Processo C‑409/06

Winner Wetten GmbH

contra

Bürgermeisterin der Stadt Bergheim

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Verwaltungsgericht Köln)

«Artigos 43.° CE e 49.° CE – Liberdade de estabelecimento – Livre prestação de serviços – Organização de apostas em competições desportivas sujeita a monopólio público à escala de um Land – Decisão do Bundesverfassungsgericht que declara a incompatibilidade da regulamentação relativa a esse monopólio com a Lei Fundamental alemã, mas que a mantém em vigor durante um período transitório destinado a permitir a sua adaptação à Lei Fundamental – Princípio do primado do direito da União – Admissibilidade e eventuais condições de um período transitório desse tipo quando a regulamentação nacional em causa violar também os artigos 43.° CE e 49.° CE»

Sumário do acórdão

Direito da União – Efeito directo – Primado – Regulamentação nacional relativa a um monopólio público sobre as apostas sobre as competições desportivas

(Artigos 43.° CE e 49.° CE)

Por força do primado do direito da União directamente aplicável, uma regulamentação nacional relativa a um monopólio público sobre as apostas em competições desportivas que, segundo o que apurou um órgão jurisdicional nacional, contém restrições incompatíveis com a liberdade de estabelecimento e com a livre prestação de serviços, pelo facto de essas restrições não contribuírem para limitar as actividades de apostas de maneira coerente e sistemática, conforme exige a jurisprudência do Tribunal de Justiça, não pode continuar a ser aplicada durante um período transitório.

Com efeito, não se pode admitir que a unidade e a eficácia do direito da União sejam postas em causa por normas de direito nacional, mesmo que sejam de ordem constitucional.

A este respeito, basta, porém, referir que, mesmo admitindo que considerações semelhantes às que estão subjacentes à manutenção dos efeitos de um acto da União anulado ou declarado inválido, que tem por objecto impedir a constituição de um vazio jurídico até vir um novo acto substituir o primeiro, fossem susceptíveis de levar, por analogia e a título excepcional, a uma suspensão provisória do efeito de exclusão exercido por uma norma de direito da União directamente aplicável em face do direito nacional a ela contrário, essa suspensão, cujas condições só poderiam ser determinadas pelo Tribunal de Justiça, é de excluir liminarmente na falta de considerações imperiosas de segurança jurídica que a pudessem justificar.

(cf. n.os 61, 66, 67, 69, disp.)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

8 de Setembro de 2010 (*)

«Artigos 43.° CE e 49.° CE – Liberdade de estabelecimento – Livre prestação de serviços – Organização de apostas em competições desportivas sujeita a monopólio público à escala de um Land – Decisão do Bundesverfassungsgericht que declara a incompatibilidade da regulamentação relativa a esse monopólio com a Lei Fundamental alemã, mas que a mantém em vigor durante um período transitório destinado a permitir a sua adaptação à Lei Fundamental – Princípio do primado do direito da União – Admissibilidade e eventuais condições de um período transitório desse tipo quando a regulamentação nacional em causa violar também os artigos 43.° CE e 49.° CE»

No processo C‑409/06,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Verwaltungsgericht Köln (Alemanha), por decisão de 21 de Setembro de 2006, entrado no Tribunal de Justiça em 9 de Outubro de 2006, no processo

Winner Wetten GmbH

contra

Bürgermeisterin der Stadt Bergheim,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts, J.‑C. Bonichot e P. Lindh, presidentes de secção, K. Schiemann (relator), A. Borg Barthet, M. Ilešič, J. Malenovský, U. Lõhmus, A. Ó Caoimh e L. Bay Larsen, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: N. Nanchev, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 9 de Dezembro de 2009,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Winner Wetten GmbH, por O. Bludovsky e D. Pawlick, Rechtsanwälte,

–        em representação da Bürgermeisterin der Stadt Bergheim, por M. Hecker, M. Ruttig e H. Sicking, Rechtsanwälte,

–        em representação do Governo alemão, por M. Lumma, C. Schulze‑Bahr, B. Klein e J. Möller, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo belga, por A. Hubert, e em seguida por L. Van den Broeck, na qualidade de agentes, assistidas por P. Vlaemminck e S. Verhulst, advocaten,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo grego, por A. Samoni‑Rantou, G. Skiani, M. Tassopoulou e K. Boskovits, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo espanhol, por F. Díez Moreno, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo francês, por E. Belliard, G. de Bergues, C. Jurgensen, C. Bergeot‑Nunes e A. Adam, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, P. Mateus Calado e A. P. Barros, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo esloveno, por M. Remic, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo norueguês, por F. Sejersted, G. Hansson Bull, K. B. Moen e Ø. Andersen, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por E. Traversa e K. Gross, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 26 de Janeiro de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 43.° CE e 49.° CE e as consequências ligadas ao princípio do primado do direito comunitário.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Winner Wetten GmbH (a seguir «WW») à Bürgermeisterin der Stadt Bergheim (presidente da Câmara Municipal da cidade de Bergheim) a respeito da decisão desta de proibir a WW de prosseguir a sua actividade de proposta de apostas em competições desportivas.

