ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Primeira Secção)

30 de setembro de 2015 ( *1 )

«Direito institucional — Iniciativa de cidadania europeia — Política económica e monetária — Não reembolso da dívida pública — Consagração do princípio do ‘estado de necessidade’ — Recusa de registo — Competências da Comissão — Dever de fundamentação»

No processo T‑450/12,

Alexios Anagnostakis, residente em Atenas (Grécia), representado por A. Anagnostakis, advogado,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por H. Krämer e M. Konstantinidis, na qualidade de agentes,

recorrida,

que tem por objeto um pedido de anulação da Decisão C (2012) 6289 final da Comissão, de 6 de setembro de 2012, que recusou o pedido de registo da iniciativa de cidadania europeia «Um milhão de assinaturas por uma Europa solidária», apresentado na Comissão em 13 de julho de 2012,

O TRIBUNAL GERAL (Primeira Secção),

composto por: H. Kanninen, presidente, I. Pelikánová e E. Buttigieg (relator), juízes,

secretário: S. Spyropoulos, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 5 de maio de 2015,

profere o presente

Acórdão

Quadro jurídico

1

Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 211/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, sobre a iniciativa de cidadania (JO L 65, p. 1), adotado com fundamento no artigo 24.o, primeiro parágrafo, TFUE:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

1)

‘Iniciativa de cidadania’, uma iniciativa apresentada à Comissão nos termos do presente regulamento pela qual esta é convidada a apresentar, no âmbito das suas atribuições, uma proposta adequada sobre matérias em relação às quais os cidadãos consideram necessário um ato jurídico da União para aplicar os Tratados, e que tenha recebido o apoio de pelo menos um milhão de subscritores elegíveis, provenientes de pelo menos um quarto dos Estados‑Membros;

[…]»

2

Nos termos do artigo 4.o, n.os 2 e 3, do Regulamento n.o 211/2011:

«2.   No prazo de dois meses a contar da receção das informações constantes do Anexo II, a Comissão deve registar uma proposta de iniciativa de cidadania com um número de registo único e enviar uma confirmação aos organizadores, desde que estejam preenchidas as seguintes condições:

[…]

b)

A proposta de iniciativa de cidadania não está manifestamente fora da competência da Comissão para apresentar uma proposta de ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados;

[…]

3.   A Comissão recusa o registo se as condições estabelecidas no n.o 2 não estiverem preenchidas.

Caso se recuse a registar uma proposta de iniciativa de cidadania, a Comissão informa os organizadores dos fundamentos dessa recusa e de todas as vias de recurso judiciais e extrajudiciais de que dispõem.»

Antecedentes do litígio

3

O recorrente, A. Anagnostakis, está na origem da proposta de iniciativa de cidadania europeia intitulada «Um milhão de assinaturas por uma Europa solidária» (a seguir «proposta de ICE»), que enviou à Comissão Europeia, em 13 de julho de 2012, e cujo objeto é a consagração, na legislação da União Europeia, do «princípio do estado de necessidade, de acordo com o qual, quando, em razão do pagamento de uma dívida odiosa, a existência financeira e política de um Estado estiver ameaçada, a recusa de pagamento dessa dívida é necessária e justificada». A proposta de ICE refere a «política económica e monetária (artigos 119.° [TFUE] a 144.° TFUE)» como fundamento jurídico para a sua adoção.

4

Por decisão de 6 de setembro de 2012 (a seguir «decisão impugnada»), a Comissão recusou registar a proposta de ICE, pelo facto de a mesma estar manifestamente fora da competência da Comissão para apresentar uma proposta de adoção de um ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados.

Tramitação processual e pedidos das partes

5

Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 11 de outubro de 2012, o recorrente interpôs o presente recurso.

6

O recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

anular a decisão impugnada;

ordenar que a Comissão registe a iniciativa de cidadania;

ordenar qualquer outra medida juridicamente necessária.

7

Na réplica, o recorrente, sem concluir formalmente sobre as despesas, pede que, atendendo à sua situação financeira, se for negado provimento ao recurso, cada parte seja condenada nas suas próprias despesas.

8

A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

negar provimento ao recurso;

condenar o recorrente nas despesas.

9

No âmbito das medidas de organização do processo previstas no artigo 64.o do Regulamento de Processo do Tribunal Geral de 2 de maio de 1991, as partes foram convidadas a responder por escrito a uma questão e a apresentar uma cópia da proposta de ICE. O recorrente e a Comissão responderam nos prazos fixados.

