ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

10 de Setembro de 2009 ( *1 )

«Directiva 2003/88/CE — Organização do tempo de trabalho — Direito a férias anuais remuneradas — Licença por doença — Férias anuais coincidentes com uma licença por doença — Direito de beneficiar das férias anuais noutro período»

No processo C-277/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.o CE, apresentado pelo Juzgado de lo Social n.o 23 de Madrid (Espanha), por decisão de 17 de Junho de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 26 de Junho de 2008, no processo

Francisco Vicente Pereda

contra

Madrid Movilidad SA,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: P. Jann, presidente de secção, M. Ilešič, A. Borg Barthet, E. Levits (relator) e J.-J. Kasel, juízes,

advogada-geral: V. Trstenjak,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de Vicente Pereda, por E. Dominguez Tejeda, abogada,

em representação do Governo espanhol, por B. Plaza Cruz, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por I. Martínez del Peral e M. van Beek, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 7.o, n.o 1, da Directiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Novembro de 2003, relativa a determinados aspectos da organização do tempo de trabalho (JO L 299, p. 9).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Vicente Pereda ao seu empregador, Madrid Movilidad SA, a propósito do pedido de Vicente Pereda para beneficiar das suas férias anuais num período diferente do período fixado no mapa de férias da empresa, período durante o qual se encontrava em licença por doença.

Quadro jurídico

Regulamentação comunitária

3

O artigo 1.o da Directiva 2003/88 dispõe o seguinte:

«Objectivo e âmbito de aplicação

1.   A presente directiva estabelece prescrições mínimas de segurança e de saúde em matéria de organização do tempo de trabalho.

2.   A presente directiva aplica-se:

a)

Aos períodos mínimos […] de descanso anual, […]

[…]»

4

O artigo 7.o desta directiva tem o seguinte teor:

«Férias anuais

1.   Os Estados-Membros tomarão as medidas necessárias para que todos os trabalhadores beneficiem de férias anuais remuneradas de pelo menos quatro semanas, de acordo com as condições de obtenção e de concessão previstas nas legislações e/ou práticas nacionais.

2.   O período mínimo de férias anuais remuneradas não pode ser substituído por retribuição financeira, excepto nos casos de cessação da relação de trabalho.»

5

O artigo 17.o da Directiva 2003/88 dispõe que os Estados-Membros podem derrogar certas disposições desta directiva. Não é admitida qualquer derrogação ao artigo 7.o da referida directiva.

6

Em conformidade com o seu artigo 28.o, a Directiva 2003/88 entrou em vigor em 2 de Agosto de 2004. Revogou a Directiva 93/104/CE do Conselho, de 23 de Novembro de 1993, relativa a determinados aspectos da organização do tempo de trabalho (JO L 307, p. 18), da qual constitui a codificação.

Legislação nacional

7

No direito espanhol, os direitos e obrigações dos trabalhadores no âmbito da sua relação de trabalho são regulados pela Lei relativa ao Estatuto dos Trabalhadores (Ley del Estatuto de los Trabajadores), cujo texto consolidado foi aprovado pelo Decreto Real Legislativo 1/1995 (Real Decreto Legislativo 1/1995), de 24 de Março de 1995 (BOE n.o 75, de 29 de Março de 1995, p. 9654), alterada pela Lei Orgânica 3/2007 para a igualdade efectiva entre mulheres e homens (Ley orgánica 3/2007 para la igualdad efectiva de mujeres y hombres), de 22 de Março de 2007 (BOE no71, de 23 de Março de 2007, p. 12611, a seguir «estatuto»).

8

O artigo 38.o do estatuto dispõe:

«1.   O período de férias anuais remuneradas, que não pode ser substituído por retribuição financeira, é acordado entre as partes em convenção colectiva ou contrato individual. A sua duração em caso algum poderá ser inferior a trinta dias.

