ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

22 de novembro de 2012 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Dispositivos médicos — Diretiva 93/42/CEE — Âmbito de aplicação — Interpretação do conceito de ‘dispositivo médico’ — Produto comercializado para uma utilização não médica — Estudo de um processo fisiológico — Livre circulação de mercadorias»

No processo C-219/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentado pelo Bundesgerichtshof (Alemanha), por decisão de 7 de abril de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 11 de maio de 2011, no processo

Brain Products GmbH

contra

BioSemi VOF,

Antonius Pieter Kuiper,

Robert Jan Gerard Honsbeek,

Alexandre Coenraad Metting van Rijn,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, exercendo funções de presidente da Terceira Secção, E. Juhász (relator), G. Arestis, J. Malenovský e T. von Danwitz, juízes,

advogado-geral: P. Mengozzi,

secretário: A. Impellizzeri, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 15 de março de 2012,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Brain Products GmbH, por B. Ackermann e F. Bernreuther, Rechtsanwälte,

em representação da BioSemi VOF, de A. P. Kuiper, de R. J. G. Honsbeek e de A. C. Metting van Rijn, por D. Wieddekind, P. Baukelmann e H. Büttner, Rechtsanwälte,

em representação da Comissão Europeia, por A. Sipos e G. Wilms, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 15 de maio de 2012,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), terceiro travessão, da Diretiva 93/42/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa aos dispositivos médicos (JO L 169, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 2007/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007 (JO L 247, p. 21, a seguir «Diretiva 93/42»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Brain Products GmbH (a seguir «Brain Products») à BioSemi VOF, a A. P. Kuiper, a R. J. G. Honsbeek e a A. C. Metting van Rijn (a seguir «BioSemi e o.»), a respeito da aplicação da Diretiva 93/42 a um produto, cuja utilização não médica foi definida pelo respetivo fabricante, para fins de estudo de um processo fisiológico.

Quadro jurídico

3

Os considerandos 2, 3, 5, 17 e 18 da Diretiva 93/42 estão redigidos como segue:

«Considerando que as disposições legislativas, regulamentares e administrativas em vigor nos Estados-Membros no tocante às características de segurança, de proteção da saúde e de nível de funcionamento dos dispositivos médicos variam no que respeita ao respetivo teor e âmbito; que os procedimentos de certificação e controlo desses dispositivos variam consoante os Estados-Membros; que as referidas disparidades constituem entraves às trocas comerciais comunitárias;

Considerando que devem se harmonizadas as disposições nacionais que garantem a segurança e a proteção da saúde dos doentes, utilizadores, e, se aplicável, de outras pessoas, no que respeita à utilização dos dispositivos médicos, por forma a assegurar a livre circulação dos referidos dispositivos no mercado interno;

[…]

Considerando que os dispositivos médicos devem proporcionar um elevado nível de proteção aos doentes, utilizadores e terceiros, bem como alcançar o nível de funcionamento que lhes é atribuído pelo fabricante; que, por conseguinte, um dos objetivos essenciais da presente diretiva é a conservação ou a melhoria do grau de proteção alcançado nos Estados-Membros;

[…]

Considerando que os dispositivos médicos devem, regra geral, ostentar a marcação CE comprovativa da respetiva conformidade com o disposto na presente diretiva, a qual permite a sua livre circulação na Comunidade e a sua entrada em serviço em conformidade com a respetiva finalidade;

Considerando que, na luta contra a SIDA, importa que, atendendo às conclusões do Conselho adotadas em 16 de maio de 1989 respeitantes às atividades futuras de prevenção e controlo da SIDA a nível comunitário […], os dispositivos médicos utilizados na prevenção da infeção pelo vírus HIV proporcionem um elevado grau de proteção; que a conceção e o fabrico dos referidos produtos devem ser verificados por um organismo notificado.»