 Quadro jurídico nacional

 Legislação nacional

3        O artigo 12.°, n.° 1, da Lei Fundamental (Grundgesetz) dispõe:

«Todos os Alemães têm o direito de escolher livremente a sua profissão, o seu local de trabalho e o seu local de formação. O exercício da profissão pode ser regulado por lei ou com base na lei.»

4        O § 31 da Lei do Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgerichtsgesetz) dispõe:

«(1)      As decisões do Bundesverfassungsgericht vinculam os poderes constitucionais da Federação, dos Länder e todos os órgãos jurisdicionais e autoridades.

(2)      [...] as decisões do Bundesverfassungsgericht têm força de lei [...] quando o Bundesverfassungsgericht declarar que uma lei é compatível ou incompatível com a Lei Fundamental ou nula. Se uma lei for declarada compatível ou incompatível com a Lei Fundamental ou com outras disposições do direito federal ou nula, a parte dispositiva da decisão deve ser publicada no Bundesgesetzblatt [...]»

5        Nos termos do § 35 da Lei do Tribunal Constitucional Federal:

«O Bundesverfassungsgericht poderá determinar na sua decisão quem a executará, podendo também determinar de que forma será executada.»

6        O § 284 do Código Penal (Strafgesetzbuch) prevê:

«(1)      Quem organizar ou mantiver publicamente jogos de fortuna e azar sem autorização administrativa ou facultar as instalações necessárias para o efeito é punido com pena de prisão até dois anos ou multa.

[...]

(3)      Quem praticar os actos referidos no n.° 1

1.      de forma profissional [...]

[...]

é punido com pena de prisão de três meses a cinco anos.

[...]»

7        Pelo tratado de Estado relativo às lotarias na Alemanha (Staatsvertrag zum Lotteriewesen in Deutschland, a seguir «LottStV»), entrado em vigor em 1 de Julho de 2004, os Länder criaram um quadro uniforme para a organização, exploração e colocação, a título comercial, de jogos de fortuna e azar, com excepção dos casinos.

8        O § 1 do LottStV refere:

«O tratado de Estado tem por objectivo

1.      canalizar de forma ordenada e vigiada a propensão natural da população para o jogo e, em particular, evitar que se manifeste nos jogos de fortuna e azar não autorizados,

2.      impedir os incentivos excessivos ao jogo,

3.      excluir uma exploração da propensão para o jogo com fins lucrativos privados ou comerciais,

4.      garantir que os jogos de fortuna e azar se processem de forma regular e que a sua lógica seja compreensível, e

5.      garantir que uma parte significativa das receitas provenientes dos jogos de fortuna e azar seja utilizada na promoção de objectivos públicos ou que beneficiem de um estatuto fiscal privilegiado, na acepção do Código Fiscal.»

9        O § 5, n.os 1 e 2, do LottStV dispõe:

«1.      Os Länder, no âmbito dos objectivos referidos no § 1, devem zelar pela existência de uma oferta suficiente de jogos de fortuna e azar.

2.      Com base na lei, os Länder podem assegurar essa função por si próprios ou por intermédio de pessoas colectivas de direito público ou de sociedades de direito privado em que exista uma participação determinante detida directa ou indirectamente por pessoas colectivas de direito público.»

10      No Land da Renânia do Norte‑Vestefália (a seguir «Land da NRW»), a aplicação do LottStV é assegurada através da Lei das apostas em competições desportivas (Sportwettengesetz Nordrhein‑Westfalen), de 3 de Maio de 1955 (a seguir «SWG NRW»), cujo § 1, n.° 1, dispõe:

«O governo do Land pode autorizar sociedades de apostas em competições desportivas. Essas sociedades de apostas devem imperativamente ser pessoas colectivas de direito público ou pessoas colectivas de direito privado cujo capital social seja maioritariamente detido por pessoas colectivas de direito público. [...]»

11      No Land da NRW foi passada uma única autorização desse tipo, à Westdeutsche Lotterie & Co. OHG.

 Acórdão do Bundesverfassungsgericht de 28 de Março de 2006

12      Por acórdão de 28 Março de 2006, o Bundesverfassungsgericht considerou, a propósito da regulamentação que transpunha o LottStV no Land da Baviera, que o monopólio público em matéria de apostas em competições desportivas existente nesse Land violava o artigo 12.°, n.° 1, da Lei Fundamental, que garante a liberdade profissional. Esse tribunal considerou nomeadamente que, uma vez que excluía a actividade de organização de apostas por operadores privados sem ser acompanhado de um quadro regulamentar adequado a garantir estrutural e substancialmente, quer de direito quer de facto, que o objectivo de redução da paixão pelo jogo e de luta contra a sua dependência fosse efectivamente prosseguido, esse monopólio gerava uma violação desproporcionada da liberdade profissional garantida.