2.   O período ou os períodos em que as férias podem ser gozadas são fixados de comum acordo entre o empresário e o trabalhador, em conformidade com o que as convenções colectivas disponham eventualmente sobre o planeamento anual das férias.

Na falta de acordo entre as partes, o órgão jurisdicional competente fixa a data na qual as férias serão gozadas e a sua decisão é irrecorrível. O processo segue a forma sumária e é prioritário.

3.   O mapa de férias é fixado em cada empresa. O trabalhador deve tomar conhecimento das datas que lhe dizem respeito pelo menos dois meses antes do início das mesmas.

Quando o período de férias fixado no mapa de férias da empresa a que se refere o parágrafo anterior coincidir com um período de incapacidade temporária devida a gravidez, parto ou aleitamento, ou com o período de suspensão do contrato de trabalho previsto no artigo 48.o, n.o 4, da presente lei, o interessado tem o direito de gozar as suas férias num período distinto do da incapacidade temporária ou do período em que beneficie das férias que lhe foram concedidas em aplicação desta disposição, no final do período de suspensão, mesmo que o ano civil correspondente já tenha terminado.»

9

O artigo 17.o da Convenção Colectiva da Madrid Movilidad SA (BOCM, 18 de Outubro de 2006, a seguir «convenção colectiva») dispõe:

«17.1.  Duração

O período de férias anuais remuneradas, que não pode ser substituído por compensação financeira, é de vinte e dois dias úteis (de segunda a sexta-feira) ou, se for caso disso, do número de dias correspondente a duração do serviço se esta for inferior a um ano completo. Estes dias de férias não podem ser acumulados aos dias de faltas por conveniência pessoal.

Aplicar-se-á a mesma proporção ao pessoal que deixe de trabalhar, por qualquer motivo, no decurso do ano, sendo os dias acrescentados ou deduzidos do período de férias gozadas, se for o caso, aquando da liquidação correspondente.

17.2. Período de férias

Está compreendido entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro, devendo onze dias úteis de férias ser necessariamente gozados entre 1 de Julho e 15 de Setembro, desde que, durante este período, o serviço seja assegurado por, pelos menos, 50% dos efectivos.

As férias entre 1 de Janeiro e 30 de Junho e entre 15 de Setembro e 31 de Dezembro são gozadas numa base voluntária pelas pessoas que o tenham solicitado com um mês de antecedência e podem ser gozadas no máximo por 10% do respectivo grupo profissional.

17.3.

O comité de empresa compromete-se a apresentar à empresa, nos três primeiros meses do ano, uma proposta nominativa dos diferentes turnos de férias, de forma a assegurar as necessidades do serviço.

17.4.

Os trabalhadores de uma mesma categoria profissional podem efectuar, entre si, uma permuta do período de férias proposto, mesmo que pertençam a outra equipa e a outro centro de trabalho, desde que a direcção da empresa autorize esta alteração. Geralmente, são autorizadas as alterações que não ponham em causa as percentagens estabelecidas e que, por conseguinte, não afectam o funcionamento do serviço.

17.5.

Estes turnos, após terem sido aprovados pela empresa, serão levados ao conhecimento dos trabalhadores dois meses antes do seu gozo, podendo as alterações ser efectuadas até quarenta e cinco dias antes. Todavia, se uma qualquer necessidade o justificar, a comissão paritária examina se os deve autorizar mesmo no caso de os prazos indicados não terem sido respeitados.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

10

Vicente Pereda, recorrente no processo principal, trabalha como condutor especializado para a Madrid Movilidad SA, empresa cuja actividade consiste na remoção de veículos que se encontram estacionados indevidamente na via pública, cobrando em contrapartida as taxas e os direitos de estacionamento correspondentes.

11

Segundo o mapa de férias anuais do pessoal desta empresa relativo ao ano de 2007, elaborado em conformidade com a convenção colectiva para os anos de 2006 a 2009 e com a proposta de férias apresentada pelo comité de empresa, foi atribuído a Vicente Pereda o período de férias compreendido entre 16 de Julho e 14 de Agosto de 2007.

