ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

6 de novembro de 2012 ( *1 )

«Representação da União Europeia perante os órgãos jurisdicionais nacionais — Artigos 282.° CE e 335.° TFUE — Pedido de indemnização em razão do prejuízo causado à União por um cartel — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito a um processo equitativo — Direito de acesso a um tribunal — Igualdade de armas — Artigo 16.o do Regulamento n.o 1/2003»

No processo C-199/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentado pelo rechtbank van koophandel te Brussel (Bélgica), por decisão de 18 de abril de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 28 de abril de 2011, no processo

Europese Gemeenschap

contra

Otis NV,

General Technic-Otis Sàrl,

Kone Belgium NV,

Kone Luxembourg Sàrl,

Schindler NV,

Schindler Sàrl,

ThyssenKrupp Liften Ascenseurs NV,

ThyssenKrupp Ascenseurs Luxembourg Sàrl,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, K. Lenaerts, vice-presidente, A. Tizzano, R. Silva de Lapuerta, L. Bay Larsen, A. Rosas, E. Jarašiūnas, presidentes de secção, E. Levits, A. Ó Caoimh, J.-C. Bonichot, A. Arabadjiev (relator), A. Prechal e C. G. Fernlund, juízes,

advogado-geral: P. Cruz Villalón,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 14 de março de 2012,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Otis NV, por H. Speyart, S. Brijs e G. Borremans, advocaten,

em representação da Kone Belgium NV, por D. Paemen, avocat, D. Vermeiren, advocaat, e T. Vinje, solicitor,

em representação da Schindler NV, por P. Wytinck, advocaat,

em representação da ThyssenKrupp Liften Ascenseurs NV, por O. Brouwer, N. Lorjé e A. Pliego Selie, advocaten,

em representação da Comissão Europeia, por H. Krämer e C. ten Dam, na qualidade de agentes,

em representação do Conselho da União Europeia, por B. Driessen, na qualidade de agente,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 26 de junho de 2012,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 282.° CE, 335.° TFUE e 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), bem como dos artigos 103.° e 104.° do Regulamento (CE, Euratom) n.o 1605/2002 do Conselho, de 25 de junho de 2002, que institui o Regulamento Financeiro aplicável ao orçamento geral das Comunidades Europeias (JO L 248, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE, Euratom) n.o 1995/2006 do Conselho, de 13 de dezembro de 2006 (JO L 390, p. 1, a seguir «Regulamento Financeiro»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Europese Gemeenschap (Comunidade Europeia), representada pela Comissão Europeia, à Otis NV, à Kone Belgium NV, à Schindler NV, à ThyssenKrupp Liften Ascenseurs NV, à General Technic-Otis Sàrl, à Kone Luxembourg Sàrl, à Schindler Sàrl e à ThyssenKrupp Ascenseurs Luxembourg Sàrl, fabricantes de elevadores e de escadas rolantes, a propósito de uma ação de indemnização pelo prejuízo sofrido em razão de uma infração ao artigo 81.o CE cometida por essas sociedades.

Quadro jurídico

Direito da União

Tratados

3

O artigo 282.o CE dispunha:

«Em cada um dos Estados-Membros a Comunidade goza da mais ampla capacidade jurídica reconhecida às pessoas coletivas pelas legislações nacionais, podendo, designadamente, adquirir ou alienar bens móveis e imóveis e estar em juízo. Para o efeito, é representada pela Comissão.»

4

Em 1 de dezembro de 2009, com a entrada em vigor do Tratado FUE, esse artigo foi substituído pelo artigo 335.o TFUE, que tem a seguinte redação:

«Em cada um dos Estados-Membros a União goza da mais ampla capacidade jurídica reconhecida às pessoas coletivas pelas legislações nacionais, podendo, designadamente, adquirir ou alienar bens móveis e imóveis e estar em juízo. Para o efeito, é representada pela Comissão. No entanto, a União é representada por cada uma das instituições, ao abrigo da respetiva autonomia administrativa, no tocante às questões ligadas ao respetivo funcionamento.»

5

O artigo 339.o TFUE dispõe:

«Os membros das instituições da União, os membros dos Comités, bem como os funcionários e agentes da União são obrigados, mesmo após a cessação das suas funções, a não divulgar as informações que, por sua natureza, estejam abrangidas pelo segredo profissional, designadamente as respeitantes às empresas e respetivas relações comerciais ou elementos dos seus preços de custo.»

6

O artigo 47.o TUE tem a seguinte redação:

«A União tem personalidade jurídica.»

Regulamento (CE) n.o 1/2003

7

O considerando 37 do Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado (JO 2003, L 1, p. 1), enuncia:

«O presente regulamento respeita os direitos fundamentais e observa os princípios gerais reconhecidos, nomeadamente, na [Carta]. Assim, nada no presente regulamento deverá ser interpretado e aplicado como afetando esses direitos e princípios.»

