ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

28 de Abril de 2009 ( *1 )

«Pedido de decisão prejudicial — Protocolo n.o 10 sobre Chipre — Suspensão da aplicação do acervo comunitário nas zonas fora do controlo efectivo do Governo cipriota — Regulamento (CE) n.o 44/2001 — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Decisão de um tribunal cipriota situado na zona de controlo efectivo do dito governo, relativa a um imóvel sito fora dessa zona — Artigos 22.o, ponto 1, 34.o, pontos 1 e 2, 35.o, n.o 1, e 38.o, n.o 1, do referido regulamento»

No processo C-420/07,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.o CE, apresentado pela Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) (Reino Unido), por decisão de 28 de Junho de 2007, entrado no Tribunal de Justiça em , no processo

Meletis Apostolides

contra

David Charles Orams,

e

Linda Elizabeth Orams,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, A. Rosas, K. Lenaerts, M. Ilešič e A. Ó Caoimh, presidentes de secção, R. Silva de Lapuerta (relatora), J. Malenovský, J. Klučka e U. Lõhmus, juízes,

advogada-geral: J. Kokott,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 16 de Setembro de 2008,

vistas as observações apresentadas:

em representação de M. Apostolides, por T. Beazley, QC, e C. West, barrister, mandatados por S. Congdon, solicitor, e por C. Candounas, advocate,

em representação de David e Linda Orams, por C. Booth e N. Green, QC, e por A. Ward e B. Bhalla, barristers,

em representação do Governo cipriota, por P. Clerides, na qualidade de agente, assistido por D. Anderson, QC, e por M. Demetriou, barrister,

em representação do Governo grego, por A. Samoni-Rantou, S. Chala e G. Karipsiadis, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por M. Dowgielewicz, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por F. Hoffmeister e A.-M. Rouchaud, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada-geral na audiência de 18 de Dezembro de 2008,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação, por um lado, do Protocolo n.o 10 sobre Chipre do Acto relativo às condições de adesão à União Europeia da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO 2003, L 236, p. 955, a seguir «Protocolo n.o 10»), e, por outro, de determinados aspectos do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre Meletis Apostolides, cidadão cipriota, e David e Linda Orams, um casal britânico (a seguir «casal Orams»), a respeito do reconhecimento e da execução no Reino Unido, ao abrigo do Regulamento n.o 44/2001, de duas sentenças do Eparchiako Dikastirio tis Lefkosias (Chipre).

Quadro jurídico

Direito comunitário

O Protocolo n.o 10

3

O Protocolo n.o 10 está assim redigido:

«As Altas Partes Contratantes,

Reafirmando o seu empenho numa solução global para o problema de Chipre, compatível com as resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, bem como o seu total apoio aos esforços do Secretário-Geral das Nações Unidas para esse efeito,

Considerando que essa solução global do problema de Chipre ainda não foi alcançada,

Considerando que é, portanto, necessário prever a suspensão da aplicação do acervo nas zonas da República de Chipre onde o Governo da República de Chipre não exerce um controlo efectivo,

Considerando que, na eventualidade de uma solução para o problema de Chipre, essa suspensão será levantada,

Considerando que a União Europeia está pronta a acolher os termos dessa solução de acordo com os princípios em que se funda a UE,

Considerando que é necessário prever os termos em que as disposições pertinentes do direito da UE se aplicarão à linha de separação entre as referidas zonas, por um lado, e as zonas onde o Governo da República de Chipre exerce controlo efectivo e a Zona de Soberania Oriental do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, por outro,

Desejando que a adesão de Chipre à União Europeia traga benefícios para todos os cidadãos cipriotas e promova a paz civil e a reconciliação,

Considerando por conseguinte, que nenhuma disposição do presente protocolo impedirá que sejam tomadas medidas tendo em vista esse objectivo,

Considerando que essas medidas não prejudicarão a aplicação do acervo nas condições estabelecidas no Tratado de Adesão em qualquer outra parte da República de Chipre,

Acordou no seguinte:

Artigo 1.o

1.   A aplicação do acervo ficará suspensa nas zonas da República de Chipre onde o Governo da República de Chipre não exerce um controlo efectivo.

2.   O Conselho, deliberando por unanimidade sob proposta da Comissão, decidirá do levantamento da suspensão a que se refere o n.o 1.

Artigo 2.o

1.   O Conselho, deliberando por unanimidade sob proposta da Comissão, definirá os termos em que o direito comunitário se aplicará à faixa de separação entre as zonas a que se refere o artigo 1.o e as zonas onde o Governo da República de Chipre exerce controlo efectivo.

2.   Enquanto durar a suspensão da aplicação do acervo nos termos do artigo 1.o, a fronteira entre a Zona de Soberania Oriental e as zonas referidas no dito artigo será tratada como parte das fronteiras externas das zonas de soberania para efeitos da Parte IV do Anexo ao Protocolo relativo às zonas de soberania do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte em Chipre.

Artigo 3.o

1.   Nenhuma disposição do presente Protocolo impedirá que sejam tomadas medidas no sentido de promover o desenvolvimento económico das zonas a que se refere o artigo 1.o

2.   Essas medidas não prejudicarão a aplicação do acervo nas condições estabelecidas no Tratado de Adesão em qualquer outra parte da República de Chipre.