12

Em consequência de um acidente de trabalho ocorrido em 3 de Julho de 2007, Vicente Pereda ficou incapacitado para o trabalho até 13 de Agosto de 2007, pelo que o período de férias anuais que gozou no ano de 2007 sem se encontrar simultaneamente em situação de licença por doença se limitou aos dias 14 e 15 de Agosto de 2007.

13

Em 19 de Setembro de 2007, solicitou ao empregador que lhe fosse concedido, devido à situação de licença por doença durante o período de férias anuais que lhe tinha sido inicialmente atribuído, um novo período de férias anuais remuneradas relativo ao ano de 2007 de 15 de Novembro a 15 de Dezembro de 2007.

14

A Madrid Movilidad SA rejeitou este pedido sem fundamentação.

15

O recorrente no processo principal propôs uma acção no Juzgado de lo Social n.o 23 de Madrid. Este último interroga-se se a decisão da recorrida no processo principal resulta de uma interpretação errada do artigo 7.o, n.o 1, da Directiva 2003/88, incompatível com o próprio conceito de férias anuais remuneradas previsto no direito comunitário.

16

Nestas condições, o Juzgado de lo Social n.o 23 de Madrid decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 7.o, n.o 1, da Directiva 2003/88/CE deve ser interpretado no sentido de que, quando o período de férias fixado no mapa de férias da empresa coincide no tempo com uma incapacidade temporária resultante de um acidente de trabalho que ocorreu antes da data prevista para o início do referido período, o trabalhador afectado, depois de ter tido alta médica, tem direito a gozar as férias em datas diferentes das preestabelecidas, independentemente de ter ou não terminado o ano civil a que as férias correspondem?»

Quanto à questão prejudicial

17

Através da questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 7.o, n.o 1, da Directiva 2003/88 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a disposições nacionais ou a convenções colectivas que prevejam que um trabalhador que se encontre em licença por doença durante o período de férias anuais fixado no mapa de férias da empresa na qual trabalha não tem o direito, após a alta médica, de gozar as suas férias anuais num período diferente do fixado inicialmente, eventualmente fora do período de referência correspondente.

18

Cumpre recordar, antes de mais, que, como resulta da própria redacção do artigo 7.o, n.o 1, da Directiva 2003/88, disposição à qual esta directiva não admite derrogações, todos os trabalhadores beneficiam de um período de pelo menos quatro semanas de férias anuais remuneradas. Este direito a férias anuais remuneradas deve ser considerado um princípio do direito social comunitário que reveste especial importância, cuja aplicação pelas autoridades nacionais competentes apenas pode ser efectuada dentro dos limites expressamente enunciados pela própria Directiva 2003/88 (v. neste sentido, a respeito da Directiva 93/104, acórdãos de 26 de Junho de 2001, BECTU, C-173/99, Colect., p. I-4881, n.o 43; de 18 de Março de 2004, Merino Gómez, C-342/01, Colect., p. I-2605, n.o 29, e de 16 de Março de 2006, Robinson-Steele e o., C-131/04 e C-257/04, Colect., p. I-2531, n.o 48).

19

A este propósito, o Tribunal de Justiça já decidiu que o artigo 7.o, n.o 1, da Directiva 2003/88 não se opõe, em princípio, a uma regulamentação nacional que fixa as modalidades de exercício do direito a férias anuais remuneradas expressamente conferido por essa directiva, incluindo mesmo a perda do direito no final de um período de referência, desde que, contudo, o trabalhador que perdeu o direito a férias anuais remuneradas tenha tido efectivamente a possibilidade de exercer esse direito. Assim, o direito a férias anuais remuneradas não se extingue no termo do período de referência previsto no direito nacional quando o trabalhador tenha estado de licença por doença durante todo ou parte do período de referência e não tenha efectivamente tido a possibilidade de exercer esse direito (v. acórdão de 20 de Janeiro de 2009, Schultz-Hoff e o., C-350/06 e C-520/06, Colect. p. I-179, n.os 43 e 55).

