ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

13 de março de 2014 ( *1 )

«Espaço de liberdade, de segurança e de justiça — Competência judiciária em matéria civil e comercial — Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Competências especiais — Artigo 5.o, n.os 1 e 3 — Ação de responsabilidade civil — Natureza contratual ou natureza extracontratual»

No processo C‑548/12,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landgericht Krefeld (Alemanha), por decisão de 27 de setembro de 2012, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 30 de novembro de 2012, no processo

Marc Brogsitter

contra

Fabrication de Montres Normandes EURL,

Karsten Fräßdorf,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: J. L. da Cruz Vilaça, presidente de secção, J.‑C. Bonichot (relator), e A. Arabadjiev, juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: A. Impellizzeri, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 28 de novembro de 2013,

vistas as observações apresentadas:

em representação de M. Brogsitter, Rechtsanwalt, pelo próprio,

em representação da Fabrication de Montres Normandes EURL e de K. Fräβdorf, por A. Mansouri, Rechtsanwalt,

em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes e S. Nunes de Almeida, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por W. Bogensberger e A.‑M. Rouchaud‑Joët, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 5.o, ponto 1, do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe M. Brogsitter, com domicílio em Kempen (Alemanha), à Fabrication de Montres Normandes EURL (a seguir, «Fabrication de Montres Normandes»), sociedade estabelecida em Brionne (França), e a K. Fräβdorf, com domicílio em Neuchâtel (Suíça), a propósito de ações intentadas por M. Brogsitter para diversos fins, pelo facto de ter sofrido danos devido a um comportamento considerado constitutivo de uma concorrência desleal.

Quadro jurídico

3

O artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 prevê:

«O presente regulamento aplica‑se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.»

4

O artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 prevê:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.»

5

O artigo 5.o do Regulamento n.o 44/2001 prevê:

«Uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada noutro Estado‑Membro:

1)

a)

Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b)

Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

no caso da venda de bens, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

c)

Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a);

[…]

3)

Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso;

[…]»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

6

Resulta da decisão de reenvio que M. Brogsitter comercializa relógios de luxo. Em 2005, celebrou um contrato com um mestre relojoeiro, K. Fräβdorf, residente em França na altura, por força do qual este último se comprometeu a desenvolver mecanismos de relojoaria para relógios de luxo, destinados a serem comercializados em série, por conta de M. Brogsitter. K. Fräβdorf exerceu a sua atividade ao serviço da Fabrication de Montres Normandes, sociedade de que era o único sócio e o gerente. Desde 2010, K. Fräβdorf tem domicílio na Suíça.

7

M. Brogsitter pagou todas as despesas financeiras relativas à criação dos dois mecanismos de relojoaria, objeto desse contrato.

8

Além dos trabalhos relativos a esses dois mecanismos, K. Fräβdorf e a Fabrication de Montres Normandes criaram igualmente, em paralelo, outros mecanismos de relojoaria bem como caixas e mostradores, que apresentaram por sua conta na Feira mundial de relojoaria de Basileia (Suíça) durante os meses de abril e maio do ano de 2009. Comercializaram‑nos em seu nome e por sua conta, assegurando a publicidade desses produtos num sítio Internet em línguas alemã e francesa.

9

M. Brogsitter alega que, com estas últimas atividades, as demandadas violaram os seus compromissos contratuais. Segundo este, K. Fräβdorf e a Fabrication de Montres Normandes tinham‑se comprometido a trabalhar exclusivamente por conta dele e, por conseguinte, não podiam desenvolver nem explorar, em seu nome e por sua conta, mecanismos de relojoaria, independentemente de estes serem ou não idênticos aos que eram objeto do contrato.

10

M. Brogsitter pede a cessação das atividades controvertidas e a indemnização a título de responsabilidade extracontratual dos seus cocontratantes, com base, no âmbito da legislação alemã, na Lei alemã contra a concorrência desleal (Gesetz gegen den unlauteren Wettbewerb) e no § 823, n.o 2, do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), invocando que, com o seu comportamento, as demandadas violaram o segredo comercial, ingeriram na sua atividade empresarial e cometeram uma fraude e um abuso de confiança.