Artigo 4.o

Na eventualidade de uma solução, o Conselho, deliberando por unanimidade sob proposta da Comissão, decidirá das adaptações a introduzir nos termos relativos à adesão de Chipre à União Europeia no que se refere à comunidade cipriota turca.»

O Regulamento n.o 44/2001

4

O décimo sexto, décimo sétimo e décimo oitavo considerandos do Regulamento n.o 44/2001 estabelecem:

«(16)

A confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado-Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, excepto em caso de impugnação.

(17)

A mesma confiança recíproca implica a eficácia e a rapidez do procedimento para tornar executória num Estado-Membro uma decisão proferida noutro Estado-Membro. Para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos fornecidos, sem a possibilidade de o tribunal invocar por sua própria iniciativa qualquer dos fundamentos previstos pelo presente regulamento para uma decisão não ser executada.

(18)

O respeito pelos direitos de defesa impõe, todavia, que o requerido possa interpor recurso, examinado de forma contraditória, contra a declaração de executoriedade, se entender que é aplicável qualquer fundamento para a não execução. Também deve ser dada ao requerente a possibilidade de recorrer, se lhe for recusada a declaração de executoriedade.»

5

O artigo 1.o, n.o 1, do referido regulamento estabelece:

«O presente regulamento aplica-se em matéria civil e comercial e independentemente da natureza da jurisdição. O presente regulamento não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.»

6

Nos termos do artigo 2.o do mesmo regulamento:

«1.   Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.

2.   As pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas nesse Estado-Membro às regras de competência aplicáveis aos nacionais.»

7

O artigo 22.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001, incluído na secção 6 do capítulo II, e com a epígrafe «Competências exclusivas», estabelece:

«Têm competência exclusiva, qualquer que seja o domicílio:

1)

Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, os tribunais do Estado-Membro onde o imóvel se encontre situado.

Todavia, em matéria de contratos de arrendamento de imóveis celebrados para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos, são igualmente competentes os tribunais do Estado-Membro onde o requerido tiver domicílio, desde que o arrendatário seja uma pessoa singular e o proprietário e o arrendatário tenham domicílio no mesmo Estado-Membro;»

8

O artigo 34.o do dito regulamento estabelece:

«Uma decisão não será reconhecida:

1)

Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido;

2)

Se o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não tiver sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer;

3)

Se for inconciliável com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado-Membro requerido;

4)

Se for inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado-Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em acção com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado-Membro requerido.»

9

O artigo 35.o do mesmo regulamento tem a seguinte redacção:

«1.   As decisões não serão igualmente reconhecidas se tiver sido desrespeitado o disposto nas secções 3, 4 e 6 do capítulo II ou no caso previsto no artigo 72.o

2.   Na apreciação das competências referidas no parágrafo anterior, a autoridade requerida estará vinculada às decisões sobre a matéria de facto com base nas quais o tribunal do Estado-Membro de origem tiver fundamentado a sua competência.

3.   Sem prejuízo do disposto nos primeiros e segundo parágrafos, não pode proceder-se ao controlo da competência dos tribunais do Estado-Membro de origem. As regras relativas à competência não dizem respeito à ordem pública a que se refere o ponto 1 do artigo 34.o»

10

O artigo 38.o do Regulamento n.o 44/2001 estabelece:

«1.   As decisões proferidas num Estado-Membro e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada.

2.   Todavia, no Reino Unido, tais decisões são executadas na Inglaterra e no País de Gales, na Escócia e na Irlanda do Norte, depois de registadas para execução, a requerimento de qualquer parte interessada numa dessas regiões do Reino Unido, conforme o caso.»

11

O artigo 45.o do Regulamento n.o 44/2001 estabelece:

«1.   O tribunal onde foi interposto o recurso ao abrigo dos artigos 43.o ou 44.o apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34.o e 35.o Este tribunal decidirá sem demora.

2.   As decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito.»

Direito nacional

12

Segundo a legislação nacional, os direitos de propriedade fundiária nas zonas da República de Chipre onde o Governo cipriota não exerce um controlo efectivo (a seguir «zona Norte») continuam válidos e actuais, apesar da invasão do território cipriota, em 1974, pelo exército turco e da subsequente ocupação militar duma parte deste Estado.

13

Nos termos do artigo 21.o, n.o 2, da Lei 14/60 sobre os tribunais, na versão aplicável ao litígio no processo principal, quando uma acção tiver por objecto um bem imóvel, «a acção deve ser proposta no Eparchiako Dikastirio do distrito onde o bem se situa».

14

Por despacho do Anotato Dikastirio tis Kypriakis Dimokratias (Supremo Tribunal), publicado em 13 de Setembro de 1974 no Episimi Efimerida tis Kypriakis Dimokratias (Jornal Oficial da República de Chipre), portanto, posteriormente à invasão da zona Norte, os distritos de Kyrenia e de Nicósia foram unificados.

15

Nos termos da legislação cipriota, a citação do cônjuge é válida pela entrega da petição por um dos cônjuges ao outro. Se o réu não comparecer em juízo no prazo de dez dias a contar da citação, o autor tem a faculdade de requerer o julgamento à revelia. A comparência em juízo não obriga a apresentar contestação.

16

Para recorrer de uma sentença proferida à revelia, o recorrente tem de provar que tem um fundamento plausível («arguable defence»).