13      Depois de salientar que o legislador dispunha de vários meios para sanar essa inconstitucionalidade, a saber, a organização sistemática do monopólio para atingir o referido objectivo ou a instituição pela lei de modalidades de autorização em matéria de organização de apostas a título comercial por sociedades privadas, o Bundesverfassungsgericht decidiu não anular a regulamentação em causa e manter os seus efeitos até 31 de Dezembro de 2007, esclarecendo que, nessa data, o legislador deveria ter exercido o seu poder de apreciação, alterando as normas declaradas desconformes com a Lei Fundamental de forma a garantir a sua conformidade.

14      Contudo, o Bundesverfassungsgericht considerou ainda que a situação jurídica existente só era assim mantida provisoriamente na condição de ser restabelecido imediatamente um mínimo de coerência entre o objectivo de limitação da paixão pelo jogo e de luta contra a dependência do jogo e o exercício efectivo do monopólio. Em particular, no período transitório instituído, era proibido aumentar a oferta de apostas e fazer publicidade que fosse além de uma simples informação sobre a natureza e o modo operatório das apostas apresentadas. Por outro lado, devia proceder‑se imediatamente a uma informação activa sobre os perigos ligados às apostas.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15      A WW tem um estabelecimento comercial em Bergheim (Alemanha) onde exerce a actividade de colocação de apostas em competições desportivas por conta da Tipico Co. Ltd, sociedade estabelecida em Malta.

16      Por despacho de 28 de Junho de 2005, a Bürgmeisterin der Stadt Bergheim proibiu a WW de prosseguir o exercício dessa actividade, sob pena de encerramento e selagem do seu estabelecimento comercial.

17      O recurso gracioso interposto desse despacho pela WW foi indeferido pelo Landrat des Rhein‑Erft‑Kreises (chefe dos serviços administrativos do Rhein‑Erft‑Kreis) por decisão de 22 de Setembro de 2005, pelo facto de, com essa actividade, a WW ser, senão cúmplice de organização de jogos de fortuna e azar, actividade punível pelo § 284 do Código Penal, pelo menos responsável por uma infracção ao § 1 da SWG NRW, que sujeita toda a organização de apostas em competições desportivas a autorização prévia passada pelo Land da NRW.

18      A WW recorreu dessa decisão e do despacho de 28 de Junho de 2005 para o Verwaltungsgericht Köln (Tribunal Administrativo de Colónia), alegando que o monopólio público sobre as apostas em competições desportivas em vigor no Land da NRW, no qual se baseiam esses actos, é contrário à livre prestação de serviços garantida pelo artigo 49.° CE.

19      O Verwaltungsgericht Köln refere que nem a WW nem a Tipico Co. Ltd são titulares da autorização exigida pelo § 1 da SWG NRW para poder exercer a actividade em causa no processo principal e que, aliás, essa autorização não lhes poderia ter sido concedida devido à existência do monopólio instituído pela regulamentação em vigor no Land da NRW.

20      A este respeito, o Verwaltungsgericht Köln entende, porém, que resulta do acórdão de 6 de Novembro de 2003, Gambelli e o. (C‑243/01, Colect., p. I‑13031), que uma medida restritiva como esse monopólio não pode, no caso, ser justificada à luz do alegado objectivo de prevenção da incitação a despesas excessivas ligadas ao jogo e de luta contra a dependência do jogo, pois é pacífico que a participação nas apostas em competições desportivas é encorajada pelos organismos nacionais autorizados a organizá‑las e, portanto, essa medida não contribui para limitar as actividades de apostas de maneira coerente e sistemática.

21      Resulta do acórdão do Bundesverfassungsgericht de 28 de Março de 2006, acima referido, proferido a propósito da regulamentação do Land da Baviera, e de um despacho análogo proferido pelo mesmo tribunal em 2 de Agosto de 2006 a respeito da regulamentação comparável do Land da NRW que o monopólio público em matéria de apostas em competições desportivas existente nesse Land viola o artigo 12.°, n.° 1, da Lei Fundamental, pelo facto de o quadro regulamentar em vigor não ser adequado para assegurar nem juridicamente nem de facto que o objectivo de redução da paixão pelo jogo e de luta contra a dependência do jogo é efectivamente prosseguido.

22      Nesse acórdão, o Bundesverfassungsgericht salientou ainda expressamente que os requisitos resultantes da disposição constitucional acima referida e os que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça, em particular do acórdão Gambelli e o., já referido, convergiam a esse respeito.

23      Segundo o Verwaltungsgericht Köln, pode inferir‑se do exposto que o monopólio existente no Land da NRW deve ser considerado contrário quer ao direito comunitário quer à Lei Fundamental, tal como já considerou, aliás, o Oberverwaltungsgericht Nordrhein‑Westfalen (Tribunal Administrativo Supremo da Renânia do Norte‑Vestefália).

24      Para esse tribunal, o facto de a Westdeutsche Lotterie & Co. OHG se ter esforçado, desde a prolação do acórdão do Bundesverfassungsgericht de 28 de Março de 2006, acima referido, por adaptar a sua prática de forma a cumprir as condições transitórias impostas por esse tribunal, acima descritas no n.° 14 do presente acórdão, não basta para pôr fim a essa inobservância do direito comunitário, sendo necessária para esse efeito uma alteração do quadro jurídico em vigor.

