CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

PEDRO CRUZ VILLALÓN

apresentadas em 29 de Março de 2011 (1)

Processos C‑509/09 e C‑161/10

eDate Advertising GmbH

contra

X (C‑509/09)

e

Olivier Martinez e

Robert Martinez

contra

Société MGN Limited (C‑161/10)

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Bundesgerichtshof (Alemanha) e pelo Tribunal de grande instance de Paris (França), respectivamente]

«Competência judiciária em matéria civil e comercial – Regulamento (CE) n.° 44/2001 – Competência ‘em matéria extracontratual’ – Violação de direitos da personalidade susceptível de ter sido cometida através da publicação de informações na Internet – Artigo 5.°, n.° 3 – Definição de ‘lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso’ – Aplicabilidade da jurisprudência Shevill do Tribunal de Justiça – Directiva 2000/31/CE – Artigo 3.°, n.os 1 e 2 – Determinação da existência de uma norma de conflito em matéria de direitos da personalidade»





1.        Os presentes processos apensos, iniciados a instâncias do Bundesgerichtshof e do Tribunal de grande instance de Paris, suscitam, antes de mais, várias questões sobre a interpretação do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 44/2001, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (2).

2.        Em particular, os referidos órgãos jurisdicionais questionam‑nos sobre o alcance da competência dos tribunais nacionais para conhecer de litígios sobre violação de direitos da personalidade cometida através de um sítio Internet. Como é sabido, o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a aplicação do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 (norma então prevista na Convenção de Bruxelas, de 27 de Setembro de 1968) a casos de difamação (3) através da imprensa no acórdão Shevill, proferido em 1995 (4). As questões agora apresentadas permitem à nossa jurisdição definir a capacidade de adaptação desta decisão a uma realidade sujeita a grandes mudanças, onde a imprensa em suporte de papel cedeu terreno, a um ritmo crescente e de forma irreversível, aos meios de comunicação electrónicos divulgados através da Internet.

3.        Com isto temos já enunciado algo que sempre esteve implícito em toda a problemática das ofensas aos direitos da personalidade cometidas numa actividade de comunicação social, qualquer que seja a sua modalidade. A tutela judicial destes direitos não pode, com efeito, ignorar a circunstância de que os mesmos se devem afirmar num contexto de tensão com as liberdades de comunicação (5), com as quais devem entrar em ponderação. É necessário tomar consciência da complexidade desta situação para poder desenvolver uma reflexão adequada acerca do tema central subjacente aos presentes processos apensos, e que mais não é do que a competência judiciária internacional em matéria de litígios decorrentes da violação de direitos da personalidade ocorrida no espaço da «rede».

4.        Por fim, o Bundesgerichtshof pergunta se o Direito da União, mais concretamente o artigo 3.° da Directiva 2000/31/CE, relativa ao comércio electrónico na Internet (6), tem o carácter de uma norma de conflito que determina a lei aplicável à responsabilidade extracontratual derivada de actos contra direitos da personalidade concretizados através de uma página «web».

I –    Quadro jurídico da União

5.        O Regulamento n.° 44/2001 prevê um conjunto de disposições de competência judiciária, bem como de reconhecimento de decisões, que visam unificar os critérios de determinação de foros em matéria civil e comercial. Os objectivos do regulamento encontram‑se plasmados nos respectivos considerandos, sendo de destacar, para efeitos do presente litígio, os seguintes:

«(11) As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular‑se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, excepto em alguns casos bem determinados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro critério de conexão. No respeitante às pessoas colectivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.

(12) O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça.»

6.        Nas suas disposições sobre competência judiciária, o regulamento estabelece como regra geral, no seu artigo 2.°, o foro do domicílio do requerido:

«Artigo 2.°

1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.»

7.        O artigo 3.° do regulamento prevê a possibilidade de excepcionar a regra geral no caso de se encontrarem reunidas as condições de aplicação dos foros especiais enunciados nas secções 2 a 7 do capítulo II. Entre os foros especiais, impõe‑se destacar o previsto no artigo 5.°, n.° 3:

«Artigo 5.°

Uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada noutro Estado‑Membro:

3. Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.»

8.        A Directiva 2000/31, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno, destaca, no seu artigo 1.°, n.° 4, que «[a] presente directiva não estabelece normas adicionais de direito internacional privado, nem abrange a jurisdição dos tribunais».

9.        O artigo 3.°, n.os 1 e 2, da Directiva 2000/31, estabelece uma regra de reconhecimento mútuo do seguinte teor:

«Artigo 3.°

Mercado interno

1. Cada Estado‑Membro assegurará que os serviços da sociedade de informação prestados por um prestador estabelecido no seu território cumpram as disposições nacionais aplicáveis nesse Estado‑Membro que se integrem no domínio coordenado.

2. Os Estados‑Membros não podem, por razões que relevem do domínio coordenado, restringir a livre circulação dos serviços da sociedade de informação provenientes de outro Estado‑Membro.»

II – Factos

A –    No processo eDate (C‑509/09)

10.      Em 1993, o Sr. X, de nacionalidade alemã e residente na República Federal da Alemanha, foi condenado por um tribunal alemão a uma pena de prisão perpétua pelo homicídio de um conhecido actor alemão. Desde Janeiro de 2008, o Sr. X encontra‑se em liberdade condicional.

11.      A eDate Advertising GmbH (a seguir «eDate») é uma sociedade austríaca gestora de um portal de Internet, cuja «web» se define como «meio liberal e politicamente independente» dirigido aos grupos «homossexuais, bissexuais e transexuais». A partir de 23 de Agosto de 1999, a eDate divulgou aos seus leitores informação sobre o Sr. X, identificando‑o pelo nome próprio e apelido, e destacando que tanto ele como o seu irmão (também condenado pelo mesmo crime) haviam interposto recurso da decisão de condenação para o Tribunal Constitucional alemão.

12.      A 5 de Junho de 2007, o Sr. X requereu à demandada que cessasse a divulgação de informação sobre a sua pessoa, pedido que não obteve resposta escrita, sendo certo, porém, que, volvidos alguns dias, a 18 de Junho, a informação em causa foi retirada do referido sítio Internet.

13.      O Sr. X recorreu aos tribunais alemães, solicitando que fosse proferida uma decisão de condenação da eDate a abster‑se de publicar qualquer informação relativa à sua pessoa, aplicável em todo o território da República Federal da Alemanha. O Landgericht Hamburg pronunciou‑se, em primeira instância, a favor do Sr. X, decisão confirmada, em recurso, pelo Hansiatisches Oberlandesgericht.

14.      Em ambas as instâncias a eDate contestou a competência judiciária internacional da jurisdição civil alemã. A eDate interpôs recurso de revista da decisão do Hansiatisches Oberlandesgericht para o Bundesgerichtshof, invocando novamente a falta de competência dos tribunais alemães, questão sobre a qual versam as três questões prejudiciais apresentadas pelo referido tribunal.

B –    No processo Martinez e Martinez (C‑161/10)

15.      Em 3 de Fevereiro de 2008, o diário britânico Sunday Mirror publicava na sua edição da Internet um série de fotografias, acompanhadas de um texto intitulado «Kylie Minogue novamente com Olivier Martinez». O artigo relatava o encontro do casal em Paris, referindo que «se tinham separado no ano passado» e que «o passeio romântico de 23 horas» confirmava o reatar de uma relação sentimental. O artigo atribuía também umas declarações ao pai do Sr. Olivier Martinez, o Sr. Robert Martinez.

16.      Olivier Martinez e Robert Martinez, ambos de nacionalidade francesa, instauraram uma acção contra a sociedade de direito inglês MGN Limited, proprietária do diário Sunday Mirror, no Tribunal de grande instance de Paris. Ambos consideraram que a informação publicada pelo citado meio de comunicação social constituía uma ofensa ao direito à reserva da intimidade da vida privada e ao direito de Olivier Martinez à sua própria imagem. A demandada foi citada a 28 de Agosto de 2008, tendo contestado a competência judiciária internacional do órgão jurisdicional francês, por considerar que eram os tribunais britânicos os internacionalmente competentes, e mais concretamente a High Court of Justice.

17.      Após ouvir as partes e apresentar ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial (rejeitada por manifesta incompetência) (7), o Tribunal de grande instance interrogou novamente o órgão jurisdicional da União a fim de confirmar o alcance da competência dos tribunais franceses.

III – Questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

18.      A 9 de Dezembro de 2009, deu entrada no Tribunal de Justiça o pedido de decisão prejudicial do Bundesgerichtshof no processo C‑509/09, apresentando as seguintes questões:

«1.      Em caso de (ameaça de) ofensa dos direitos da personalidade através de conteúdos de um sítio Internet, a expressão ‘lugar onde poderá ocorrer o facto danoso’ constante do n.° 3 do artigo 5.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (a seguir «Regulamento n.° 44/2001») deve ser interpretada no sentido de que

o interessado também pode intentar uma acção inibitória contra o operador do sítio nos órgãos jurisdicionais de qualquer Estado‑Membro em que seja possível aceder ao sítio, independentemente do Estado‑Membro em que aquele operador esteja estabelecido,

ou

a competência dos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro em que o operador do sítio não esteja estabelecido pressupõe que, para além da possibilidade técnica de acesso ao sítio, exista um nexo especial dos conteúdos impugnados ou do sítio com o Estado do foro (nexo de carácter territorial)?

2.      Em caso de esse nexo especial de carácter territorial ser necessário:

Com base em que critérios se determina esse nexo?

É necessário determinar se, de acordo com o estipulado pelo operador, o sítio contestado se dirige (de igual modo) aos utilizadores de Internet no Estado do foro ou é suficiente que as informações acessíveis no sítio apresentem objectivamente um nexo com o Estado do foro, no sentido de que, nas circunstâncias do caso concreto, em particular devido ao conteúdo do sítio contestado, pode ter efectivamente ocorrido ou poderá ocorrer, no Estado do foro, um conflito de interesses divergentes – o interesse do demandante no respeito dos seus direitos de personalidade e o interesse do operador na organização do seu sítio e na informação?

O número de acessos ao sítio contestado a partir do Estado do foro é relevante para […] determinar o nexo especial de carácter territorial?