Questão de direito

10

Em apoio do recurso, o recorrente alega que a Comissão cometeu erros de direito ao recusar registar a proposta de ICE com fundamento no artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 211/2011, que subordina o registo da referida proposta à condição de a mesma não estar manifestamente fora da competência desta instituição para apresentar uma proposta de ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados. A este respeito, o recorrente invoca uma violação do artigo 122.o, n.o 1, TFUE, do artigo 122.o, n.o 2, TFUE, do artigo 136.o, n.o 1, alínea b), TFUE e das regras de direito internacional. Segundo o recorrente, estas diferentes normas habilitavam a Comissão a apresentar uma proposta de ato jurídico da União que permitiria alcançar o objetivo pretendido na proposta de ICE.

Quanto à admissibilidade do segundo e terceiro pedidos

11

Com o seu segundo e terceiro pedidos, o recorrente pede que o Tribunal Geral, respetivamente, dirija uma injunção à Comissão para que esta registe a proposta de ICE e ordene qualquer outra medida juridicamente necessária.

12

Resulta de jurisprudência constante que o Tribunal Geral não pode dirigir uma injunção às instituições nem substituí‑las no âmbito do controlo da legalidade ao abrigo do artigo 263.o TFUE. Essa limitação da fiscalização da legalidade aplica‑se em todos os domínios contenciosos de que o Tribunal Geral pode conhecer (v., neste sentido, acórdão de 12 de julho de 2001, Mattila/Conselho e Comissão, T‑204/99, Colet., EU:T:2001:190, n.o 26, confirmado em sede de recurso no acórdão de 22 de janeiro de 2004, Mattila/Conselho e Comissão, C‑353/01 P, Colet., EU:C:2004:42, n.o 15, e acórdão de 8 de outubro de 2008, Agrar‑Invest‑Tatschl/Comissão, T‑51/07, Colet., EU:T:2008:420, n.os 27 e 28) e, portanto, também no domínio da iniciativa de cidadania europeia.

13

Por conseguinte, o recorrente não pode pedir ao Tribunal Geral que dirija uma injunção à Comissão para que esta registe a proposta de ICE e ordene outras medidas.

Quanto ao mérito

Observações preliminares

14

A proposta de ICE tem por objeto a consagração, na legislação da União, de um princípio do estado de necessidade que justifique que um Estado se recuse a honrar o reembolso da sua dívida pública, quando, em razão desse pagamento, a sua existência financeira e política estiver ameaçada.

15

Resulta do artigo 5.o, n.o 2, TUE e do artigo 13.o, n.o 2, TUE que, em virtude do princípio da atribuição, a União atua unicamente dentro dos limites das competências que os Estados‑Membros lhe tiverem atribuído nos Tratados para alcançar os objetivos fixados por estes últimos e que cada instituição atua dentro dos limites das atribuições que lhe são conferidas pelos Tratados, de acordo com os procedimentos, condições e finalidades que estes estabelecem.

16

O artigo 11.o, n.o 4, TUE prevê que os cidadãos da União, sob certas condições, podem tomar a iniciativa de convidar a Comissão a, no âmbito das suas atribuições, apresentar uma proposta adequada em matérias sobre as quais esses cidadãos considerem necessário um ato jurídico da União para aplicar os Tratados.

17

Em conformidade com o artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 211/2011, a Comissão recusa o registo da proposta de iniciativa de cidadania se a mesma estiver «manifestamente fora da competência da Comissão para apresentar uma proposta de ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados».

18

Segundo a decisão impugnada, a proposta de ICE está manifestamente fora da referida competência da Comissão. Por conseguinte, em aplicação do artigo 4.o, n.o 2, alínea b), e n.o 3, do Regulamento n.o 211/2011, a Comissão recusou o registo da proposta de ICE.

19

No presente recurso, o Tribunal Geral é convidado a verificar se, como sustenta o recorrente, a Comissão podia validamente recusar o registo da proposta de ICE, com fundamento no artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 211/2011.

20

Além disso, dada a fundamentação sucinta da decisão impugnada, o Tribunal Geral decidiu começar por verificar se a mesma respeita o dever de fundamentação.