25      O Verwaltungsgericht Köln observa, porém, que, não obstante a incompatibilidade entre a regulamentação do Land da NRW e o direito comunitário declarada pelo Oberverwaltungsgericht Nordrhein‑Westfalen, este último tribunal considerou que essa regulamentação deveria beneficiar das mesmas medidas transitórias decididas pelo Bundesverfassungsgericht no seu acórdão de 28 de Março de 2006, acima referido, isto é, como resulta dos n.os 13 e 14 do presente acórdão, uma manutenção dos seus efeitos até 31 de Dezembro de 2007.

26      Segundo o Oberverwaltungsgericht Nordrhein‑Westfalen, o princípio geral da segurança jurídica e a necessidade de não criar um vazio jurídico que ameace interesses públicos essenciais exigem, com efeito, que esses interesses prevaleçam transitoriamente sobre o de os prestadores de apostas privados acederem livremente ao mercado, determinando, em derrogação do princípio do primado do direito comunitário, um período transitório em que a regulamentação em causa pudesse continuar a ser aplicável.

27      O Verwaltungsgericht Köln tem dúvidas quanto à compatibilidade da instituição desse período transitório com os requisitos resultantes do princípio do primado do direito comunitário, que, como resulta do acórdão de 9 de Março de 1978, Simmenthal (106/77, Colect., p. 243), exige de forma incondicional que a regulamentação nacional contrária aos artigos 43.° CE ou 49.° CE deixe imediatamente de ser aplicada.

28      Nestas condições, o Verwaltungsgericht Köln decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Os artigos 43.° [CE] e 49.° CE devem ser interpretados no sentido de que a legislação nacional relativa a um monopólio [público] sobre as apostas [em competições] desportivas que contenha restrições ilícitas à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços, garantidas nos artigos 43.° [CE] e 49.° CE, por não contribuir para limitar as actividades de apostas de [...] maneira coerente e sistemática, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (acórdão [Gambelli e o., já referido]), pode continuar a ser aplicada excepcionalmente durante um período de transição, apesar do princípio do primado do direito comunitário directamente aplicável?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, quais os pressupostos para uma excepção a esse primado e como deve ser determinado o período de transição?»

 Quanto à admissibilidade das questões prejudiciais

29      O Governo norueguês entende que as questões prejudiciais têm carácter hipotético. Com efeito, resulta da decisão de reenvio que, sem analisar por si próprio o monopólio instituído no Land da NRW à luz do direito comunitário, o tribunal de reenvio presumiu a incompatibilidade desse monopólio com as normas do Tratado CE, limitando‑se a basear‑se no acórdão do Bundesverfassungsgericht de 28 de Março de 2006, acima referido. Ora, por um lado, nesse acórdão, o Bundesverfassungsgericht declarou‑se expressamente incompetente para conhecer da compatibilidade desse monopólio com o direito comunitário. Por outro lado, o facto de o Bundesverfassungsgericht ter considerado que esse monopólio era contrário à Lei Fundamental em nada afecta a sua eventual incompatibilidade com o direito comunitário.

30      Por seu turno, os Governos alemão e belga e ainda a Comissão Europeia alegam que, em vez de concluir pela incompatibilidade do monopólio em causa no processo principal com o direito comunitário unicamente com base nas considerações do Bundesverfassungericht no seu acórdão de 28 de Março de 2006, acima referido, o tribunal de reenvio deveria analisar se essa incompatibilidade se mantinha, tendo em conta as condições a que o Bundesverfassungsgericht, nessa decisão, sujeitou a manutenção provisória dos efeitos da regulamentação em causa, tais como descritas no n.° 14 do presente acórdão.

31      O Governo belga e a Comissão consideram que, sem essa análise, as questões prejudiciais para a decisão da causa principal não têm pertinência. O Governo alemão sugere, por sua vez, que o Tribunal de Justiça reformule as questões prejudiciais e lhes responda que esse monopólio transitoriamente adaptado está em conformidade com os requisitos impostos pelo acórdão Gambelli e o., já referido.

32      Reagindo às objecções assim formuladas, o tribunal de reenvio dirigiu uma carta ao Tribunal de Justiça em 11 de Maio de 2007, esclarecendo que, para decidir a causa principal, teria de levar em conta a situação de direito e de facto como existia no momento da decisão em causa no processo principal, isto é, 22 de Setembro de 2005, pelo que as eventuais alterações ocorridas depois do acórdão do Bundesverfassungsgericht de 28 de Março de 2006, acima referido, não podem ser tomadas em consideração na decisão da causa principal.

