ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

30 de Abril de 2009 ( *1 )

«Directiva 2001/83/CE — Artigo 1.o, ponto 2, alínea b) — Conceito de ‘medicamento por função’ — Dosagem do produto — Condições normais de utilização — Risco para a saúde — Aptidão para restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas do ser humano»

No processo C-27/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.o CE, apresentado pelo Bundesverwaltungsgericht (Alemanha), por decisão de 25 de Outubro de 2007, entrado no Tribunal de Justiça em , no processo

BIOS Naturprodukte GmbH

contra

Saarland,

sendo interveniente:

Vertreter des Bundesinteresses beim Bundesverwaltungsgericht,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: M. Ilešič, presidente de secção, A. Borg Barthet (relator) e E. Levits, juízes,

advogada-geral: V. Trstenjak,

secretário: K. Sztranc-Sławiczek, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 28 de Janeiro de 2009,

vistas as observações apresentadas:

em representação da BIOS Naturprodukte GmbH, por C. Sachs e J. Sachs, Rechtsanwälte,

em representação do Saarland, por L. Schreiner, na qualidade de agente,

em representação do Governo espanhol, por J. Rodríguez Cárcamo e J. López-Medel Bascones, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano, por R. Adam, na qualidade de agente, assistido por P. Gentili, avvocato dello Stato,

em representação do Governo neerlandês, por C. M. Wissels e D. J. M. de Grave, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por M. Dowgielewicz, na qualidade de agente,

em representação do Governo do Reino Unido, por V. Jackson e H. Walker, na qualidade de agentes, assistidas por J. Coppel, barrister,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por M. Šimerdová e G. Wilms, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 1.o, ponto 2, da Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO L 311, p. 67), conforme alterada pela Directiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de (JO L 136, p. 34, a seguir «Directiva 2001/83»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre a BIOS Naturprodukte GmbH (a seguir «BIOS Naturprodukte») e o Saarland que tem por objecto a qualificação de um produto denominado «Weihrauch H 15-Tabletten» (comprimidos de incenso H 15) com vista à sua comercialização no território alemão.

Quadro jurídico

Regulamentação comunitária

3

Nos termos do artigo 1.o, ponto 2, da Directiva 2001/83, deve entender-se por «medicamento»:

«[…]

a)

Toda a substância ou associação de substâncias apresentada como possuindo propriedades curativas ou preventivas relativas a doenças em seres humanos; ou

b)

Toda a substância ou associação de substâncias que possa ser utilizada ou administrada em seres humanos com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou a restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas ao exercer uma função farmacológica, imunológica ou metabólica, ou a estabelecer um diagnóstico médico».

Legislação nacional

4

O conceito de medicamento está definido no § 2, n.o 1, da lei relativa aos medicamentos (Arzneimittelgesetz), na sua versão de 11 de Dezembro de 1998, (BGBl. 1998 I, p. 3586, a seguir «AMG»).

5

Nos termos do § 69, n.o 1, da AMG, as autoridades competentes devem adoptar as medidas necessárias para pôr fim às infracções verificadas e prevenir futuras infracções. Podem, designadamente, proibir a comercialização de medicamentos quando não exista a autorização ou o registo necessários para esses medicamentos.

Litígio no processo principal e questão prejudicial

6

A BIOS Naturprodukte comercializou no mercado alemão um produto denominado «Weihrauch H 15-Tabletten» como suplemento alimentar.

7

Este produto à base de extracto de incenso indiano é elaborado na Índia e importado na Áustria onde é comercializado como género alimentício. Cada comprimido contém, além de diferentes excipientes, 400 mg de incenso indiano. Segundo as indicações que figuram na embalagem, a posologia recomendada é de um comprimido por dia, que deve ser ingerido após a refeição com um pouco de líquido.

8

Por decisão de 23 de Janeiro de 2002, o Saarland proibiu, nos termos do § 69, n.o 1, da AMG, a BIOS Naturprodukte de continuar a comercializar esse produto no mercado alemão, por se tratar de um medicamento que não foi previamente autorizado. Remetendo para uma legislação semelhante na Índia, a mesma decisão classificou o produto na categoria dos medicamentos sujeitos a autorização de introdução no mercado.