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

17

O processo no órgão jurisdicional de reenvio tem por objecto o reconhecimento e a execução no Reino Unido, ao abrigo do Regulamento n.o 44/2001, de duas sentenças do Eparchiako Dikastirio tis Lefkosias (a seguir «sentenças em causa») que julgaram uma acção proposta contra o casal Orams, por M. Apostolides, relativamente a um bem imóvel (a seguir «imóvel»).

18

O imóvel, sito em Lapithos, no distrito de Kyrenia, que faz parte da zona Norte, era propriedade da família de M. Apostolides, que o ocupava antes da invasão de Chipre pelo exército turco em 1974. Pertencente à comunidade cipriota grega, a família de M. Apostolides foi obrigada a abandonar a sua casa e a estabelecer-se na zona da ilha efectivamente controlada pelo Governo cipriota (a seguir «zona controlada pelo governo»).

19

O casal Orams alega ter comprado o imóvel no decurso do ano de 2002, de boa fé, a um terceiro, que, por sua vez, o tinha adquirido às autoridades da República Turca de Chipre do Norte, entidade que, até à data, não foi reconhecida por nenhum Estado, à excepção da República da Turquia. As aquisições sucessivas terão sido feitas nos termos da lei dessa entidade. O casal Orams construiu uma moradia e permanece com frequência no imóvel, que é a sua casa de férias.

20

A circulação das pessoas entre a zona Norte e a zona controlada pelo governo foi condicionada até ao mês de Abril de 2003.

21

O Eparchiako Dikastirio tis Lefkosias, tribunal cipriota situado na zona controlada pelo governo, citou o casal Orams, em 26 de Outubro de 2004, da acção contra ele proposta por M. Apostolides. As citações, uma para cada um dos cônjuges, foram feitas no local, no mesmo dia, no lugar do imóvel, por um oficial de diligências do referido tribunal. As duas citações foram entregues pessoalmente à Sr.a Orams, que se recusou a assiná-las.

22

O oficial de diligências não informou a Sr.a Orams da sua função nem da natureza dos documentos que lhe entregou, redigidos em grego, língua que o casal Orams não entende. A Sr.a Orams compreendeu, contudo, que os documentos tinham carácter oficial e eram de natureza jurídica.

23

Nas folhas de rosto, escritas em grego, as petições iniciais entregues indicavam que, para evitar o julgamento à revelia, era necessário comparecer em juízo no Eparchiako Dikastirio tis Lefkosias, no prazo de dez dias a contar da data da citação.

24

Apesar da dificuldade em encontrar na zona Norte um advogado conhecedor da língua grega e habilitado a advogar nos tribunais da zona controlada pelo governo, a Sr.a Orams conseguiu contratar um advogado que reunia esses requisitos, o qual se comprometeu a comparecer em juízo, em sua representação, em 8 de Novembro de 2004. Contudo, esse advogado não compareceu no referido tribunal nesse dia, mas apenas no dia seguinte.

25

Em 9 de Novembro de 2004, não tendo comparecido um representante legal do casal Orams, o Eparchiako Dikastirio tis Lefkosias julgou à revelia o pedido de M. Apostolides. No mesmo dia, este tribunal recusou a procuração apresentada pelo advogado da Sr.a Orams, por estar redigida em inglês, e não em grego ou em turco.

26

Segundo o despacho de reenvio, a sentença do Eparchiako Dikastirio tis Lefkosias condenou à revelia o casal Orams a:

Demolir a vivenda, a piscina e a vedação que tinham construído no terreno.

Entregar, de imediato, a M. Apostolides a posse livre do terreno.

Pagar mensalmente a M. Apostolides vários montantes a título de indemnização por danos e lucros cessantes, isto é, rendas, até à execução da decisão, acrescidos de juros.

Abster-se de prosseguir com a intervenção ilegal nos terrenos, quer pessoalmente quer através dos seus mandatários.

Pagar vários montantes a título de custas e despesas do processo, acrescidos de juros.

27

Em 15 de Novembro de 2004, o casal Orams deduziu oposição à sentença. Após a apresentação de provas e de alegações dos recorrentes e de M. Apostolides, o Eparchiako Dikastirio tis Lefkosias, por sentença de , indeferiu a oposição, essencialmente porque os opoentes não tinham invocado um fundamento plausível de contestação do direito de propriedade de M. Apostolides. O casal Orams foi condenado nas custas da oposição.

28

O casal Orams recorreu da sentença que indeferiu a sua oposição. A este recurso foi, por sua vez, negado provimento por acórdão do Anotato Dikastirio tis Kypriakis Dimokratias de 21 de Dezembro de 2006.

29

Em 18 de Outubro de 2005, M. Apostolides apresentou em Inglaterra os documentos necessários para requerer, ao abrigo do Regulamento n.o 44/2001, o reconhecimento e a execução das sentenças exequendas. Por despacho de , um Master da High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division, concedeu-lhes o exequatur em Inglaterra, nos termos previstos no mesmo regulamento.

30

Decidindo o recurso desta decisão, interposto nos termos do artigo 43.o do Regulamento n.o 44/2001 pelo casal Orams, um juiz da High Court of Justice revogou, por decisão de 6 de Setembro de 2006. M. Apostolides recorreu dessa decisão para o órgão jurisdicional de reenvio, nos termos do artigo 44.o do mesmo regulamento.