3.      No caso de não ser necessário qualquer nexo especial de carácter territorial para justificar a competência ou no caso de ser suficiente que as informações contestadas apresentem objectivamente um nexo com o Estado do foro para se considerar que existe esse nexo especial, no sentido de que, nas circunstâncias do caso concreto, em particular devido ao conteúdo do sítio contestado, pode ter efectivamente ocorrido ou poderá ocorrer, no Estado do foro, um conflito de interesses divergentes, e a afirmação da existência de um nexo especial de carácter territorial não pressupõe a determinação de um número mínimo de acessos ao sítio contestado a partir do Estado do foro:

O artigo 3.°, n.os 1 e 2, da Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos jurídicos do comércio electrónico no mercado interno (a seguir «Directiva sobre comércio electrónico») deve ser interpretado no sentido de que:

se deve atribuir a estas disposições o carácter de regras de conflito de leis, no sentido de que impõem, também no domínio do direito civil, a aplicação exclusiva do direito em vigor no país de origem com exclusão das normas de conflito nacionais,

ou

as disposições em causa consistem numa correcção ao nível do direito substantivo através da qual o resultado substancial do direito declarado aplicável de acordo com as normas de conflito nacionais é substantivamente modificado e reduzido às exigências do país de origem?

No caso de o artigo 3.°, n.os 1 e 2, da directiva sobre comércio electrónico revestir o carácter de regra de conflito de leis:

As disposições referidas ordenam simplesmente a aplicação exclusiva do direito substantivo vigente no país de origem ou também a aplicação das normas de conflito aí em vigor, com a consequência de que continua a ser possível um reenvio (‘renvoi’) do direito do país de origem para o direito do país de destino?

19.      A 6 de Abril de 2010, deu entrada no Tribunal de Justiça a questão prejudicial apresentada pelo Tribunal de grande instance de Paris, formulada nos seguintes termos:

«Os artigos 2.° e 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, devem ser interpretados no sentido de que atribuem competência ao órgão jurisdicional de um Estado‑Membro para julgar uma acção que se baseia na violação dos direitos de personalidade, susceptível de ter sido cometida por uma disponibilização de informações e/ou de fotografias num sítio Internet editado noutro Estado‑Membro por uma sociedade domiciliada neste segundo Estado – ou ainda noutro Estado‑Membro, em qualquer caso distinto do primeiro:

–        apenas se este sítio Internet puder ser consultado a partir deste primeiro Estado;

–        ou apenas quando existe entre o facto lesivo e o território deste primeiro Estado uma ligação suficiente, substancial ou significativa e, neste segundo caso, se esta ligação puder resultar:

–        do grande número de ligações à página Internet controvertida a partir deste primeiro Estado‑Membro, em valor absoluto ou relativamente a todas as ligações à referida página;

–        da residência ou da nacionalidade da pessoa que se queixa de uma violação dos seus direitos de personalidade ou mais genericamente das pessoas em causa;

–        da língua na qual é difundida a informação controvertida ou de qualquer outro elemento susceptível de demonstrar a vontade do editor do sítio de se dirigir especificamente ao público deste primeiro Estado;

–        do local onde se verificaram os factos relatados e/ou onde foram feitas as fotografias eventualmente disponibilizadas através da Internet;

–        de outros critérios?»

20.      No processo eDate Advertising (C‑509/09) apresentaram observações escritas os representantes da eDate Advertising e o Sr. X, os governos da Dinamarca, Alemanha, Grécia, Itália, Luxemburgo, Áustria e Reino Unido, bem como a Comissão.

21.      No processo Martinez e Martinez (C‑161/10) apresentaram observações escritas a sociedade MGN Limited, os governos da Dinamarca, França e Áustria, e bem como a Comissão.

22.      Por despacho de 29 de Outubro de 2010, o presidente do Tribunal de Justiça determinou a apensação dos processos C‑509/09 e C‑161/10, em aplicação do artigo 43.° do Regulamento de Processo.

23.      A 22 de Novembro de 2010 o Sr. X solicitou assistência jurídica ao Tribunal de Justiça, pedido que foi indeferido por despacho de 10 de Dezembro de 2010.

24.      A audiência realizou‑se a 14 de Dezembro de 2010, tendo comparecido os representantes da MGN Limited e da eDate Advertising, os agentes dos governos da Dinamarca e da Grécia, assim como da Comissão.

IV – Quanto à admissibilidade da questão prejudicial do processo eDate (C‑509/09)

25.      A República Italiana considera que as questões apresentadas no processo eDate Advertising devem ser declaradas inadmissíveis, na medida em que a informação controvertida foi retirada pela eDate Advertising depois do pedido do demandante. Deste modo, a acção de inibição intentada pelo Sr. X estaria, na opinião do Governo italiano, desligada das questões de interpretação suscitadas perante o Tribunal de Justiça.

26.      Constitui jurisprudência reiterada que, em circunstâncias excepcionais, o Tribunal de Justiça é competente para examinar o contexto em que é chamado a pronunciar‑se pelo órgão de reenvio. A recusa em pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial apresentada por um órgão jurisdicional nacional apenas é possível se resultar evidente que a interpretação do direito comunitário solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto do processo principal, ou quando o problema é de natureza hipotética (8).

27.      Atento o contexto fáctico e processual do processo eDate Advertising, consideramos que a questão é admissível. Com efeito, o facto de a informação ter sido retirada não priva o demandante de intentar uma acção inibitória com carácter prospectivo, ou uma acção indemnizatória, quer seja no presente processo, quer seja num processo posterior. O Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 determina o foro competente quer o litígio se refira à reparação de um prejuízo já ocorrido quer diga respeito a uma acção destinada a impedir a realização do prejuízo, tanto por via da reparação como por via da inibição (9). No processo principal está em causa esta segunda variante, cuja finalidade é evitar prejuízos futuros e, mais concretamente no caso do Sr. X, evitar a divulgação de uma informação que foi já objecto de uma prolongada difusão. Deste modo, a resposta que vier a ser dada pela nossa jurisdição pode ter utilidade para o órgão jurisdicional de reenvio, sendo, em consequência, admissível, de acordo com os critérios desenvolvidos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

V –    Quanto aos motivos da apensação: o grau de coincidência das questões e o modo de abordar a respectiva resposta

28.      Como se deixou exposto no n.° 22 destas conclusões, o presidente do Tribunal de Justiça ordenou a apensação dos processos aqui em causa em razão da sua conexão objectiva. Ambos os processos abordam, em último termo, a possibilidade de aplicar ou não o já referido acórdão Shevill relativo ao artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 44/2001, a um contexto onde a informação que supostamente viola um direito da personalidade foi difundida através da Internet.

29.      Ora, não podemos ignorar que entre ambos os processos existem várias diferenças que não são de todo irrelevantes. Por um lado, no processo eDate, o demandante intentou uma acção de inibição, ao passo que o processo Martinez e Martinez se baseia no exercício de uma acção indemnizatória. Por outro lado, enquanto o processo eDate se centra numa informação supostamente caluniosa, o processo Martinez e Martinez parte de uma informação supostamente atentatória do direito à reserva da intimidade da vida privada. No processo eDate o demandado é uma empresa proprietária de um portal de informação na Internet, já no processo Martinez e Martinez é um editor de um meio de comunicação social no sentido mais estrito do termo, o Sunday Mirror, disponibilizado tanto em suporte de papel como em suporte electrónico.

30.      Apesar destas diferenças, os processos estão ligados por uma preocupação comum, expressa ou subjacente: o alcance da jurisprudência Shevill. Como foi referido no n.° 27 destas conclusões, o artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 44/2001, assim como a jurisprudência interpretativa do mesmo, são relevantes em casos como os dos autos. Na medida em que a solução do acórdão Shevill condiciona directamente a competência judiciária internacional dos tribunais alemães e franceses, a resposta a dar pelo Tribunal de Justiça pode articular‑se de forma comum. Em consequência, abordaremos a questão da competência de uma forma unitária, analisando só depois a terceira questão prejudicial apresentada pelo Bundesgerichtshof no processo eDate, centrada na problemática da lei aplicável.

VI – Quanto à primeira e segunda questões prejudiciais do processo eDate Advertising (C‑509/09) e à questão prejudicial única do processo Martinez e Martinez (C‑161/10)

31.      O aparecimento e desenvolvimento da Internet, e particularmente da World Wide Web ao longo da última década do século passado causou uma profunda transformação nos modos e técnicas de distribuição e recepção da informação. Como consequência deste fenómeno, são actualmente numerosos os institutos jurídicos que exigem um reequacionamento da sua concepção e do seu alcance quando projectados sobre as relações sociais e comerciais que ocorrem na rede. Neste processo suscitam‑se as mesmas dúvidas no campo da competência judiciária internacional, porquanto as respostas até agora oferecidas pela nossa jurisprudência não se adequam sem um certo ajustamento, ou possivelmente algo mais, ao carácter universal e livre da informação distribuída na Internet.

32.      Passaremos de seguida a recordar de forma sucinta o conteúdo da jurisprudência Shevill, bem como a apreciação que a mesma mereceu, para passar depois a analisar a especial natureza das ofensas aos direitos da personalidade perpetradas através da Internet, atendendo essencialmente às diferenças entre a publicação de informação distribuída em suportes físicos e a divulgada na Internet. Pronunciar‑nos‑emos, por fim, sobre o modo de adequar a solução consagrada pelo acórdão Shevill às circunstâncias dos casos em apreço, propondo um critério adicional de conexão com base na localização do «centro de gravidade do conflito» entre os bens e valores em causa.

A –    Jurisprudência Shevill: análise e apreciação

33.      No acórdão Minas de Potássio da Alsácia (10), proferido em 1976, o Tribunal de Justiça declarou que caso o lugar onde ocorreu o facto susceptível de desencadear responsabilidade extracontratual e o lugar onde esse facto provocou o dano não coincidam, a expressão «lugar onde ocorreu […] o facto danoso», contida no actual artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 44/2001, deve ser entendida no sentido de que se refere quer ao lugar onde o dano se verificou quer ao lugar onde decorreu o facto causal.