Quanto à fundamentação da decisão impugnada

21

Importa recordar que a falta ou a insuficiência de fundamentação consubstancia uma violação de formalidades essenciais, no sentido do artigo 263.o TFUE, e constitui um fundamento de ordem pública que pode, ou deve mesmo, ser conhecido oficiosamente pelo juiz da União.

22

Segundo jurisprudência constante, o dever de fundamentar uma decisão individual, previsto no artigo 296.o TFUE, tem por finalidade fornecer ao interessado uma indicação suficiente para determinar se a decisão está bem fundamentada ou se, eventualmente, enferma de um vício que permita contestar a sua validade e permitir ao juiz da União fiscalizar a legalidade da decisão objeto de fiscalização (acórdãos de 18 de setembro de 1995, Tiercé Ladbroke/Comissão, T‑471/93, Colet., EU:T:1995:167, n.o 29, e de 27 de setembro de 2012, J/Parlamento, T‑160/10, Colet., EU:T:2012:503, n.o 20).

23

O artigo 4.o, n.o 3, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 211/2011, nos termos do qual a Comissão informa os organizadores dos fundamentos da recusa, é a expressão específica do referido dever de fundamentação no domínio da iniciativa de cidadania europeia.

24

Segundo jurisprudência igualmente constante, a fundamentação exigida pelo artigo 296.o TFUE deve ser adaptada à natureza do ato em causa. A exigência de fundamentação deve ser apreciada em função das circunstâncias do caso em apreço, designadamente do conteúdo do ato e da natureza dos fundamentos invocados. Não se exige que a fundamentação especifique todos os elementos de facto e de direito pertinentes, na medida em que a questão de saber se a fundamentação de um ato preenche os requisitos do artigo 296.o TFUE deve ser apreciada à luz não somente do seu teor mas também do seu contexto (despacho de 14 de novembro de 2013, J/Parlamento, C‑550/12 P, EU:C:2013:760, n.o 19).

25

A este respeito, importa observar que, no caso vertente, o facto de a proposta de ICE não ter sido registada é suscetível de afetar a própria efetividade do direito dos cidadãos de apresentarem uma iniciativa de cidadania, consagrado no artigo 24.o, primeiro parágrafo, TFUE. Por conseguinte, esta decisão deve indicar claramente os fundamentos que justificam a referida recusa.

26

Com efeito, o cidadão que apresentou uma proposta de iniciativa de cidadania deve poder compreender as razões por que a mesma não foi registada pela Comissão. Caso lhe seja apresentada uma proposta de iniciativa de cidadania, compete à Comissão não só apreciá‑la mas também fundamentar a sua decisão de recusa, atendendo à sua influência no exercício efetivo do direito consagrado pelo Tratado. Tal decorre da própria natureza deste direito, que, como referido no considerando 1 do Regulamento n.o 211/2011, deve reforçar a cidadania europeia e melhorar o funcionamento democrático da União através da participação dos cidadãos na vida democrática da União (v., por analogia, acórdão J/Parlamento, n.o 22, supra, EU:T:2012:503, n.o 22).

27

Segundo a decisão impugnada, o objeto da proposta de ICE, concretamente, a inserção de um princípio do estado de necessidade na legislação da União, como concebido pelo recorrente, está manifestamente fora da competência da Comissão para apresentar uma proposta de ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados. Nos termos da decisão impugnada, «na sequência de uma análise pormenorizada das disposições do Tratado referidas na proposta (artigos 119.° [TFUE] a 144.° TFUE) e de todas as demais bases jurídicas possíveis, a Comissão recusa o registo desta proposta de iniciativa de cidadania, pelo facto de a mesma estar manifestamente fora da competência da Comissão para apresentar uma proposta de adoção de um ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados». Na decisão impugnada, a Comissão precisa que «[o] artigo 136.o, n.o 1, TFUE, em particular, só pode servir de base legal se as medidas tiverem por objeto reforçar a disciplina orçamental dos Estados‑Membros, se se limitarem a essa mesma disciplina e se se destinarem a assegurar o bom funcionamento da União económica e monetária». Acrescenta que, «[d]e qualquer modo, o artigo 136.o, n.o 1, TFUE não habilita a União [...] a substituir‑se aos Estados‑Membros no exercício da sua soberania orçamental e das funções relacionadas com as receitas e as despesas do Estado».

