Processos apensos C‑128/09 a C‑131/09, C‑134/09 e C‑135/09

Antoine Boxus e o.

contra

Région wallonne

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Conseil d’État (Bélgica)]

«Avaliação dos efeitos de projectos no ambiente – Directiva 85/337/CEE – Âmbito de aplicação – Conceito de ‘acto legislativo nacional específico’ – Convenção de Aarhus – Acesso à justiça em matéria de ambiente – Extensão do direito de recurso de um acto legislativo»

Sumário do acórdão

1.        Ambiente – Avaliação dos efeitos de determinados projectos no ambiente – Directiva 85/337 – Âmbito de aplicação – Projecto adoptado por um acto legislativo nacional – Exclusão – Requisitos

(Directiva 85/337 do Conselho, conforme alterada pela Directiva 2003/35, artigo 1.°, n.° 5)

2.        Ambiente – Avaliação dos efeitos de determinados projectos no ambiente – Directiva 85/337 – Projecto adoptado por um acto legislativo nacional que entra no âmbito de aplicação da directiva – Direito de recurso contra esse acto – Alcance

(Directiva 85/337 do Conselho, conforme alterada pela Directiva 2003/35, artigo 10.°‑A; Decisão 2005/370 do Conselho)

1.        O artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337, relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente, conforme alterada pela Directiva 2003/35, deve ser interpretado no sentido de que apenas estão excluídos do âmbito de aplicação desta directiva os projectos adoptados em pormenor por um acto legislativo específico, de forma a que os objectivos da referida directiva tenham sido atingidos através do processo legislativo. Cabe ao juiz nacional determinar se essas duas condições estão preenchidas, tendo em conta não só o conteúdo do acto legislativo adoptado mas também o conjunto do processo legislativo que levou à sua adopção, nomeadamente os actos preparatórios e os debates parlamentares. A este respeito, um acto legislativo que mais não faça do que «ratificar» pura e simplesmente um acto administrativo preexistente, limitando‑se a referir razões imperiosas de interesse geral sem prévia abertura de um processo legislativo quanto ao mérito que permita respeitar as ditas condições, não pode ser considerado um acto legislativo específico na acepção desta disposição e, portanto, não é suficiente para excluir um projecto do âmbito da Directiva 85/337, conforme alterada.

(cf. n.° 48, disp. 1)

2.        O artigo 9.°, n.° 2, da Convenção de Aarhus sobre o acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente, celebrada em 25 de Junho de 1998 e aprovada em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2005/370, e o artigo 10.°‑A da Directiva 85/337, relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente, conforme alterada pela Directiva 2003/35, devem ser interpretados no sentido de que:

‑      quando um projecto que está abrangido pelo âmbito de aplicação destas disposições é adoptado por um acto legislativo, a questão de saber se esse acto preenche as condições fixadas no artigo 1.°, n.° 5, desta directiva deve poder ser submetida, segundo as regras processuais nacionais, a um órgão jurisdicional ou a um órgão independente e imparcial instituído por lei;

‑      no caso de não ser possível interpor nenhum recurso da natureza e do alcance acima recordados contra um tal acto, caberá a qualquer órgão jurisdicional nacional que tenha sido chamado a pronunciar‑se no âmbito da sua competência exercer a fiscalização descrita no travessão anterior e daí retirar, se necessário, as devidas consequências não aplicando esse acto legislativo.

(cf. n.° 57, disp. 2)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

18 de Outubro de 2011 (*)

«Avaliação dos efeitos de projectos no ambiente – Directiva 85/337/CEE – Âmbito de aplicação – Conceito de ‘acto legislativo nacional específico’ – Convenção de Aarhus – Acesso à justiça em matéria de ambiente – Extensão do direito de recurso de um acto legislativo»

Nos processos apensos C‑128/09 a C‑131/09, C‑134/09 e C‑135/09,

que têm por objecto pedidos de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentados pelo Conseil d’État (Bélgica), por decisões de 27 e 31 de Março de 2009, entrados no Tribunal de Justiça em 6, 9 e 10 de Abril de 2009, nos processos

Antoine Boxus,

Willy Roua (C‑128/09),

Guido Durlet e o. (C‑129/09),

Paul Fastrez,

Henriette Fastrez (C‑130/09),

Philippe Daras (C‑131/09),

Association des riverains et habitants des communes proches de l’aéroport BSCA (Brussels South Charleroi Airport) (ARACh) (C‑134/09 e C‑135/09),

Bernard Page (C‑134/09),

Léon L’Hoir,

Nadine Dartois (C‑135/09)

contra

Région wallonne,

sendo intervenientes:

Société régionale wallonne du transport (SRWT) (C‑128/09 e C‑129/09),

Infrabel SA (C‑130/09 e C‑131/09),

Société wallonne des aéroports (SOWEAR) (C‑135/09),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts, J.‑C. Bonichot (relator), presidentes de secção, K. Schiemann, E. Juhász, G. Arestis, A. Borg Barthet, M. Ilešič, A. Arabadjiev, C. Toader e J.‑J. Kasel, juízes,

advogada‑geral: E. Sharpston,

secretário: R. Şereş, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 8 de Junho de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de A. Boxus, W. Roua e G. Durlet e o., por A. Kettels, Rechtsanwältin,