33      Em face do conteúdo dessa carta, em 16 de Julho de 2008, o Tribunal de Justiça, com base no artigo 104.°, n.° 5, do seu Regulamento de Processo, dirigiu uma carta ao tribunal de reenvio, convidando‑o a indicar‑lhe se continuava a ser necessária para a decisão da causa principal uma resposta às questões prejudiciais tendo em conta as precisões entretanto fornecidas pelo Bundesverfassungsgericht num despacho de 22 de Novembro de 2007. Nesse despacho, o Bundesverfassungsgericht considerou, quanto à regulamentação em causa no processo que deu origem ao seu acórdão de 28 de Março de 2006, acima referido, que a manutenção dos efeitos dessa regulamentação decidida nesse acórdão não era susceptível de sanar a desconformidade de decisões administrativas adoptadas antes desse acórdão com a Lei Fundamental.

34      Na sua resposta de 8 de Agosto de 2008, o tribunal de reenvio esclareceu que continuava a ser necessária uma resposta às questões prejudiciais na medida em que, ao contrário do que tinha anteriormente indicado, teria de levar em conta a situação de facto e de direito existente em 31 de Dezembro de 2007 para se pronunciar sobre a legalidade da decisão em causa no processo principal. Com efeito, a jurisprudência evoluiu no sentido de a legalidade de uma decisão como a do processo principal ter de passar a ser apreciada na data da prolação da decisão jurisdicional. Quanto ao processo principal, porém, é a data de 31 de Dezembro de 2007 que deverá ser tida em conta, pelo facto de ter entrado em vigor em 1 de Janeiro de 2008 uma nova regulamentação, substancialmente diferente da anterior e sem qualquer efeito retroactivo.

 Apreciação do Tribunal

35      Em primeiro lugar, há que lembrar que não cabe ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se sobre a interpretação de disposições nacionais, que é da exclusiva competência dos órgãos jurisdicionais nacionais. Assim, o Tribunal de Justiça, quando decide um pedido prejudicial de um órgão jurisdicional nacional, deve limitar‑se à interpretação do direito nacional que este lhe apresenta (acórdão de 27 de Outubro de 2009, ČEZ, C‑115/08, Colect., p. I‑0000, n.° 57 e jurisprudência aí referida).

36      Em segundo lugar, resulta de jurisprudência assente que, no âmbito do processo instituído pelo artigo 267.° TFUE, cabe unicamente ao julgador nacional, a quem está submetido o litígio e que tem de assumir a responsabilidade da decisão jurisdicional a proferir, apreciar, à luz das especificidades do processo, quer a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua sentença quer a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, visto que as questões colocadas são relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça, em princípio, tem de decidir (v., designadamente, acórdãos de 13 de Março de 2001, PreussenElektra, C‑379/98, Colect., p. I‑2099, n.° 38, e de 10 de Março de 2009, Hartlauer, C‑169/07, Colect., p. I‑1721, n.° 24).

37      Só é possível recusar uma decisão sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação do direito da União pedida não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objecto da lide principal, quando o problema for de natureza hipotética ou ainda quando o Tribunal de Justiça não disponha dos elementos de facto e de direito necessários para responder de forma útil às questões que lhe são submetidas (v. acórdãos, já referidos, PreussenElektra, n.° 39, e Hartlauer, n.° 25).

38      Com efeito, a justificação de uma questão prejudicial não é a formulação de opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas, mas sim a necessidade de decisão efectiva de uma causa (v., designadamente, acórdão de 2 de Abril de 2009, Elshani, C‑459/07, Colect., p. I‑2759, n.° 42 e jurisprudência aí referida).

39      Quanto a estes vários aspectos, há que lembrar, porém, em primeiro lugar, que resulta da jurisprudência que, tendo em conta a separação das funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, não se pode exigir que, antes de apresentar o pedido prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio apure todos os factos e faça todas as considerações de direito que lhe incumbem no âmbito da sua função jurisdicional. Com efeito, basta que o objecto da lide principal e o seu significado principal para o ordenamento jurídico comunitário resultem do pedido de decisão prejudicial de modo a permitir que os Estados‑Membros apresentem as suas observações nos termos do artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça e aí participem eficazmente no processo (v. acórdão de 8 de Setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, C‑42/07, Colect., p. I‑7633, n.° 41).

40      Em segundo lugar, refira‑se que resulta das precisões contidas na decisão de reenvio que o Oberverwaltungsgericht Nordrhein‑Westfalen, tribunal que conhece dos recursos interpostos das decisões proferidas pelo tribunal de reenvio, já considerou, por um lado, que o monopólio em causa no processo principal é incompatível com o direito da União e, por outro, que o respeito das condições transitórias enunciadas pelo Bundesverfassungsgericht no seu acórdão de 28 de Março de 2006, acima referido, e lembradas no n.° 14 do presente acórdão, não basta para pôr fim a essa incompatibilidade.

41      Em face do exposto, não é manifesto que as interpretações pedidas não têm nenhuma relação com a realidade ou com o objecto da lide principal ou que o problema suscitado é de natureza hipotética. Daqui resulta que as questões prejudiciais devem ser julgadas admissíveis.

 Quanto à identificação das disposições pertinentes do direito da União

42      A Comissão emitiu dúvidas quanto à pertinência da referência feita na primeira questão ao artigo 43.° CE, entendendo que só o artigo 49.° CE tem aplicabilidade numa situação como a do processo principal.