28

É pacífico que a Comissão fundamentou a recusa de registo da proposta de ICE no não preenchimento da condição prevista no artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 211/2011. Além disso, a Comissão indicou claramente que nem as disposições relativas à política económica e monetária referidas pelo recorrente, concretamente os artigos 119.° TFUE a 144.° TFUE, nem qualquer outra base jurídica habilitam esta instituição a apresentar ao Conselho da União Europeia uma proposta de ato que permita atingir o objetivo pretendido na proposta de ICE. A este respeito, a decisão impugnada refere em particular o artigo 136.o, n.o 1, TFUE, expondo as razões por que a Comissão considera que a referida proposta não pode ter essa base jurídica.

29

Na decisão impugnada, a Comissão apresentou os fundamentos que, de acordo com essa instituição, justificam a recusa de registo da proposta de ICE.

30

Acresce que, como anteriormente observado, o alcance do dever de fundamentação depende da natureza do ato em causa e do contexto em que foi adotado. Ora, no caso vertente, a proposta de ICE era pouco clara e precisa no que respeita ao alegado fundamento jurídico da competência da Comissão para apresentar uma proposta de ato jurídico da União para efeitos de aplicação dos Tratados.

31

Com efeito, como acertadamente observou a Comissão em resposta a uma questão colocada pelo Tribunal Geral, a proposta de ICE não continha nenhuma argumentação relativa ao nexo entre os 26 artigos do Tratado FUE relativos à política económica e monetária da União, para os quais a proposta remetia em bloco, e o conteúdo da referida proposta. Só na petição inicial é que o recorrente fez referência aos artigos 122.° TFUE e 136.° TFUE como fundamentos específicos da competência da Comissão para efeitos da apresentação de um ato jurídico da União como o pretendido na proposta de ICE. Não se pode, pois, criticar a Comissão por, na decisão impugnada, não ter analisado em pormenor as diferentes disposições do Tratado FUE invocadas em bloco na proposta de ICE e por se ter limitado a constatar a irrelevância das referidas disposições, não deixando de se debruçar sobre aquela que, de todas, lhe parecia a menos irrelevante, enunciando, além do mais, as razões por que esta disposição não podia servir de base jurídica.

32

Nestas circunstâncias, tendo em conta o seu contexto, a decisão impugnada contém elementos suficientes que permitem ao recorrente conhecer as razões da recusa de registo da proposta de ICE e ao juiz da União exercer a sua fiscalização.

33

Na medida em que, neste contexto, o recorrente observa que a fundamentação da decisão impugnada é, de qualquer modo, errada, importa recordar que o dever de fundamentar uma decisão constitui uma formalidade essencial que deve ser distinguida da questão da procedência da fundamentação, a qual faz parte da legalidade substancial do ato controvertido (v. acórdão de 10 de julho de 2008, Bertelsmann e Sony Corporation of America/Impala, C‑413/06 P, Colet., EU:C:2008:392, n.os 166 e 181 e jurisprudência referida).

34

Por conseguinte, importa concluir que, ao adotar a decisão impugnada, a Comissão respeitou o dever de fundamentação.

Quanto ao fundamento relativo à violação do artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 211/2011

35

O recorrente considera que a Comissão concluiu erradamente que a condição prevista no artigo 4.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 211/2011 não estava preenchida. Com efeito, a referida instituição chegou a esta conclusão em violação do artigo 122.o, n.os 1 e 2, TFUE e do artigo 136.o, n.o 1, alínea b), TFUE, bem como das regras do direito internacional.

– Quanto ao argumento baseado na violação do artigo 122.o, n.o 1, TFUE

36

O recorrente defende que a consagração do princípio do estado de necessidade, como ele o concebe, se insere efetivamente nas «medidas adequadas à situação económica» que o Conselho está habilitado a adotar, em conformidade com o artigo 122.o, n.o 1, TFUE. A referida medida contribuiria para a recuperação dos Estados‑Membros afetados pelo fardo excessivo da dívida e que estivessem numa situação de necessidade económica. De acordo com o recorrente, não se pode exigir o reembolso da dívida pública se isso levar a privar a população dos recursos necessários à satisfação das suas necessidades básicas.

37

O recorrente acrescenta que as disposições do artigo 122.o, n.o 1, TFUE visam todas as medidas adequadas à situação económica, que, contrariamente à tese defendida pela Comissão, não devem, portanto, dizer unicamente respeito às dificuldades que um Estado‑Membro pode ter no aprovisionamento de certos produtos energéticos.