–        em representação de P. e H. Fastrez, por T. Vandenput, avocat,

–        em representação da association des riverains et habitants des communes proches de l’aéroport BSCA (Brussels South Charleroi Airport) (ARACh), B. Page, L. L’Hoir e N. Dartois, por A. Lebrun, avocat,

–        em representação do Governo belga, por T. Materne, na qualidade de agente, assistido por F. Haumont, avocat,

–        em representação do Governo grego, por G. Karipsiadis, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. Fiengo, avvocato dello Stato,

–        em representação da Comissão Europeia, por O. Beynet e J.‑B. Laignelot, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 19 de Maio de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objecto a interpretação dos artigos 6.° e 9.° da Convenção sobre o acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente, celebrada em 25 de Junho de 1998 e aprovada em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2005/370/CE do Conselho, de 17 de Fevereiro de 2005 (JO L 124, p. 1, a seguir «Convenção de Aarhus»), e dos artigos 1.°, 5.° a 8.° e 10.°‑A da Directiva 85/337/CEE do Conselho, de 27 de Junho de 1985, relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente (JO L 175, p. 40; EE 15 F6 p. 9), conforme alterada pela Directiva 2003/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Maio de 2003 (JO L 156, p. 17, a seguir «Directiva 85/337»).

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem residentes nas imediações dos aeroportos de Liège‑Bierset e de Charleroi‑Bruxelas Sul e da linha ferroviária Bruxelas‑Charleroi à Região da Valónia relativamente a autorizações de obras nessas instalações.

 Quadro jurídico

 Direito internacional

3        Nos termos do artigo 2.°, n.° 2, da Convenção de Aarhus, a definição dada à expressão «autoridade pública» «não inclui organismos ou instituições que actuem na qualidade de órgãos […] legislativos».

4        O artigo 6.° da Convenção de Aarhus estipula:

«1.      Cada parte:

a)      aplicará o disposto no presente artigo às decisões relativas à autorização das actividades propostas, constantes do anexo I;

b)      aplicará igualmente o disposto no presente artigo, em conformidade com a legislação nacional, às decisões relativas às actividades propostas não incluídas no anexo I que possam ter um impacto significativo no ambiente. Para este fim, as Partes determinarão a pertinência da sujeição de tal actividade às disposições em apreço; e

c)      pode decidir, caso a caso, se tal possibilidade for prevista no direito interno, não aplicar o disposto no presente artigo às propostas de actividades do domínio da defesa nacional, se entender que a aplicação das disposições em apreço prejudica esse objectivo.

2.      O público envolvido será informado de forma adequada, atempada e efectiva, na fase inicial de um processo de tomada de decisões em matéria ambiental, através de aviso público ou individualmente, designadamente:

a)      da actividade proposta e do pedido relativamente ao qual será tomada uma decisão;

b)      da natureza das eventuais decisões ou do projecto de decisão;

c)      da autoridade pública responsável pela adopção da decisão;

d)      do procedimento previsto, incluindo como e quando podem ser comunicadas:

i)      as informações sobre o início do processo;

ii)      as informações sobre as possibilidades de participação do público;

iii)      as informações sobre o momento e local de realização das audições públicas previstas;

iv)      a indicação da autoridade pública junto da qual seja possível obter a informação relevante e à qual esta informação tenha sido confiada para exame pelo público;

v)      a indicação da autoridade pública ou qualquer outro órgão oficial para o qual possam ser enviados comentários ou questões, assim como o prazo de apresentação desses mesmos comentários ou questões; e

vi)      a indicação da informação ambiental disponível relevante para a actividade proposta; e ainda;

e)      do facto de a actividade estar sujeita a um procedimento transfronteiras de avaliação de impacto ambiental.

3.      Os procedimentos aplicáveis à participação do público estabelecerão prazos razoáveis para as diferentes etapas, prevendo períodos de tempo suficientes para informar o público de acordo com o disposto no n.° 2 e para permitir que o público se prepare e participe activamente no processo de tomada de decisões do domínio do ambiente.

4.      Cada Parte velará pela participação do público o mais cedo possível no processo, quando todas as opções estiverem em aberto e possa haver uma participação efectiva do público.

[…]»

5        O artigo 9.°, n.° 2, da Convenção de Aarhus estabelece:

«Cada parte garantirá, nos termos da respectiva legislação nacional, que os membros do público em causa:

a)      que tenham um interesse suficiente; ou, em alternativa;

b)      cujo direito tenha sido ofendido, caso a lei de procedimento administrativo da parte o imponha como condição prévia, tenham acesso a um recurso junto dos tribunais e/ou de outra instância independente instituída por lei, para impugnar a legalidade material e processual de qualquer decisão, acto ou omissão sujeita às disposições previstas no artigo 6.° e, salvo disposição em contrário no direito interno, a outras disposições relevantes da presente convenção.

O interesse suficiente e a ofensa do direito serão determinados em conformidade com os requisitos do direito interno e com o objectivo de conceder ao público envolvido um amplo acesso à justiça nos termos da presente convenção. Para este fim, o interesse das organizações não governamentais que satisfaçam os requisitos mencionados no n.° 5 do artigo 2.° serão considerados suficientes para efeitos da alínea a). Presumir‑se‑á igualmente que tais organizações têm direitos susceptíveis de serem ofendidos para efeitos da alínea b).