43      A este respeito, há que lembrar que, como resulta de jurisprudência assente, as actividades que consistem em permitir que os utilizadores participem, contra remuneração, num jogo a dinheiro constituem actividades de serviços na acepção do artigo 49.° CE (v., designadamente, acórdãos de 24 de Março de 1994, Schindler, C‑275/92, Colect., p. I‑1039, n.° 25, e de 21 de Outubro de 1999, Zenatti, C‑67/98, Colect., p. I‑7289, n.° 24). O mesmo se diga da actividade de promoção e colocação de jogos a dinheiro, pois essa actividade apenas constitui uma modalidade concreta de organização e de funcionamento dos jogos a que está ligada (v., designadamente, acórdão Schindler, já referido, n.os 22 e 23).

44      Assim, as prestações como as em causa no processo principal podem ser abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 49.° CE, uma vez que, como nos processos principais, pelo menos um dos prestadores está estabelecido num Estado‑Membro diferente daquele em que o serviço é proposto (v., designadamente, acórdão Zenatti, já referido, n.° 24), salvo se o artigo 43.° CE for aplicável.

45      Quanto ao artigo 43.° CE, há que lembrar que essa disposição proíbe as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro, incluindo as restrições à criação de agências, sucursais ou filiais (v. acórdão Gambelli e o., já referido, n.° 45).

46      A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o conceito de estabelecimento é entendido de uma forma muito lata, no sentido de que implica a possibilidade de um nacional comunitário participar, de forma estável e contínua, na vida económica de um Estado‑Membro diferente do seu Estado de origem, e beneficiar com isso, assim favorecendo a interpenetração económica e social no interior da Comunidade Europeia no domínio das actividades independentes (v., designadamente, acórdão de 30 de Novembro de 1995, Gebhard, C‑55/94, Colect., p. I‑4165, n.° 25). Assim, a manutenção num Estado‑Membro de uma presença permanente de uma empresa estabelecida noutro Estado‑Membro pode ser abrangida pelas disposições do Tratado sobre a liberdade de estabelecimento, mesmo que essa presença não tenha assumido a forma de sucursal ou agência, antes sendo exercida por meio de um simples escritório eventualmente gerido por uma pessoa independente, mas mandatada para agir permanentemente por essa empresa como se fosse uma agência (v. acórdão de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha, 205/84, Colect., p. 3755, n.° 21).

47      No domínio dos jogos e apostas, o Tribunal de Justiça considerou, no acórdão Gambelli e o., já referido, que o artigo 43.° CE pode ser aplicável a uma situação em que uma empresa estabelecida num Estado‑Membro dispõe noutro Estado‑Membro de uma presença concretizada por acordos comerciais com operadores ou intermediários, relativos à criação de centros de transmissão de dados que disponibilizam meios telemáticos aos utilizadores, reúnem e registam as intenções de apostas e transmitem‑nas à dita empresa. Quando uma empresa exerce a actividade de recolha de apostas por meio de uma organização de agências estabelecidas noutro Estado‑Membro, as restrições impostas às actividades dessas agências constituem entraves à liberdade de estabelecimento (v. acórdãos Gambelli e o., já referido, n.os 14 e 46, e de 6 de Março de 2007, Placanica e o., C‑338/04, C‑359/04 e C‑360/04, Colect., p. I‑1891, n.° 43).

48      No caso, as indicações contidas nas decisões de reenvio quanto às relações existentes entre a Tipico Co. Ltd e a WW não permitem afirmar nem excluir a possibilidade de esta ser considerada uma filial, uma sucursal ou uma agência na acepção do artigo 43.° CE.

49      Nestas condições, há que lembrar que, no âmbito de um processo previsto no artigo 267.° TFUE, o qual é baseado na clara separação das funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, qualquer apreciação dos factos da causa principal é da competência do julgador nacional (v., designadamente, acórdão de 25 de Fevereiro de 2003, IKA, C‑326/00, Colect., p. I‑1703, n.° 27 e jurisprudência aí referida).

50      Por outro lado, como acima lembrado no n.° 36 do presente acórdão, cabe unicamente ao julgador nacional apreciar quer a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão quer a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça.

51      Assim, é ao órgão jurisdicional de reenvio que cabe determinar, em face das circunstâncias específicas do caso, se a situação em causa no processo principal está abrangida pelo artigo 43.° CE ou pelo artigo 49.° CE.

52      Em face do exposto, há que analisar as questões prejudiciais tendo em conta simultaneamente o artigo 43.° CE e o artigo 49.° CE.

 Quanto ao mérito

 Quanto à primeira questão

53      Há que lembrar desde logo que, como resulta de jurisprudência assente, por força do princípio do primado do direito da União, as disposições do Tratado e os actos das instituições directamente aplicáveis têm o efeito de, nas suas relações com o direito interno dos Estados‑Membros, impedir de pleno direito, pelo simples facto da sua entrada em vigor, qualquer disposição contrária da legislação nacional (v., designadamente, acórdãos Simmenthal, já referido, n.° 17, e de 19 de Junho de 1990, Factortame e o., C‑213/89, Colect., p. I‑2433, n.° 18).