38

De acordo com o recorrente, o artigo 122.o, n.o 1, TFUE visa consagrar uma solidariedade institucional que resulta do dever moral e legal de os Estados‑Membros se apoiarem mutuamente e se entreajudarem. A referida solidariedade deve ser posta em prática em todos os casos em que um Estado‑Membro se veja confrontado com dificuldades, nomeadamente de natureza económica, que possam afetar a sua existência e o seu funcionamento.

39

A Comissão contesta a argumentação do recorrente.

40

O artigo 122.o, n.o 1, TFUE prevê que o Conselho, sob proposta da Comissão, pode decidir, num espírito de solidariedade entre os Estados‑Membros, das medidas adequadas à situação económica, nomeadamente em caso de dificuldades graves no aprovisionamento de certos produtos, designadamente no domínio da energia.

41

Importa, desde já, observar que, no seu acórdão de 27 de novembro de 2012, Pringle (C‑370/12, Colet., EU:C:2012:756, n.os 115 e 116), o Tribunal de Justiça decidiu que o artigo 122.o, n.o 1, TFUE não constitui uma base jurídica adequada para uma eventual assistência financeira da União através da criação de um mecanismo de financiamento aos Estados‑Membros que tenham ou corram o risco de vir a ter graves problemas de financiamento.

42

Por outro lado, embora seja verdade que, como afirma o recorrente, não resulta do teor desta disposição que a mesma se limita necessariamente à adoção de medidas pelo Conselho unicamente em caso de dificuldades graves no aprovisionamento de certos produtos, designadamente no domínio da energia, o espírito de solidariedade entre os Estados‑Membros, que deve presidir à adoção, pelo Conselho, das medidas adequadas à situação económica, na aceção do artigo 122.o, n.o 1, TFUE, indica que estas medidas se baseiam na assistência entre os Estados‑Membros.

43

Assim sendo, a referida disposição não pode, em caso algum, constituir uma base jurídica adequada para adotar, na legislação da União, um princípio do estado de necessidade, como concebido pelo recorrente, segundo o qual um Estado‑Membro está habilitado a decidir unilateralmente não reembolsar a totalidade ou parte da sua dívida, por se ver confrontado com graves problemas de financiamento.

44

Por estes motivos, o primeiro argumento deve ser julgado improcedente.

– Quanto ao argumento baseado na violação do artigo 122.o, n.o 2, TFUE

45

O recorrente defende que a supressão ou a suspensão, em nome do princípio do estado de necessidade, da dívida dos Estados‑Membros que se encontrem numa situação de emergência económica devido a circunstâncias que escapam ao seu controlo, pode ser qualificada de assistência financeira na aceção do artigo 122.o, n.o 2, TFUE. Com efeito, segundo o recorrente, resulta do teor desta disposição que esta assistência financeira pode ser prestada quer durante um período determinado quer, de maneira mais geral, sob a forma de uma faculdade de beneficiar de uma ajuda, pelo que tal assistência não se limita à adoção de medidas ad hoc, como erradamente defende a Comissão. Por último, a referida disposição não impõe que essa assistência seja necessariamente financiada pelo orçamento da União.

46

A Comissão contesta a argumentação do recorrente.

47

Em conformidade com o artigo 122.o, n.o 2, TFUE, sempre que um Estado‑Membro se encontre em dificuldades ou sob grave ameaça de dificuldades devidas a calamidades naturais ou ocorrências excecionais que não possa controlar, o Conselho, sob proposta da Comissão, pode, sob certas condições, conceder ajuda financeira da União ao Estado‑Membro em questão.

48

Já foi decidido que esta disposição permite que a União conceda, sob determinadas condições, assistência financeira pontual a um Estado‑Membro. A mesma não pode, em contrapartida, justificar a criação legislativa de um mecanismo de cancelamento da dívida, como pretende o recorrente, quanto mais não seja em razão do caráter geral e permanente desse mecanismo (v., neste sentido, acórdão Pringle, n.o 41, supra, EU:C:2012:756, n.os 65, 104 e 131).