4

O artigo 1.o da Diretiva 93/42, intitulado «Definições e âmbito de aplicação», prevê:

«1.   A presente diretiva aplica-se aos dispositivos médicos e respetivos acessórios. Para efeitos da presente diretiva, os acessórios serão tratados como dispositivos médicos. Os dispositivos médicos e seus acessórios são adiante designados por ‘dispositivos’.

2.   Para efeitos da presente diretiva, entende-se por:

a)

Dispositivo médico: qualquer instrumento, aparelho, equipamento, software, material ou outro artigo, utilizado isoladamente ou em combinação, incluindo o software destinado pelo seu fabricante a ser utilizado especificamente para fins de diagnóstico e/ou terapêuticos e que seja necessário para o bom funcionamento do dispositivo médico, destinado pelo fabricante a ser utilizado em seres humanos para efeitos de:

diagnóstico, prevenção, controlo, tratamento ou atenuação de uma doença,

diagnóstico, controlo, tratamento, atenuação ou compensação de uma lesão ou de uma deficiência,

estudo, substituição ou alteração da anatomia ou de um processo fisiológico,

controlo da conceção,

cujo principal efeito pretendido no corpo humano não seja alcançado por meios farmacológicos, imunológicos ou metabólicos, embora a sua função possa ser apoiada por esses meios;

[…]»

5

O considerando 6 da Diretiva 2007/47 está redigido como segue:

«É necessário esclarecer que o software, por si só, é um dispositivo médico quando especificamente destinado pelo fabricante a ser utilizado para uma ou várias finalidades médicas estabelecidas na definição de dispositivo médico. O software de uso geral, utilizado num contexto sanitário, não é um dispositivo médico.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

6

A BioSemi e o. comercializam sistemas e equipamentos eletrotécnicos, nomeadamente um sistema que permite registar a atividade cerebral denominado «ActiveTwo» (a seguir «ActiveTwo»). Segundo a Brain Products, sociedade de direito alemão, uma vez que o ActiveTwo constitui um dispositivo médico e que a BioSemi e o. não dispõem de uma certificação CE para esses dispositivos, essa comercialização deveria ser proibida.

7

Em contrapartida, a BioSemi e o. sustentam que, visto o ActiveTwo não se destinar a uma utilização médica, não pode ser qualificado de «dispositivo médico», na aceção da Diretiva 93/42. Por outro lado, o facto de esse sistema poder ser transformado em aparelho de diagnóstico não leva a que seja classificado como dispositivo médico. A BioSemi e o. sustentam que uma restrição à comercialização do ActiveTwo violaria o princípio da livre circulação de mercadorias, tanto mais que a autoridade sanitária neerlandesa competente considera que não há lugar à certificação desse sistema.

8

Os órgãos jurisdicionais alemães que decidiram do mérito consideraram que o ActiveTwo não podia ser qualificado de «dispositivo médico», na aceção da Diretiva 93/42. Segundo o tribunal de recurso, esse sistema preenche os critérios do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), terceiro travessão, da Diretiva 93/42, mas não o requisito implícito suplementar relacionado com o destino médico do sistema em causa, pelo que a BioSemi e o. não estão obrigados a submeter o ActiveTwo a investigações clínicas.

9

No quadro de um recurso de «Revision» interposto pela Brain Products no Bundesgerichtshof, este último entende que se pode considerar que a finalidade do dispositivo médico só é necessariamente de ordem médica nos casos visados no primeiro e segundo travessões do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42. Ao invés, não decorre do referido artigo que os dispositivos visados no terceiro e quarto travessões do mesmo tenham de ser concebidos para fins médicos para se incluírem no âmbito de aplicação da Diretiva 93/42. O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto ao facto de o fim médico constituir um requisito implícito do conceito de «dispositivo médico», na aceção desta diretiva.

10

Nestas condições, o Bundesgerichtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Um produto destinado pelo fabricante a ser utilizado em seres humanos para fins de investigação de um processo fisiológico só pode ser considerado um dispositivo médico, na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), terceiro travessão, da Diretiva 93/42[…], se [se destinar a] uma finalidade médica?»