8

O artigo 16.o deste regulamento, intitulado «Aplicação uniforme do direito comunitário da concorrência», prevê, no seu n.o 1:

«Quando se pronunciarem sobre acordos, decisões ou práticas ao abrigo dos artigos 81.° [CE] ou 82.° [CE] que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, os tribunais nacionais não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão. Devem evitar tomar decisões que entrem em conflito com uma decisão prevista pela Comissão em processos que esta tenha iniciado. Para o efeito, o tribunal nacional pode avaliar se é ou não necessário suster a instância. Esta obrigação não prejudica os direitos e obrigações decorrentes do artigo 234.o [CE].»

9

Nos termos do artigo 28.o do referido regulamento, intitulado «Sigilo profissional»:

«1.   Sem prejuízo da aplicação dos artigos 12.° e 15.°, as informações obtidas nos termos dos artigos 17.° a 22.° apenas podem ser utilizadas para os fins para que foram obtidas.

2.   Sem prejuízo do intercâmbio e da utilização das informações previstos nos artigos 11.°, 12.°, 14.°, 15.° e 27.°, a Comissão e as autoridades dos Estados-Membros responsáveis em matéria de concorrência, os seus funcionários, agentes e outras pessoas que trabalhem sob a supervisão dessas autoridades, bem como os funcionários e agentes de outras autoridades dos Estados-Membros, não podem divulgar as informações obtidas ou trocadas nos termos do presente regulamento e que, pela sua natureza, estejam abrangidas pelo sigilo profissional. Esta obrigação é igualmente aplicável a todos os representantes e peritos dos Estados-Membros que tomem parte nas reuniões do Comité Consultivo nos termos do artigo 14.o»

Regulamento Financeiro

10

Em conformidade com o artigo 50.o do Regulamento Financeiro, a Comissão reconhecerá às outras instituições os poderes necessários para execução das secções do orçamento que lhes dizem respeito.

11

Nos termos do artigo 59.o deste regulamento:

«1.   A instituição exerce as funções de gestor orçamental.

[...]

2.   Cada instituição determinará, nas suas regras administrativas internas, quais os agentes de nível adequado em que delega funções de gestor orçamental na observância das condições previstas no respetivo regulamento interno, bem como a extensão dos poderes conferidos e a possibilidade de os beneficiários da referida delegação subdelegarem os seus poderes.

[...]»

12

Em conformidade com o artigo 60.o, n.o 1, do Regulamento Financeiro, o gestor orçamental está encarregado de executar as operações relativas às receitas e às despesas, em conformidade com o princípio da boa gestão financeira, e de assegurar a respetiva legalidade e regularidade.

13

O artigo 103.o do mesmo regulamento dispõe:

«Sempre que se prove que o procedimento de adjudicação foi objeto de erros ou irregularidades substanciais ou fraude, as instituições suspenderão o referido procedimento e poderão tomar as medidas que considerem necessárias, incluindo a sua anulação.

Sempre que, após a adjudicação do contrato, se prove que o procedimento de adjudicação ou a execução do contrato foi objeto de erros ou irregularidades substanciais ou de fraude, as instituições podem, consoante a fase de adiantamento do procedimento, abster-se de celebrar o contrato ou suspender a sua execução, ou, se adequado, anular o contrato.

Se esses erros, irregularidades ou fraudes forem imputáveis ao contratante, as instituições podem, além disso, recusar a realização do pagamento, recuperar os montantes já pagos ou rescindir todos os contratos celebrados com o contratante, proporcionalmente à gravidade desses erros, irregularidades ou fraudes.»

14

O artigo 104.o do referido regulamento prevê:

«As instituições comunitárias são consideradas entidades adjudicantes relativamente aos contratos celebrados por sua própria conta. […]»

Comunicação da Comissão sobre a cooperação entre a Comissão e os tribunais dos Estados-Membros da UE na aplicação dos artigos 81.° e 82.° do Tratado CE

15

Em conformidade com o n.o 26 da Comunicação da Comissão sobre a cooperação entre a Comissão e os tribunais dos Estados-Membros da UE na aplicação dos artigos 81.° e 82.° do Tratado CE (JO 2004, C 101, p. 54), «a Comissão não transmitirá aos tribunais nacionais informações apresentadas voluntariamente por um requerente de imunidade […] sem a anuência do mesmo».

Direito belga

16

O artigo 17.o do code judiciaire dispõe:

«A ação não é admissível se o autor não tiver legitimidade e interesse em intentá-la.»

17

O artigo 1382.o do Código Civil prevê:

«Todo o ato ilícito que cause um prejuízo a outrem obriga aquele por culpa de quem o ato se produziu a reparar esse prejuízo.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

Antecedentes do litígio no processo principal

18

Após ter recebido várias denúncias, a Comissão deu início, em 2004, a um inquérito sobre a existência de um cartel entre os quatro principais fabricantes europeus de elevadores e escadas rolantes, a saber, os grupos Otis, Kone, Schindler e ThyssenKrupp. O inquérito resultou na decisão da Comissão, de 21 de fevereiro de 2007, relativa a um procedimento nos termos do artigo 81.o do Tratado CE (processo COMP/E-1/38.823 — Elevadores e escadas rolantes) [C(2007) 512 final] (a seguir «decisão de 21 de fevereiro de 2007»).