31

Nestas condições, a Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

[…]

A suspensão da aplicação do acervo comunitário na zona Norte determinada pelo artigo 1.o, n.o 1, do Protocolo n.o 10 […], impede um órgão jurisdicional de um Estado-Membro de reconhecer e executar uma decisão, proferida por um órgão jurisdicional da República de Chipre situado na zona controlada pelo governo, respeitante a terrenos situados na zona Norte, se esse reconhecimento e essa execução forem pedidos ao abrigo do Regulamento […] n.o 44/2001 […], que faz parte do acervo comunitário?

2.

O artigo 35.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 autoriza ou obriga um órgão jurisdicional de um Estado-Membro a recusar o reconhecimento e a execução de uma decisão proferida pelos órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro respeitante a um terreno situado numa zona deste último Estado-Membro [onde] o governo desse Estado-Membro não exerce um controlo efectivo? Em especial, tal decisão é incompatível com o artigo 22.o do Regulamento n.o 44/2001?

3.

Pode recusar-se o reconhecimento ou a execução, nos termos do artigo 34.o, [ponto 1], do Regulamento n.o 44/2001, de uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, situado numa zona desse Estado [onde] o respectivo governo exerce um controlo efectivo, relativamente a um terreno situado nesse Estado numa zona [onde] o governo desse Estado não exerce um controlo efectivo, pelo facto de, por questões práticas, a decisão não poder ser executada no local onde se situa o terreno, apesar de ser exequível na zona controlada pelo governo daquele Estado-Membro?

4.

No caso de:

ter sido proferida uma decisão à revelia contra o demandado;

o demandado ter, em seguida, interposto recurso da decisão proferida à revelia no órgão jurisdicional de origem; mas

a sua pretensão não ter obtido provimento, após uma audiência completa e justa, com fundamento no facto de não ter conseguido apresentar uma contestação plausível (o que é necessário, nos termos da lei nacional, para que tal decisão possa ser anulada);

pode o demandado opor-se à execução da decisão inicial proferida à revelia ou da decisão do recurso de anulação, nos termos do artigo 34.o, [ponto 2], do Regulamento n.o 44/2001, com fundamento no facto de o acto que iniciou a instância não lhe ter sido notificado em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa antes de a primeira decisão ter sido proferida à revelia? É relevante o facto de a audiência se ter limitado a considerar a defesa do demandado em relação ao pedido?

5.

Que factores são relevantes para a aplicação do critério do artigo 34.o, [ponto 2], do Regulamento n.o 44/2001, que consiste em saber ‘se o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, [foi] comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir lhe a defesa’. Em especial:

a)

Quando a notificação tiver, de facto, permitido ao requerido tomar conhecimento do acto, é relevante considerar as acções (ou omissões) do requerido ou dos seus advogados após a notificação?

b)

Tem alguma relevância a conduta do requerido ou dos seus advogados ou as dificuldades por eles sentidas?

c)

É relevante o facto de o advogado do requerido ter podido intervir no processo antes de proferida a decisão à revelia?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

32

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a suspensão da aplicação do acervo comunitário na zona Norte, prevista no artigo 1.o, n.o 1, do Protocolo n.o 10, se opõe à aplicação do Regulamento n.o 44/2001 a uma decisão de um tribunal cipriota situado na zona controlada pelo governo, mas referente a um imóvel sito na referida zona Norte.

33

Há que salientar, em primeiro lugar, que o acto de adesão de um novo Estado-Membro se baseia essencialmente no princípio geral da aplicação imediata e integral das disposições do direito comunitário ao Estado aderente, só sendo admissíveis as derrogações expressamente previstas em disposições transitórias (v., neste sentido, acórdão de 9 de Dezembro de 1982, Metallurgiki Halyps/Comissão, 258/81, Recueil, p. 4261, n.o 8).

34

A este respeito, o Protocolo n.o 10 constitui uma derrogação transitória do princípio recordado no número anterior, que se baseia na situação excepcional existente em Chipre.

35

Contudo, como salientou a advogada-geral no n.o 35 das suas conclusões, as disposições de um acto de adesão que permitem derrogar as regras do Tratado CE devem ser interpretadas de forma estrita face às disposições em causa do Tratado e devem ser limitadas ao absolutamente necessário para atingir o seu objectivo (v., por analogia, acórdãos de 29 de Março de 1979, Comissão/Reino Unido, 231/78, Recueil, p. 1447, n.o 13; de , Peskeloglou, 77/82, Recueil, p. 1085, n.o 12; de , Piraiki-Patraiki e o./Comissão, 11/82, Recueil, p. 207, n.o 26; de , Agegate, C-3/87, Colect., p. 4459, n.o 39; e de , KappAhl, C-233/97, Colect., p. I-8069, n.o 18).

36

No processo principal, a derrogação prevista no Protocolo n.o 10 não pode ser interpretada no sentido de que se opõe à aplicação do Regulamento n.o 44/2001 às sentenças aqui em causa proferidas pelos tribunais cipriotas.

37

Com efeito, decorre da interpretação literal do artigo 1.o, n.o 1, do Protocolo n.o 10 que a suspensão nele prevista é limitada à aplicação do acervo comunitário na zona Norte. Todavia, no processo principal as sentenças em causa, cujo reconhecimento foi solicitado por M. Apostolides, foram proferidas por um tribunal situado na zona controlada pelo governo.