O disposto no n.° 2 não exclui a possibilidade de interposição de recurso preliminar junto de uma autoridade administrativa e não prejudica o requisito do recurso judicial que consiste no esgotamento prévio dos recursos administrativos, caso tal requisito seja previsto no direito interno.»

 Direito da União

6        Nos termos do artigo 1.°, n.° 2, da Directiva 85/337, o conceito de «projecto» é definido como «a realização de obras de construção ou de outras instalações ou obras» e «outras intervenções no meio natural ou na paisagem, incluindo as intervenções destinadas à exploração dos recursos do solo». O conceito de «aprovação» é definido como «a decisão da autoridade ou das autoridades competentes que confere ao dono da obra o direito de realizar o projecto».

7        O artigo 1.°, n.° 5, desta directiva dispõe:

«A presente directiva não se aplica aos projectos que são adoptados em pormenor por um acto legislativo nacional específico, visto os objectivos da presente directiva, incluindo o de fornecer informações, serem atingidos através do processo legislativo.»

8        O artigo 2.°, n.° 1, da dita directiva prevê:

«Os Estados‑Membros tomarão as disposições necessárias para que, antes de concedida a aprovação, os projectos que possam ter um impacto significativo no ambiente, nomeadamente pela sua natureza, dimensões ou localização, fiquem sujeitos a um pedido de aprovação e a uma avaliação dos seus efeitos. […]»

9        O artigo 5.°, n.° 4, da mesma directiva enuncia:

«Sempre que o considerem necessário, os Estados‑Membros providenciarão para que as autoridades que possuem informações adequadas […] as coloquem à disposição do dono da obra.»

10      Nos termos do artigo 10.°‑A da Directiva 85/337:

«Os Estados‑Membros devem assegurar que, de acordo com o sistema jurídico nacional relevante, os membros do público em causa que:

a)      tenham um interesse suficiente ou, em alternativa;

b)      invoquem a violação de um direito, sempre que a legislação de processo administrativo de um Estado‑Membro assim o exija como requisito prévio,

tenham a possibilidade de interpor recurso perante um tribunal ou outro órgão independente e imparcial criado por lei para impugnar a legalidade substantiva ou processual de qualquer decisão, acto ou omissão abrangido pelas disposições de participação do público estabelecidas na presente directiva.

Os Estados‑Membros devem determinar a fase na qual as decisões, actos ou omissões podem ser impugnados.

Os Estados‑Membros devem determinar o que constitui um interesse suficiente e a violação de um direito, de acordo com o objectivo que consiste em proporcionar ao público em causa um vasto acesso à justiça. Para tal, considera‑se suficiente, para efeitos da alínea a) do presente artigo, o interesse de qualquer organização não governamental que cumpra os requisitos referidos no n.° 2 do artigo 1.° Igualmente se considera, para efeitos da alínea b) do presente artigo, que tais organizações têm direitos susceptíveis de ser violados.

O presente artigo não exclui a possibilidade de um recurso preliminar para uma autoridade administrativa e não afecta o requisito de exaustão dos recursos administrativos prévios aos recursos judiciais, caso esse requisito exista na legislação nacional.

O referido processo deve ser justo, equitativo, atempado e não exageradamente dispendioso.

Para melhorar a eficácia das disposições do presente artigo, os Estados‑Membros devem garantir que sejam postas à disposição do público informações práticas relativas ao acesso às vias de recurso administrativo e judicial.»

 Direito nacional

11      Os artigos 6.°, 7.°, 9.° e 14.° do Decreto do Parlamento da Valónia, de 17 de Julho de 2008, relativo a determinadas licenças em relação às quais existem razões imperiosas de interesse geral (Moniteur belge de 25 de Julho de 2008, p. 38900) dispõem:

«Art. 6.° É ratificada a licença seguinte, relativamente à qual existem razões imperiosas de interesse geral:

–        no que respeita aos actos e obras de construção de infra‑estruturas e aerogares dos aeroportos regionais, o despacho ministerial de 13 de Setembro de 2006 que concede uma licença de construção à Société régionale wallonne des Transports para a ampliação da pista do aeroporto de Liège‑Bierset.

Art. 7.° É ratificada a licença seguinte, relativamente à qual existem razões imperiosas de interesse geral:

–        no que respeita aos actos e obras de construção de infra‑estruturas e aerogares dos aeroportos regionais, a licença de construção de 16 de Setembro de 2003 emitida pelo funcionário delegado da Direction générale de l’Aménagement du Territoire, du Logement et du Patrimoine de Charleroi à SA SOWAER para cobertura do caudal do Tintia e alteração do relevo do terreno na parte nordeste da zona aeroportuária.

[...]

Art. 9.° É ratificada a licença seguinte, relativamente à qual existem razões imperiosas de interesse geral:

–        no que respeita aos actos e obras de construção de infra‑estruturas e aerogares dos aeroportos regionais, o despacho ministerial de 27 de Julho de 2005 relativo à licença ambiental concedida à SA SOWAER para a exploração do aeroporto de Charleroi‑Bruxelas Sul.

[...]