9

A BIOS Naturprodukte interpôs recurso desta decisão alegando que o produto em causa no processo principal é um suplemento alimentar e não um medicamento. No Verwaltungsgericht, alegou que o produto em causa não é um medicamento por apresentação, uma vez que é expressamente designado na embalagem como suplemento alimentar e que não há qualquer indicação quanto a propriedades terapêuticas ou de prevenção de doenças, nem um medicamento por função, uma vez que a dose diária recomendada de 400 mg não tem acção farmacológica, como demonstram dois relatórios de peritos apresentados pela recorrente. Além disso, indicou que, de acordo com a utilização tradicional do extracto de incenso como aroma e especiaria, o produto em causa tem um objectivo nutricional.

10

O Verwaltungsgericht negou provimento ao recurso por decisão de 20 de Maio de 2003, com o fundamento de que, devido ao seu destino, o produto em causa no processo principal é, segundo os usos comerciais, predominantemente considerado um medicamento.

11

O Oberverwaltungsgericht negou provimento ao recurso desta decisão interposto pela BIOS Naturprodukte, por acórdão de 3 de Fevereiro de 2006, entendendo que o produto em causa no processo principal deve ser considerado um medicamento, pois corresponde à definição de medicamento expressa no artigo 1.o, ponto 2, da Directiva 2001/83.

12

Tendo em conta a sua denominação como suplemento alimentar e a inexistência de indicação de qualquer finalidade terapêutica, o Oberverwaltungsgericht considerou que o produto em causa no processo principal não é um medicamento por apresentação. Em contrapartida, este órgão jurisdicional chegou à conclusão, com base em resultados recentes da investigação científica, de que se trata de um medicamento por função. A esse respeito, sublinhou que o extracto de incenso tem uma acção anti-inflamatória quando é utilizado em doses diárias de 800 a 1600 mg e que, pelo contrário, é susceptível de favorecer os processos inflamatórios quando é administrado em doses baixas, como é o caso do produto em causa no processo principal.

13

O Oberverwaltungsgericht, que, contudo, não atribuiu qualquer importância aos efeitos terapêuticos do extracto de incenso utilizado em doses mais fortes do que a recomendada, entendeu, face ao objectivo de protecção da saúde, que era de considerar que as consequências negativas de um produto utilizado em dose insuficiente se enquadram igualmente na acção farmacológica.

14

A BIOS Naturprodukte interpôs um recurso de «Revision» do acórdão do Oberverwaltungsgericht.

15

O Bundesverwaltungsgericht considera que se coloca, no processo principal, além da questão de saber se um produto pode ser considerado medicamento por função quando contém uma substância susceptível de, em determinada dose, provocar alterações fisiológicas, mas cuja dosagem no produto em causa fica, em condições normais de utilização, abaixo dessa dose, a questão de saber se um risco para a saúde associado à utilização de um produto, precisamente devido à utilização de uma dose insuficiente, pode ter como consequência que o mesmo deva ser qualificado de medicamento.

16

Considerando que a decisão da causa que lhe cabe apreciar depende da interpretação do artigo 1.o, ponto 2, da Directiva 2001/83, o Bundesverwaltungsgericht decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O conceito de medicamento previsto no artigo 1.o, ponto 2, da Directiva 2001/83 […] deve ser interpretado no sentido de que um determinado produto destinado ao consumo humano e designado como suplemento alimentar deve ser considerado como medicamento ‘por função’ se contiver substâncias que, a ser respeitada a posologia recomendada na embalagem e com a dosagem reduzida contida no produto, representam um perigo para a saúde humana, sem no entanto terem efeitos terapêuticos, mas que em doses mais elevadas podem produzir esses efeitos?»

Quanto à questão prejudicial

17

Através da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 1.o, ponto 2, da Directiva 2001/83 deve ser interpretado no sentido de que um produto cuja composição integre uma substância que tem um efeito fisiológico quando é utilizada numa determinada dose é um medicamento por função já que, considerando a sua dosagem em substâncias activas e em condições normais de utilização, constitui uma risco para a saúde, sem contudo ser capaz de restaurar, corrigir ou modificar as funções fisiológicas do ser humano.

18

A título liminar, cumpre recordar que, para decidir se um produto cabe na definição de medicamento por função, na acepção da Directiva 2001/83, as autoridades nacionais, actuando sob fiscalização jurisdicional, devem decidir, caso a caso, atendendo ao conjunto das características do produto, designadamente a sua composição, as suas propriedades farmacológicas, imunológicas ou metabólicas, tal como podem ser determinadas no estado actual do conhecimento científico, os seus modos de utilização, a amplitude da sua difusão, o conhecimento que dele tenham os consumidores e os riscos que a sua utilização possa originar (acórdão de 15 de Janeiro de 2009, Hecht-Pharma, C-140/07, Colect., p. I-41, n.o 39).