19

Nessa decisão, a Comissão concluiu que as empresas destinatárias da mesma, entre as quais se incluem as demandadas no processo principal, tinham infringido o artigo 81.o CE ao repartirem entre si propostas e outros contratos na Bélgica, na Alemanha, no Luxemburgo e nos Países Baixos, tendo em vista partilhar mercados e determinar preços, acordando um mecanismo de compensação em alguns casos, trocando informações sobre volumes de vendas e preços e participando em reuniões periódicas e outros contactos, a fim de acordarem e aplicarem as restrições acima mencionadas. Por estas infrações, a Comissão aplicou coimas num montante global de mais de 992 milhões de euros.

20

Várias sociedades, entre as quais as demandadas no processo principal, interpuseram recursos de anulação dessa decisão no Tribunal Geral da União Europeia.

21

Por acórdãos de 13 de julho de 2011, Schindler Holding e o./Comissão (T-138/07, Colet., p. II-4819), General Technic-Otis e o./Comissão (T-141/07, T-142/07, T-145/07 e T-146/07, Colet., p. II-4977), ThyssenKrupp Liften Ascenseurs e o./Comissão (T-144/07, T-147/07 a T-150/07 e T-154/07, Colet., p. II-5129), e Kone e o./Comissão (T-151/07, Colet., p. II-5313), o Tribunal Geral negou provimento a esses recursos, com exceção dos interpostos pelas sociedades do grupo Thyssenkrupp, aos quais foi parcialmente dado provimento no que respeita ao montante das coimas aplicadas.

22

Seguidamente, as recorrentes interpuseram recurso das decisões do Tribunal Geral no Tribunal de Justiça pedindo a anulação dos referidos acórdãos, registados sob os números C-493/11 P, C-494/11 P, C-501/11 P, C-503/11 P a 506/11 P, C-510/11 P, C-516/11 P e C-519/11 P. Por despachos de 24 de abril e 8 de maio de 2012, o presidente do Tribunal de Justiça cancelou do registo do Tribunal de Justiça os processos C-503/11 P a C-506/11 P, C-516/11 P e C-519/11 P. Por despachos de 15 de junho de 2012, United Technologies/Comissão, e Otis Luxembourg e o./Comissão, o Tribunal de Justiça negou provimento aos recursos nos processos C-493/11 P e C-494/11 P. Os processos C-501/11 P e C-510/11 P estão pendentes no Tribunal de Justiça.

Tramitação do processo no órgão jurisdicional de reenvio

23

Por petição de 20 de junho de 2008, a Comunidade Europeia, atual União Europeia, representada pela Comissão, intentou uma ação no órgão jurisdicional de reenvio na qual exige, a título principal, que as demandadas no processo principal paguem à União o montante provisional de 7061688 euros (sem juros e despesas processuais) a título do prejuízo sofrido pela União em razão das práticas anticoncorrenciais dadas como provadas na decisão de 21 de fevereiro de 2007. Com efeito, a União tinha celebrado com as demandadas no processo principal vários contratos de instalação, manutenção e renovação de elevadores e escadas rolantes em diversos edifícios do Conselho da União Europeia, do Parlamento Europeu, da Comissão, do Comité Económico e Social Europeu, do Comité das Regiões da União Europeia e do Serviço de Publicações da União Europeia, sitos na Bélgica e no Luxemburgo. A título subsidiário, a União pediu que fosse designado um perito para, designadamente, determinar a totalidade do prejuízo sofrido.

24

As demandadas no processo principal contestam a capacidade da Comissão para agir como representante da União, na falta de um mandato expresso para esse efeito, emitido pelas outras instituições da União alegadamente lesadas pela infração em causa. Invocaram, além disso, uma violação dos princípios da independência do juiz e da igualdade de armas, em razão da situação particular que a Comissão ocupa no quadro de um procedimento de aplicação do artigo 81.o, n.o 1, CE. Consideram que, tendo em conta que, em conformidade com o artigo 16.o do Regulamento n.o 1/2003, a decisão de 21 de fevereiro de 2007 é vinculativa para o órgão jurisdicional de reenvio, o princípio segundo o qual ninguém é juiz em causa própria (nemo judex in sua causa) é igualmente violado.

25

O órgão jurisdicional de reenvio declarou-se incompetente no que respeita ao prejuízo causado pelas demandadas no processo principal estabelecidas no Luxemburgo.