11

As demandadas pediram que fosse negado provimento ao recurso. Apresentaram também um pedido reconvencional no âmbito do qual alegaram que os mecanismos de calibre controvertidos apresentam, de qualquer modo, uma construção diferente da que foi objeto do contrato e que não eram abrangidos por um direito de exclusividade. As demandadas salientam igualmente uma exceção de incompetência relativa ao facto de só os órgãos jurisdicionais franceses serem territorialmente competentes, ao abrigo do artigo 5.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001, para conhecer de todos os pedidos apresentados por M. Brogsitter, uma vez que tanto o lugar de cumprimento da prestação, que é objeto do contrato controvertido, como o lugar do facto gerador do alegado dano estão situados em França.

12

A Fabrication de Montres Normandes entrou, no decurso da instância, em liquidação judicial. O administrador, nomeado em França, autorizou os mandatários judiciais das demandadas a prosseguir o processo.

13

Resulta igualmente da decisão de reenvio que o Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Düsseldorf) já se tinha pronunciado em recurso, num acórdão de 5 de outubro de 2011, quanto a um primeiro acórdão do Landgericht Krefeld, que se tinha declarado territorialmente incompetente. O Oberlandesgericht Düsseldorf considerou que o órgão jurisdicional de primeira instância baseava a sua competência internacional, no que diz respeito ao litígio nele pendente, no artigo 5.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001, para conhecer apenas dos pedidos em matéria de responsabilidade civil de natureza extracontratual apresentados por M. Brogsitter. Em contrapartida, os outros pedidos estão abrangidos pela «matéria contratual», na aceção do artigo 5.o, ponto 1, desse regulamento, e devem ser apresentados num órgão jurisdicional francês.

14

No entanto, o Landgericht Krefeld interroga‑se, tendo em conta as circunstâncias do caso em apreço, nomeadamente, a existência de um contrato entre as partes no litígio, se as ações de responsabilidade civil que lhe são submetidas não deveriam ser também consideradas abrangidas pela «matéria contratual», na aceção do artigo 5.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001, estando antes abrangidas pela competência de um órgão jurisdicional francês.

15

Neste contexto, o Landgericht Krefeld decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 ser interpretado no sentido de que um demandante que alega ter sido lesado por um ato [constitutivo de concorrência desleal] que, nos termos do direito alemão, deve ser considerado um ilícito praticado pelo seu cocontratante estabelecido noutro Estado‑Membro, pode também invocar contra o referido cocontratante direitos relacionados com um contrato, quando baseia a sua ação em atos ilícitos?»

Quanto à questão prejudicial

16

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se as ações de responsabilidade civil, como as que estão em causa no processo principal, de natureza extracontratual em direito nacional, devem, no entanto, ser consideradas abrangidas pela «matéria contratual», na aceção do artigo 5.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 44/2001, tendo em conta o contrato que vincula as partes no processo principal.

17

A título preliminar, há que julgar improcedente a exceção de inadmissibilidade suscitada por M. Brogsitter, segundo a qual essa questão é desprovida de pertinência, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio deve, de qualquer modo, ser considerado competente em razão do território, por força do artigo 5.o, ponto 1, alínea b), do Regulamento n.o 44/2001, que visa os contratos de venda de bens, ou do artigo 5.o, ponto 3, desse regulamento. Com efeito, essa argumentação refere‑se apenas à interpretação que deve ser dada às disposições do direito da União em causa no processo principal e, por conseguinte, não constitui uma causa de inadmissibilidade da questão submetida a título prejudicial.

18

Em seguida, há que recordar que resulta de jurisprudência constante que os termos «matéria contratual» e «matéria extracontratual», na aceção, respetivamente, do ponto 1, alínea a), e do ponto 3 do artigo 5.o do Regulamento n.o 44/2001, devem ser interpretados de forma autónoma, tomando por referência, principalmente, o sistema e os objetivos deste regulamento, para assegurar a sua aplicação uniforme em todos os Estados‑Membros (v., nomeadamente, acórdão de 18 de julho de 2013, ÖFAB, C‑147/12, n.o 27). Por conseguinte, não podem ser entendidos como remetendo para a qualificação que a lei nacional aplicável efetua da relação jurídica em causa no órgão jurisdicional nacional.

19

Por outro lado, na medida em que o Regulamento n.o 44/2001 substitui, nas relações entre os Estados‑Membros, a Convenção de 27 de setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1989, L 285, p. 24), conforme alterada pelas sucessivas Convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a essa Convenção (a seguir «Convenção de Bruxelas»), a interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça no que respeita às disposições da Convenção de Bruxelas é igualmente válida para as desse regulamento, quando as disposições desses instrumentos possam ser qualificadas de equivalentes (acórdão ÖFAB, já referido, n.o 28). É o que acontece com o ponto 1, alínea a), e ponto 3 do artigo 5.o desse regulamento em relação, respetivamente, aos pontos 1 e 3 do artigo 5.o da Convenção de Bruxelas (v., neste sentido, acórdão ÖFAB, já referido, n.o 29).

