ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

2 de Abril de 2009 ( *1 )

«Medicamentos para uso humano — Directiva 2001/83/CE — Conceito de ‘publicidade’ — Difusão de informações sobre um medicamento por iniciativa de um terceiro»

No processo C-421/07,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.o CE, apresentado pelo Vestre Landsret (Dinamarca), por decisão de 6 de Agosto de 2007, entrado no Tribunal de Justiça em , no processo penal contra

Frede Damgaard,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: C. W. A. Timmermans, presidente de secção, J.-C. Bonichot, K. Schiemann (relator), J. Makarczyk e C. Toader, juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 9 de Outubro de 2008,

vistas as observações apresentadas:

em representação de F. Damgaard, por S. Stærk Ekstrand, advokat,

em representação do Governo dinamarquês, por B. Weis Fogh, na qualidade de agente,

em representação do Governo belga, por J.-C. Halleux, na qualidade de agente,

em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

em representação do Governo helénico, por N. Dafniou, S. Alexandriou e K. Georgiadis, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por T. Krawczyk, P. Dąbrowski e M. Dowgielewicz, na qualidade de agentes,

em representação do Governo do Reino Unido, por Z. Bryanston-Cross, na qualidade de agente, assistida por J. Stratford e J. Coppel, barristers,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por H. Støvlbæk e M. Šimerdová, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 18 de Novembro de 2008,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 86.o da Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano (JO L 311, p. 67), conforme alterada pela Directiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de (JO L 136, p. 34).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de uma acção penal iniciada pelo Anklagemyndigheden (Ministério Público) contra F. Damgaard, jornalista, que é acusado de ter difundido publicamente informações sobre as características e a disponibilidade de um medicamento cuja comercialização não está autorizada na Dinamarca.

Quadro jurídico

Directiva 2001/83

3

O segundo e terceiro considerandos da Directiva 2001/83 referem:

«(2)

Toda a regulamentação em matéria de produção, de distribuição ou de utilização de medicamentos deve ter por objectivo essencial garantir a protecção da saúde pública.

(3)

Todavia, este objectivo deve ser atingido por meios que não possam travar o desenvolvimento da indústria farmacêutica e o comércio de medicamentos na Comunidade.»

4

Nos termos do quadragésimo considerando da mesma directiva:

«As disposições relativas à informação dos doentes devem garantir um elevado nível de protecção dos consumidores, por forma a possibilitar a utilização correcta dos medicamentos, com base numa informação completa e compreensível.»

5

O quadragésimo quinto considerando da referida directiva tem a seguinte redacção:

«A publicidade junto do público em geral de medicamentos vendidos sem receita médica poderia afectar a saúde pública se fosse excessiva e irreflectida. Tal publicidade, aquando da sua autorização, deve portanto satisfazer determinados critérios essenciais, que importa definir.»

6

O título III da Directiva 2001/83, conforme alterada pela Directiva 2004/27 (a seguir «Directiva 2001/83»), diz respeito à introdução dos medicamentos no mercado, enquanto que o título IV da mesma regula o seu fabrico e a sua importação. O título VII desta directiva regulamenta a distribuição por grosso dos medicamentos.

7

O artigo 86.o da Directiva 2001/83, com o qual inicia o seu título VIII, intitulado «Publicidade», dispõe:

«1.   Para efeitos do presente título, entende-se por ‘publicidade dos medicamentos’: qualquer acção de informação, de prospecção ou de incentivo destinada a promover a prescrição, o fornecimento, a venda ou o consumo de medicamentos; abrange, em especial:

a publicidade dos medicamentos junto do público em geral,

a publicidade dos medicamentos junto das pessoas habilitadas a receitá-los ou a fornecê-los,

a visita de delegados de propaganda médica a pessoas habilitadas a receitar ou a fornecer medicamentos,

o fornecimento de amostras de medicamentos,

o incentivo à prescrição ou ao fornecimento de medicamentos, através da concessão, oferta ou promessa de benefícios pecuniários ou em espécie, excepto quando o seu valor intrínseco seja insignificante,

o patrocínio de reuniões de promoção a que assistam pessoas habilitadas a receitar ou a fornecer medicamentos,

o patrocínio de congressos científicos em que participem pessoas habilitadas a receitar ou a fornecer medicamentos, nomeadamente a tomada a cargo das respectivas despesas de deslocação e estadia nessa ocasião.