54      Com efeito, como salientou o Tribunal de Justiça, as normas do direito da União directamente aplicáveis, que são uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos, sejam Estados‑Membros ou particulares partes em relações jurídicas abrangidas pelo direito da União, devem produzir a plenitude dos seus efeitos de modo uniforme em todos os Estados‑Membros, a partir da sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.os 14 e 15, e Factortame e o., n.° 18).

55      Resulta igualmente de jurisprudência assente que qualquer juiz nacional, no âmbito da sua competência, tem, enquanto órgão de um Estado‑Membro, a obrigação, por força do princípio da cooperação consagrado no artigo 10.° CE, de aplicar integralmente o direito da União directamente aplicável e de proteger os direitos que este confere aos particulares, não aplicando nenhuma disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à norma do direito da União (v., neste sentido, designadamente, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.os 16 e 21, e Factortame e o., n.° 19).

56      Resulta do exposto que é incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito da União qualquer disposição de um ordenamento jurídico nacional ou qualquer prática legislativa, administrativa ou judicial que tenha por efeito a diminuição da eficácia do direito da União pelo facto de negar ao juiz competente para a aplicação desse direito o poder de, no próprio momento dessa aplicação, fazer tudo o que for necessário para não aplicar as disposições legislativas nacionais que eventualmente obstem à plena eficácia das normas directamente aplicáveis do direito da União (acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.° 22, e Factortame e o., n.° 20).

57      O Tribunal de Justiça já precisou que é esse o caso se, havendo uma oposição entre uma disposição do direito da União e uma lei nacional posterior, a decisão desse conflito for atribuída a uma autoridade diferente do juiz chamado a assegurar a aplicação do direito da União, investida de um poder de apreciação próprio, mesmo que o obstáculo daí resultante para a plena eficácia do direito da União seja apenas temporário (acórdão Simmenthal, já referido, n.° 23).

58      Há que lembrar ainda que, de acordo com jurisprudência assente, o princípio da protecção jurisdicional efectiva constitui um princípio geral do direito da União, que resulta das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, consagrado nos artigos 6.° e 13.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950, e reafirmada no artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e que cabe aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, por força do princípio da cooperação referido no artigo 10.° CE, assegurar a protecção jurisdicional dos direitos que o direito da União confere aos seus destinatários (acórdão de 13 de Março de 2007, Unibet, C‑432/05, Colect., p. I‑2271, n.os 37, 38 e jurisprudência aí referida).

59      No caso, pode referir‑se que, ao considerar, no seu acórdão e no seu despacho acima referidos, respectivamente, de 28 de Março de 2006 e de 2 de Agosto de 2006, que um monopólio como o do processo principal violava as exigências da Lei Fundamental, o Bundesverfassungsgericht não se pronunciou sobre a compatibilidade desse monopólio com o direito comunitário, antes tendo realçado, nesse acórdão, que se considerava incompetente para o fazer nesse caso.

60      Quanto ao facto de, uma vez declarada essa incompatibilidade com a Lei Fundamental, o Bundesverfassungsgericht ter decidido, nas condições referidas nos n.os 13 e 14 do presente acórdão, manter transitoriamente os efeitos da regulamentação interna relativa a esse monopólio, resulta da jurisprudência referida nos n.os 53 a 58 do presente acórdão que isso não obsta a que um órgão jurisdicional nacional que considere que essa mesma regulamentação viola disposições do direito da União com efeito directo, tais como os artigos 43.° CE e 49.° CE, decida, de acordo com o princípio do primado do direito da União, não aplicar essa regulamentação no litígio que lhe está submetido (v., por analogia, acórdão de 19 de Novembro de 2009, Filipiak, C‑314/08, Colect., p. I‑0000, n.° 84).

61      Com efeito, não se pode admitir que a unidade e a eficácia do direito da União sejam postas em causa por normas de direito nacional, mesmo que sejam de ordem constitucional (v., neste sentido, acórdão de 17 de Dezembro de 1970, Internationale Handelsgesellschaft, 11/70, Colect. 1969‑1970, p. 625, n.° 3).

62      Resulta da decisão de reenvio e da própria redacção da primeira questão prejudicial que o tribunal de reenvio pretende ainda saber se, de uma forma mais geral, e portanto independentemente da existência da decisão do Bundesverfassungsgericht de 28 de Março de 2006, o efeito de inaplicação da regulamentação nacional considerada contrária aos artigos 43.° CE e 49.° CE resultante do princípio do primado pode ser suspenso pelo tempo necessário à adaptação dessa regulamentação para ficar em conformidade com as disposições do Tratado. Assim, como resulta do n.° 26 do presente acórdão, o tribunal de reenvio coloca essa questão nomeadamente em face da circunstância de, apesar de considerar que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a regulamentação em causa no processo principal violava os artigos 43.° CE e 49.° CE, o Oberverwaltungsgericht Nordrhein‑Westfalen ter considerado que essa suspensão se justificava no que respeita a essa regulamentação, por força de imperativos ligados à protecção da ordem social e dos cidadãos contra os riscos ligados aos jogos a dinheiro que se opunham à situação de vazio jurídico que resultaria da sua exclusão imediata.