20

A este respeito, resulta de jurisprudência constante que a «matéria extracontratual», na aceção do artigo 5.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001, abrange qualquer pedido que tenha em vista pôr em causa a responsabilidade de um demandado e que não esteja relacionada com a «matéria contratual», na aceção do artigo 5.o, ponto 1, alínea a), desse regulamento (v., neste sentido, nomeadamente, acórdão de 27 de setembro de 1988, Kalfelis, 189/87, Colet., p. 5565, n.o 17).

21

A fim de determinar a natureza dos pedidos em matéria de responsabilidade civil apresentados no órgão jurisdicional de reenvio, há que verificar, por conseguinte, em primeiro lugar, se estas revestem, independentemente da sua qualificação no direito nacional, natureza contratual (v., neste sentido, acórdão de 1 de outubro de 2002, Henkel, C-167/00, Colet., p. I-8111, n.o 37).

22

Resulta da decisão de reenvio que as partes em causa no processo principal estão vinculadas por um contrato.

23

No entanto, a simples circunstância de uma das partes contratantes intentar uma ação de responsabilidade civil contra a outra não basta para considerar que essa ação está abrangida pela «matéria contratual» na aceção do artigo 5.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 44/2001.

24

Tal apenas acontece se o comportamento censurado puder ser considerado um incumprimento das obrigações contratuais, tal como podem ser determinadas tendo em conta o objeto do contrato.

25

É o caso, a priori, se a interpretação do contrato que vincula o demandado ao demandante for indispensável para estabelecer o caráter lícito ou, pelo contrário, o caráter ilícito do comportamento censurado ao primeiro pelo segundo.

26

Por conseguinte, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se as ações intentadas pelo demandante no processo principal têm por objeto um pedido de reparação cuja causa possa ser razoavelmente considerada uma violação dos direitos e das obrigações do contrato que vincula as partes no processo principal, o que se torna indispensável para decidir do recurso.

27

Se for esse o caso, essas ações relacionam‑se com a «matéria contratual», na aceção do artigo 5.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 44/2001. Se não for, devem ser consideradas abrangidas pela «matéria extracontratual», na aceção do artigo 5.o, ponto 3, do Regulamento n.o 44/2001.

28

Há que salientar também que, na primeira hipótese, a competência territorial em matéria contratual deverá ser determinada em conformidade com os critérios de conexão definidos pelo artigo 5.o, ponto 1, alínea b), do Regulamento n.o 44/2001 se o contrato em causa no processo principal constituir um contrato de venda de bens ou de prestação de serviços na aceção dessa disposição. Com efeito, como o prevê o artigo 5.o, ponto 1, alínea c), do Regulamento n.o 44/2001, só no caso de um contrato não poder ser incluído em nenhumas dessas duas categorias é que a competência judiciária deve ser determinada em conformidade com os critérios de conexão previstos no artigo 5.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 44/2001 (v., neste sentido, acórdãos de 23 de abril de 2009, Falco Privatstiftung e Rabitsch, C-533/07, Colet., p. I-3327, n.o 40, e de 19 de dezembro de 2013, Corman‑Collins, C‑9/12, n.o 42).

29

Por conseguinte, há que responder à questão submetida que as ações de responsabilidade civil, como as que estão em causa no processo principal, de natureza extracontratual nos termos do direito nacional, devem, no entanto, ser consideradas abrangidas pela «matéria contratual», na aceção do artigo 5.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento n.o 44/2001, se o comportamento censurado puder ser considerado um incumprimento das obrigações contratuais, tal como podem ser determinadas tendo em conta o objeto do contrato.

Quanto às despesas

30

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

 

As ações de responsabilidade civil, como as que estão em causa no processo principal, de natureza extracontratual nos termos do direito nacional, devem, no entanto, ser consideradas abrangidas pela «matéria contratual», na aceção do artigo 5.o, ponto 1, alínea a), do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, se o comportamento censurado puder ser considerado um incumprimento das obrigações contratuais, tal como podem ser determinadas tendo em conta o objeto do contrato.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.