26

Foi nestas circunstâncias que o rechtbank van koophandel te Brussel decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

a)

O Tratado refere no artigo 282.o [CE], atual artigo 335.o [TFUE], que a União é representada pela Comissão; — o artigo 335.o […] TFUE, por um lado, e os artigos 103.° e 104.° do Regulamento Financeiro, por outro, referem que a União é representada por cada uma das instituições em causa, no tocante às questões administrativas ligadas ao respetivo funcionamento, daí podendo resultar que são as instituições que podem, de forma exclusiva ou não, […] intervir em juízo; — é inquestionável que o pagamento de preços excessivos obtido pelos adjudicatários, etc. […] em consequência da constituição de um cartel preenche o conceito de [fraude]; — no direito [...] belga vigora o princípio lex specialis generalibus derogat; — na medida em que este princípio jurídico também se [aplica] no direito europeu, não caberá a legitimidade para a propositura das ações (exceto nos casos em que a própria Comissão foi a entidade adjudicante) às instituições em causa?

b)

(A título subsidiário) A Comissão não devia pelo menos ter um mandato de representação [...] das instituições para salvaguardar judicialmente os seus interesses?

2)

a)

A [Carta], no seu artigo 47.o, e a Convenção Europeia [para a Proteção] dos Direitos do Homem [e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950, a seguir ‘CEDH’], no seu artigo 6.o, [n.o 1], garantem a todos o direito a um julgamento equitativo e também o princípio conexo de que ninguém pode ser juiz no seu próprio processo; — é compatível com este princípio que a Comissão intervenha numa primeira fase como autoridade em matéria de concorrência e sancione o comportamento imputado, ou seja, a constituição de um cartel, como uma infração ao artigo 81.o [CE], atual artigo 101.o [TFUE], depois de ela própria ter investigado estes factos e que, depois disso, numa segunda fase, prepare o processo de indemnização perante o órgão jurisdicional nacional e tome a decisão de interpor esta ação, sendo que o mesmo comissário é responsável pelas duas matérias, que estão interligadas, e tanto mais que o órgão jurisdicional nacional onde é submetido o processo não pode decidir contrariamente à decisão sancionatória?

b)

(A título subsidiário) Em caso de resposta [negativa] à segunda questão[, alínea a)] (existência de incompatibilidade), segundo o direito da [União], como deve o lesado (a Comissão, [as] instituições ou a União) por um ato ilícito (a constituição de um cartel) exercer o seu direito a indemnização, que também é um direito fundamental?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

27

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 282.° CE e 335.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que a Comissão está habilitada a representar a União num órgão jurisdicional nacional no quadro de uma ação cível de indemnização por danos causados à União por um cartel ou uma prática proibida pelos artigos 81.° CE e 101.° TFUE, suscetível de ter afetado certos contratos públicos adjudicados por diferentes instituições e diferentes órgãos da União, sem dispor de um mandato de representação das outras instituições ou órgãos em causa.

28

A representação da Comunidade perante os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros era regulada, até 1 de dezembro de 2009, data de entrada em vigor do Tratado FUE, pelo artigo 282.o CE.

29

Tendo a ação no processo principal sido intentada antes da referida data, importa começar por examinar se esse artigo habilitava a Comissão a representar a Comunidade no quadro de tal ação.

30

Resulta da redação do referido artigo que a Comunidade pode estar em juízo em cada um dos Estados-Membros e que, para esse efeito, é representada pela Comissão.

31

As demandadas no processo principal alegam contudo que o artigo 282.o CE mais não é do que uma regra geral, que os artigos 274.° CE e 279.° CE derrogam. Foi dada execução a estas últimas disposições pelo Regulamento Financeiro, cujos artigos 59.° e 60.° atribuem a cada instituição da União a execução das respetivas rubricas orçamentais. Além disso, decorre dos artigos 103.° e 104.° desse regulamento que compete a cada uma das instituições, se se considerarem lesadas pela infração em causa, proporem uma ação de indemnização, uma vez que a maior parte dos contratos foram adjudicados em seu próprio nome e por sua própria conta.

32

Há que referir, a este respeito, que os artigos 274.° CE e 279.° CE, bem como as disposições do Regulamento Financeiro, definem, nomeadamente, os poderes das instituições em matéria de adoção e de execução do orçamento. Em contrapartida, o artigo 282.o CE atribui à Comunidade capacidade jurídica e regula a sua representação, designadamente, perante os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros. Ora, a representação da Comunidade nos referidos órgãos jurisdicionais é uma questão distinta da relativa às medidas de execução orçamental adotadas por uma instituição da Comunidade. Por essa razão, o princípio lex specialis generalibus derogat é desprovido de pertinência no caso concreto.

33

No que respeita, em especial, aos artigos 103.° e 104.° do Regulamento Financeiro, aos quais o órgão jurisdicional de reenvio faz referência no enunciado da sua primeira questão, impõe-se concluir que estas disposições contêm regras relativas à adjudicação e à execução de contratos públicos e não à representação da União perante os órgãos jurisdicionais nacionais dos Estados-Membros.