49

Por outro lado, o Tribunal de Justiça já decidiu que o artigo 122.o TFUE tem unicamente por objeto uma ajuda financeira concedida pela União e não pelos Estados‑Membros (acórdão Pringle, n.o 41, supra, EU:C:2012:756, n.o 118). Ora, a adoção do princípio do estado de necessidade, como concebido pelo recorrente, pressupondo que, como este defende, tal princípio possa estar abrangido pelo conceito de assistência financeira na aceção da dita disposição, não pode ser abrangida pelas medidas de assistência concedidas pela União em aplicação da disposição acima referida, na medida em que, nomeadamente, a adoção desse princípio não visa unicamente a dívida de um Estado‑Membro à União, mas também as dívidas contraídas pelo referido Estado junto de outras pessoas singulares ou coletivas, públicas ou privadas, quando esta situação não está manifestamente abrangida pela disposição em causa.

50

Daqui decorre que a adoção do princípio do estado de necessidade, segundo o qual um Estado‑Membro está autorizado a não reembolsar a totalidade ou parte da sua dívida, não é manifestamente abrangida pelas medidas de assistência financeira que o Conselho está habilitado a tomar com fundamento no artigo 122.o, n.o 2, TFUE.

51

Por conseguinte, o segundo argumento também é improcedente.

– Quanto ao argumento baseado na violação do artigo 136.o, n.o 1, alínea b), TFUE

52

O recorrente sustenta que a Comissão afirma erradamente que o artigo 136.o, n.o 1, TFUE, por um lado, só pode servir de base legal se as medidas disserem respeito ao reforço da «disciplina orçamental» e, por outro, não pode habilitar a União a substituir‑se aos Estados‑Membros no exercício da sua soberania orçamental e das funções relacionadas com as receitas e as despesas do Estado.

53

Segundo o recorrente, o princípio do estado de necessidade é efetivamente abrangido pelas orientações de política económica, na aceção do artigo 136.o, n.o 1, alínea b), TFUE, na medida em que esse princípio contribui para a coordenação e a harmonização das políticas económicas dos Estados‑Membros para com os Estados que se encontrem em estado de necessidade e prossegue, assim, objetivos compatíveis com os valores da União, concretamente, o bem‑estar dos povos, a liberdade, a segurança e a justiça, a coesão económica e a solidariedade entre os Estados‑Membros.

54

As medidas que, ao abrigo da disposição acima referida, o Conselho está habilitado a adotar em conformidade com o procedimento previsto nos artigos 122.° TFUE a 126.° TFUE, no que respeita aos Estados‑Membros da zona euro, não se podem limitar apenas às medidas que visam reforçar a disciplina orçamental. Também não pode ser deduzida qualquer limitação na aplicação das referidas medidas de uma alegada violação da «soberania orçamental» dos Estados‑Membros, limitação essa que estaria em contradição direta com a faculdade de adotar medidas de disciplina orçamental e que seria, além disso, contrária à cláusula de solidariedade enunciada no artigo 222.o TFUE, que prevê nomeadamente uma ação conjunta dos Estados‑Membros em caso de catástrofe de origem humana, como é o caso na Grécia.

55

A Comissão contesta a argumentação do recorrente.

56

O artigo 136.o, n.o 1, TFUE dispõe que, «[a] fim de contribuir para o bom funcionamento da união económica e monetária» e de acordo com as disposições pertinentes dos Tratados, o Conselho, de acordo com o procedimento pertinente de entre os previstos nos artigos 121.° TFUE e 126.° TFUE, com exceção do procedimento referido no n.o 14 do artigo 126.o TFUE, adota medidas específicas para os Estados‑Membros cuja moeda seja o euro, com o objetivo de «[r]eforçar a coordenação e a supervisão da respetiva disciplina orçamental» [artigo 136.o, n.o 1, alínea a), TFUE] e «[e]laborar, no que lhes diz respeito, as orientações de política económica, procurando assegurar a compatibilidade dessas orientações com as adotadas para toda a União, e garantir a sua supervisão» [artigo 136.o, n.o 1, alínea b), TFUE].

57

Ora, nada permite concluir, nem o recorrente de forma alguma demonstrou, que a adoção do princípio do estado de necessidade, que autoriza o Estado‑Membro a decidir unilateralmente anular a dívida pública, tem por objetivo reforçar a coordenação da disciplina orçamental ou que está abrangida pelas orientações de política económica que o Conselho está habilitado a elaborar para o bom funcionamento da união económica e monetária.