19

Daqui resulta que não se pode sistematicamente qualificar de medicamento por função todo e qualquer produto em cuja composição entre uma substância que tenha um efeito fisiológico sem que a administração competente proceda, com a diligência exigida, a uma apreciação caso a caso de cada produto, tendo nomeadamente em conta as propriedades farmacológicas, imunológicas ou metabólicas que lhe são próprias, tal como podem ser determinadas no estado actual do conhecimento científico (acórdão Hecht-Pharma, já referido, n.o 40).

20

As propriedades farmacológicas, imunológicas ou metabólicas de um produto são, com efeito, o factor com base no qual há que apreciar, a partir das capacidades potenciais desse produto, se o mesmo pode, na acepção do artigo 1.o, ponto 2, alínea b), da Directiva 2001/83, ser utilizado ou administrado no ser humano com vista a restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas (v., neste sentido, acórdão de 15 de Novembro de 2007, Comissão/Alemanha, C-319/05, Colect., p. I-9811, n.o 59).

21

A este propósito, importa lembrar que o critério da aptidão para restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas não deve levar a qualificar de medicamento por função produtos que, apesar de terem influência no corpo humano, não têm efeitos fisiológicos significativos e não modificam, assim, para falar com propriedade, as condições do seu funcionamento (acórdão Hecht-Pharma, já referido, n.o 41).

22

No âmbito desta apreciação, há que ter em consideração as condições normais de utilização do produto em questão (v., neste sentido, acórdão de 29 de Abril de 2004, Comissão/Áustria, C-150/00, Colect., p. I-3887, n.o 75), sendo, a esse respeito, irrelevante, a circunstância de o mesmo ser susceptível de ter um efeito fisiológico significativo quando é utilizado numa dose superior às indicações que figuram no prospecto ou na embalagem.

23

Resulta das considerações que antecedem que, com excepção dos casos das substâncias ou das composições destinadas a estabelecer um diagnóstico médico, um produto não pode ser considerado um medicamento por função se, tendo em conta a sua dosagem e em condições normais de utilização, não é apto a restaurar, corrigir ou modificar significativamente funções fisiológicas no homem (v., neste sentido, acórdão Hecht-Pharma, já referido, n.o 42).

24

Esta conclusão não é infirmada pela circunstância de o produto em questão, utilizado em condições normais, ser susceptível de implicar um risco para a saúde.

25

A este respeito, convém recordar, por um lado, que o facto de a utilização de um produto apresentar um risco para a saúde não é um elemento que permita indicar que possui uma eficácia farmacológica. Com efeito, o risco para a saúde, embora deva ser tomado em consideração no quadro da qualificação de um produto como medicamento por função, não deixa de ser um factor autónomo (v. acórdão Comissão/Alemanha, já referido, n.o 69).

26

Por outro lado, a existência ou não de um risco para a saúde é apenas uma das características do produto que devem ser tidas em consideração pelas autoridades nacionais competentes ao apreciarem se o mesmo é um medicamento na acepção do artigo 1.o, ponto 2, alínea b), da Directiva 2001/83 e não pode ser, por si só, determinante (v., neste sentido, acórdão Comissão/Áustria, já referido, n.o 65).

27

Consequentemente, há que responder à questão submetida que o artigo 1.o, ponto 2, da Directiva 2001/83 deve ser interpretado no sentido de que um produto cuja composição integre uma substância que tenha um efeito fisiológico quando é utilizada numa determinada dose não é um medicamento por função quando, considerando a sua dosagem em substâncias activas e em condições normais de utilização, o mesmo constitui uma risco para a saúde, sem contudo ser capaz de restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas do ser humano.

Quanto às despesas

28

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

 

O artigo 1.o, ponto 2, da Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, conforme alterada pela Directiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de , deve ser interpretado no sentido de que um produto cuja composição integre uma substância que tenha um efeito fisiológico quando é utilizada numa determinada dose não é um medicamento por função quando, considerando a sua dosagem em substâncias activas e as condições normais de utilização, o mesmo constitui um risco para a saúde, sem contudo ser capaz de restaurar, corrigir ou modificar funções fisiológicas do ser humano.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.