34

Daqui resulta que a Comissão estava, com fundamento no artigo 282.o CE, habilitada a representar a Comunidade perante o órgão jurisdicional de reenvio.

35

Quanto ao artigo 335.o TFUE, cumpre referir que o Tratado FUE não contém nenhuma disposição transitória no que respeita à representação da União nos processos iniciados nos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros antes da entrada em vigor deste Tratado, mas ainda pendentes após tal entrada em vigor. Nestas condições, a disposição pertinente que regula essa representação é o artigo 282.o CE, uma vez que o litígio no processo principal foi apresentado antes da entrada em vigor do Tratado FUE.

36

Em face das considerações precedentes, importa responder à primeira questão que o direito da União deve ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, não se opõe a que a Comissão represente a União perante um órgão jurisdicional nacional que conhece de uma ação de indemnização do prejuízo causado à União por um cartel ou uma prática proibidos pelos artigos 81.° CE e 101.° TFUE, suscetíveis de ter afetado certos contratos públicos adjudicados por diferentes instituições e diferentes órgãos da União, sem que a Comissão necessite de dispor de um mandato para esse efeito conferido por estes últimos.

Quanto à segunda questão

37

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 47.o da Carta se opõe a que a Comissão intente, em nome da União, num órgão jurisdicional nacional, uma ação de indemnização do prejuízo sofrido pela União na sequência de um cartel ou de uma prática cuja desconformidade com o artigo 81.o CE foi declarada por uma decisão dessa instituição.

38

Em particular, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta-se, em primeiro lugar, se, no quadro de tal ação, o direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 47.o da Carta e no artigo 6.o da CEDH, é violado pelo facto de, em virtude do artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003, a decisão da Comissão relativa a um processo de aplicação do artigo 81.o CE vincular esse órgão jurisdicional. Com efeito, a declaração de uma infração ao artigo 81.o CE ser-lhe-ia imposta por uma decisão tomada por uma das partes no litígio, o que impediria o órgão jurisdicional nacional de examinar soberanamente um dos elementos que confere o direito à reparação, a saber, a ocorrência de um facto danoso.

39

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, no quadro dessa ação, a Comissão não é juiz e parte em causa própria, em violação do princípio nemo judex in sua causa.

40

O Tribunal de Justiça já teve ocasião de sublinhar que qualquer pessoa tem o direito de invocar em juízo a violação do artigo 81.o CE e portanto de invocar a nulidade de um cartel ou de uma prática proibida por esse artigo (acórdão de 13 de julho de 2006, Manfredi e o., C-295/04 a C-298/04, Colet., p. I-6619, n.o 59).

41

No que respeita, em particular, à possibilidade de pedir a reparação do dano causado por um contrato ou um comportamento suscetível de restringir ou de falsear o jogo da concorrência, deve recordar-se que a plena eficácia do artigo 81.o CE e, em especial, o efeito útil da proibição enunciada no seu n.o 1 seriam postos em causa se não fosse possível a qualquer pessoa pedir a reparação do prejuízo que lhe tivesse sido causado por um contrato ou um comportamento suscetível de restringir ou falsear o jogo da concorrência (acórdãos de 20 de setembro de 2001, Courage e Crehan, C-453/99, Colet., p. I-6927, n.o 26, e Manfredi e o., já referido, n.o 60).

42

Com efeito, tal direito reforça o caráter operacional das regras de concorrência da União e é de molde a desencorajar acordos ou práticas, frequentemente dissimulados, suscetíveis de restringir ou falsear o jogo da concorrência. Nesta perspetiva, as ações de indemnização intentadas nos órgãos jurisdicionais nacionais são suscetíveis de contribuir substancialmente para a manutenção de uma concorrência efetiva na União (acórdão Courage e Crehan, já referido, n.o 27).

43

Daqui resulta que qualquer pessoa tem o direito de pedir a reparação do prejuízo sofrido quando exista um nexo de causalidade entre o referido prejuízo e um cartel ou uma prática proibida pelo artigo 81.o CE (acórdão Manfredi e o., já referido, n.o 61).

44

Por conseguinte, esse direito pertence igualmente à União.

45

Deve, no entanto, ser exercido no respeito dos direitos fundamentais das demandadas, como garantidos, designadamente, pela Carta. As disposições desta última dirigem-se, em conformidade com o seu artigo 51.o, n.o 1, tanto às instituições, órgãos e organismos da União como aos Estados-Membros quando implementam o direito da União.

46

A este respeito, há que recordar que o princípio da proteção jurisdicional efetiva constitui um princípio geral do direito da União, que se encontra atualmente consagrado no artigo 47.o da Carta (v. acórdão de 22 de dezembro de 2010, DEB, C-279/09, Colet., p. I-13849, n.os 30 e 31; despacho de 1 de março de 2011, Chartry, C-457/09, Colet., p. I-819, n.o 25; e acórdão de 28 de julho de 2011, Samba Diouf, C-69/10, Colet., p. I-7151, n.o 49).