Art. 14.° É ratificada a licença seguinte, relativamente à qual existem razões imperiosas de interesse geral:

–        no que diz respeito à rede RER, bem como aos anexos, acessos e serventias com ela relacionados, o despacho ministerial de 9 de Fevereiro de 2006 relativo à licença única concedida à SNCB para a construção e exploração da terceira e quarta vias na linha Infrabel 124 Bruxelas‑Charleroi nos municípios de Waterloo, Braine‑l’Alleud e Nivelles.»

12      No essencial, resulta dos autos que o Conseil d’État é competente para decidir os recursos de anulação de actos administrativos e dos regulamentos das autoridades administrativas, bem como de actos administrativos das assembleias legislativas ou dos seus órgãos.

13      Em contrapartida, não pode conhecer dos recursos de actos de natureza legislativa.

14      Ora, a ratificação, por decreto do Parlamento da Valónia, de licenças de construção e de autorizações de obras confere a estes actos um valor legislativo. Consequentemente, o Conseil d’État não tem competência para conhecer de recursos de anulação desses actos ratificados, que só podem ser impugnados na Cour constitutionnelle, perante a qual, contudo, apenas podem ser invocados determinados fundamentos.

 Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

15      Foram submetidos ao Conseil d’État seis recursos através dos quais determinados residentes nas imediações dos aeroportos de Liège‑Bierset e de Charleroi‑Bruxelas Sul, bem como da linha ferroviária Bruxelas‑Charleroi, impugnaram uma série de licenças e de autorizações, adoptadas pelas autoridades administrativas competentes, relativas à execução de obras ou à exploração de instalações desses aeroportos e ao seu serviço.

16      Enquanto esses recursos estavam pendentes nesse órgão jurisdicional, o Decreto do Parlamento da Valónia de 17 de Julho de 2008, que é um acto legislativo adoptado pelo Parlamento da Valónia e aprovado pelo governo da Região da Valónia, «ratificou» as referidas licenças e autorizações, isto é, validou‑as por «razões imperiosas de interesse geral».

17      Este decreto foi objecto de diversos recursos de anulação na Cour constitutionnelle.

18      No processo perante o órgão jurisdicional de reenvio, os recorrentes alegam que, uma vez que um acto de natureza legislativa substituiu os actos administrativos impugnados e que esse acto só pode ser impugnado na Cour constitutionnelle, a adopção do referido Decreto de 17 de Julho de 2008 tem por efeito privar o Conseil d’État da sua competência e privar os recorrentes do seu interesse na anulação desses actos. Além disso, o recurso de anulação na Cour constitutionnelle não respeita o artigo 9.° da Convenção de Aarhus nem o artigo 10.°‑A da Directiva 85/337, na medida em que esse tribunal só exerce uma fiscalização limitada da constitucionalidade dos actos legislativos e, portanto, da violação dos direitos fundamentais e não uma fiscalização completa de mérito, quanto ao respeito de todas as disposições de direito nacional relativas ao ambiente e às normas processuais aplicáveis.

19      Foi neste contexto que o Conseil d’État decidiu suspender a instância e submeter à Cour constitutionnelle diversas questões prejudiciais relativas à constitucionalidade do Decreto do Parlamento da Valónia de 17 de Julho de 2008 e ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais, as quais coincidem em parte com as colocadas à Cour constitutionnelle e são iguais em cada um dos processos que foram submetidos ao órgão jurisdicional de reenvio:

«1)      O artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337[…] pode ser interpretado no sentido de que exclui do seu âmbito de aplicação uma legislação – como o [D]ecreto [do Parlamento da Valónia] de 17 de Julho de 2008 – que se limita a referir que ‘existem razões imperiosas de interesse geral’, para efeitos de concessão de licenças de construção, de licenças ambientais e de licenças únicas relativas aos actos e obras por ela enumerados, e que ‘ratifica’ as licenças relativamente às quais é afirmado que ‘existem razões imperiosas de interesse geral’?

2)      Os artigos 1.°, 5.°, 6.°, 7.°, 8.° e 10.°‑A da Directiva 85/337[…] opõem‑se a um regime jurídico nos termos do qual o direito de realizar um projecto sujeito a avaliação de impacto é conferido por um acto legislativo contra o qual não existe uma via de recurso perante um órgão jurisdicional ou outro órgão independente e imparcial instituído por lei, que permita impugnar, quanto ao mérito e ao procedimento seguido, a decisão que confere o direito de realizar o projecto?

3)      O artigo 9.° da Convenção de Aarhus […] deve ser interpretado no sentido de que obriga os Estados‑Membros a prever a possibilidade de interpor recurso perante um órgão jurisdicional ou outro órgão independente e imparcial instituído por lei para impugnar, relativamente a qualquer questão de mérito ou de processo decorrente do regime material ou do regime processual de autorização de projectos sujeitos a avaliação de impacto, a legalidade de decisões, actos ou omissões abrangidos pelo âmbito de aplicação das disposições do artigo 6.°?

4)      À luz da Convenção de Aarhus, o artigo 10.°‑A da Directiva 85/337[…] deve ser interpretado no sentido de que obriga os Estados‑Membros a prever a possibilidade de interpor recurso perante um órgão jurisdicional ou outro órgão independente e imparcial instituído por lei para impugnar a legalidade de decisões, actos ou omissões relativamente a qualquer questão de mérito ou de processo decorrente do regime material ou do regime processual de autorização de projectos sujeitos a avaliação de impacto?»