34.      A importância do acórdão Minas de Potássio da Alsácia não pode ser ignorada. Com o intuito de evitar que o foro especial da responsabilidade extracontratual nesses casos coincidisse com o foro geral do domicílio do demandado, o Tribunal de Justiça interpretou o referido artigo 5.°, n.° 3 no sentido de que o mesmo admite dois foros alternativos, à escolha do demandante: um no lugar onde decorreu o facto causal, e outro no lugar onde o dano se verificou efectivamente.

35.      A abordagem do referido acórdão, centrada na produção de danos materiais, estendeu‑se, com o acórdão Shevill, aos casos de danos não patrimoniais. Nesse processo, como é sabido, o Tribunal de Justiça admitiu a aplicabilidade da abordagem supra exposta aos casos de violação de direitos da personalidade (11). O Tribunal de Justiça especificou nesta ocasião que, no caso de uma «difamação internacional» através da imprensa (precisamente o caso suscitado no processo Shevill), «o atentado feito por uma publicação difamatória à honra, à reputação e à consideração de uma pessoa singular ou colectiva manifesta‑se nos lugares onde a publicação é divulgada, quando a vítima é aí conhecida» (12). Neste caso, no entanto, o titular do direito da personalidade afectado apenas podia reclamar no referido foro os danos causados nesse Estado.

36.      Ao admitir como critério de conexão o lugar onde a vítima é conhecida, o Tribunal de Justiça, seguindo a proposta dos advogados‑gerais M. Darmon e P. Léger (13), considerou que os órgãos jurisdicionais dos Estados onde a publicação difamatória foi divulgada e onde a vítima invoca ter sofrido um atentado à sua reputação, são competentes para conhecer dos danos causados nesse Estado à reputação da vítima (14). Com o propósito de evitar os inconvenientes que este foro poderia acarretar, o Tribunal de Justiça acrescentou que o demandante tem sempre a faculdade de formular o seu pedido global ou no tribunal do domicílio do demandado, ou no do lugar de estabelecimento do editor da publicação difamatória (15).

37.      Deste modo, o acórdão Shevill admitiu, partindo do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 44/2001 e para os casos de ofensas aos direitos da personalidade através de meios de comunicação, dois foros alternativos, cuja escolha cabe ao demandante: um, no do Estado do domicílio do demandado ou do estabelecimento do editor, no qual o titular do direito poderá reclamar a totalidade dos danos sofridos; e outro, no Estado no qual o referido particular seja conhecido, no qual poderá reclamar os danos sofridos apenas nesse Estado, uma limitação denominada por alguma doutrina como «princípio mosaico» (16).

38.      O acórdão Shevill atingiu um equilíbrio razoável, geralmente bem recebido pela doutrina (17). A solução concilia por um lado a necessidade de centralizar num único Estado, o do editor ou o do demandado, as acções sobre a totalidade dos danos reivindicados, e por outro permite ao titular do direito da personalidade litigar, ainda que de forma limitada, perante os tribunais dos locais onde se concretiza uma ofensa a um bem não patrimonial, como é o caso da própria imagem. Vista desta forma, a solução do acórdão Shevill evita que o foro especial do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 44/2001 seja convertido num foro equivalente ao geral, o qual privilegia a jurisdição do domicílio do demandado, mas também afasta o forum actoris, um critério que o regulamento descartou expressamente ao basear‑se, tal como a sua antecessora, a Convenção de Bruxelas, na regra geral de competência actor sequitur forum rei (18).

39.      Como se constata, a jurisprudência Shevill abrange aquelas violações de direitos da personalidade que se materializam num conflito entre a liberdade de informação e o direito à reserva da intimidade da vida privada ou à própria imagem. O seu alcance é amplo e não se cinge exclusivamente aos meios de comunicação impressos, pois o seu âmbito de aplicação é susceptível de abranger também outros suportes de informação, como a informação televisiva ou radiofónica. Do mesmo modo, cobre um variado leque de violações aos direitos da personalidade, quer sejam calúnias ou injúrias, no sentido que geralmente se atribui a estas ofensas nos ordenamentos continentais, quer a «difamação» característica dos ordenamentos da common law (19).

40.      O elemento que distingue os dois casos aqui apensados do apreciado no acórdão a que nos temos referido não é outro senão o suporte da informação. Os danos ocorridos em consequência da violação de direitos da personalidade através de publicações impressas, da televisão ou da rádio, foram sendo tradicionalmente abordados num contexto marcadamente nacional. As repercussões internacionais destes litígios constituíam casos pontuais para os ordenamentos nacionais, em grande medida devido ao âmbito territorial que caracterizou os meios de comunicação. Ao cingir a actividade a um único território, a tendência natural do meio de comunicação é a de oferecer informação com interesse para os destinatários potenciais desse espaço geográfico. Em consequência, os atentados aos direitos de personalidade ocorreriam através de um meio e contra uma pessoa que se localizariam, na maioria dos casos, no mesmo espaço territorial.

41.      Portanto, e a fim de nos podermos pronunciar sobre a susceptibilidade de adaptação do referido acórdão Shevill, impõe‑se agora abordar, ainda que sumariamente, as mudanças introduzidas pela Internet nas técnicas e modos de comunicação.

B –    Internet, imprensa e divulgação de informação

42.      Sem necessidade de remontarmos aos tempos em que a palavra falada e em menor medida escrita constituía o veículo por excelência da comunicação social, as liberdades de opinião e de comunicação, tal como hoje as conhecemos, encontram particularmente a sua origem no momento em que começa a ser possível a sua divulgação através da imprensa. Simultaneamente, a comunicação escrita e, em geral, gráfica (20), vem sendo, desde então, uma comunicação em suporte de papel. São estas as inovações técnicas que permitiram reivindicar e proclamar sucessivamente as referidas liberdades, cujo modelo se aplicaria sem dificuldade aos meios de difusão através de ondas de som e através da imagem.

43.      A invenção e implantação da Internet, assim como da World Wide Web (21), acabou de vez com esta tendência de fragmentação territorial dos meios de informação. Mais ainda, inverteu‑a até converter a divulgação de informação num fenómeno global e não nacional (22). Utilizando um suporte técnico e imaterial que permite o armazenamento massivo de informação e a sua distribuição imediata em qualquer ponto do planeta, a Internet proporciona uma plataforma sem precedentes nas técnicas de comunicação social. Deste modo, a Internet introduz, por um lado, uma transformação da nossa concepção espacial/territorial da comunicação, globalizando as relações sociais e minimizando a relevância da dimensão regional ou estatal, até ao ponto de criar um espaço imaterial e intangível, o «ciberespaço», sem fronteiras nem limites. Por outro lado, a Internet transforma a concepção temporal das referidas relações, tanto pelo seu imediatismo no acesso aos seus conteúdos como no seu potencial de permanência na rede. Uma vez que um conteúdo circule na rede, a sua presença através da mesma é, em princípio, indefinida.

44.      Como consequência do anteriormente referido, um meio de comunicação que decide divulgar os seus conteúdos na Internet adopta um método de «distribuição» radicalmente distinto dos suportes tradicionais. Ao contrário da imprensa, uma página web não requer uma decisão empresarial prévia sobre o número de exemplares a distribuir, nem muito menos a imprimir, uma vez que a distribuição é global e instantânea: a sua acessibilidade concretiza‑se, como se sabe, em qualquer lugar do mundo onde exista acesso à rede. O acesso ao meio é também diferente, assim como as técnicas de publicidade que rodeiam o produto. Como acabamos de referir, a rede permite um acesso permanente, universal e de distribuição imediata entre os particulares. Inclusive no caso dos meios de comunicação de acesso pago existentes na Internet, estes distinguem‑se dos restantes suportes pelo facto de a sua compra ser, por norma, territorialmente universal.

45.      Assim sendo, a Internet caracteriza‑se, ao contrário dos meios tradicionais, por uma significativa ausência de poder político. A sua própria natureza global dificulta a intervenção do poder público nas actividades desenvolvidas na rede, desembocando numa falta de regulamentação que muitas vozes criticam (23). À falta de regulamentação material soma‑se ainda a fragmentação dos conflitos, uma dispersa amálgama de ordenamentos nacionais, com as respectivas disposições de Direito Internacional Privado, que podem sobrepor‑se e dificultar qualquer aproximação às normas que regem um litígio em concreto.

46.      As características expostas têm um indiscutível impacto no âmbito do direito. Como já referimos, a distribuição global e imediata de conteúdos informativos na Internet submete um editor a uma multiplicidade de regimes jurídicos locais, regionais, estatais e internacionais. Para além do mais, a inexistência de um quadro regulador global das actividades informativas na Internet, aliada à diversidade de normas de direito internacional privado previstas pelos Estados, expõem os meios de comunicação a um quadro jurídico fragmentado, mas também potencialmente contraditório, pois aquilo que é proibido num Estado pode ser permitido noutro (24). Portanto, a necessidade de proporcionar segurança jurídica aos meios de comunicação, prevenindo situações que dificultem o legítimo exercício da liberdade de informação (o chamado chilling‑effect) é um objectivo que o Tribunal de Justiça deve também tomar em consideração (25).

47.      Deste modo, o controlo que um meio de comunicação realiza sobre a respectiva distribuição e o respectivo acesso torna‑se difuso e, por vezes, impossível de concretizar. A partir do momento em que um conteúdo informativo é disponibilizado na rede, os particulares transformam‑se automaticamente, voluntária ou involuntariamente, em distribuidores da informação, quer seja através de redes sociais, de comunicações electrónicas, de links, de blogues ou de quaisquer outros meios que a Internet proporciona (26). Até a restrição de conteúdos efectuada através de acessos pagos, por vezes limitados territorialmente, tem sérias dificuldades em impedir a distribuição massiva de informação. Em consequência, o controlo e a dimensão do impacto informativo, bem como o respectivo cálculo, que nos meios de comunicação tradicionais encontrava técnicas consideravelmente fiáveis, tornam‑se uma tarefa impossível de cumprir quando a informação circula na rede (27).