47

O dito artigo 47.o assegura, no direito da União, a proteção conferida pelo artigo 6.o, n.o 1, da CEDH. Por conseguinte, há que se referir unicamente a esta primeira disposição (acórdão de 8 de dezembro de 2011, Chalkor/Comissão, C-386/10 P, Colet., p. I-13085, n.o 51).

48

O princípio da proteção jurisdicional efetiva que figura no referido artigo 47.o é constituído por diversos elementos, que incluem, nomeadamente, os direitos de defesa, o princípio da igualdade de armas, o direito de acesso aos tribunais assim como o direito de aconselhamento, defesa e representação.

49

No que respeita, em especial, ao direito de acesso a um tribunal, há que precisar que, para que um «tribunal» possa conhecer de um litígio relativo a direitos e obrigações decorrentes do direito da União em conformidade com o artigo 47.o da Carta, é preciso que tenha competência para examinar todas as questões de facto e de direito pertinentes para o litígio que é chamado a decidir.

50

É verdade, a este respeito, que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça (acórdão de 14 de setembro de 2000, Masterfoods e HB, C-344/98, Colet., p. I-11369, n.o 52), que se encontra atualmente codificada no artigo 16.o do Regulamento n.o 1/2003, quando os órgãos jurisdicionais decidem sobre acordos, decisões ou práticas previstas no artigo 101.o TFUE que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão.

51

Este princípio é válido igualmente quando os órgãos jurisdicionais nacionais são chamados a pronunciar-se sobre uma ação de indemnização pelo prejuízo sofrido na sequência de um cartel ou de uma prática cuja desconformidade com o artigo 101.o TFUE foi declarada por uma decisão dessa instituição.

52

A aplicação das regras de concorrência da União assenta assim num dever de cooperação leal entre, por um lado, os órgãos jurisdicionais nacionais e, por outro, respetivamente, a Comissão e os órgãos jurisdicionais da União, no quadro do qual cada um atua em função do papel que lhe é atribuído pelo Tratado (acórdão Masterfoods e HB, já referido, n.o 56).

53

Importa recordar, a este respeito, que a competência exclusiva para fiscalizar a legalidade dos atos das instituições da União pertence aos órgãos jurisdicionais da União e não aos órgãos jurisdicionais nacionais. Estes não têm o poder de declarar tais atos inválidos (v., neste sentido, designadamente, acórdão de 22 de outubro de 1987, Foto-Frost, 314/85, Colet., p. 4199, n.os 12 a 20).

54

A regra segundo a qual os órgãos jurisdicionais nacionais não podem tomar decisões que sejam contrárias a uma decisão da Comissão relativa a um processo de aplicação do artigo 101.o TFUE é por isso uma expressão específica da repartição de competências, na União, entre, por um lado, os órgãos jurisdicionais nacionais e, por outro, a Comissão e os órgãos jurisdicionais da União.

55

Esta regra não implica contudo que as demandadas no processo principal estejam privadas do seu direito de acesso a um tribunal, na aceção do artigo 47.o da Carta.

56

Com efeito, o direito da União prevê um sistema de fiscalização jurisdicional das decisões da Comissão relativas aos processos de aplicação do artigo 101.o TFUE que oferece todas as garantias exigidas pelo artigo 47.o da Carta.

57

A este respeito, importa assinalar que a decisão da Comissão pode ser sujeita a uma fiscalização da legalidade pelos órgãos jurisdicionais da União com fundamento no artigo 263.o TFUE. No caso concreto, as demandadas no processo principal, que eram as destinatárias da decisão, interpuseram efetivamente um recurso de anulação dessa decisão, como se recordou nos n.os 20 a 22 do presente acórdão.

58

As referidas demandadas alegam contudo que a fiscalização da legalidade efetuada pelos órgãos jurisdicionais da União com fundamento no artigo 263.o TFUE em matéria de direito da concorrência é incompleta em razão, designadamente, da margem de apreciação que esses órgãos jurisdicionais reconhecem à Comissão em matéria económica.

59

A este propósito, o Tribunal de Justiça já teve ocasião de sublinhar que, embora, nos domínios que dão lugar a apreciações económicas complexas, a Comissão disponha de uma margem de apreciação em matéria económica, isso não implica que o juiz da União deva abster-se de fiscalizar a interpretação, pela Comissão, de dados de natureza económica. Com efeito, o juiz da União deve, designadamente, verificar não apenas a exatidão material dos elementos de prova invocados, a sua fiabilidade e a sua coerência mas também verificar se esses elementos constituem a totalidade dos dados pertinentes que devem ser tomados em consideração para apreciar uma situação complexa e se são suscetíveis de fundamentar as conclusões que deles são retiradas (acórdão Chalkor/Comissão, já referido, n.o 54 e jurisprudência referida).