20      Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2009, os processos C‑128/09 a C‑131/09, C‑134/09 e C‑135/09 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

21      O Governo belga sustenta, a título principal, que os pedidos de decisão prejudicial são inadmissíveis. Alega que esses pedidos não contêm uma exposição suficiente do quadro factual e legal e dos fundamentos que levam o órgão jurisdicional de reenvio a colocar as questões ao Tribunal de Justiça e que, por outro lado, as questões submetidas são hipotéticas.

22      A este respeito, deve recordar‑se que compete ao tribunal nacional da causa – que é o único que tem um conhecimento directo dos factos que lhe estão subjacentes e que tem de assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar – apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, quer a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão quer a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, como as questões colocadas são relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir (v., designadamente, acórdão de 15 de Dezembro de 1995, Bosman, C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.° 59).

23      Contudo, resulta de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que a necessidade de se chegar a uma interpretação do direito da União que seja útil ao órgão jurisdicional nacional exige que este defina o quadro factual e legal em que se inscrevem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que assentam essas questões (v., designadamente, acórdão de 26 de Janeiro de 1993, Telemarsicabruzzo e o., C‑320/90 a C‑322/90, Colect., p. I‑393, n.° .° 6).

24      A este respeito, as informações facultadas nas decisões de reenvio servem não só para permitir ao Tribunal de Justiça fornecer respostas úteis mas também para dar aos governos dos Estados‑Membros, bem como às demais partes interessadas, a possibilidade de apresentarem observações nos termos do artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Compete ao Tribunal de Justiça velar pela salvaguarda desta possibilidade, atendendo ao facto de que, nos termos da disposição referida, apenas as decisões de reenvio são notificadas às partes interessadas, acompanhadas de uma tradução na língua oficial ou nas línguas oficiais de cada Estado‑Membro (v. acórdão de 1 de Abril de 1982, Holdijk e o., 141/81 a 143/81, Recueil, p. 1299, n.° 6).

25      No caso em apreço, e contrariamente ao que afirma o Governo belga, o quadro factual e legal, tal como é apresentado nas decisões de reenvio, fornece a fundamentação que levou o órgão jurisdicional de reenvio a colocar as questões ao Tribunal de Justiça, bem como os elementos que permitem aos governos dos Estados‑Membros e às demais partes interessadas apresentarem observações nos termos do artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça e a este fornecer uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio.

26      Com efeito, o referido quadro factual e legal é suficiente para esclarecer as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que são relativas à compatibilidade com o direito de acesso à justiça, garantido tanto pela Convenção de Aarhus como pela Directiva 85/337, de um acto legislativo cuja adopção tem por efeito impedir o órgão jurisdicional de reenvio de conhecer de litígios que já lhe estão submetidos.

27      O conteúdo das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça no âmbito dos presentes processos atesta, em qualquer caso, a suficiência da informação sobre o contexto factual e jurídico, já que permitiu às partes no processo principal e às demais partes interessadas tomarem utilmente posição sobre as questões submetidas.

28      Além disso, o facto de a adopção do Decreto do Parlamento da Valónia de 17 de Julho de 2008 ter por efeito, segundo o direito nacional, retirar ao órgão jurisdicional de reenvio a sua competência para conhecer dos actos administrativos em causa nos processos principais não tem como consequência, contrariamente ao que o Governo belga sustenta, tornar hipotéticas as questões submetidas. Com efeito, estas questões têm por objecto determinar previamente se o referido decreto pôde, à luz das disposições visadas da Convenção de Aarhus e do direito da União, ter por efeito privar o Conseil d’État da sua competência para julgar os processos principais.

29      Por último, no que diz respeito ao argumento de que o órgão jurisdicional de reenvio não explica as razões pelas quais, para submeter as questões ao Tribunal de Justiça, não esperou que a Cour constitutionnelle se pronunciasse sobre outras questões que lhe submeteu no âmbito dos mesmos processos, basta recordar que, como é referido no n.° 25 do presente acórdão, as decisões de reenvio fornecem os fundamentos que levaram o órgão jurisdicional de reenvio a colocar as questões ao Tribunal de Justiça.

30      A título subsidiário, o Governo belga invoca outras excepções de inadmissibilidade baseadas no facto de que o sentido e o alcance das disposições cuja interpretação é solicitada são inequívocos, que determinadas questões não são pertinentes e, por último, que o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre o alcance do artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337.

31      A este respeito, deve recordar‑se que um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso jurisdicional de direito interno é obrigado a cumprir o seu dever de reenvio, sempre que uma questão de direito da União nele seja suscitada, a menos que conclua que a questão suscitada não é pertinente, que a disposição do direito da União em causa foi já objecto de interpretação por parte do Tribunal de Justiça ou que a correcta aplicação do direito da União se impõe com uma evidência tal que não há lugar a nenhuma dúvida razoável (v., designadamente, acórdão de 6 de Outubro de 1982, Cilfit e o., 283/81, Recueil, p. 3415, n.° 21).