2.   O presente título não abrange:

a rotulagem e a bula dos medicamentos que são abrangidos pelo título V,

a correspondência, eventualmente acompanhada de qualquer documento não publicitário, necessária para dar resposta a uma pergunta específica sobre determinado medicamento,

as informações concretas e os documentos de referência relativos por exemplo, às mudanças de embalagem, às advertências sobre os efeitos secundários no âmbito da farmacovigilância, bem como aos catálogos de venda e às listas de preços, desde que não contenham qualquer informação sobre o medicamento,

as informações relativas à saúde humana ou a doenças humanas, desde que não façam referência, ainda que indirecta, a um medicamento.»

8

O artigo 87.o da mesma directiva prevê:

«1.   Os Estados-Membros devem proibir toda a publicidade de medicamentos para os quais não tenha sido concedida uma autorização de introdução no mercado conforme com o direito comunitário.

2.   Todos os elementos da publicidade dos medicamentos devem estar de acordo com as informações constantes do resumo das características do produto.

3.   A publicidade dos medicamentos:

deve fomentar a utilização racional dos medicamentos, apresentando-os de modo objectivo e sem exagerar as suas propriedades,

não pode ser enganosa.»

Legislação nacional

9

O § 27 b da Lei n.o 656/1995 relativa aos medicamentos (lægemiddellov, Lei consolidada n.o 656/1995) dispõe:

«Não pode ser feita publicidade a medicamentos que não possam ser legalmente comercializados ou distribuídos na Dinamarca.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

10

O Hyben Total em pó e em cápsulas, depois de ter sido classificado como medicamento pela Lægemiddelstyrelsen (Agência Dinamarquesa dos Medicamentos), era anteriormente comercializado na Dinamarca pelo seu fabricante, a Natur-Drogeriet A/S (a seguir «Natur-Drogeriet»), como produto para alívio ou tratamento da gota, de cálculos biliares, de nefropatias, de citopatias, da ciática, de cistorragia, da diarreia, de cólicas do estômago, da diabetes e de cálculos renais. A informação relativa a este medicamento era preparada por F. Damgaard. Contudo, a venda deste medicamento terminou em 1999 por não ter obtido uma autorização de introdução no mercado.

11

Em 2003, F. Damgaard referiu no seu sítio Internet que o Hyben Total continha pó de roseira brava que presumidamente aliviava as dores provocadas por diferentes tipos de gota ou de artrose e que este medicamento era vendido na Suécia e na Noruega. Por decisão de 16 de Junho de 2003, a Lægemiddelstyrelsen informou F. Damgaard que essas informações constituíam publicidade contrária ao § 27 b da Lei n.o 656/1995 relativa aos medicamentos e instaurou um procedimento penal contra ele.

12

Por sentença de 2 de Dezembro de 2005 do Retten i Århus, F. Damgaard foi declarado culpado da violação da referida disposição nacional e condenado no pagamento de uma multa. F. Damgaaard recorreu desta sentença no Vestre Landsert sustentando, no âmbito desse processo, que não era empregado da Natur-Drogeriet e não tinha qualquer interesse nessa empresa nem na venda do Hyben Total. A sua actividade de jornalista no sector da higiene alimentar alternativa estava limitada à difusão, aos retalhistas e a outros interessados, de informações sobre complementos alimentares. F. Damgaard não auferiu qualquer remuneração da Natur-Drogeriet pelas informações que difundiu acerca do Hyben Total.

