 16 de novembro de 2007 (BOE n.o 287, de 30 de novembro de 2007, p. 49181).

11

Nos termos do artigo 83.o do Real Decreto Legislativo 1/2007:

«1.   As cláusulas abusivas são nulas de pleno direito e consideram‑se não escritas.

2.   A integração da parte do contrato afetada pela nulidade faz‑se nos termos do artigo 1258.o do Código Civil e com base no princípio da boa‑fé objetiva.

Para tanto, o juiz que declarar a nulidade das referidas cláusulas integrará o contrato, dispondo de poderes para conformar os direitos e obrigações das partes, se o contrato subsistir, e para determinar as consequências da sua ineficácia, se existir um prejuízo considerável para o consumidor e utilizador. O juiz só pode declarar a ineficácia do contrato quando as cláusulas subsistentes gerarem uma situação não equitativa para as partes insuscetível de ser sanada.»

12

Na sequência do acórdão Aziz (C‑415/11, EU:C:2013:164), a legislação espanhola relativa à proteção dos consumidores foi alterada pela Lei 1/2013, que prevê medidas destinadas a reforçar a proteção dos devedores hipotecários e relativa à restruturação da dívida e ao arrendamento de habitação social (Ley de medidas para reforzar la protección a los deudores hipotecarios, reestructuración de deuda y alquiler social), de 14 de maio de 2013 (BOE n.o 116, de 15 de maio de 2013, p. 36373). Esta lei altera em especial certas disposições da Lei 1/2000 relativa ao Código de Processo Civil (Ley 1/2000 de Enjuiciamiento Civil), de 7 de janeiro de 2000 (BOE n.o 7, de 8 de janeiro de 2000, p. 575).

13

Assim, o artigo 552.o, n.o 1, do Código de Processo Civil, conforme alterado pelo artigo 7.o, n.o 1, da Lei 1/2013, dispõe:

«Se o tribunal considerar que alguma das cláusulas que figuram num dos títulos executivos referidos no artigo 557.o, n.o 1, pode ser qualificada de abusiva, deverá ouvir as partes no prazo de cinco dias. Ouvidas as partes, decidirá o que tiver por conveniente nos cinco dias seguintes, conforme previsto no artigo 561.o, n.o 1, ponto 3.»

14

O artigo 7.o, n.o 3, da Lei 1/2013 aditou um ponto 3 ao artigo 561.o, n.o 1, do Código de Processo Civil que tem a seguinte redação:

«Se uma ou várias cláusulas forem consideradas abusivas, o despacho a proferir especificará as consequências desse facto, quer indeferindo a execução, quer ordenando a prossecução da mesma sem aplicação das cláusulas consideradas abusivas.»

15

O artigo 7.o, n.o 14, da Lei 1/2013 altera o artigo 695.o do Código de Processo Civil ao precisar que a existência de cláusulas abusivas constitui um motivo de oposição nos seguintes termos:

«1.   Nos processos objeto do presente capítulo, a oposição deduzida pelo executado só é admitida se se basear nos seguintes motivos:

[...]

4.   O caráter abusivo de uma cláusula contratual que sirva de fundamento à execução ou com base na qual se determine a quantia exigível.»

16

O artigo 3.o, n.o 2, da Lei 1/2013 também altera o artigo 114.o da Lei hipotecária (Ley Hipotecaria), aditando um terceiro parágrafo, com a seguinte redação:

«Os juros de mora de empréstimos ou créditos para a aquisição de habitação própria, garantidos por hipoteca constituída sobre a mesma, não podem ser superiores ao triplo da taxa de juro legal e só podem ser calculados sobre o capital em dívida. Os referidos juros de mora nunca podem ser capitalizados, salvo no caso previsto no artigo 579.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Civil.»

17

Por último, a segunda disposição transitória da Lei 1/2013 acrescenta:

«A limitação dos juros de mora em hipotecas constituídas sobre habitação própria prevista no artigo 3.o, n.o 2, é aplicável às hipotecas constituídas posteriormente à entrada em vigor da presente lei.

Essa limitação será também aplicável aos juros de mora previstos nos empréstimos garantidos por hipoteca sobre habitação própria constituídos antes da entrada em vigor da presente lei, aos que se vençam posteriormente, bem como aos que, já se encontrando vencidos a essa data, não tenham sido pagos.

Nos processos de execução ou de venda extrajudicial que se encontrem pendentes à data da entrada em vigor desta lei, e nos quais já tenha sido fixada a quantia pela qual se requer que seja ordenada a execução ou a venda extrajudicial, o secretário judicial ou o notário notifica o exequente para, no prazo de dez dias, recalcular a referida quantia em conformidade com o disposto no número anterior.»

Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

18

Os processos principais são relativos a diferentes processos de execução hipotecária instaurados pelo Unicaja Banco e pelo Caixabank com vista à execução forçada de várias hipotecas constituídas entre 5 de janeiro de 2007 e 20 de agosto de 2010 para garantir montantes compreendidos entre 47000 euros e 249 000 euros.

19

No processo C‑482/13, o mútuo hipotecário estava sujeito a uma taxa de juros de mora de 18%, que podia ser aumentada se o incremento da taxa de juros revista em quatro pontos percentuais resultasse numa taxa de juros superior, não podendo ultrapassar uma taxa nominal anual de 25%. Nos processos C‑484/13, C‑485/13 e C‑487/13, a taxa de juros de mora estava fixada em 22,5%.

20

Além disso, todos os contratos de mútuo em causa nos processos principais contêm uma cláusula segundo a qual, em caso de o mutuário não cumprir as suas obrigações de pagamento, o mutuante pode antecipar a data de vencimento inicialmente convencionada e exigir o pagamento da totalidade do capital em dívida acrescido de juros, juros de mora, comissões, despesas e custos convencionados.

21

Entre 21 de março de 2012 e 3 de abril de 2013, o Unicaja Banco e o Caixabank apresentaram no órgão jurisdicional de reenvio pedidos de execução para os montantes devidos depois de aplicadas as taxas de juros de mora prevista nos contratos de mútuo hipotecário em causa. No âmbito desses processos, esse órgão jurisdicional viu‑se confrontado com a questão do caráter «abusivo», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, das cláusulas relativas à taxa de juros de mora e da aplicação dessas taxas ao capital cujo vencimento antecipado é acionado pelo atraso no pagamento.

22

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio tem, contudo, dúvidas acerca das consequências que deve tirar do caráter abusivo das referidas cláusulas à luz da segunda disposição transitória da Lei 1/2013. Assim, se estiver obrigado a aplicar essa disposição, incumbe‑lhe ordenar que os juros de mora sejam recalculados em conformidade com o terceiro parágrafo da mesma disposição.

23

Nestas circunstâncias, o Juzgado de Primera Instancia e Instrucción de Marchena decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Em conformidade com a [Diretiva 93/13], designadamente com o seu artigo 6.o, n.o 1, e para garantir a proteção dos consumidores e utentes de acordo com os princípios da equivalência e da efetividade, um tribunal nacional que constate a existência de uma cláusula abusiva relativa a juros de mora em mútuos hipotecários deve declarar a cláusula nula e sem efeito ou, pelo contrário, deve reduzir a cláusula de juros, notificando o exequente ou mutuante para que recalcule os juros?

2)

A segunda disposição transitória da [Lei 1/2013], ao obrigar implicitamente o órgão jurisdicional a reduzir uma cláusula de juros de mora abusiva, recalculando os juros estipulados e mantendo em vigor uma disposição de caráter abusivo, em vez de declarar a cláusula nula e sem efeito relativamente ao consumidor, implica ou não uma limitação evidente da proteção dos interesses dos consumidores?

3)

A segunda disposição transitória da [Lei 1/2013], ao impedir a aplicação dos princípios da equivalência e da efetividade em matéria de proteção do consumidor e ao evitar a aplicação da sanção de nulidade e ineficácia às cláusulas de juros de mora abusivas estipuladas em contratos de mútuo hipotecário celebrados antes da entrada em vigor da [Lei 1/2013], viola ou não a [Diretiva 93/13], designadamente o artigo 6.o, n.o 1, da mesma?»

24

Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 10 de outubro de 2013, os processos C‑482/13 a C‑487/13 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral, bem como do acórdão.

25

Os processos C‑486/13 e C‑483/13 foram separados, respetivamente, por despachos do presidente do Tribunal de Justiça de 13 de março e 3 de outubro de 2014, devido ao seu arquivamento.

Quanto às questões prejudiciais

26

Com as suas questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma disposição nacional nos termos da qual o juiz nacional chamado a conhecer de um processo de execução hipotecária está obrigado a mandar recalcular os montantes devidos nos termos de uma cláusula de um contrato de mútuo hipotecário que prevê juros de mora cuja taxa é três vezes superior à taxa legal, mediante a aplicação de uma taxa de juros de mora que não exceda esse limite.

27

A este respeito, importa salientar antes de mais que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, as cláusulas relativas aos juros de mora dos contratos de mútuo hipotecário cuja execução lhe é solicitada são «abusivas», na aceção do artigo 3.o da Diretiva 93/13.