Quanto à questão prejudicial

11

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), terceiro travessão, da Diretiva 93/42 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «dispositivo médico» abrange um objeto concebido pelo fabricante para ser utilizado em seres humanos para fins de estudo de um processo fisiológico, sem se destinar a uma finalidade médica.

12

No que diz respeito à letra do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), terceiro travessão, da Diretiva 93/42, há que referir que na expressão «estudo de um processo fisiológico» não figura o destino médico, contrariamente ao que acontece no primeiro e segundo travessões dessa disposição, onde, nomeadamente, os termos «doença», «lesão», «deficiência» e «tratamento» fazem referência a esse destino.

13

Não obstante, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, para interpretar uma disposição do direito da União, deve ter-se em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra (acórdãos de 3 de dezembro de 2009, Yaesu Europe, C-433/08, Colet., p. I-11487, n.o 24, e de 19 de julho de 2012, ebookers.com Deutschland, C-112/11, n.o 12).

14

Em primeiro lugar, no que toca ao contexto do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), terceiro travessão, da Diretiva 93/42, importa sublinhar que, conforme indica o seu título, esta diretiva diz respeito aos dispositivos «médicos».

15

Importa igualmente sublinhar que resulta do considerando 3 da referida diretiva que esta última foi adotada para harmonizar as disposições nacionais que garantem a segurança e a proteção da saúde dos doentes, utilizadores e, sendo caso disso, de outras pessoas no que respeita à utilização dos dispositivos médicos.

16

Em seguida, há que precisar que a letra do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42 foi alterada pelo artigo 2.o da Diretiva 2007/47, cujo considerando 6 sublinha que um software é, em si mesmo, um dispositivo médico quando especificamente destinado pelo fabricante a ser utilizado para uma ou várias finalidades médicas abrangidas pela definição de dispositivo médico. Aí se acrescenta que um software de uso geral, utilizado num contexto sanitário, não é um dispositivo médico.

17

Por conseguinte, em matéria de softwares, o legislador tornou inequívoco o facto de que, para que estes estejam abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 93/42, não basta serem utilizados num contexto médico, sendo ainda necessário que a finalidade a que se destinam, definida pelo fabricante, seja especificamente médica.

18

Embora a referida alteração apenas se tenha aplicado a um só tipo de produto, a saber, os softwares, esta precisão legislativa milita a favor de uma interpretação do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), terceiro travessão, da Diretiva 93/42 segundo a qual um aparelho utilizado nos seres humanos para fins de estudo de um processo fisiológico só pode estar abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 93/42 na condição de a finalidade a que se destina o aparelho, definida pelo seu fabricante, ser de natureza médica.

19

Acresce que nada nas Diretivas 93/42 e 2007/47 indica que o legislador tenha tido a intenção de reservar um âmbito de aplicação mais lato para os «dispositivos não softwares» do que para os «softwares».

20

Por último, cabe salientar que, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), quarto travessão, da Diretiva 93/42, os dispositivos destinados a serem utilizados em seres humanos para fins de controlo da conceção estão abrangidos pelo âmbito de aplicação desta mesma diretiva, independentemente da existência ou não de uma finalidade médica.

21

Decorre do considerando 18 da Diretiva 93/42 que é em razão de objetivos específicos relacionados com o combate à sida que o legislador da União decidiu incluir os dispositivos de contraceção no âmbito de aplicação desta diretiva, a fim de poder garantir a verificação eficaz da sua qualidade.

22

Embora, através deste considerando, o dito legislador tenha fornecido o motivo pelo qual a Diretiva 93/42 se devia aplicar ao caso particular dos dispositivos de controlo da conceção, em contrapartida não forneceu uma explicação semelhante relativamente aos dispositivos destinados ao estudo de um processo fisiológico que figuram no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), terceiro travessão, da Diretiva 93/42.

23

Pode considerar-se que o silêncio do legislador da União acerca deste ponto se explica pelo facto de a finalidade médica ser inerente aos dispositivos em causa.