13

O Anklagemyndigheden, autor do procedimento penal instaurado contra F. Damgaard, sustenta que a referida difusão de informações se destinava a incentivar os consumidores a comprar o Hyben Total, independentemente da questão de saber se existia uma ligação entre o interessado e o fabricante ou o comerciante desse medicamento. Esta actividade está portanto abrangida pelo conceito de «publicidade» na acepção do artigo 86.o da Directiva 2001/83 e deve ser proibida na medida em que a comercialização do referido medicamento, cujo consumo essa actividade visa promover, não é permitida na Dinamarca.

14

Por seu turno, F. Damgaard alega que a informação publicada no seu sítio Internet não constituía uma publicidade como prevista no artigo 86.o da Directiva 2001/83, na medida em que este conceito devia ser interpretado de forma mais estrita, isto é, no sentido de que não abrange a divulgação de informações efectuada por um terceiro independente.

15

Foi nestas circunstâncias que o Vestre Landsret decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 86.o da Directiva 2001/83[…] deve ser interpretado no sentido de que a difusão [de informações sobre um medicamento por um terceiro], nomeadamente sobre as suas propriedades curativas ou preventivas, deve ser considerada publicidade, mesmo que o terceiro em causa [actue] por iniciativa própria e com total independência, de jure e de facto, do fabricante e do vendedor?»

Quanto à questão prejudicial

16

O segundo considerando da Directiva 2001/83 enuncia que toda a regulamentação em matéria de produção, de distribuição ou de utilização de medicamentos deve ter por objectivo essencial garantir a protecção da saúde pública. Este objectivo é reiterado nos diferentes títulos desta directiva, designadamente nos seus títulos III, IV e VII, cujas disposições garantem que nenhum medicamento é introduzido no mercado, fabricado ou distribuído sem ter obtido as necessárias autorizações prévias.

17

Do mesmo modo, no domínio da informação e da publicidade relativa aos medicamentos, o quadragésimo considerando da Directiva 2001/83 refere que as disposições relativas à informação dos doentes devem garantir um elevado nível de protecção dos consumidores, por forma a possibilitar a utilização correcta dos medicamentos, com base numa informação completa e compreensível. Além disso, no quadragésimo quinto considerando da mesma directiva, esclarece-se que, uma vez que a publicidade junto do público em geral de medicamentos vendidos sem receita médica poderia afectar a saúde pública se fosse excessiva e irreflectida, deve, no momento da sua autorização, preencher determinados critérios essenciais, que importa definir.

18

O artigo 87.o, n.o 1, da Directiva 2001/83 proíbe toda a publicidade de medicamentos para os quais não tenha sido concedida uma autorização de introdução no mercado conforme com o direito comunitário.

19

A difusão pública de informações sobre um medicamento não autorizado num determinado Estado-Membro é, em função do contexto em que se insere, susceptível de influenciar o comportamento dos consumidores e de os encorajar a obter o medicamento em questão, o que pode afectar a saúde pública. Como resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, F. Damgaard referiu no seu sítio Internet que o Hyben Total estava disponível na Suécia e na Noruega.

20

O artigo 86.o, n.o 1, da Directiva 2001/83 define o conceito de «publicidade dos medicamentos» como «qualquer acção de informação, de prospecção ou de incentivo destinada a promover a prescrição, o fornecimento, a venda ou o consumo de medicamentos». Apesar de esta definição salientar expressamente a finalidade da mensagem, nada diz relativamente às pessoas que a difundem.

21

Assim, o teor da Directiva 2001/83 não exclui a possibilidade de uma mensagem proveniente de um terceiro independente ter um carácter publicitário. Esta directiva também não exige, para se considerar que uma mensagem tem esse carácter, que esta seja difundida no âmbito de uma actividade comercial ou industrial.

22

A este respeito, cumpre observar que, mesmo quando é levada a cabo por um terceiro independente fora de uma actividade comercial ou industrial, a publicidade de medicamentos é susceptível de prejudicar a saúde pública cuja salvaguarda é o objectivo essencial da Directiva 2001/83.