48.      Por outro lado, as possíveis vítimas de publicações ofensivas dos direitos da personalidade encontram‑se numa posição de especial vulnerabilidade quando o suporte é proporcionado pela Internet. O alcance universal da informação contribui para que a ofensa seja potencialmente mais incisiva que a sofrida, por exemplo, através de um meio convencional (28). A gravidade da ofensa contrasta com a multiplicidade de regimes aplicáveis, pois a dispersão territorial justifica que coexistam diferentes sistemas nacionais e, com eles, outros tantos sistemas jurisdicionais nacionais competentes para conhecer do litígio. O titular do direito da personalidade afectado pode ser vítima, portanto, de violações potencialmente mais intensas, ao passo que a sua tutela jurídica, dada a atomização e insegurança jurídica que sofre, se vê diminuída.

C –    Quanto à oportunidade de adaptar ou confirmar a jurisprudência Shevill

49.      Relembremos que no acórdão Shevill o Tribunal de Justiça deu uma resposta que conciliava o interesse dos meios de comunicação social com a salvaguarda da situação jurídica do titular de um direito da personalidade. A solução contida no mesmo permite localizar de forma clara e precisa o «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso» para efeitos de determinação de um ou de vários foros. Esta jurisprudência tem um interesse evidente para aqueles casos de danos causados aos direitos da personalidade cujo meio de comunicação demandado tem um sistema de distribuição territorializado em maior ou menor grau. Na medida em que o método de disseminação da informação responde a uma estratégia empresarial que mede a conveniência económica e informativa de se implantar nuns e noutros Estados, uma solução como a prevista na jurisprudência Shevill, que territorializa também a extensão do dano, constitui, com efeito, uma resposta razoável.

50.      Ora, o acórdão em causa foi proferido nos anos imediatamente anteriores à expansão da Internet. As circunstâncias em que surgem os presentes processos são, contrariamente ao que acontece num caso como o de Fiona Shevill, claramente diferentes, o que dificulta a aplicação prática da solução a que chegou o Tribunal de Justiça em 1995. Por exemplo, o vínculo de conexão com o foro do lugar onde seja conhecido o titular do direito da personalidade só poderá conhecer dos danos efectivamente ocorridos nesse Estado. Esta regra tinha uma aplicação prática viável nos anos em que foi proferido o acórdão Shevill, atendendo, por exemplo, ao número de exemplares distribuídos em cada Estado‑Membro, uma informação facilmente verificável, uma vez que se integrava na política comercial do meio de comunicação e obedecia a decisões empresariais voluntárias. No entanto, o grau de difusão de um meio de comunicação como tal (ou dos seus conteúdos) na Internet carece de parâmetros de medição fiáveis, como bem reconheceram os intervenientes na audiência que teve lugar nos presentes autos. E embora seja certo que o número e a origem das «visitas» a uma página Web pode ser indicativo de um impacto territorial determinado, trata‑se, em todo o caso, de fontes que não oferecem garantias suficientes para efeitos de uma determinação concludente e definitiva da produção de um dano antijurídico (29).

51.      Assim, a jurisprudência Shevill fundamenta‑se na garantia de uma boa administração da justiça, objectivo expressamente contemplado na exposição de motivos do Regulamento n.° 44/2001 (30). Acontece que a aplicação desta solução ao contexto dos meios de comunicação na Internet pode mostrar‑se, em determinados casos, incompatível com tais objectivos. Pense‑se, por exemplo, no caso de alguém como o Sr. Olivier Martinez, que parece gozar de popularidade (é «conhecido») em mais do que um Estado‑Membro. A atomização excessiva de foros competentes, assim como, eventualmente, de leis aplicáveis, dificilmente se concilia com uma boa administração da justiça (31). Do mesmo modo, o simples facto de a informação sobre essa pessoa pública se encontrar directamente acessível em todos os Estados‑Membros, exporá o editor do meio de comunicação a uma situação difícil de gerir, pois qualquer Estado‑Membro seria um potencial foro competente para a instauração de um eventual processo. Também não se pode dizer que a previsibilidade na definição das regras seja favorecida com este resultado, nem para o demandante nem para o demandado (32).

52.      Num plano mais geral, também é importante destacar como, desde 1995, ano em que foi publicado o acórdão em questão, se têm verificado mudanças relevantes no quadro jurídico da União. A entrada em vigor da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia confirmou a relevância tanto do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada como da liberdade de informação. Os artigos 7.° e 11.° expressam a especial protecção que merece a informação numa sociedade democrática, do mesmo modo que destacam a relevância da esfera privada, na qual também se inclui a própria imagem. A jurisprudência do Tribunal de Justiça havia tido já a possibilidade de se pronunciar sobre ambos os direitos antes da entrada em vigor da Carta (33), tal como a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por sua vez, havia concretizado o respectivo conteúdo (34). No entanto, a entrada em vigor da Carta tem um valor específico para estes efeitos, pois reflecte abertamente a necessidade de que todos os âmbitos de intervenção da União, incluindo os relativos à cooperação judiciária em matéria civil, passem a estar sujeitos ao conteúdo definitório dos direitos nela previstos (35). Assim sendo, a sobreexposição a que ficam sujeitos os meios de comunicação num cenário incontrolável de litigação, bem como a gravidade das possíveis ofensas aos direitos da personalidade e a insegurança jurídica que oferece a respectiva tutela, obrigam a equacionar o conflito subjacente à jurisprudência Shevill em termos que evitem este resultado.

53.      Por outro lado, qualquer abordagem que pressuponha uma alteração da jurisprudência Shevill deve atender necessariamente a uma exigência de neutralidade tecnológica. Quer dizer, as respostas que o Tribunal de Justiça ofereça aos problemas de interpretação suscitados pelo surgimento da Internet não devem focalizar‑se excessivamente neste suporte, sob pena de ficarem desactualizadas em face dos avanços tecnológicos, ou correrem o risco de implicar diferenças de tratamento em função de um critério que pode mostrar‑se arbitrário, como seja o uso de determinada tecnologia (36). Embora seja certo que a Internet coloca o conflito entre a liberdade de informação e o direito à imagem em termos muito particulares, a solução que ofereça o Tribunal de Justiça deve ser, na medida do possível, aplicável a todos os meios de comunicação, seja qual for o suporte em que se expressem (37). Esta conclusão sai ainda mais reforçada se observarmos que, no momento actual, praticamente não encontramos meios de comunicação que não tenham uma edição electrónica divulgada na rede, se tivermos em conta essencialmente a imprensa diária de alguma relevância. Os conteúdos informativos são fungíveis e procedem ao intercâmbio dos seus suportes. Consequentemente, a determinação do foro competente deve procurar‑se em critérios que abranjam as ofensas causadas simultaneamente, por exemplo, tanto por um meio com suporte impresso como por uma página web (38).

54.      Chegados a este ponto, consideramos ser possível dar uma resposta que adapte a jurisprudência Shevill e, ao mesmo tempo, seja tecnologicamente neutra. A resposta não se encontra, na nossa opinião, numa alteração radical da referida jurisprudência. Pelo contrário, consideramos que a resposta dada em 1995 pelo Tribunal de Justiça se mantém ainda actual para os casos de «difamação internacional» cujo suporte de informação seja um meio de comunicação impresso. Seria suficiente acrescentar um critério de conexão adicional aos então aí previstos, sem necessidade, além disso, de o restringir apenas aos danos causados através da Internet.

D –    «Centro de gravidade do conflito» como critério de conexão adicional

55.      Como temos vindo a referir, o acórdão Shevill consagra um duplo foro, cuja escolha cabe ao titular do direito da personalidade, permitindo‑lhe escolher entre o foro do editor ou demandado, ou o foro do lugar ou lugares onde aquele seja conhecido. Esta abordagem é, como já indicámos, a adequada para um considerável número de situações já atrás expostas. Daí que os critérios de conexão que esta jurisprudência consagra não sejam, em si mesmos, errados, antes permitindo e inclusive sugerindo, ser completados com um critério suplementar. Em concreto, entendemos que se impõe formalizar e incorporar um critério adicional de conexão, por forma a que o «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», no sentido do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento (CE) n.° 44/2001, seja identificado também com aquele onde se localiza o «centro de gravidade do conflito» entre os bens e interesses em causa.

56.      A violação dos direitos da personalidade através dos meios de comunicação social na rede suscita um conflito cujos termos já se deixaram expostos nos n.os 42 a 44 destas conclusões. A dificuldade acrescida reside no carácter transnacional, ou até simplesmente global, deste conflito, o qual impõe que se procurem foros competentes que equilibrem os direitos e interesses em causa, tanto do meio de comunicação como dos particulares afectados. Portanto, um possível critério de conexão poderia basear‑se, em princípio, na acessibilidade à informação, o que justificaria uma conexão automática com todos os Estados‑Membros, uma vez que, na prática, a informação supostamente lesiva está acessível em todos eles. No entanto, e como salientaram todos os intervenientes neste processo, esta opção daria imediatamente lugar a um fenómeno de forum shopping insustentável para qualquer meio de informação que opere na rede (39). Do mesmo modo, a gravidade da lesão que o titular do direito fundamental à reserva da intimidade possa vir a sofrer, o qual observa como a informação atentatória da sua reputação se encontra disponível em qualquer ponto do planeta, contrasta com uma solução que fragmenta o seu direito em cada Estado‑Membro onde seja conhecida (40).

57.      Entendemos que uma solução que complemente adequadamente os critérios de conexão do acórdão Shevill seria a que, para além de abranger os casos originalmente previstos, permitisse localizar o foro em que o órgão jurisdicional esteja melhor posicionado para conhecer do conflito entre os interesses em jogo, podendo assim, consequentemente, conhecer da totalidade dos danos sofridos. Tratar‑se‑ia, pois, de uma situação intermédia em relação às duas já existentes, pois permitiria ao titular do direito da personalidade litigar num foro onde esteja localizado o seu centro de interesses, ofereceria previsibilidade ao meio de comunicação social e permitiria um julgamento global do dano sofrido (41). Consideramos que o critério do lugar onde se manifesta o «centro de gravidade do conflito» concilia acertadamente esta diversidade de objectivos.