28

Neste contexto, há que recordar que, no que respeita às consequências a tirar da constatação do caráter abusivo de uma disposição de um contrato que liga um consumidor a um profissional, decorre da redação do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 que os tribunais nacionais só estão obrigados a afastar a aplicação de uma cláusula contratual abusiva de modo a que não produza efeitos vinculativos relativamente ao consumidor, mas não estão habilitados a modificar o seu conteúdo. Com efeito, esse contrato deve subsistir, em princípio, sem nenhuma modificação a não ser a resultante da supressão das cláusulas abusivas, na medida em que, em conformidade com as regras de direito interno, a subsistência do contrato seja juridicamente possível (acórdãos Banco Español de Crédito, C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 65, e Asbeek Brusse e de Man Garabito, C‑488/11, EU:C:2013:341, n.o 57).

29

Em especial, essa disposição não pode ser interpretada no sentido de que permite ao juiz nacional, quando reconheça o caráter abusivo de uma cláusula penal num contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, reduzir o montante da pena imposta ao consumidor, em lugar de afastar inteiramente a aplicação da cláusula em questão em relação a esse consumidor (acórdão Asbeek Brusse e de Man Garabito, EU:C:2013:341, n.o 59).

30

Além disso, tendo em conta a natureza e a importância do interesse público no qual assenta a proteção dos consumidores, que se encontram numa situação de inferioridade face aos profissionais, a Diretiva 93/13 impõe aos Estados‑Membros, como resulta do seu artigo 7.o, n.o 1, interpretado em conjugação com o seu vigésimo quarto considerando, que prevejam os meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional (acórdãos Banco Español de Crédito, EU:C:2012:349, n.o 68, e Kásler e Káslerné Rábai, C‑26/13, EU:C:2014:282, n.o 78).

31

De facto, se fosse possível ao tribunal nacional modificar o conteúdo das cláusulas abusivas, essa faculdade poderia afetar a realização do objetivo a longo prazo previsto no artigo 7.o da Diretiva 93/13. Com efeito, essa faculdade contribuiria para eliminar o efeito dissuasivo exercido sobre os profissionais, decorrente da não aplicação pura e simples de tais cláusulas abusivas ao consumidor, pois estes seriam tentados a utilizar as ditas cláusulas, sabendo que, mesmo que elas viessem a ser invalidadas, o contrato poderia sempre ser integrado, na medida do necessário, pelo tribunal nacional, de modo a garantir o interesse dos ditos profissionais (acórdãos Banco Español de Crédito, EU:C:2012:349, n.o 69, e Kásler e Káslerné Rábai, EU:C:2014:282, n.o 79).

32

Atendendo às considerações precedentes, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 se opõe a uma regra de direito nacional que permite ao tribunal nacional, quando declare a nulidade de uma cláusula abusiva constante de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, integrar o referido contrato modificando o conteúdo dessa cláusula (acórdãos Banco Español de Crédito, EU:C:2012:349, n.o 73, e Kásler e Káslerné Rábai, EU:C:2014:282, n.o 77).

33

É verdade que o Tribunal de Justiça reconheceu também a possibilidade de o tribunal nacional substituir uma cláusula abusiva por uma disposição nacional de caráter supletivo, desde que essa substituição seja conforme com o objetivo do artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 e permita restabelecer um equilíbrio real entre os direitos e as obrigações dos contratantes. Contudo, esta possibilidade está limitada aos casos em que a invalidade da cláusula abusiva obrigaria o tribunal a anular o contrato na íntegra, expondo o consumidor a consequências tais que este seria penalizado (v., neste sentido, acórdão Kásler e Káslerné Rábai, EU:C:2014:282, n.os 82 a 84).

34

No entanto, nos processos principais, e sob reserva da verificação a efetuar a este respeito pelo órgão jurisdicional de reenvio, a anulação das cláusulas contratuais em causa não pode ter consequências negativas para o consumidor, na medida em que os montantes pelos quais os processos de execução hipotecária foram instaurados serão necessariamente reduzidos por não se verificar o aumento resultante da aplicação dos juros de mora previstos pelas referidas cláusulas.

35

Recordados estes princípios, decorre das decisões de reenvio que a segunda disposição transitória da Lei 1/2013 prevê a limitação dos juros de mora para os empréstimos ou créditos para aquisição de habitação principal e garantidos por hipotecas constituídas sobre a habitação em causa. Está, assim, previsto que, para os processos de execução ou de venda extrajudicial pendentes, mas não terminados à data da entrada em vigor dessa lei, a saber, 15 de maio de 2013, e nos quais já tenha sido fixada a quantia pela qual se requer que seja ordenada a execução ou a venda extrajudicial, essa quantia deve ser recalculada mediante a aplicação de juros de mora cuja taxa é, no máximo, igual ao triplo da taxa de juros legal, sempre que a taxa de juros de mora prevista no contrato hipotecário for superior a essa taxa.