38

O facto de essas sentenças dizerem respeito a um imóvel sito na zona Norte não se opõe à interpretação mencionada no número anterior, na medida em que, por um lado, não elimina a obrigação de aplicar o Regulamento n.o 44/2001 na zona controlada pelo governo e, por outro, não implica que o Regulamento n.o 44/2001 seja aplicado, por essa razão, na zona Norte (v., por analogia, acórdão de 1 de Março de 2005, Owusu, C-281/02, Colect., p. I-1383, n.o 31).

39

Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira questão que a suspensão da aplicação do acervo comunitário na zona Norte, prevista no artigo 1.o, n.o 1, do Protocolo n.o 10, não obsta à aplicação do Regulamento n.o 44/2001 a uma decisão proferida por um tribunal cipriota situado na zona controlada pelo governo, mas referente a um imóvel sito na zona Norte.

Quanto à segunda, terceira, quarta e quinta questões

40

No que diz respeito à segunda, terceira, quarta e quinta questões, há que precisar que a Comissão alega a possibilidade de o litígio não se enquadrar no âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 44/2001. Esta alegação impõe, portanto, que se aprecie se o processo principal pode ser considerado «matéria civil e comercial», na acepção do artigo 1.o deste regulamento.

41

A este respeito, importa recordar que, para garantir, na medida do possível, a igualdade e a uniformidade dos direitos e obrigações que decorrem do Regulamento n.o 44/2001 para os Estados-Membros e as pessoas interessadas, não se deve interpretar o conceito de «matéria civil e comercial» como uma simples remissão para o direito interno de qualquer dos Estados em questão. O referido conceito deve ser considerado um conceito autónomo que tem de ser interpretado por referência, por um lado, aos objectivos e ao sistema do referido regulamento e, por outro, aos princípios gerais resultantes dos sistemas jurídicos nacionais no seu conjunto (v. acórdãos de 14 de Outubro de 1976, LTU, 29/76, Colect., p. 629, n.o 3; de , Rüffer, 814/79, Recueil, p. 3807, n.o 7; de , Sonntag, C-172/91, Colect., p. I-1963, n.o 18; de , Préservatrice foncière TIARD, C-266/01, Colect., p. I-4867, n.o 20; de , ČEZ, C-343/04, Colect., p. I-4557, n.o 22; e de , Lechouritou e o., C-292/05, Colect., p. I-1519, n.o 29).

42

Esta interpretação autónoma do conceito de «matéria civil e comercial» leva a excluir determinadas decisões judiciais do âmbito de aplicação do Regulamento n.o 44/2001, devido aos elementos que caracterizam a natureza das relações jurídicas entre as partes no litígio ou o seu objecto (v. acórdãos, já referidos, LTU, n.o 4; Rüffer, n.o 14; Préservatrice foncière TIARD, n.o 21; ČEZ, n.o 22; e Lechouritou e o., n.o 30).

43

O Tribunal de Justiça considerou, assim, que, embora determinados litígios que opõem uma entidade pública a uma entidade privada se possam enquadrar no referido conceito, o mesmo já não acontece se essa entidade pública actuar no exercício da sua autoridade pública (v. acórdãos, já referidos, LTU, n.o 4; Rüffer, n.o 8; Sonntag, n.o 20; Préservatrice foncière TIARD, n.o 22; e Lechouritou e o., n.o 31).

44

Com efeito, a manifestação de prerrogativas de autoridade pública por uma das partes no litígio, pelo facto de essa parte exercer poderes que exorbitam das regras aplicáveis nas relações entre particulares, exclui esse litígio da matéria civil e comercial na acepção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, LTU, n.o 4, Rüffer; n.os 9 e 16; Sonntag, n.o 22; Préservatrice foncière TIARD, n.o 30; e Lechouritou e o., n.o 34).

45

No processo principal, está em causa um litígio entre particulares cujo objecto é o pedido de indemnização pela posse ilegal de um imóvel, os pedidos de entrega do mesmo e de reposição do seu estado original, assim como a cessação de toda e qualquer actuação ilegal. A acção intentada não é dirigida contra actuações ou procedimentos que impliquem o exercício de prerrogativas de autoridade pública por uma das partes no litígio, mas contra actos praticados por particulares.

46

Por conseguinte, o processo principal deve ser considerado como atinente a «matéria civil e comercial», na acepção do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001.

Quanto à segunda questão

47

Com a sua segunda questão, o tribunal de reenvio pergunta, em substância, se o facto de uma decisão ser proferida por um tribunal de um Estado-Membro, relativamente a um imóvel sito numa região desse Estado-Membro onde o respectivo governo não exerce um controlo efectivo, pode ser considerado uma violação da regra de competência formulada no artigo 22.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001 e, por consequência, justificar a recusa de reconhecimento ou de execução dessa decisão, nos termos do artigo 35.o, n.o 1, do Regulamento.

48

A este respeito, há que constatar que o artigo 22.o do Regulamento n.o 44/2001 contém uma lista imperativa e taxativa da competência jurisdicional internacional exclusiva dos Estados-Membros. Este artigo apenas designa o Estado-Membro cujos tribunais são competentes, ratione materiae, mas não designa as competências internas do Estado-Membro em causa. É competência dos Estados-Membros estabelecer a sua própria organização judiciária.