32      No entanto, resulta de jurisprudência assente que os órgãos jurisdicionais nacionais conservam, em qualquer caso, inteira liberdade para recorrer ao Tribunal de Justiça se considerarem oportuno (v., designadamente, acórdão Cilfit e o., já referido, n.° 15), sem que o facto de as disposições cuja interpretação é solicitada terem já sido interpretadas pelo Tribunal de Justiça ou de se poder considerar que não dão lugar a nenhuma dúvida razoável tenha por efeito determinar a incompetência do Tribunal de Justiça para se pronunciar (v., designadamente, neste sentido, acórdão de 2 de Abril de 2009, Pedro IV Servicios, C‑260/07, Colect., p. I‑2437, n.° 31).

33      Por último, não se afigura, à luz das decisões de reenvio, que as questões submetidas não sejam pertinentes para a decisão das causas que foram submetidas ao órgão jurisdicional de reenvio. Como afirmado no n.° 28 do presente acórdão, essas questões têm por objecto determinar previamente se o Decreto do Parlamento da Valónia de 17 de Julho de 2008 pôde, à luz das disposições visadas da Convenção de Aarhus e do direito da União, ter por efeito privar o Conseil d’État da sua competência para julgar os processos principais.

34      Daqui resulta que os pedidos de decisão prejudicial são admissíveis.

 Quanto à primeira questão

35      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337 deve ser interpretado no sentido de que um acto como o Decreto do Parlamento da Valónia de 17 de Julho de 2008, que «ratifica», ao conferir‑lhes um valor legislativo, licenças de construção, ambientais ou de obras previamente concedidas pela autoridade administrativa relativamente às quais é afirmado que «existem razões imperiosas de interesse geral», está excluído do âmbito de aplicação desta directiva.

36      Decorre desta disposição que, quando os objectivos da Directiva 85/337 forem atingidos através do processo legislativo, incluindo o de fornecer informações, esta directiva não se aplica ao projecto em causa (v. acórdão de 19 de Setembro de 2000, Linster, C‑287/98, Colect., p. I‑6917, n.° 51).

37      Esta disposição sujeita a duas condições a exclusão de um projecto do âmbito de aplicação da Directiva 85/337. A primeira exige que o projecto seja adoptado em pormenor por um acto legislativo específico. De acordo com a segunda, os objectivos desta directiva, incluindo o de fornecer informações, devem ser atingidos através do processo legislativo (v. acórdão de 16 de Setembro de 1999, WWF e o., C‑435/97, Colect., p. I‑5613, n.° 57).

38      Relativamente à primeira condição, ela implica, antes de mais, que o projecto seja adoptado por um acto legislativo específico. A este respeito, importa observar que os conceitos de «projecto» e de «aprovação» são definidos no artigo 1.°, n.° 2, da Directiva 85/337. Assim, um acto legislativo que adopte um projecto deve, para estar abrangido pelo artigo 1.°, n.° 5, desta directiva, ser específico e apresentar as mesmas características que uma tal aprovação. Deve, nomeadamente, conferir ao dono da obra o direito de realizar o projecto (v. acórdão WWF e o., já referido, n.° 58).

39      Além disso, o projecto deve ser adoptado em pormenor, ou seja, de forma suficientemente precisa e definitiva, de forma que o acto legislativo que o adopta deve incluir, à semelhança de uma aprovação, após a sua apreciação pelo legislador, todos os elementos do projecto que importam na perspectiva da avaliação dos efeitos no ambiente (v. acórdão WWF e o., já referido, n.° 59). O acto legislativo deve, assim, atestar que os objectivos da Directiva 85/337 foram atingidos no que se refere ao dito projecto (v. acórdão Linster, já referido, n.° 56).

40      Daqui resulta não se poder considerar que um acto legislativo aprova um projecto em pormenor, na acepção do artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337, quando não inclui os elementos necessários à avaliação dos efeitos desse projecto no ambiente ou obriga à adopção de outros actos para conferir ao dono da obra o direito de realizar o projecto (v. acórdãos, já referidos, WWF e o., n.° 62, e Linster, n.° 57).

41      Relativamente à segunda condição, resulta do artigo 2.°, n.° 1, da Directiva 85/337 que o seu objectivo principal é garantir que os projectos que possam ter um impacto significativo no ambiente, nomeadamente pela sua natureza, dimensões ou localização, sejam submetidos à avaliação dos seus efeitos antes da concessão de uma aprovação (v. acórdão Linster, já referido, n.° 52).

42      Além disso, o sexto considerando da Directiva 85/337 precisa que a avaliação se deve efectuar com base na informação adequada fornecida pelo dono da obra e eventualmente completada pelas autoridades e pelo público a quem o projecto diga respeito (v. acórdãos, já referidos, WWF e o., n.° 61, e Linster, n.° 53).

43      Consequentemente, no momento da adopção do projecto, o legislador deve ter à sua disposição informações suficientes. Resulta do artigo 5.°, n.° 3, da Directiva 85/337 e do seu anexo IV que as informações a fornecer pelo dono da obra devem incluir pelo menos uma descrição do projecto com informações relativas à sua localização, concepção e dimensões, uma descrição das medidas previstas para evitar, reduzir e, se possível, remediar os efeitos negativos significativos, bem como os dados necessários para identificar e avaliar os efeitos principais que o projecto pode ter no ambiente (v. acórdão Linster, já referido, n.° 55).