20

Com efeito, a fim de assegurar uma protecção eficaz da sua segurança e da sua saúde, o trabalhador deve poder beneficiar de descanso efectivo, uma vez que só no caso de a relação de trabalho cessar é que o artigo 7.o, n.o 2, da Directiva 2003/88 permite que o direito a férias anuais remuneradas seja substituído por uma compensação financeira (v. neste sentido, a respeito da Directiva 93/104, acórdãos, já referidos, BECTU, n.o 44, e Merino Gómez, n.o 30).

21

É pacífico, além disso, que a finalidade do direito a férias anuais remuneradas é permitir ao trabalhador descansar e dispor de um período de descontracção e de lazer. Essa finalidade difere, neste aspecto, da finalidade do direito a licença por doença. Esta é concedida ao trabalhador para que se possa restabelecer de uma doença (v. acórdão Schultz-Hoff e. o., já referido, n.o 25).

22

Decorre do exposto, especialmente da referida finalidade do direito a férias anuais remuneradas, que um trabalhador que se encontre em licença por doença durante o período de férias anuais fixado previamente tem o direito, a seu pedido e a fim de poder beneficiar efectivamente das suas férias anuais, de as gozar numa altura diferente da que coincide com o período de licença por doença. A fixação deste novo período de férias anuais, cuja duração corresponde ao período em que as férias anuais inicialmente fixadas coincidiu com a licença por doença, depende das disposições e procedimentos de direito nacional aplicáveis para a fixação das férias dos trabalhadores, tendo em conta os diferentes interesses presentes, designadamente as razões imperiosas ligadas aos interesses da empresa.

23

Na hipótese de tais interesses se oporem à aceitação do pedido do trabalhador relativo ao novo período de férias anuais, o empregador é obrigado a conceder ao trabalhador outro período de férias anuais, proposto por este último, que seja compatível com os referidos interesses, sem excluir a priori que o referido período se situe fora do período de referência para as férias anuais em questão.

24

Com efeito, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, embora o efeito positivo das férias anuais remuneradas para a segurança e saúde do trabalhador se produza plenamente se forem gozadas no ano previsto para o efeito, isto é, o ano em curso, esse tempo de descanso não perde o seu interesse se for gozado num período posterior (v. acórdãos de 6 de Abril de 2006, Federatie Nederlandse Vakbeweging, C-124/05, Colect., p. I-3423, n.o 30, e Schultz-Hoff e o., já referido, n.o 30).

25

Por conseguinte, embora a Directiva 2003/88 não se oponha a disposições ou práticas nacionais que permitam que um trabalhador que se encontre de licença por doença goze férias anuais remuneradas durante esse período (acórdão Schultz-Hoff e o., já referido, n.o 31), resulta do n.o 22 do presente acórdão que, quando o trabalhador não pretenda gozar as suas férias anuais durante esse período de licença por doença, devem-lhe ser concedidas as férias anuais num período diferente.

26

À luz de todas as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 7.o, n.o 1, da Directiva 2003/88 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a disposições nacionais ou a convenções colectivas que prevejam que um trabalhador que se encontre em licença por doença durante o período de férias anuais fixado no mapa de férias da empresa na qual trabalha não tem o direito, após a alta médica, de gozar as suas férias anuais num período diferente do fixado inicialmente, eventualmente fora do período de referência correspondente.

Quanto às despesas

27

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O artigo 7.o, n.o 1, da Directiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Novembro de 2003, relativa a determinados aspectos da organização do tempo de trabalho, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a disposições nacionais ou a convenções colectivas que prevejam que um trabalhador que se encontre em licença por doença durante o período de férias anuais fixado no mapa de férias da empresa na qual trabalha não tem o direito, após a alta médica, de gozar as suas férias anuais num período diferente do fixado inicialmente, eventualmente fora do período de referência correspondente.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.