49

Além disso, o princípio da proibição do controlo da competência dos tribunais do Estado-Membro de origem, previsto no artigo 35.o, n.o 3, do referido regulamento — que só é admitido relativamente às disposições do n.o 1 desse artigo —, impede que no processo principal se proceda ao controlo da competência interna dos tribunais do Estado-Membro de origem em apreço.

50

Por conseguinte, a regra do forum rei sitae prevista no artigo 22.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001 diz respeito à competência judiciária internacional dos Estados-Membros, e não à sua competência judiciária interna.

51

No processo principal, é facto assente que o imóvel está situado no território da República de Chipre e que, portanto, foi respeitada a regra de competência prevista no artigo 22.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001. O facto de o imóvel se situar na zona Norte pode eventualmente ter relevância na competência interna dos tribunais cipriotas, mas não tem relevância alguma para efeitos deste regulamento.

52

Tendo em conta o que precede, há que responder à segunda questão que o artigo 35.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 não permite a um tribunal de um Estado-Membro recusar o reconhecimento ou a execução de uma decisão proferida por um tribunal de outro Estado-Membro relativamente a um imóvel sito numa zona deste último Estado onde o respectivo governo não exerce um controlo efectivo.

Quanto à terceira questão

53

Com a sua terceira questão, o tribunal de reenvio pergunta, em substância, se o facto de uma decisão proferida pelos tribunais de um Estado-Membro relativamente a um imóvel sito numa zona desse Estado onde o respectivo governo não exerce um controlo efectivo não poder, na prática, ser executada no local em que se situa o imóvel constitui um motivo de recusa de reconhecimento ou de execução nos termos do artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001.

— Quanto ao artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001

54

Nos termos do artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001, uma decisão não será reconhecida se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido. O artigo 45.o, n.o 1, do mesmo regulamento prevê um caso idêntico de recusa do exequatur.

55

A título liminar, há que recordar que o artigo 34.o do Regulamento n.o 44/2001 deve ser objecto de interpretação estrita na medida em que constitua um obstáculo à realização de um dos objectivos fundamentais do referido regulamento (v. acórdãos de 2 de Junho de 1994, Solo Kleinmotoren, C-414/92, Colect., p. I-2237, n.o 20; de , Krombach, C-7/98, Colect., p. I-1935, n.o 21; e de , Renault, C-38/98, Colect., p. I-2973, n.o 26). Mais concretamente, a cláusula de ordem pública constante do artigo 34.o, ponto 1, do mesmo regulamento só deve ser usada em casos excepcionais (v. acórdãos de , Hoffmann, 145/86, Colect., p. 645, n.o 21; de , Hendrikman e Feyen, C-78/95, Colect., p. I-4943, n.o 23; Krombach, já referido, n.o 21; e Renault, já referido, n.o 26).

56

Embora os Estados-Membros permaneçam, em princípio, livres para, ao abrigo da reserva constante do artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001 e em conformidade com as suas concepções nacionais, determinar as exigências da sua ordem pública, os limites desse conceito fazem parte da interpretação desse regulamento (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.o 22, e Renault, n.o 27).

57

Assim, embora não caiba ao Tribunal de Justiça definir o conteúdo da ordem pública de um Estado-Membro, incumbe-lhe contudo controlar os limites no quadro dos quais o tribunal de um Estado-Membro pode recorrer a esse conceito para não reconhecer uma decisão de outro Estado-Membro (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.o 23, e Renault, n.o 28).

58

A este respeito, importa sublinhar que, ao proibirem a revisão de mérito de uma decisão estrangeira, os artigos 36.o e 45.o, n.o 2, do Regulamento n.o 44/2001 não permitem que o juiz do Estado requerido recuse o reconhecimento ou a execução dessa decisão com base apenas no facto de haver uma divergência entre a norma jurídica aplicada pelo tribunal do Estado de origem e a que seria aplicada pelo tribunal do Estado requerido se fosse ele a decidir o litígio. Do mesmo modo, o tribunal do Estado requerido não pode controlar a exactidão das apreciações jurídicas ou da matéria de facto levadas a cabo pelo tribunal do Estado de origem (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.o 36, e Renault, n.o 29).

59

O recurso à cláusula de ordem pública, constante do artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001, só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado contratante violem de forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por infringir um princípio fundamental. A fim de respeitar a proibição de revisão de mérito da decisão estrangeira, essa infracção deve constituir uma violação manifesta de uma norma jurídica considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.o 37, e Renault, n.o 30).

60

A este respeito, o tribunal do Estado requerido não pode, sob pena de pôr em causa a finalidade do Regulamento n.o 44/2001, recusar o reconhecimento de uma decisão emanada de outro Estado contratante, apenas por considerar que a decisão aplica incorrectamente o direito nacional ou o direito comunitário. Pelo contrário, há que considerar que, nesses casos, o sistema de meios processuais existente nos Estados-Membros, completado pelo mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 234.o CE, fornece aos particulares uma garantia suficiente (v., neste sentido, acórdão Renault, já referido, n.o 33). A cláusula de ordem pública só se aplica nesses casos na medida em que o referido erro de direito implique que o reconhecimento e a execução da decisão no Estado requerido sejam considerados como uma violação manifesta de uma norma jurídica essencial na ordem jurídica do referido Estado (v., neste sentido, acórdão Renault, já referido, n.o 34).