36

Como salientado pelo Governo espanhol, nos seus articulados e na audiência, e pelo advogado‑geral nos n.os 38 e 39 das suas conclusões, o âmbito de aplicação da segunda disposição transitória da Lei 1/2013 estende‑se a qualquer contrato de mútuo hipotecário e distingue‑se assim do da Diretiva 93/13, que diz apenas respeito às cláusulas abusivas contidas nos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor. Daqui resulta que a obrigação de respeitar o limite correspondente à taxa de juros de mora equivalente ao triplo da taxa de juros legal, como prevista pelo legislador, não compromete em nada a apreciação pelo tribunal do caráter abusivo de uma cláusula que fixa os juros de mora.

37

Neste contexto, deve recordar‑se que, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, o caráter abusivo de uma cláusula contratual deve ser apreciado tendo em conta a natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração. Daqui decorre que, nesta perspetiva, também devem ser apreciadas as consequências que a referida cláusula pode ter no âmbito do direito aplicável ao contrato, o que implica um exame do sistema jurídico nacional (v. despacho Sebestyén, C‑342/13, EU:C:2014:1857, n.o 29 e jurisprudência referida).

38

A este respeito, há que recordar que um órgão jurisdicional nacional, quando seja chamado a conhecer de um litígio exclusivamente entre particulares, é obrigado, ao aplicar as disposições de direito interno, a tomar em consideração o conjunto das regras do direito nacional e a interpretá‑las, tanto quanto possível, à luz do texto e da finalidade da diretiva aplicável na matéria, para alcançar uma solução conforme com o objetivo por ela prosseguido (acórdão Kásler e Káslerné Rábai, EU:C:2014:282, n.o 64).

39

Assim, há que considerar que, na medida em que a segunda disposição transitória da Lei 1/2013 não se opõe a que o tribunal nacional, confrontado com uma cláusula abusiva, possa exercer a sua competência ao afastar a referida cláusula, a Diretiva 93/13 não se opõe à aplicação dessa disposição nacional.

40

Isso implica, em especial, por um lado, que, quando o tribunal nacional é confrontado com uma cláusula de um contrato relativa a juros de mora cuja taxa é inferior à taxa prevista na segunda disposição transitória da Lei 1/2013, a fixação desse limite legislativo não impede que o referido tribunal aprecie o caráter eventualmente abusivo dessa cláusula, na aceção do artigo 3.o da Diretiva 93/13. Assim, uma taxa de juros de mora inferior ao triplo da taxa de juros legal não pode necessariamente ser considerada equitativa na aceção da mesma diretiva.

41

Por outro lado, quando a taxa de juros de mora prevista numa cláusula de um contrato de mútuo hipotecário é superior à prevista na segunda disposição transitória da Lei 1/2013 e deve, em conformidade com essa disposição, ser limitada, esse facto não deve impedir que o tribunal nacional possa, para além dessa medida de limitação, tirar todas as consequências do eventual caráter abusivo relativamente à Diretiva 93/13 da cláusula que contém essa taxa, procedendo, se for caso disso, à sua anulação.

42

Por conseguinte, resulta do exposto que o artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma disposição nacional nos termos da qual o tribunal nacional onde foi instaurado um processo de execução hipotecária está obrigado a mandar recalcular as quantias devidas por força de uma cláusula de um contrato de mútuo hipotecário que prevê juros de mora cuja taxa é três vezes superior à taxa de juros legal, a fim de que o montante dos referidos juros não ultrapasse esse limite, desde que a aplicação dessa disposição nacional:

não prejudique a apreciação, pelo referido tribunal nacional, do caráter abusivo de uma cláusula dessa natureza; e

não impeça esse tribunal de afastar a referida cláusula se concluir que a mesma é «abusiva», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva.

Quanto às despesas

43

Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma disposição nacional nos termos da qual o tribunal nacional onde foi instaurado um processo de execução hipotecária está obrigado a mandar recalcular as quantias devidas por força de uma cláusula de um contrato de mútuo hipotecário que prevê juros de mora cuja taxa é três vezes superior à taxa de juros legal, a fim de que o montante dos referidos juros não ultrapasse esse limite, desde que a aplicação dessa disposição nacional:

 

não prejudique a apreciação, pelo referido tribunal nacional, do caráter abusivo de uma cláusula dessa natureza; e

 

não impeça esse tribunal de afastar a referida cláusula se concluir que a mesma é «abusiva», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.