23

Incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar se o comportamento de F. Damgaard consubstancia uma forma de acção de informação, de prospecção ou de incentivo que visasse promover a prescrição, o fornecimento, a venda ou o consumo do Hyben Total.

24

Para este efeito, como afirmou o advogado-geral no n.o 37 das suas conclusões, a situação do autor de uma comunicação relativa a um medicamento e, em especial, a sua relação com a empresa produtora ou distribuidora do medicamento constituem um factor que, embora ajude a averiguar se essa comunicação é de carácter promocional, deve ser apreciado em conjunto com outras circunstâncias, como a natureza da actividade exercida e o conteúdo da mensagem.

25

No que respeita ao argumento de F. Damgaard relativo à alegada violação da sua liberdade de expressão que decorreria da sua condenação penal, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, os direitos fundamentais são parte integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça.

26

Embora o princípio da liberdade de expressão seja expressamente reconhecido pelo artigo 10.o da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950, e constitua um fundamento essencial de uma sociedade democrática, resulta todavia da redacção do n.o 2 desse artigo que essa liberdade pode estar sujeita a determinadas limitações justificadas por objectivos de interesse geral, desde que essas derrogações estejam previstas na lei, sejam inspiradas por uma ou várias finalidades legítimas à luz da referida disposição e necessárias numa sociedade democrática, isto é, justificadas por uma necessidade social imperiosa e, nomeadamente, proporcionadas ao objectivo legítimo prosseguido (v. acórdão de , Karner, C-71/02, Colect., p. I-3025, n.o 50).

27

É ponto assente que o poder de apreciação de que dispõem as autoridades competentes, no que respeita à questão de determinar onde se encontra o justo equilíbrio entre a liberdade de expressão e os referidos objectivos, varia em relação a cada um dos objectivos que justificam a limitação desse direito e segundo a natureza das actividades em jogo. Quando o exercício da liberdade não contribuir para um debate de interesse geral e, quanto ao mais, se estiver perante um contexto em que os Estados-Membros têm certa margem de apreciação, a fiscalização limita-se a uma análise do carácter razoável e proporcionado da ingerência. Tal é o caso da utilização comercial da liberdade de expressão, especialmente num domínio tão complexo e flutuante como é a publicidade (v. acórdão Karner, já referido, n.o 51).

28

Se as informações difundidas no sítio Internet de F. Damgaard e que estão em causa no processo principal vierem a ser qualificadas de «publicidade» na acepção da Directiva 2001/83, a sua condenação poderia ser considerada razoável e proporcionada face ao objectivo legítimo prosseguido, a saber, a protecção da saúde pública.

29

Em face do exposto, há que responder à questão submetida que o artigo 86.o da Directiva 2001/83 deve ser interpretado no sentido de que a difusão de informações sobre um medicamento por um terceiro, nomeadamente sobre as suas propriedades curativas ou preventivas, pode ser considerada publicidade na acepção deste artigo, mesmo que o terceiro em causa actue por iniciativa própria e com total independência, de jure e de facto, do fabricante e do vendedor desse medicamento. Incumbe ao juiz nacional determinar se essa difusão constitui uma forma de acção de informação, de prospecção ou de incentivo destinada a promover a prescrição, o fornecimento, a venda ou o consumo de medicamentos.

Quanto às despesas

30

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

O artigo 86.o da Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Novembro de 2001, que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano, conforme alterada pela Directiva 2004/27/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de , deve ser interpretado no sentido de que a difusão de informações sobre um medicamento por um terceiro, nomeadamente sobre as suas propriedades curativas ou preventivas, pode ser considerada publicidade na acepção deste artigo, mesmo que o terceiro em causa actue por iniciativa própria e com total independência, de jure e de facto, do fabricante e do vendedor desse medicamento. Incumbe ao juiz nacional determinar se essa difusão constitui uma forma de acção de informação, de prospecção ou de incentivo destinada a promover a prescrição, o fornecimento, a venda ou o consumo de medicamentos.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: dinamarquês.