61

No processo principal, como salientaram M. Apostolides e os Governos cipriota e grego, o tribunal de reenvio não mencionou nenhum princípio fundamental da ordem jurídica do Reino Unido que pudesse ser infringido pelo reconhecimento e a execução das sentenças aqui em causa.

62

Por conseguinte, uma vez que o reconhecimento ou a execução das sentenças em causa não infringem nenhum princípio fundamental da ordem jurídica do Reino Unido, não é possível recusar-lhes o reconhecimento, ao abrigo do artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001, com fundamento em que uma sentença proferida pelos tribunais de um Estado-Membro relativamente a um imóvel sito numa zona desse Estado onde o respectivo governo não exerce um controlo efectivo não poderá, na prática, ser executada no local onde se situa o imóvel. De igual modo, a recusa de execução não será possível, com base na mesma disposição, por aplicação do artigo 45.o, n.o 1, do mesmo regulamento.

— Quanto ao artigo 38.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001

63

Apesar das considerações que precedem, há que recordar que, segundo a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no contexto da aplicação do artigo 234.o CE, o Tribunal de Justiça pode extrair do teor das questões formuladas pelo juiz nacional, tendo em conta os dados por ele indicados, os elementos que se prendem com a interpretação do direito comunitário, a fim de permitir ao juiz nacional resolver o problema jurídico que lhe foi submetido (v. acórdãos de 28 de Janeiro de 1992, López Brea e Hidalgo Palacios, C-330/90 e C-331/90, Colect., p. I-323, n.o 5; de , Köbler, C-224/01, Colect., p. I-10239, n.o 60; e de , Chateignier, C-346/05, Colect., p. I-10951, n.o 18).

64

Ora, no processo principal, se o facto de as sentenças em causa não poderem ser executadas no Estado-Membro de origem não puder justificar a recusa do reconhecimento ou da execução destas ao abrigo do artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001, a verdade é que esse facto pode ser relevante para efeitos do artigo 38.o, n.o 1, do mesmo regulamento.

65

Nos termos desta última disposição, as decisões proferidas num Estado-Membro e que tenham força executiva nesse Estado podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias a requerimento de qualquer parte interessada.

66

Assim, a executoriedade da decisão no Estado-Membro de origem constitui um requisito para a sua execução no Estado-Membro requerido (v. acórdão de 29 de Abril de 1999, Coursier, C-267/97, Colect., p. I-2543, n.o 23). A este respeito, devendo o reconhecimento, em princípio, ter o efeito de atribuir às decisões a autoridade e a eficácia de que elas gozam no Estado-Membro onde foram proferidas (v. acórdão Hoffmann, já referido, n.os 10 e 11), não há razão para atribuir a uma sentença, na execução, direitos que não lhe são atribuídos no Estado-Membro de origem [v. o relatório da Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, elaborado por P. Jenard (JO 1979, C 59, p. 48)] ou efeitos que uma sentença do mesmo tipo, directamente proferida no Estado-Membro requerido, não teria.

67

Todavia, no processo principal, não se poderia sustentar validamente que as sentenças em causa são desprovidas de executoriedade no Estado-Membro de origem.

68

Com efeito, trata-se de sentenças condenatórias cuja executoriedade no Estado-Membro de origem é declarada na certidão prevista no artigo 54.o do Regulamento n.o 44/2001, à data da sua emissão.

69

Assim, cabe salientar que o Regulamento n.o 44/2001 se limita a regular o processo de exequatur dos títulos executivos estrangeiros e não versa sobre a execução propriamente dita, que permanece submetida ao direito nacional do tribunal onde a execução é requerida (v. acórdãos de 2 de Julho de 1985, Deutsche Genossenschaftsbank, 148/84, Recueil, p.1981, n.o 18; de , Capelloni e Aquilini, 119/84, Recueil, p. 3147, n.o 16; e Hoffmann, já referido, n.o 27), sem que a aplicação das normas processuais do Estado-Membro requerido, no quadro da execução, possa afectar o efeito útil do sistema instituído pelo regulamento em matéria de exequatur, pondo em causa os princípios estabelecidos na matéria, expressa ou implicitamente, pelo próprio regulamento (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Capelloni e Aquilini, n.o 21, e Hoffmann, n.o 29; e o acórdão de , Hagen, C-365/88, Colect., p. I-1845, n.o 20).

70

O facto de os recorrentes poderem vir a ter dificuldades em executar as sentenças na zona Norte não permite privá-las da sua executoriedade e, por isso, não obsta a que os tribunais do Estado-Membro requerido lhes concedam o exequatur.

71

Tendo em conta o que precede, há que responder à terceira questão que o facto de uma decisão proferida pelos tribunais de um Estado-Membro relativamente a um imóvel sito numa zona desse Estado-Membro onde o respectivo governo não exerce um controlo efectivo não poder, na prática, ser executada no local onde se situa o imóvel não constitui um motivo de recusa de reconhecimento ou de execução ao abrigo do artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001, nem implica a falta de executoriedade da decisão no sentido do artigo 38.o, n.o 1, do mesmo regulamento.