58.      Dito da forma mais concisa possível, o lugar do «centro de gravidade do conflito» seria aquele no qual um órgão jurisdicional pode efectuar, nas condições mais favoráveis, o julgamento de um litígio que oponha a liberdade de informação ao direito à própria imagem. Esta circunstância ocorre no Estado onde se «visualize» ou manifeste com maior intensidade a potencialidade de um atentado ao direito à própria reputação ou intimidade e o valor inerente à comunicação de uma determinada informação ou opinião, conforme for o caso. Será nesse Estado que o titular do direito da personalidade sofrerá uma eventual ofensa com maior extensão e intensidade. Do mesmo modo, e isto é sem dúvida importante do ponto de vista da segurança jurídica, será o território no qual o meio de comunicação tinha podido prever a eventual verificação da referida ofensa, e o consequente risco de aí vir a ser demandado. Nestes termos, o centro de gravidade será aquele em que o órgão jurisdicional se encontre na situação mais vantajosa para permitir uma apreensão integral do conflito entre os interesses em jogo.

59.      Na determinação do lugar onde se manifesta o «centro de gravidade do conflito» impõe‑se identificar, pois, dois elementos. O primeiro diz respeito ao titular do direito da personalidade supostamente violado e requer que o «centro de gravidade do conflito» se situe no local onde aquele tenha o seu «centro de interesses». Este critério é, até certo ponto, semelhante ao previsto no acórdão Shevill, o qual exigia que «a vítima [fosse] conhecida». No entanto, na determinação do lugar onde se encontra o «centro de gravidade do conflito» não basta que a vítima seja meramente conhecida. Pelo contrário, trata‑se de identificar o lugar (e, portanto, o Estado‑Membro) no qual o particular afectado no gozo dos seus direitos da personalidade desenvolve essencialmente o seu projecto de vida, sempre e quando este exista.

60.      O segundo elemento diz respeito à natureza da informação. Para efeitos de determinação do lugar onde se situa o «centro de gravidade do conflito», importa que a informação objecto do litígio esteja expressa de tal maneira que permita razoavelmente prever que a mesma é objectivamente relevante num determinado espaço territorial. Ou seja, a informação que despolete o litígio deve expressar‑se em termos que, tendo em conta as circunstâncias que rodeiam a notícia, constitua uma informação que suscite interesse num território e, em consequência, incite activamente os leitores desse território a a ela aceder (42).

61.      A particularidade da característica tensão que pode existir entre os dois direitos – pensamos que isto pode ser sustentado sem excessivo risco – radica no facto de o centro de gravidade da potencial ofensa dos direitos da personalidade tender a coincidir com o centro de gravidade ou de interesse da notícia ou da opinião em causa. Em suma, porque a notícia ou opinião pode interessar especialmente num determinado lugar, também é nesse lugar onde o possível atentado aos direitos da personalidade poderá causar mais danos.

62.      Atento o já exposto, é importante não confundir o segundo dos referidos elementos com um critério de intencionalidade por parte do meio de comunicação. A informação não é objectivamente relevante pelo facto de um editor a direccionar voluntariamente para um Estado‑Membro. Um critério baseado na intencionalidade seria contrário ao teor literal do artigo 5.°, n.° 3, do Regulamento n.° 44/2001, o que se confirma no confronto com o artigo 15.°, n.° 1, alínea c), do mesmo texto, que prevê um foro especial para os contratos de consumo nas situações em que o prestador do serviço «dirige essa actividade […] a esse Estado‑Membro ou a vários Estados» (43). Não encontramos nada semelhante no referido artigo 5.°, n.° 3, pelo que não cabe determinar a competência internacional com base em critérios de intencionalidade (44). Para além do mais, um critério baseado na vontade subjectiva do informador gera sérios problemas de prova, como se demonstra, na prática, onde tal critério se aplica (45).

63.      Ao propor que a informação deve ser objectivamente relevante referimo‑nos aos casos em que um meio de comunicação pode razoavelmente prever que a informação distribuída na sua edição electrónica contém um «interesse noticioso» num território concreto, incitando os leitores desse território a a ela aceder. Este critério de relevância objectiva pode aplicar‑se através de vários indícios, cuja apreciação compete, adiantamos já, ao órgão jurisdicional nacional.

64.      Antes de tudo o mais, e como se depreende do já exposto, o primeiro elemento a ter obrigatoriamente em consideração é o conteúdo da informação objecto do litígio. Uma determinada informação pode ter interesse num território e carecer em absoluto de qualquer interesse noutro território. As notícias sobre um cidadão austríaco que reside na Áustria, que informem sobre eventuais crimes cometidos na Áustria, têm um «interesse noticioso» evidente nesse país, ainda que a informação seja divulgada através de um diário digital cujo editor tenha o seu domicílio no Reino Unido. A partir do momento em que um meio de comunicação disponibiliza na rede conteúdos que, pela sua própria natureza, tenham um impacto informativo indiscutível noutro Estado, o respectivo editor pode prever razoavelmente que, no caso de ter divulgado informação lesiva de um direito da personalidade, seja eventualmente demandado nesse Estado. Deste modo, quanto maior for o interesse objectivo de determinada notícia num território nacional, maior será a tendência para as ofensas aos direitos aí perpetradas terem uma conexão com os tribunais desse território.

65.      Além disso, o órgão jurisdicional pode tomar em consideração outros indícios que ajudem a localizar o território onde a informação seja objectivamente relevante. Note‑se que pode tratar‑se de indícios que indiquem uma vontade subjectiva por parte do editor de dirigir a informação para um determinado Estado. No entanto, para o que nos interessa, mais não constituem do que indícios que orientam na busca de uma conexão com um território, e não uma qualquer intenção a cargo do emissor da informação. Assim, nesta relação de possíveis elementos que há que apreciar, deve tomar‑se em consideração o facto de a informação poder estar disponibilizada numa página com um nome de domínio de primeiro nível distinto do Estado‑Membro onde está estabelecido o editor, demonstrando assim a existência de um espaço territorial determinado no qual a informação pode ser objecto de especial acompanhamento (46). Do mesmo modo, a língua da página web contribui para delimitar uma área de influência da informação publicada. A publicidade contida na página, no caso de existir, pode também indicar o âmbito territorial onde a informação se destina a ser consultada (47). A secção da página na qual seja divulgada resulta de igual modo pertinente para efeitos de lograr um impacto num determinado território. Ponha‑se, por exemplo, o caso de um diário «on line» com rubricas de informação divididas por Estados. A publicação de uma informação sob o título «Alemanha» será um indício para considerar que as notícias aí proporcionadas tenham um efeito particularmente significativo naquele país. As palavras‑chave colocadas nos motores de busca para identificar a página do meio de comunicação podem também fornecer linhas de orientação para a determinação do lugar no qual a notícia seja objectivamente relevante. Por fim, e sem pretensão de sermos exaustivos, os registos de acesso a uma página, apesar da sua escassa fiabilidade, podem constituir uma fonte meramente ilustrativa para efeitos de confirmar se uma determinada informação teve ou não impacto num determinado território (48).

66.      Os critérios atrás expostos permitem a um órgão jurisdicional determinar se a informação objecto controvertida resulta objectivamente relevante num determinado espaço territorial. Se, com efeito, a informação adquire uma dimensão objectivamente relevante num Estado‑Membro o qual, por sua vez, coincide com o Estado onde se localiza o «centro de interesses» do titular do direito da personalidade, consideramos que os tribunais desse Estado são os competentes para conhecer de uma acção de indemnização pela totalidade dos danos causados pelo acto ilícito. O Estado‑Membro onde confluam ambas as circunstâncias é, evidentemente, o lugar onde um órgão jurisdicional esteja o melhor posicionado para julgar os factos e conhecer de todo o processo. Esse órgão jurisdicional seria, em suma, o foro onde se localiza o «centro de gravidade do conflito».

67.      Em conclusão, proponho ao Tribunal de Justiça que declare que a expressão «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», no sentido do n.° 3 do artigo 5.° do Regulamento n.° 44/2001, no caso de violação de direitos da personalidade mediante informação divulgada em vários Estados‑Membros através da Internet, deve ser interpretado no sentido de que o titular do direito da personalidade pode intentar uma acção de indemnização:

–        ou nos tribunais do Estado‑Membro do lugar de estabelecimento do editor da publicação ofensiva dos direitos da personalidade, os quais são competentes para conhecer da totalidade dos danos decorrentes da ofensa dos referidos direitos,

–        ou nos tribunais de cada Estado‑Membro no qual a publicação tenha sido divulgada e no qual o titular do direito da personalidade alegue ter sofrido um ataque contra a sua reputação, os quais são competentes para conhecer apenas dos danos causados nesse mesmo Estado;

–        ou nos tribunais do Estado‑Membro no qual se localize o «centro de gravidade do conflito» entre os bens e interesses em jogo, os quais têm competência para reparar a totalidade dos danos derivados da violação do direito de personalidade. Entende‑se por Estado‑Membro onde se localiza o «centro de gravidade do conflito» aquele em cujo território a informação controvertida seja objectiva e particularmente relevante e onde, ao mesmo tempo, o titular do direito da personalidade tenha o seu «centro de interesses».

VII – Quanto à terceira questão prejudicial do processo eDate Advertising (C‑509/09)

68.      Com a sua terceira questão, o Bundesgerichtshof interroga‑nos sobre o alcance do artigo 3.°, n.° 2, da Directiva 2000/31, relativa ao comércio electrónico na Internet, aplicado a um caso como o dos autos. Em síntese, pergunta se a referida disposição, ao prever que os Estados‑Membros «não podem, por razões que relevem do domínio coordenado, restringir a livre circulação dos serviços da sociedade de informação provenientes de outro Estado‑Membro», reveste o carácter de uma norma de direito aplicável, ou, a não ser assim, consiste numa simples correcção ao conteúdo do direito nacional aplicável ao litígio.

69.      A resposta a esta última questão exige algumas observações prévias de carácter geral.

70.      O Bundesgerichtshof apresenta esta terceira questão, e nos termos em que o faz, porquanto tem dúvidas acerca de qual seja a lei aplicável a um litígio como o dos autos. Na sua essência, a questão poderia ser entendida do seguinte modo: a Directiva 2000/31 operou uma harmonização do direito internacional privado nacional, estabelecendo uma norma de conflito que determina a aplicação, pelo órgão jurisdicional competente, do direito substantivo do Estado‑Membro de estabelecimento do editor? No caso de a resposta ser negativa e o Tribunal de Justiça considerar que essa harmonização não se verificou, o Bundesgerichtshof dirige sucessivamente a sua questão para o âmbito e a incidência (a «correcção do direito substantivo») da Directiva 2000/31 sobre o direito internacional privado alemão, que seria então o aplicável a um caso como o do processo eDate Advertising.