60

O juiz da União deve igualmente verificar oficiosamente se a Comissão fundamentou a sua decisão e, nomeadamente, se explicou a ponderação e a avaliação que fez dos elementos tomados em consideração (v., neste sentido, acórdão Chalkor/Comissão, já referido, n.o 61).

61

Além disso, compete ao juiz da União efetuar a fiscalização da legalidade que lhe incumbe com base nos elementos apresentados pelo recorrente em apoio dos fundamentos invocados. Ao efetuar essa fiscalização, o juiz não se pode apoiar na margem de apreciação de que dispõe a Comissão nem relativamente à escolha dos elementos tomados em consideração no momento da aplicação dos critérios mencionados na comunicação da Comissão intitulada «Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.o 2, alínea a), do artigo 23.o do Regulamento (CE) n.o 1/2003» (JO 2006, C 210, p. 2) nem quanto à avaliação desses elementos para renunciar a uma fiscalização aprofundada tanto de direito como de facto (acórdão Chalkor/Comissão, já referido, n.o 62).

62

Por último, a fiscalização da legalidade é completada pela competência de plena jurisdição que era reconhecida ao juiz da União pelo artigo 17.o do Regulamento n.o 17 do Conselho, de 6 de fevereiro de 1962, Primeiro Regulamento de execução dos artigos [81.°] e [82.°] do Tratado (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 F1 p. 22), e atualmente pelo artigo 31.o do Regulamento n.o 1/2003, em conformidade com o artigo 261.o TFUE. Esta competência habilita o juiz, para além da simples fiscalização da legalidade da sanção, a substituir a apreciação da Comissão pela sua própria apreciação e, deste modo, a suprimir, reduzir ou aumentar a coima ou a sanção pecuniária compulsória aplicada (acórdão Chalkor/Comissão, já referido, n.o 63 e jurisprudência referida).

63

A fiscalização prevista pelos Tratados implica pois que o juiz da União exerça uma fiscalização tanto de direito como de facto e que tenha o poder de apreciar as provas, de anular a decisão impugnada e de alterar o montante das coimas. Afigura-se, por isso, que a fiscalização da legalidade prevista no artigo 263.o TFUE, completada pela competência de plena jurisdição quanto ao montante da coima, prevista no artigo 31.o do Regulamento n.o 1/2003, está em conformidade com o princípio da proteção jurisdicional efetiva que figura no artigo 47.o da Carta (v., neste sentido, acórdão Chalkor/Comissão, já referido, n.o 67).

64

Por seu turno, a objeção das demandadas no processo principal de que a referida fiscalização jurisdicional é confiada ao Tribunal de Justiça, cuja independência afirmam estar posta em causa pelo facto de ser ele próprio uma instituição da União, é desprovida de fundamento, atendendo, por um lado, ao conjunto das garantias inscritas nos Tratados que asseguram a independência e a imparcialidade do Tribunal de Justiça e, por outro, ao facto de que qualquer órgão jurisdicional faz necessariamente parte da organização estatal ou supranacional à qual pertence, sem que esse facto possa, por si só, implicar uma violação do artigo 47.o da Carta e do artigo 6.o da CEDH.

65

Por último, é importante salientar que uma ação cível de indemnização, como a do processo principal, implica, como decorre da decisão de reenvio, não apenas a verificação da ocorrência de um facto danoso mas igualmente a existência de um prejuízo e de um nexo direto entre este e o referido facto danoso. Embora seja verdade que a obrigação do juiz nacional de não tomar decisões que sejam contrárias à decisão da Comissão que declara uma infração ao artigo 101.o TFUE obriga esse juiz a concluir pela existência de um cartel ou de uma prática proibida, há que precisar que a verificação de um prejuízo e de um nexo de causalidade direta entre esse prejuízo e o cartel ou a prática em causa continua, em contrapartida, sujeita à apreciação do juiz nacional.

66

Com efeito, mesmo quando a Comissão tenha sido levada a determinar os efeitos precisos da infração na sua decisão, compete sempre ao juiz nacional determinar de forma individual o prejuízo causado a cada uma das pessoas que tenham intentado uma ação de indemnização. Essa apreciação não é contrária ao artigo 16.o do Regulamento n.o 1/2003.

67

Tendo em conta todas as considerações precedentes, a Comissão não pode ser considerada juiz e parte no quadro de um litígio como o do processo principal.

68

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta-se, em segundo lugar, sobre se o princípio da igualdade de armas é violado no quadro de uma ação cível como a do processo principal pelo facto de a Comissão ter ela própria conduzido o inquérito relativo à infração em causa.

69

Segundo as demandadas no processo principal, essa instituição encontra-se, por esse facto, numa situação privilegiada relativamente a elas, o que lhe terá permitido recolher e utilizar informações, incluindo confidenciais e por isso protegidas pelo segredo profissional, de que nem todas as demandadas dispõem.