Quanto à quarta questão

72

Na sua quarta questão, o tribunal de reenvio pergunta, em substância, se o reconhecimento ou a execução de uma decisão proferida à revelia podem ser recusados ao abrigo do artigo 34.o, ponto 2, do Regulamento n.o 44/2001, devido ao facto de o acto que iniciou a instância ou o acto equivalente não terem sido notificados ao recorrente em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, quando o recorrente pôde recorrer da decisão para os tribunais do Estado-Membro de origem.

73

A este respeito, decorre do décimo sexto ao décimo oitavo considerando do Regulamento n.o 44/2001 que o sistema de recursos contra o reconhecimento ou a execução de uma decisão, nele instituído, visa estabelecer um justo equilíbrio entre a confiança recíproca na justiça no seio da União — que justifica que as decisões proferidas num Estado-Membro sejam, em princípio, reconhecidas e declaradas executórias de pleno direito noutro Estado-Membro — e o respeito pelos direitos da defesa, que implica que o demandado possa eventualmente interpor recurso contraditório da declaração que reconhece a executoriedade, se entender que se verifica um motivo de não execução.

74

O Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 14 de Dezembro de 2006, ASML (C-283/05, Colect., p. I-12041), teve já oportunidade de salientar as diferenças entre o artigo 34.o, ponto 2, do Regulamento n.o 44/2001 e o artigo 27.o, n.o 2, da Convenção de , relativa à competência judiciária e à execução das decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186).

75

O artigo 34.o, ponto 2, ao contrário do artigo 27.o, n.o 2, não exige necessariamente a regularidade da citação ou notificação do acto que inicia a instância, mas a efectiva observância dos direitos de defesa (acórdão ASML, já referido, n.o 20).

76

Com efeito, nos termos dos artigos 34.o, ponto 2, e 45.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001, o reconhecimento ou a execução de uma decisão proferida à revelia devem ser recusados, em caso de recurso, se o acto que iniciou a instância ou acto equivalente não tiverem sido comunicados ou notificados ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso da decisão nos tribunais do Estado-Membro de origem, embora tivesse tido a possibilidade de o fazer.

77

Resulta da letra das referidas disposições que uma decisão proferida à revelia com base num acto que iniciou a instância, não comunicado ao requerido revel em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, deve ser reconhecida se o requerido não tiver tomado a iniciativa de recorrer da sentença, embora tivesse tido a possibilidade de o fazer.

78

Por maioria de razão, os direitos de defesa que o legislador comunitário pretendeu salvaguardar com o artigo 34.o, ponto 2, do Regulamento n.o 44/2001 são respeitados se o requerido tiver efectivamente exercido o seu direito de recurso da decisão proferida à revelia e se esse recurso lhe tiver permitido alegar que o acto que iniciou a instância ou o acto equivalente não lhe foram comunicados ou notificados em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa.

79

É facto assente no processo principal que o casal Orams exerceu o seu direito de recurso no Estado-Membro de origem contra a sentença proferida à revelia em 9 de Novembro de 2004. Por conseguinte, o artigo 34.o, ponto 2, do Regulamento n.o 44/2001 não pode ser validamente invocado.

80

Tendo em conta o que precede, há que responder à quarta questão que o reconhecimento ou a execução de uma decisão proferida à revelia não podem ser recusados ao abrigo do artigo 34.o, ponto 2, do Regulamento n.o 44/2001, se o requerido tiver exercido o direito de recurso da decisão proferida à revelia e se esse recurso lhe tiver permitido alegar que o acto que iniciou a instância ou o acto equivalente não lhe foram comunicados ou notificados em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa.

Quanto à quinta questão

81

Tendo em conta a resposta à quarta questão, não há que responder à quinta questão.

Quanto às despesas

82

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

A suspensão da aplicação do acervo comunitário nas zonas da República de Chipre onde o governo deste Estado-Membro não exerce um controlo efectivo, determinada pelo artigo 1.o, n.o 1, do Protocolo n.o 10 sobre Chipre do Acto relativo às condições de adesão à União Europeia da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia, não obsta à aplicação do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, a uma decisão proferida por um tribunal cipriota situado na zona da ilha efectivamente controlada pelo Governo cipriota, mas referente a um imóvel sito nas referidas zonas.

 

2)

O artigo 35.o, n.o 1, do Regulamento n.o 44/2001 não permite a um tribunal de um Estado-Membro recusar o reconhecimento ou a execução de uma decisão proferida por um tribunal de outro Estado-Membro relativamente a um imóvel sito numa zona deste último Estado onde o respectivo governo não exerce um controlo efectivo.

 

3)

O facto de uma decisão proferida pelos tribunais de um Estado-Membro relativamente a um imóvel sito numa zona desse Estado-Membro onde o respectivo governo não exerce um controlo efectivo não poder, na prática, ser executada no local onde se situa o imóvel não constitui um motivo de recusa de reconhecimento ou de execução ao abrigo do artigo 34.o, ponto 1, do Regulamento n.o 44/2001, nem implica a falta de executoriedade da decisão no sentido do artigo 38.o, n.o 1, do mesmo regulamento.

 

4)

O reconhecimento ou a execução de uma decisão proferida à revelia não podem ser recusados ao abrigo do artigo 34.o, ponto 2, do Regulamento n.o 44/2001, se o requerido tiver exercido o direito de recurso da decisão proferida à revelia e se esse recurso lhe tiver permitido alegar que o acto que iniciou a instância ou o acto equivalente não lhe foram comunicados ou notificados em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: inglês.