63      Todos os Estados‑Membros que apresentaram observações alegam, no essencial, que o reconhecimento da existência de um princípio que autoriza, em circunstâncias excepcionais, a manutenção provisória dos efeitos de uma norma nacional considerada contrária a uma norma do direito da União directamente aplicável se justifica, por analogia, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao fundamento do artigo 231.°, segundo parágrafo, CE, para efeitos de manter provisoriamente os efeitos de actos jurídicos de direito comunitário cuja anulação tinha decretado nos termos do artigo 230.° CE ou cuja invalidade tinha declarado nos termos do artigo 234.° CE.

64      A este respeito, é certo que há que lembrar que, nos termos do artigo 231.°, segundo parágrafo, CE, actual artigo 264.°, segundo parágrafo, TFUE, igualmente aplicável, por analogia, num reenvio prejudicial para apreciação de validade nos termos do artigo 234.° CE, actual artigo 267.° TFUE, o Tribunal de Justiça tem poder de apreciação para indicar, em cada caso concreto, quais os efeitos de um acto da União que anula ou declara inválido que devem ser considerados definitivos (v., designadamente, acórdão de 22 de Dezembro de 2008, Régie Networks, C‑333/07, Colect., p. I‑10807, n.° 121 e jurisprudência aí referida).

65      No exercício dessa competência, o Tribunal de Justiça pode nomeadamente ter de deixar em suspenso os efeitos da anulação ou da declaração de invalidade do acto até à adopção de um novo acto que solucione a ilegalidade declarada (v., neste sentido, designadamente, acórdãos de 3 de Setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, C‑402/05 P e C‑415/05 P, Colect., p. I‑6351, n.os 373 a 376, quanto a uma anulação, e Régie Networks, já referido, n.° 126, quanto a uma declaração de invalidade).

66      Como resulta da jurisprudência, a manutenção dos efeitos de um acto da União anulado ou declarado inválido, que tem por objecto impedir a constituição de um vazio jurídico até vir um novo acto substituir o primeiro (v., designadamente, acórdão de 5 de Fevereiro de 2004, Rieser Internationale Transporte, C‑157/02, Colect., p. I‑1477, n.° 60), pode justificar‑se em presença de considerações imperiosas de segurança jurídica relativas ao conjunto dos interesses, públicos ou privados, em jogo (v., designadamente, acórdão Régie Networks, já referido, n.° 122 e jurisprudência aí referida) e durante o tempo necessário a permitir que essa ilegalidade seja solucionada (v., neste sentido, designadamente, acórdãos, já referidos, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão, n.° 375, e Régie Networks, n.° 126).

67      A este respeito, basta, porém, referir que, mesmo admitindo que considerações semelhantes às que estão subjacentes a essa jurisprudência, desenvolvida em relação aos actos da União, fossem susceptíveis de levar, por analogia e a título excepcional, a uma suspensão provisória do efeito de exclusão exercido por uma norma de direito da União directamente aplicável em face do direito nacional a ela contrário, essa suspensão, cujas condições só poderiam ser determinadas pelo Tribunal de Justiça, é de excluir liminarmente, no caso, tendo em conta a inexistência de considerações imperiosas de segurança jurídica que a pudessem justificar.

68      Com efeito, resulta da decisão de reenvio, que, nessa fase, o tribunal de reenvio, o único competente para a apreciação dos factos do litígio que é submetido à sua apreciação, considerou que a regulamentação restritiva em causa no processo principal não contribuía efectivamente para limitar as actividades de apostas de maneira coerente e sistemática, de modo que decorria da jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça que essa regulamentação, que não pode ser justificada por um objectivo de prevenção da incitação a despesas excessivas ligadas ao jogo e de luta contra a dependência do jogo, viola os artigos 43.° CE e 49.° CE.

69      Em face do exposto, há que responder à primeira questão submetida que, por força do primado do direito da União directamente aplicável, uma regulamentação nacional relativa a um monopólio público sobre as apostas em competições desportivas que, segundo o que apurou um órgão jurisdicional nacional, contém restrições incompatíveis com a liberdade de estabelecimento e com a livre prestação de serviços, pelo facto de essas restrições não contribuírem para limitar as actividades de apostas de maneira coerente e sistemática, não pode continuar a ser aplicada durante um período transitório.

 Quanto à segunda questão

70      Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não é necessário analisar a segunda questão submetida.

 Quanto às despesas

71      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

Por força do primado do direito da União directamente aplicável, uma regulamentação nacional relativa a um monopólio público sobre as apostas em competições desportivas que, segundo o que apurou um órgão jurisdicional nacional, contém restrições incompatíveis com a liberdade de estabelecimento e com a livre prestação de serviços, pelo facto de essas restrições não contribuírem para limitar as actividades de apostas de maneira coerente e sistemática, não pode continuar a ser aplicada durante um período transitório.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.