44      Tendo em conta as características dos processos de aprovação de um plano em diversas fases, a Directiva 85/337 não se opõe a que um mesmo projecto seja aprovado por dois actos de direito nacional, considerados no seu conjunto como uma aprovação na acepção do seu artigo 1.°, n.° 2 (v., neste sentido, acórdão de 4 de Maio de 2006, Comissão/Reino Unido, C‑508/03, Colect., p. I‑3969, n.° 102). Consequentemente, o legislador pode, na adopção do acto final de aprovação de um projecto, beneficiar das informações recolhidas no âmbito de um processo administrativo prévio.

45      A existência desse processo administrativo não pode, contudo, ter como consequência que um projecto possa ser considerado adoptado em pormenor por um acto legislativo específico, em conformidade com o artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337, se esse acto legislativo não respeitar as duas condições recordadas no n.° 37 do presente acórdão. Assim, um acto legislativo que mais não fizesse do que «ratificar» pura e simplesmente um acto administrativo preexistente, limitando‑se a referir razões imperiosas de interesse geral sem prévia abertura de um processo legislativo quanto ao mérito que permitisse respeitar as referidas condições, não se pode considerar um acto legislativo específico na acepção dessa disposição e, portanto, não é suficiente para excluir um projecto do âmbito de aplicação da Directiva 85/337.

46      Em especial, um acto legislativo adoptado sem que os membros do órgão legislativo tenham tido à sua disposição as informações mencionadas no n.° 43 do presente acórdão não pode estar abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337.

47      Cabe ao juiz nacional determinar se essas condições estão preenchidas. Para esse efeito, deve ter em conta não só o conteúdo do acto legislativo adoptado mas também o conjunto do processo legislativo que levou à sua adopção, nomeadamente os actos preparatórios e os debates parlamentares.

48      Consequentemente, há que responder à primeira questão que o artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337 deve ser interpretado no sentido de que apenas estão excluídos do âmbito de aplicação desta directiva os projectos adoptados em pormenor por um acto legislativo específico, de forma a que os objectivos da referida directiva tenham sido atingidos através do processo legislativo. Cabe ao juiz nacional determinar se essas duas condições estão preenchidas, tendo em conta não só o conteúdo do acto legislativo adoptado mas também o conjunto do processo legislativo que levou à sua adopção, nomeadamente os actos preparatórios e os debates parlamentares. A este respeito, um acto legislativo que mais não faça do que «ratificar» pura e simplesmente um acto administrativo preexistente, limitando‑se a referir razões imperiosas de interesse geral sem prévia abertura de um processo legislativo quanto ao mérito que permita respeitar as ditas condições, não pode ser considerado um acto legislativo específico na acepção desta disposição e, portanto, não é suficiente para excluir um projecto do âmbito da Directiva 85/337.

 Quanto à segunda e quarta questões

49      Com a segunda e quarta questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 9.° da Convenção de Aarhus e 10.°‑A da Directiva 85/337 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que o direito de realizar um projecto abrangido pelo seu âmbito de aplicação seja conferido por um acto legislativo contra o qual o direito nacional não prevê uma via de recurso perante um órgão jurisdicional ou outro órgão independente e imparcial instituído por lei que permita impugnar esse acto quanto ao mérito e ao processo seguido.

50      Resulta do artigo 2.°, n.° 2, da Convenção de Aarhus, lido em conjugação com os artigos 6.° e 9.° desta Convenção, bem como do artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337, que nem esta Convenção nem esta directiva são aplicáveis aos projectos adoptados por um acto legislativo que preencha as condições recordadas no n.° 37 do presente acórdão.

51      Relativamente aos outros projectos, ou seja, aos adoptados por um acto que não tenha natureza legislativa ou por um acto legislativo que não preencha essas condições, decorre da própria redacção do artigo 9.°, n.° 2, da Convenção de Aarhus e do artigo 10.°‑A da Directiva 85/337 que os Estados devem prever a possibilidade de interpor recurso perante um órgão jurisdicional ou outro órgão independente e imparcial instituído por lei para impugnar a legalidade, quanto ao mérito ou ao processo, de decisões, actos ou omissões abrangidos, respectivamente, pelo âmbito de aplicação do artigo 6.° da Convenção de Aarhus ou da Directiva 85/337.

52      Os Estados‑Membros dispõem, em virtude da sua autonomia processual e sem prejuízo do respeito pelos princípios da equivalência e da efectividade, de uma margem de manobra na aplicação do artigo 9.°, n.° 2, da Convenção de Aarhus e do artigo 10.°‑A da Directiva 85/337. Cabe‑lhes, em especial, determinar qual o órgão jurisdicional ou o órgão independente e imparcial instituído por lei competente para conhecer dos recursos previstos nessas disposições e à luz de que modalidades processuais, desde que as disposições acima referidas sejam respeitadas.

53      Todavia, o artigo 9.° da Convenção de Aarhus e o artigo 10.°‑A da Directiva 85/337 perderiam todo o efeito útil se a simples circunstância de um projecto ser adoptado através de um acto legislativo que não cumpre as condições recordadas no n.° 37 do presente acórdão tivesse como consequência privá‑lo de qualquer via de recurso que permitisse impugnar a sua legalidade, quanto ao mérito ou ao processo, na acepção destas duas disposições.