24

Esta análise é corroborada por um documento de orientação da Comissão (Meddev 2.1/1), publicado em abril de 1994, que visa uma aplicação uniforme das disposições da Diretiva 93/42 no interior da União Europeia. Este documento contém uma secção I, intitulada «Âmbito de aplicação — Definições» e um capítulo 1, intitulado «Diretiva 93/42/CEE relativa aos dispositivos médicos». O artigo 1.o, n.o 1, alínea b), que figura nesse capítulo, indica explicitamente que os dispositivos médicos se destinam a ser utilizados para um fim médico.

25

Em segundo lugar, no que diz respeito aos objetivos prosseguidos pela Diretiva 93/42, decorre do seu considerando 5 que os dispositivos médicos devem proporcionar aos doentes, utilizadores e, sendo caso disso, a terceiros um elevado nível de proteção e alcançar o nível de funcionamento que lhes é atribuído pelo fabricante, e que, portanto, um dos objetivos essenciais dessa diretiva é a conservação ou a melhoria do grau de proteção alcançado nos Estados-Membros.

26

O outro objetivo principal do legislador é a implementação das condições de um mercado interno dos dispositivos médicos através da livre circulação destes no território da União, como demonstram o ponto I, oitavo parágrafo, da exposição de motivos da Proposta de diretiva do Conselho relativa aos dispositivos médicos [COM(91) 287 final — SYN 353], apresentada pela Comissão em 23 de agosto de 1991, bem como os considerandos 2 e 3 da Diretiva 93/42. De acordo com esse considerando 2, nomeadamente, as diferenças entre as regulamentações nacionais no tocante às características de segurança e de proteção da saúde, bem como ao nível de funcionamento dos dispositivos médicos, por um lado, e as disparidades dos procedimentos de certificação e controlo desses dispositivos, por outro, constituem entraves às trocas comerciais no interior da União.

27

Como indica o advogado-geral no n.o 44 das suas conclusões, no domínio dos dispositivos médicos, há que ter em conta não apenas a proteção da saúde mas igualmente as exigências da livre circulação de mercadorias.

28

Nestas circunstâncias, a Diretiva 93/42 deve conciliar a livre circulação dos dispositivos médicos e a proteção da saúde dos doentes (v., neste sentido, acórdão de 14 de junho de 2007, Medipac-Kazantzidis, C-6/05, Colet., p. I-4557, n.o 52).

29

Daqui resulta que a Diretiva 93/42 só pode ter por efeito limitar a livre circulação dos dispositivos médicos, prevendo a seu respeito uma obrigação de certificação e de marcação CE, quando essa limitação seja necessária para a proteção da saúde pública.

30

Por conseguinte, nas situações em que um produto não é concebido pelo seu fabricante para ser utilizado para fins médicos, não se pode exigir a respetiva certificação como dispositivo médico.

31

Esse é, nomeadamente, o caso de numerosos artigos de desporto que permitem medir, fora de qualquer utilização médica, o funcionamento de certos órgãos do corpo humano. Se estes artigos devessem ser qualificados de dispositivos médicos, ficariam sujeitos a um processo de certificação sem que esta exigência se justifique.

32

Consequentemente, ao interpretar o conceito que figura no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/42, deve considerar-se que a finalidade médica lhe é inerente, em razão do contexto desta disposição e dos objetivos da referida diretiva.

33

Atendendo às considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), terceiro travessão, da Diretiva 93/42 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «dispositivo médico» apenas abrange um objeto concebido pelo seu fabricante para ser utilizado no ser humano para fins de estudo de um processo fisiológico se o mesmo se destinar a uma finalidade médica.

Quanto às despesas

34

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), terceiro travessão, da Diretiva 93/42/CEE do Conselho, de 14 de junho de 1993, relativa aos dispositivos médicos, conforme alterada pela Diretiva 2007/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «dispositivo médico» apenas abrange um objeto concebido pelo seu fabricante para ser utilizado no ser humano para fins de estudo de um processo fisiológico se o mesmo se destinar a uma finalidade médica.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.