71.      Se esta apreciação da nossa parte fosse correcta, consideramos que antes de mais se impõe recordar o contexto funcional e sistemático do preceito da Directiva 2000/31 aqui em causa. Sob a epígrafe «Mercado interno», o artigo 3.° da referida directiva concretiza uma exigência que reflecte o conteúdo convencional da livre prestação de serviços. O preceito expressa num instrumento de Direito derivado uma garantia já contemplada pelo Direito originário no artigo 56.° TFUE, adequando‑a às especificidades requeridas pela harmonização normativa do comércio electrónico. O n.° 1 da norma confirma a aplicação das disposições do Estado‑Membro da prestação de serviços, enquanto o n.° 2 destaca a necessidade de tomar em consideração as exigências legais já cumpridas pelo prestador de serviços no Estado‑Membro do seu estabelecimento. Esta norma introduz claramente, e uma vez mais, uma exigência de reconhecimento mútuo, de harmonia com a jurisprudência da nossa jurisdição (49). Depois, a concretização da livre prestação de serviços completa‑se com o n.° 4 do mesmo artigo, o qual enumera as justificações que os Estados podem invocar para poderem tomar medidas derrogatórias da livre prestação de serviços no sector em causa.

72.      Tendo em conta o exposto, afigura‑se‑nos vislumbrar na formulação da questão de que estamos a tratar uma certa distância em relação ao que o artigo 3.° da Directiva 2000/31, no seu conjunto, diz ou, pelo menos, parece dizer. O referido preceito, em suma, e como já referimos, define os termos em que os Estados‑Membros têm que regulamentar um sector económico integrado no mercado interno, plasmando nas suas disposições o conteúdo da livre prestação de serviços, que abrange, como é sabido, uma exigência de reconhecimento mútuo. No entanto, o referido artigo não introduz uma norma de direito aplicável que ordene ao Estado‑Membro no qual seja prestado o serviço que aplique o direito nacional do Estado onde se encontre domiciliado o prestador. O artigo 3.° da Directiva 2000/31 simplesmente concretiza o conteúdo da livre prestação de serviços, e com ele as condições de aplicação da técnica do reconhecimento mútuo.

73.      Consideramos que esta constatação resulta ainda mais reforçada se tivermos em conta o disposto no artigo 1.° da Directiva 2000/31, cujo n.° 4 dispõe que «[a] presente directiva não estabelece normas adicionais de direito internacional privado, nem abrange a jurisdição dos tribunais». Ou seja: o texto não prevê directamente, nem harmoniza, normas de direito aplicáveis nem de competência judiciária internacional na matéria em causa (50). Trata‑se, em suma, de uma regulamentação neutra em termos de direito internacional privado, que não altera nem inova os critérios de determinação da competência, da lei aplicável, ou do reconhecimento de decisões judiciais provenientes de outros Estados‑Membros (51).

74.      A exigência de neutralidade conflitual da Directiva 2000/31 deve, do mesmo modo, enformar a interpretação do referido artigo 3.°, uma vez que se insere sistematicamente logo no seu artigo 1.° Nada indica, pelo contrário, que o artigo 3.° actue como uma excepção ao artigo 1.°

75.      Outro indício concludente de que a Directiva 2000/31 não prevê uma resposta de direito internacional privado encontra‑se nos ordenamentos nacionais, concretamente nas normas internas de transposição do referido texto. Consta dos autos que os Estados‑Membros efectuaram uma transposição heterogénea do artigo 3.° da Directiva 2000/31. Enquanto alguns introduziram normas de direito aplicáveis (52), outros Estados‑Membros optaram por uma transposição em termos expressos de reconhecimento mútuo (53). Neste segundo caso, observa‑se inclusive que alguns ordenamentos transpuseram o citado artigo 3.° reproduzindo literalmente o seu texto (54).

76.      Acresce ainda que uma leitura da Directiva 2000/31 em termos de retirar da mesma uma norma de direito aplicável resultaria desautorizada pelo estado actual do direito derivado relativo à cooperação judiciária em matéria civil. Como é sabido, o Regulamento n.° 864/2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II»), exclui do seu âmbito de aplicação as «obrigações extracontratuais que decorram da violação da vida privada e dos direitos de personalidade, incluindo a difamação» (55). Os trabalhos preparatórios do regulamento demonstram as marcadas diferenças de critério defendidas pelos Estados‑Membros sobre esta matéria, desembocando assim numa exclusão do regulamento que, neste momento procura solução numa nova iniciativa legislativa a cargo da Comissão (56). Na nossa opinião, seria pelo menos duvidoso que o Regulamento n.° 864/2007 tivesse que operar uma exclusão como a atrás aludida, se a Directiva 2000/31 tivesse já previsto uma norma harmonizadora das normas de direito nacionais aplicáveis nesta matéria.

77.      Portanto, e tendo em conta os argumentos atrás expostos, inclinamo‑nos para propor ao Tribunal de Justiça que responda, em primeiro lugar, no sentido de que o artigo 3.° não opera uma harmonização que imponha aos Estados‑Membros uma norma de conflito.

78.      Para terminar, o referido órgão jurisdicional encerra a sua terceira questão perguntando, alternativamente, se o artigo 3.°, n.° 2, da Directiva 2000/31 consiste «numa correcção ao nível do direito substantivo através da qual o resultado substancial do direito declarado aplicável de acordo com as normas de conflito nacionais é substantivamente modificado e reduzido às exigências do país de origem».

79.      Esta pergunta esconde, como já destacamos anteriormente, uma concepção do artigo 3.° da directiva como norma de direito internacional privado. É certo que, uma vez descartada a natureza conflitual do preceito em causa, se depreende que a norma não harmoniza o regime de determinação da lei aplicável a um caso como o dos autos. No entanto, tal não significa que o artigo 3.° actue per se como uma regra de correcção de uma disposição nacional de lei aplicável. Como se deixou exposto nos n.os 71 a 73 destas conclusões, o referido preceito limita‑se a desenvolver um regime de harmonização da livre prestação de serviços no âmbito do comércio electrónico. Um tribunal que aplica a técnica do reconhecimento mútuo num conflito com um vínculo internacional não aplica a legislação do Estado‑Membro do estabelecimento do prestador de serviços, apenas se limita a considerar válido, desde que não ocorram razões que determinem medidas derrogatórias, o cumprimento das normas reguladoras do serviço nesse Estado (57). Isto não impede que, por via de uma derrogação, o Estado do foro tenha previsto medidas adicionais direccionadas à protecção de determinados bens merecedores de especial tutela (veja‑se o n.° 4 do referido artigo 3.°). No entanto, em caso algum se aplica a lei do Estado‑Membro de origem, nem o Estado cuja jurisdição é competente está obrigado, por imposição da directiva, a prever especificamente uma correcção de direito internacional privado ao contemplar medidas mais protectoras.

80.      Assim sendo, muito menos se pode afirmar, na nossa opinião, que o artigo 3.° da Directiva 2000/31 tenha por objectivo harmonizar uma correcção material ao nível do direito substantivo aplicável. O artigo 3.° não impede os Estados‑Membros, dentro da margem de discricionariedade que lhe confere a directiva, tal como o artigo 56.° TFUE, de prever medidas de protecção de interesses de especial garantia, como excepção à livre prestação de serviços. Em consequência, o legislador alemão pode articular estas excepções, quer através de medidas substantivas, quer mesmo através de normas de correcção da lei aplicável. Mas tal não significa que a Directiva 2000/31 preveja uma solução conflitual para o problema.

81.      Em suma, consideramos que o artigo 3.° da Directiva 2000/31 deve ser interpretado no sentido de que não impõe uma regra de conflito de leis nem uma «correcção do direito substantivo». O referido preceito expressa uma concretização legislativa, em termos de harmonização, da livre prestação de serviços aplicada ao comércio electrónico, habilitando ao mesmo tempo os Estados‑Membros, dentro da margem de discricionariedade que lhes confere a directiva, assim como o artigo 56.° TFUE, a preverem medidas de protecção de interesses merecedores de especial garantia, como excepção à livre prestação de serviços.

VIII – Conclusão

82.      Tendo em conta todo o exposto, propomos ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões apresentadas pelo Bundesgerichtshof e pelo Tribunal de grande instance de Paris:

«1)      A expressão ‘lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso’, utilizada no n.° 3 do artigo 5.° do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, no caso de violação de direitos da personalidade mediante informação divulgada em vários Estados‑Membros através da Internet, deve ser interpretada no sentido de que o titular do direito da personalidade pode intentar uma acção de indemnização:

–        ou nos tribunais do Estado‑Membro do lugar de estabelecimento do editor da publicação ofensiva dos direitos de personalidade, os quais são competentes para conhecer da totalidade dos danos decorrentes da ofensa dos referidos direitos,

–        ou nos tribunais de cada Estado‑Membro no qual a publicação tenha sido divulgada e no qual o titular do direito da personalidade alegue ter sofrido um ataque contra a sua reputação, os quais são competentes para conhecer apenas dos danos causados nesse mesmo Estado,

–        ou nos tribunais do Estado‑Membro no qual se localize o ‘centro de gravidade do conflito’ entre os bens e interesses em jogo, os quais têm competência para reparar a totalidade dos danos derivados da violação do direito de personalidade. Entende‑se por Estado‑Membro onde se localiza o ‘centro de gravidade do conflito’ aquele em cujo território a informação controvertida seja objectiva e particularmente relevante e onde, ao mesmo tempo, o titular do direito da personalidade tenha o seu ‘centro de interesses’.

2)      O artigo 3.° da Directiva 2000/31 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno, deve ser interpretado no sentido de que não impõe uma regra de conflito de leis nem uma ‘correcção do direito substantivo’. O referido preceito expressa uma concretização legislativa, em termos de harmonização, da livre prestação de serviços aplicada ao comércio electrónico, habilitando ao mesmo tempo os Estados‑Membros, dentro da margem de discricionariedade que lhes confere a directiva, assim como o artigo 56.° TFUE, a preverem medidas de protecção de interesses merecedores de especial garantia, como excepção à livre prestação de serviços.»