54      As exigências que decorrem do artigo 9.° da Convenção de Aarhus e do artigo 10.°‑A da Directiva 85/337 implicam, a este respeito, que, quando um projecto que está abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 6.° da Convenção de Aarhus ou da Directiva 85/337 é adoptado por um acto legislativo, a questão de saber se esse acto legislativo preenche as condições fixadas no artigo 1.°, n.° 5, desta directiva e recordadas no n.° 37 do presente acórdão deve poder ser objecto de uma fiscalização, segundo as regras processuais nacionais, por um órgão jurisdicional ou por um órgão independente e imparcial instituído por lei.

55      No caso de não ser possível interpor nenhum recurso da natureza e do alcance acima recordados contra um tal acto, caberá a qualquer órgão jurisdicional nacional que tenha sido chamado a pronunciar‑se no âmbito da sua competência exercer a fiscalização descrita no número anterior e daí retirar, se necessário, as devidas consequências não aplicando esse acto legislativo.

56      No caso em apreço, se o órgão jurisdicional de reenvio concluir que o Decreto do Parlamento da Valónia de 17 de Julho de 2008 não responde às condições fixadas no artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337 e recordadas no n.° 37 do presente acórdão, e se se verificar que, segundo as regras nacionais aplicáveis, nenhum órgão jurisdicional ou nenhum órgão independente e imparcial instituído por lei é competente para fiscalizar a legalidade deste decreto, quanto ao mérito ou ao processo seguido, este deve então ser considerado incompatível com as exigências decorrentes do artigo 9.° da Convenção de Aarhus e do artigo 10.°‑A da Directiva 85/337. Cabe, então, ao órgão jurisdicional de reenvio não o aplicar.

57      Por conseguinte, há que responder à segunda e quarta questões que o artigo 9.°, n.° 2, da Convenção de Aarhus e o artigo 10.°‑A da Directiva 85/337 devem ser interpretados no sentido de que:

–        quando um projecto que está abrangido pelo âmbito de aplicação destas disposições é adoptado por um acto legislativo, a questão de saber se esse acto preenche as condições fixadas no artigo 1.°, n.° 5, desta directiva deve poder ser submetida, segundo as regras processuais nacionais, a um órgão jurisdicional ou a um órgão independente e imparcial instituído por lei;

–        no caso de não ser possível interpor nenhum recurso da natureza e do alcance acima recordados contra um tal acto, caberá a qualquer órgão jurisdicional nacional que tenha sido chamado a pronunciar‑se no âmbito da sua competência exercer a fiscalização descrita no travessão anterior e daí retirar, se necessário, as devidas consequências não aplicando esse acto legislativo.

 Quanto às despesas

58      Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 1.°, n.° 5, da Directiva 85/337/CEE do Conselho, de 27 de Junho de 1985, relativa à avaliação dos efeitos de determinados projectos públicos e privados no ambiente, conforme alterada pela Directiva 2003/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Maio de 2003, deve ser interpretado no sentido de que apenas estão excluídos do âmbito de aplicação desta directiva os projectos adoptados em pormenor por um acto legislativo específico, de forma a que os objectivos da referida directiva tenham sido atingidos através do processo legislativo. Cabe ao juiz nacional determinar se essas duas condições estão preenchidas, tendo em conta não só o conteúdo do acto legislativo adoptado mas também o conjunto do processo legislativo que levou à sua adopção, nomeadamente os actos preparatórios e os debates parlamentares. A este respeito, um acto legislativo que mais não faça do que «ratificar» pura e simplesmente um acto administrativo preexistente, limitando‑se a referir razões imperiosas de interesse geral sem prévia abertura de um processo legislativo quanto ao mérito que permita respeitar as ditas condições, não pode ser considerado um acto legislativo específico na acepção desta disposição e, portanto, não é suficiente para excluir um projecto do âmbito da Directiva 85/337, conforme alterada pela Directiva 2003/35.

2)      O artigo 9.°, n.° 2, da Convenção sobre o acesso à informação, participação do público no processo de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente, celebrada em 25 de Junho de 1998 e aprovada em nome da Comunidade Europeia pela Decisão 2005/370/CE do Conselho, de 17 de Fevereiro de 2005, e o artigo 10.°‑A da Directiva 85/337, conforme alterada pela Directiva 2003/35, devem ser interpretados no sentido de que:

–        quando um projecto que está abrangido pelo âmbito de aplicação destas disposições é adoptado por um acto legislativo, a questão de saber se esse acto preenche as condições fixadas no artigo 1.°, n.° 5, desta directiva deve poder ser submetida, segundo as regras processuais nacionais, a um órgão jurisdicional ou a um órgão independente e imparcial instituído por lei;

–        no caso de não ser possível interpor nenhum recurso da natureza e do alcance acima recordados contra um tal acto, caberá a qualquer órgão jurisdicional nacional que tenha sido chamado a pronunciar‑se no âmbito da sua competência exercer a fiscalização descrita no travessão anterior e daí retirar, se necessário, as devidas consequências não aplicando esse acto legislativo.

Assinaturas


* Língua do processo: francês.