58

Como observou o Tribunal de Justiça no acórdão Pringle, n.o 41, supra (EU:C:2012:756, n.os 51 e 64), o papel da União no domínio da política económica está circunscrito à adoção de medidas de coordenação. Ora, a adoção de um ato legislativo que autoriza o não reembolso da dívida por um Estado‑Membro, longe de estar abrangida pelo conceito de orientação de política económica na aceção do artigo 136.o, n.o 1, alínea b), TFUE, disposição em que assenta o presente argumento, tem, na realidade, por efeito substituir a livre vontade das partes contratantes por um mecanismo legislativo de extinção unilateral da dívida pública, o que, manifestamente, esta disposição não permite fazer.

59

Daqui decorre que a Comissão concluiu acertadamente que a proposta de consagração do princípio do estado de necessidade, como concebido pelo recorrente, não é manifestamente abrangida pelo disposto no artigo 136.o, n.o 1, TFUE.

60

Contrariamente ao que o recorrente alega neste contexto, a recusa em integrar esse princípio nos textos da União também não é contrária à cláusula de solidariedade definida no artigo 222.o TFUE, nos termos do qual «[a] União e os seus Estados‑Membros atuarão em conjunto, num espírito de solidariedade, se um Estado‑Membro for alvo de um ataque terrorista ou vítima de uma catástrofe natural ou de origem humana», quanto mais não seja porque é manifesto que esta cláusula de solidariedade não visa a política económica e monetária nem a situação económica ou as dificuldades orçamentais dos Estados‑Membros.

61

Por conseguinte, este argumento também é improcedente.

– Quanto ao argumento relativo à violação das regras do direito internacional

62

O recorrente sustenta que o princípio do estado de necessidade foi reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Permanente de Justiça Internacional como regra de direito internacional que justifica a cessação dos pagamentos relativos ao reembolso da dívida, ou mesmo a extinção unilateral de uma parte da dívida, nomeadamente por razões de ordem económica e de segurança interna e externa do Estado. A Comissão, segundo o recorrente, não pode recusar a inclusão desta regra na ordem jurídica da União.

63

Por outro lado, no seu despacho de 19 de setembro de 2012, Grécia/Comissão (T‑52/12 R, Colet., EU:T:2012:447, n.o 54), o Tribunal Geral reconheceu a existência desse princípio no contexto particular da República Helénica, ao declarar que, devido a circunstâncias excecionais relativas à situação económica deste Estado‑Membro, importava dar mais prioridade aos interesses do Estado e da população do que à recuperação de auxílios que, segundo a Comissão, tinham sido ilegalmente concedidos.

64

A Comissão contesta a argumentação do recorrente.

65

Mesmo supondo que haja uma regra de direito internacional que consagre um princípio do estado de necessidade, nos termos do qual um Estado‑Membro está autorizado a não reembolsar a dívida pública em situações excecionais, a mera existência de tal princípio de direito internacional não basta, seja como for, para servir de base a uma iniciativa legislativa da Comissão, uma vez que dos Tratados não consta nenhuma atribuição de competência para esse efeito, como, aliás, resulta da análise das diferentes disposições do Tratado invocadas pelo recorrente no âmbito do presente recurso.

66

Assim sendo, o quarto argumento também improcede, devendo o presente fundamento ser julgado improcedente na totalidade.

67

Face ao acima exposto, há que negar provimento ao recurso na íntegra.

Quanto às despesas

68

O artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral prevê que a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

69

Excecionalmente, nos termos do artigo 135.o, n.o 1, quando a equidade o exigir, o Tribunal pode decidir que uma parte vencida suporte, além das suas próprias despesas, apenas uma fração das despesas da outra parte, ou mesmo que não deve ser condenada a este título.

70

Tendo a Comissão pedido que o recorrente suporte as despesas e tendo este sido vencido, importa condená‑lo nas despesas. Com efeito, apesar de o recorrente ter alegado a existência de motivos excecionais que o impedem de suportar as despesas do processo, basta observar que, de qualquer modo, esta alegação não é corroborada por nenhum elemento de prova concreto.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Primeira Secção)

decide:

 

1)

É negado provimento ao recurso.

 

2)

A. Anagnostakis é condenado nas despesas.

 

Kanninen

Pelikánová

Buttigieg

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 30 de setembro de 2015.

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: grego.