1 – Língua original: espanhol.


2 – Regulamento do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).


3 – Advertimos desde já que o termo «difamação», utilizado pelo Tribunal de Justiça no acórdão Shevill, foi utilizado neste processo de uma forma genérica e como sinónimo da expressão «direitos da personalidade». Ao longo destas conclusões inclinar‑nos‑emos para o uso desta última expressão, sem prejuízo de, sempre que façamos referência ao acórdão Shevill, recorrermos ao vocábulo «difamação», originariamente utilizado pelo Tribunal de Justiça na referida decisão.


4 – Acórdão de 7 de Março de 1995 (C‑68/93, Colect., p. I‑415).


5 – Artigos 7.° e 11.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.


6 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno («Directiva sobre comércio electrónico») (JO L 178, p. 1).


7 – Despacho de 20 de Novembro de 2009, Martinez e Martinez (C‑278/09, Colect., p. I‑11099).


8 – Veja‑se, neste sentido, e entre outros, os acórdãos de 16 de Dezembro de 1981, Foglia (244/80, Recueil, p. 3045), n.° 21; de 13 de Março de 2001, PreussenElektra (C‑379/98, Colect., p. I‑2099), n.° 39; e de 23 de Abril de 2009, Rüffler (C‑544/07, Colect., p. I‑3389), n.° 37.


9 – Acórdão de 1 de Outubro de 2002, Henkel (C‑167/00, Colect., p. I‑8111), n.os 46 e 48, e de 5 de Fevereiro de 2004, DFDS Torline (C‑18/02, Colect., p. I‑1417), n.os 26 e 27.


10 – Acórdão de 30 de Novembro de 1976, Bier, denominada «Mines de potasse d`Alsace» (21/76, Colect., p. 677).


11 – Acórdão Shevill, já referido, n.° 23.


12 – Acórdão Shevill, já referido, n.° 29, itálico nosso.


13 – Conclusões do advogado‑geral M. Damon, apresentadas a 14 de Julho de 1994, e do advogado‑geral P. Léger, apresentadas a 10 de Janeiro de 1995. A situação um tanto ou quanto excepcional de dois advogados‑gerais se pronunciarem sobre um mesmo processo deve‑se à circunstância de o Tribunal de Justiça ter decidido reabrir a fase oral após a apresentação das conclusões do advogado‑geral M. Damon, cujo mandato como membro do Tribunal de Justiça havia terminado poucos dias antes da decisão de reabertura.


14 – Acórdão Shevill, já referido, n.° 31.


15 – Acórdão Shevill, já referido, n.° 32.


16 – V. Magnus, U. e Mankowski P., Brussels I Regulation, Sellier. European Law Publishers, 2007, Munique, pp. 192 e 193.


17 – V., entre outros, os comentários de Crespo, A. «Precisión del forum locus delicti commissi en los supuestos de daños contra la persona causados a través de prensa», La Ley – Comunidades Europeas, 1995, n.° 96, pp. 1 e segs.; Gardella, A., «Diffamazione a mezzo stampa e Convenzione di Bruxelles del 27 settembre 1968», Revista di diritto internazionale privato e processuale, 1997, pp. 657 e segs.; Hogan, G., «The Brussels Convention, Forum NonConveniens and the Connecting Factors Problem», European Law Review, 1995, pp. 471 e segs.; Huber, P., «Persönlichkeitsschutz gegenüber Massenmedien im Rahmen des Europäischen Zivilprozessrechts», Zeitschrift für europäisches Recht, 1996, pp. 300 e segs.; Idot, L., «L’application de la Convention de Bruxelles en matiêre de diffamation. Des précisions importantes sur l’interpretation de l’article 5.3», Europe, 1995, Juin, pp. 1 e 2.


18 – V. as conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo Shevill, já referidas, n.os 39 e 40.


19 – V. Sánchez Santiago, J. e Izquierdo Peris, J.J., «Difamar en Europa: las implicaciones del asunto Shevill», Revista de Instituciones Europeas, 1996, n.° 1, p. 168.


20 – V. Ivins Jr., W. M., Prints and Visual Communication, The M.I.T. Press, Cambridge‑Londres, 1969.


21 – Sobre o conceito e definição jurídica de Internet» e de «World Wide Web» veja‑se, todos, Lloyd, I.J., Information Technology Law, 4ª edição, 2004.


22 – Veja‑se, todos, Castells, M., La Era de la Informacion. Economia, Sociedad y Cultura. La Sociedad Red, Siglo XXI, 2002


23 – V., entre outros, Gigante, A., «Blackhole in Cyberspace: the Legal Void in the Internet», Journal of Computer & Information Technology, vol. XV, 1997; Gould, M., «Rules in the Virtual Society», International Review of Computers & Technology, vol. 10, 1996; Reidenberg, J.R., «Governing Networks and Rule‑Making in Cyberspace», Emory Law Review, vol. 45, 1996, e Strömer, T.H., Online‑Recht: Juristische Probleme der Internet‑Praxis erkennen und vermeiden, 4ª ed., Dpunkt, Heidelberg, 2006.


24 – V., entre outros, Hoeren, T., «Internet und Recht – Neue Paradigmen des Informationsrechts», Neue Juristische Wochenschrift, vol. 51, 1998, pp. 2852 a 2854; Katsch, M.E., Law in a Digital World, Oxford University Press, Oxford – Nova Iorque, 1995, pp. 240 e segs.; Levine, N., «Establishing Legal Accountability for Anonymous Communications in Cyberspace», Columbia Law Review, vol. 96, 1996, pp. 1540 a 1564; Susskind, R., Transforming the Law: Essays on Technology, Justice and the Legal Marketplace, Oxford University Press, Oxford – Nova Iorque, 2000, pp. 143 e segs.


25 – V., em particular, Determann, L., Kommunikationsfreiheit im Internet. Freiheitsrechte und gesetzliche Beschränkungen, Nomos, Baden‑Baden, 1999, pp. 304 e segs.


26 – Tal como destaca o Bundesgerichtshof no seu despacho de reenvio no processo C‑509/03, a Internet não distribui informação, apenas a torna acessível. São os utilizadores da Internet que se convertem, voluntária ou involuntariamente, em distribuidores.


27 – Pichler, R., em Hoeren, T. e Sieber, U. (eds.), Handbuch Multimedia‑Recht. Rechtsfragen des elektronischen Geschäftsverkehrs, Beck, Münich, 2009, capítulo 25, n.° 224.


28 – V. as diferentes formas que esta tensão pode assumir em Fernández Esteban, M.L., Nuevas tecnologías, Internet y derechos fundamentales, McGraw Hill, Madrid, 1999; Banisar, D. e Davies, S., «Global Trenes in Privacy Protection: An International Survey of Privacy, Data Protection, and Surveillance Law and Developments», Journal of Computer and Information Law, vol. XVIII, 1999; Fleischmann, A., «Personal Data Security: Divergent Standards in the European Union and the United States», Fordham International Law Journal, vol. 19, 1995; Geis, I., «Internet und Datenschutzrecht», Neue Juristische Wochenschrift, vol. 50, 1997, e Morón Lerma, E., Internet y Derecho penal: hacking y otras conductas ilícitas en la Red, Aranzadi, Navarra, 1999.


29 – V. Jerker, D. e Svantesson, B., Private International Law and the Internet, Kluwer Law International, 2007, pp. 324 e segs., e Roth, I., Die internationale Zuständigkeit deutsche Gerichte bei Persönlichkeitsrechtsverletzungen im Internet, Peter Lang, 2006, p. 283.


30 – Acórdão Shevill, já referido, n.° 31.


31 – O próprio advogado‑geral M. Darmon alertava para esta objecção, no n.° 72 das suas conclusões apresentadas no processo Shevill.


32 – Roth, I., Die internationale Zuständigkeit…, op. cit., pp. 310 e segs.


33 – Sobre o artigo 11.° da Carta e a aplicação do direito à liberdade de informação antes da Carta, veja‑se, entre outros, os acórdãos de 30 de Abril de 1974, Sacchi (155/73, Colect., p. 223); de 18 de Junho de 1991, ERT (C‑260/89, Colect., p. I‑2925); de 13 de Dezembro de 1989, Oyowe e Traore/Comissão (C‑100/88, Colect., p. 4285); de 5 de Outubro de 2000, Alemanha/Parlamento e Conselho (C‑376/98, Colect.., p. I‑8419); de 25 de Julho de 1991, Collectieve Antennevoorziening Gouda (C‑288/89, Colect., p. I‑4007); de 3 de Fevereiro de 1993, Veronica Omroep Organisatie (C‑148/91, Colect., p. I‑487); de 6 Março de 2001, Connolly/Comissão (C‑274/99 P, Colect. p. I‑1611). Em relação ao artigo 7.° da Carta e à jurisprudência anterior à mesma, veja‑se, entre outros, os acórdãos de 8 de Abril de 1992, Comissão/Alemanha (C‑62/90, Colect., p. I‑2575), n.° 23, e de 5 de Outubro de 1994, X/Comissão (C‑404/92 P, Colect., p. I‑4737), n.° 17.


34 – Sobre a liberdade de informação ou, na terminologia do artigo 10.° da Convenção para a protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, a «liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias», veja‑se, entre outros, os acórdãos Handyside contra Reino Unido, de 7 de Dezembro de 1976; Leander c. Suécia, de 26 de Março de 1987; Bladet Tromso e Stensaas c. Noruega, de 29 de Maio de 1999; Feldek c. Eslováquia, de 27 de Fevereiro de 2001, e McVicar c. Reino Unido, de 7 de Maio de 2002. Relativamente ao direito fundamental à reserva de intimidade, integrado no artigo 8.° da Convenção, relativo ao respeito pela vida privada e familiar, veja‑se, entre outros, os acórdãos X e Y c. Países Baixos, de 26 de Março de 1985; Niemetz c. Alemanha, de 16 de Dezembro de 1992; Stjerna c. Finlândia, de 25 de Novembro de 1994; Vertiere c. Suíça, de 28 de Junho de 2001, e Von Hannover contra Alemanha, de 24 de Junho de 2004.