70

A Comissão responde, no quadro do presente reenvio prejudicial, que, ao preparar a ação principal, apenas usou informações que figuram na versão pública da decisão de 27 de fevereiro de 2007. Essa instituição explica, além disso, que os serviços responsáveis pelo processo principal, ou seja, os Serviços «Infraestruturas e Logística» em Bruxelas e no Luxemburgo, não dispõem de um direito de acesso privilegiado ao dossier confidencial da Direção-Geral «Concorrência». Por essa razão, a Comissão encontra-se em pé de igualdade com qualquer outro litigante.

71

O princípio da igualdade de armas, que é um corolário do próprio conceito de processo equitativo (acórdão de 21 de setembro de 2010, Suécia e o./API e Comissão, C-514/07 P, C-528/07 P e C-532/07 P, Colet., p. I-8533, n.o 88), implica a obrigação de oferecer a cada parte uma possibilidade razoável de apresentar a sua causa, incluindo as provas, em condições que não a coloquem numa situação de clara desvantagem relativamente ao seu adversário.

72

Como recordou o advogado-geral no n.o 58 das suas conclusões, a igualdade de armas tem por objetivo assegurar o equilíbrio entre as partes no processo, garantindo que qualquer documento apresentado ao tribunal possa ser avaliado e contestado por qualquer parte no processo. Inversamente, o ónus da prova do prejuízo resultante deste desequilíbrio cabe, em princípio, a quem o sofreu.

73

Ora, resulta da decisão de reenvio que as informações a que as demandadas no processo principal se referem não foram fornecidas ao tribunal nacional pela Comissão, tendo esta última de resto afirmado que se apoiou apenas nas informações disponíveis na versão não confidencial da decisão que declarou uma infração ao artigo 81.o CE. Tais circunstâncias excluem, por conseguinte, a violação do princípio da igualdade de armas.

74

A argumentação das demandadas no processo principal, segundo a qual o equilíbrio entre as partes ficaria comprometido pelo facto de a Comissão ter conduzido o inquérito relativo à infração ao artigo 101.o TFUE a fim de pedir, posteriormente, a reparação do prejuízo sofrido em razão dessa infração, colide com a proibição, enunciada no artigo 28.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003, de utilizar informações recolhidas no quadro do inquérito para fins alheios a este.

75

De resto, a circunstância de tanto a decisão de 27 de fevereiro de 2007 como a decisão de intentar a ação de indemnização no processo principal terem sido tomadas pelo colégio da Comissão não põe em causa as considerações anteriores, uma vez que o direito da União contém garantias suficientes para assegurar o respeito do princípio da igualdade de armas no quadro de tal ação, como as que decorrem dos artigos 339.° TFUE, 28.° do Regulamento n.o 1/2003 assim como do ponto 26 da comunicação da Comissão sobre a cooperação entre a Comissão e os tribunais dos Estados-Membros na aplicação dos artigos 81.° e 82.° do Tratado CE.

76

Por último, os argumentos das demandadas no processo principal baseados no acórdão Yvon c. França (TEDH, acórdão de 24 de abril de 2003, Recueil des arrêts et décisions 2003-V) também não podem ser acolhidos. Com efeito, os elementos que levaram o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a declarar uma violação do artigo 6.o da CEDH, a saber, nomeadamente, a influência importante das conclusões do comissário do governo na apreciação do juiz da expropriação, bem como as regras relativas ao acesso e à utilização, pelo comissário do governo, das informações pertinentes, não foram sujeitos, contrariamente aos elementos que caracterizam o presente processo principal, a uma fiscalização jurisdicional ou acompanhados de garantias comparáveis ou equivalentes às mencionadas, respetivamente, nos n.os 63 e 75 do presente acórdão.

77

Em face das considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 47.o da Carta não se opõe a que a Comissão intente, em nome da União, num órgão jurisdicional nacional, uma ação de indemnização do prejuízo sofrido pela União na sequência de um cartel ou de uma prática cuja desconformidade com o artigo 81.o CE ou com o artigo 101.o TFUE foi declarada por uma decisão dessa instituição.

Quanto às despesas

78

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O direito da União deve ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, não se opõe a que a Comissão Europeia represente a União Europeia perante um órgão jurisdicional nacional que conhece de uma ação de indemnização do prejuízo causado à União por um cartel ou uma prática proibidos pelos artigos 81.° CE e 101.° TFUE, suscetíveis de ter afetado certos contratos públicos adjudicados por diferentes instituições e diferentes órgãos da União, sem que a Comissão necessite de dispor de um mandato para esse efeito conferido por estes últimos.

 

2)

O artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia não se opõe a que a Comissão Europeia intente, em nome da União Europeia, num órgão jurisdicional nacional, uma ação de indemnização do prejuízo sofrido pela União Europeia na sequência de um cartel ou de uma prática cuja desconformidade com o artigo 81.o CE ou com o artigo 101.o TFUE foi declarada por uma decisão dessa instituição.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.