35 – Sobre o efeito enformador da Carta sobre todos os âmbitos de intervenção legislativa da União, veja‑se Lenaerts, K. e Gutiérrez‑Fons, J., «The Constitutional Allocation of Powers and General Principles of EU Law», Common Market Law Review, vol. 47, 2010. No plano do Direito Internacional Privado, veja‑se Requejo Isidro, M., Violaciones Graves de Derechos Humanos y Responsabilidad Civil, Thomson‑Aranzadi, 2009.


36 – V. Knutsen, E. S., «Techno‑Neutrality of Freedom of Expression in New Media Beyond the Internet», UCLA Entertainment Law Review, n.° 8, 2001, página 95; Koops, B.‑J., «Should ICT Regulation be Technology‑Neutral?», em B.‑J., Koops, Lips, M., Prins, C. & Schellekens, M., Starting Points for ICT Regulation: deconstructing prevalent policy one‑liners, TMC Asser Press, Haia, 2006, pp. 77 a 79; Escudero‑Pascual, A. e Hosein, I., «The Hazards of Technology‑Neutral Policy: Questioning Lawful Access to Traffic Data», Communications of the Association for Computing Machinery, n.° 47, 2004, p. 77.


37 – A Comissão Europeia tem defendido reiteradamente um conceito do princípio da «neutralidade tecnológica» no sentido de um princípio de não discriminação em razão dos suportes utilizados. Tal como expunha na sua Comunicação ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões, relativa aos princípios e orientações para a política audiovisual da comunidade na era digital (COM [1999] 0657 final, de 14 de Dezembro, p. 11), «[a] convergência tecnológica significa que os serviços que anteriormente eram prestados por um número limitado de redes de comunicação podem agora ser prestados por várias redes, competindo entre si. Isto requer uma neutralidade tecnológica na regulamentação: serviços idênticos deverão, em princípio, ser regulamentados da mesma forma, independentemente dos seus meios de transmissão.» No mesmo sentido, veja‑se também a Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões relativa à revisão do quadro regulamentar comunitário das redes e serviços de comunicações electrónicas (COM [2006] 334, de 29 de Junho, p. 8). No mesmo sentido, veja‑se a Declaração Ministerial da Conferência Ministerial sobre Redes mundiais de informação, realizada em Bona, nos dias 6 a 8 de Julho de 1997.


38 – V., neste sentido, Virgós Soriano, M. e Garcimartín Alférez, F. J., Derecho Procesal Civil Internacional. Litigación Internacional, 2ª ed., Civitas, Madrid, 2007, p. 194.


39 – Neste sentido, veja‑se o acórdão do Bundesgerichtshof no processo Vl ZR 23/09, de 2 de Março de 2010, n.° 17, assim como Roth, I., Die internationale Zuständigkeit…, op. cit., p. 310 e segs., Dessemontet, F., «Internet, la propriété intellectuelle et le droit internacional privé», in Boele‑Woelki, K. e Kessedjan, C. (eds.), Internet: Which Court Decides? Which Law Applies? Quel tribunal décide? Quel droit s’applique?, Kluwer, Haia, 1998, p. 63, e De Miguel Asensio, P., Derecho Privado de Internet, 2ª ed., 2001, pp. 295 e 296. No contexto dos contratos internacionais de consumo e de transporte, o Tribunal de Justiça recusou também o critério do mero acesso no seu acórdão de 7 de Dezembro de 2010, Pammer e Alpenhof, (processos apensos C‑585/08 e 144/09, Colect. p. I‑0000), n.° 94.


40 – A desprotecção da vítima a que dá origem o chamado princípio do mosaico preocupava já a doutrina antes do acórdão Shevill (v., por exemplo, os trabalhos de Gaudemet‑Tallon, H., Revue critique de droit international privé, 1983, p. 674; Heinrichs, J., Die Bestimmung der gerichtlichen Zuständigkeit nach dem Begehungsort im nationalen und internationalen Zivilprozessrecht, Diss., Friburgo, 1984, pp. 188 a 201, e de Schwiegel‑Klein, E., Persönlichkeitsrechtverletzungen durch Massenmedien im internationalen Privatrecht. Zur Anwendung der lex loci delicti commissi auf Pressedelikte unter besonderer Berücksichtigung der amerikanischen Rechtsprechung, Münster, 1983, pp. 68 a 82). Posteriormente ao acórdão Shevill, a desprotecção do titular do direito da personalidade continua a ser objecto de críticas. V., entre outros, Fernández Rozas, J. C., e Sánchez Lorenzo, S., Derecho Internacional Privado, 3ª ed., Civitas, Madrid, p. 501.


41 – Pichler, R., in Hoeren, T. e Sieber, U. (eds.), Handbuch Multimedia‑Recht, op. cit., capítulo 25, n.os 211 e segs., especialmente o n.° 268; Lutcke, J., Persönlichkeitsrechtsverletzungen im Internet. Eine rechtsvergleichende Untersuchung zum deutschen und amerikanischen Recht, Herbert Utz, Münich, 2000, p. 135.


42 – Neste sentido, v. acórdãos do Bundesgerichtshof de 2 de Março de 2010, já referido, n.° 20; da High Court de Inglaterra e do País de Gales no processo Harrods vs. Dow Jones, de 22 de Maio de 2003, n.os 32 e segs.; da Scottish Court of Session no processo Bonner Media Limited, de 1 de Julho de 2002, n.° 19, e da High Court da Austrália no processo Dow Jones & Company Inc., de 10 de Dezembro de 2002, n.° 154.


43 – O Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre a dimensão específica deste foro especial aplicado a contratos de transporte e de consumo celebrados através da Internet no seu acórdão de 7 de Dezembro de 2010, no processo Pammer e Alpenhof, já referido. A este respeito, o Tribunal de Justiça afirmou no referido acórdão que «[e]ntre os indícios que permitem determinar se uma actividade é ‘dirigida’ ao Estado‑Membro em que o consumidor está domiciliado, contam‑se todas as expressões manifestas da vontade de estabelecer relações comerciais com os consumidores desse Estado‑Membro» (itálico nosso). A este propósito são particularmente ilustrativas as conclusões da advogada‑geral V. Trstenjak nos referidos processos, ao considerar, como o Tribunal de Justiça, que o «direccionar» de um conteúdo na Internet para um território não se reduz nem à mera acessibilidade nem ao interesse objectivo num território (v. n.os 78 e segs.).


44 – V. acórdão do Bundesgerichtshof de 2 de Março de 2010, já referido, n.° 18.


45 – V. o caso dos Estados Unidos, onde a regra da «single‑publication» prevista na Uniform Single Publication Act e no Restatement (Second) of Torts § 577A (1977), suscita problemas importantes na vertente da Internet. A propósito, v. o acórdão do Tribunal Federal de Recurso do 4.° circuito, Stanley Young vs. New Haven Advocate, e tal., (N.° 01‑2340, de 13 de Dezembro de 2002), no qual se exige uma clara intenção do meio de comunicação de dirigir a informação a um Estado para justificar a competência dos seus tribunais. Ainda a este propósito, v. Borchers, P.J., «Internet Libel: The Consequences of a Non‑Rule Approach to Personal Jurisdiction», Northwestern University Law Review, 98, 2004, bem como o número monográfico «Cyberspace Regulation and the Discourse of State Sovereignty», Harvard Law Review, 1999, pp. 1697 e segs.


46 – V. acórdão Pammer e Alpenhof, relativo ao foro especial do artigo 15.°, n.° 1, alínea c), no qual foi utilizado o critério do nível do nome do domínio (n.° 83).


47 – V. novamente acórdão Pammer e Alpenhof, n.° 84.


48 – Pichler, R., en Hoeren, T. e Sieber, U. (eds.), Handbuch Multimedia‑Recht…, op. cit., capítulo 25, n.° 224, e Roth, I., Die internationale Zuständigkeit…, op. cit., p. 283.


49 – V., entre outros, os acórdãos de 20 de Fevereiro de 1979, Rewe‑Zentral, denominado «Cassis de Dijon» (120/78, Colect., p. 327); de 10 de Novembro de 1982, Rau Lebensmittelwerke (261/81, Recueil, p. 3961), e de 14 de Julho de 1988, Glocken e outros (407/85, Colect., p. 4233) e Zoni (90/86, Colect., p. 4285). Concretamente no âmbito da liberdade de estabelecimento e da prestação de serviços, vejam‑se, entre outros, os acórdãos de 17 de Dezembro de 1981, Webb (279/80, Recueil, p. 3305); de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha (205/84, Colect., p. 3755), e de 25 de Julho de 1991, Säger (C‑76/90, Colect., p. I‑4221).


50 – A este propósito, veja‑se Martiny, D., em Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol. 10, TMG § 3 Herkunftslandprinzip, 5ª ed., Beck, Munich, 2010, n.° 36.


51 – O considerando 23 da Directiva 2000/31 reitera a mesma ideia, ao acrescentar que «[a] presente directiva não estabelece normas adicionais de direito internacional privado em matéria de conflitos de leis, nem abrange a jurisdição dos tribunais. O disposto na legislação aplicável por força das normas de conflitos do direito internacional privado não restringe a liberdade de prestar serviços da sociedade da informação nos termos constantes da presente directiva.»


52 – É o caso da Áustria, da França, do Luxemburgo, da República Checa, da Polónia, de Portugal e da Eslováquia.


53 – Como a Alemanha, a Bélgica, Chipre, a Dinamarca, a Estónia, a Finlândia, a Grécia, a Hungria, a Irlanda, a Itália, a Letónia, a Lituânia, Malta, os Países Baixos, a Espanha, a Suécia, a Roménia e o Reino Unido.


54 – É, destacadamente, o caso da Alemanha.


55 – Artigo 1.°, n.° 2, alínea g) do Regulamento (CE) n.° 864/2007.


56 – Álvarez Rubio, J. J., (dir.), Difamación y Protección de los Derechos de la Personalidad: Ley Aplicable en Europa, Aranzadi, 2009.


57 – V. Sánchez Lorenzo, S., Derecho Privado Europeo, Comares, Granada, 2002, pp. 137 e 138, e Sonnenberger, H.J., «Europearecht und Internacionales Privatrechts», Zeitschrift für Rechtsvergleichung, Internacionales Privatrecht und Europarecht, 1996, pp. 3 e segs.