ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

10 de Abril de 2008 ( *1 )

«Contratos públicos — Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE — Entidade adjudicante que exerce actividades parcialmente abrangidas pelo âmbito de aplicação da Directiva 2004/17/CE e parcialmente pelo da Directiva 2004/18/CE — Organismo de direito público — Entidade adjudicante»

No processo C-393/06,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.o CE, apresentado pelo Vergabekontrollsenat des Landes Wien (Áustria), por decisão de 17 de Agosto de 2006, entrado no Tribunal de Justiça em 22 de Setembro de 2006, no processo

Ing. Aigner, Wasser-Wärme-Umwelt, GmbH

contra

Fernwärme Wien GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, G. Arestis, E. Juhász (relator), J. Malenovský e T. von Danwitz, juízes,

advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,

secretário: B. Fülöp, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 11 de Outubro de 2007,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Ing. Aigner, Wasser-Wärme-Umwelt GmbH, por S. Sieghartsleitner e M. Pichlmair, Rechtsanwälte,

em representação da Fernwärme Wien GmbH, por P. Madl, Rechtsanwalt,

em representação do Governo austríaco, por M. Fruhmann e C. Mayr, na qualidade de agentes,

em representação do Governo húngaro, por J. Fazekas, na qualidade de agente,

em representação do Governo finlandês, por A. Guimaraes-Purokoski, na qualidade de agente,

em representação do Governo sueco, por A. Falk, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por X. Lewis, na qualidade de agente, assistido por M. Núñez-Müller, Rechtsanwalt,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 22 de Novembro de 2007,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação das disposições pertinentes da Directiva 2004/17/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais (JO L 134, p. 1), e da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L 134, p. 114).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Ing. Aigner, Wasser-Wärme-Umwelt GmbH (a seguir «Ing. Aigner») à Fernwärme Wien GmbH (a seguir «Fernwärme Wien»), a respeito da regularidade de um concurso público lançado por esta última.

Quadro jurídico

Regulamentação comunitária

3

A Directiva 2004/17 coordena os processos de adjudicação de contratos nos sectores específicos da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais. Revogou a Directiva 93/38/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de celebração de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 199, p. 84), que tinha o mesmo objecto, tendo-lhe sucedido.

4

A especificidade dos sectores abrangidos pela Directiva 2004/17 é sublinhada no terceiro considerando da mesma, que afirma que é necessária uma coordenação nesses sectores em razão da natureza fechada dos mercados em que operam as entidades adjudicantes, devido à concessão, pelos Estados-Membros, de direitos especiais ou exclusivos para o fornecimento, a abertura ou a exploração de redes de prestação do serviço em questão.

5

Os artigos 2.o, n.o 1, alínea a), segundo parágrafo, da Directiva 2004/17 e 1.o, n.o 9, segundo parágrafo, da Directiva 2004/18 estabelecem que se deve entender por «poderes públicos», inter alia, os «organismos de direito público», a saber:

«[…] qualquer organismo:

criado para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral com carácter não industrial ou comercial,

dotado de personalidade jurídica e

cuja actividade seja financiada maioritariamente pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público; ou cuja gestão esteja sujeita a controlo por parte destes últimos; ou em cujos órgãos de administração, direcção ou fiscalização mais de metade dos membros sejam designados pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público».

6

Nos termos do artigo 2.o, n.o 1, alínea b), da Directiva 2004/17:

«Para efeitos do disposto na presente directiva, entende-se por:

[…]

b)

‘Empresa pública’: qualquer empresa em relação à qual os poderes públicos possam exercer, directa ou indirectamente, uma influência dominante, por motivos de propriedade, participação financeira ou regras que lhe sejam aplicáveis.»

7

O artigo 2.o, n.o 2, desta directiva dispõe:

«A presente directiva é aplicável às entidades adjudicantes:

a)

que sejam poderes públicos ou empresas públicas e exerçam uma das actividades definidas nos artigos 3.o a 7.o;

b)

que, no caso de não serem poderes públicos ou empresas públicas, incluam entre as suas actividades uma ou mais das actividades mencionadas nos artigos 3.o a 7.o e beneficiem de direitos especiais ou exclusivos concedidos por uma autoridade competente de um Estado-Membro.»

8

Nos artigos 3.o a 7.o da Directiva 2004/17 são enumerados os sectores de actividade a que a directiva se aplica. Esses sectores são o do gás, o do combustível para aquecimento e o da electricidade (artigo 3.o), o da água (artigo 4.o), o dos serviços de transporte (artigo 5.o), o dos serviços postais (artigo 6.o) e o da pesquisa ou extracção de petróleo, gás, carvão e outros combustíveis sólidos, assim como o dos portos e aeroportos (artigo 7.o).

9

O artigo 3.o, n.o 1, da referida directiva prevê:

«Relativamente ao gás e ao combustível para aquecimento, a presente directiva aplica-se às seguintes actividades:

a)

à abertura ou à exploração de redes fixas destinadas à prestação de serviços ao público no domínio da produção, do transporte ou da distribuição de gás ou de combustível para aquecimento; ou

b)

à alimentação dessas redes com gás ou combustível para aquecimento.»

10

O artigo 9.o da mesma directiva tem a seguinte redacção:

«1.   Um contrato que vise a prossecução de actividades diversas obedece às normas aplicáveis à actividade a que se destina principalmente.

Todavia, a escolha entre a adjudicação de um único contrato ou a adjudicação de vários contratos separados não pode ocorrer com o objectivo de evitar a aplicação da presente directiva ou, eventualmente, da Directiva 2004/18/CE.

2.   Se uma das actividades a que o contrato se destina estiver abrangida pela presente directiva e a outra pela Directiva 2004/18/CE e se for objectivamente impossível estabelecer a que actividade se destina principalmente o contrato, a adjudicação processar-se-á em conformidade com a Directiva 2004/18/CE.

[…]»

11

O artigo 20.o, n.o 1, da mesma directiva, sob a epígrafe «Contratos celebrados com fins que não correspondam à prossecução de uma actividade abrangida ou à prossecução em países terceiros de uma actividade abrangida», prevê:

«A presente directiva não se aplica aos contratos que as entidades adjudicantes celebrem para fins que não correspondam à prossecução das suas actividades referidas nos artigos 3.o a 7.o, ou à prossecução dessas actividades num país terceiro, em condições que não impliquem a exploração física de uma rede ou de uma área geográfica no interior da Comunidade.»

12

Por fim, o artigo 30.o da Directiva 2004/17, sob a epígrafe Procedimento para determinar se uma determinada actividade está directamente exposta à concorrência, dispõe:

«1.   Os contratos destinados a permitir a prestação de uma das actividades referidas nos artigos 3.o a 7.o não estão abrangidos pela presente directiva se, no Estado-Membro em que a actividade se realiza, esta última estiver directamente exposta à concorrência em mercados de acesso não limitado.

2.   Para efeitos de aplicação do n.o 1, a questão de saber se uma actividade está directamente exposta à concorrência será decidida com base em critérios, que estejam em conformidade com as disposições do Tratado em matéria de concorrência, como as características dos produtos ou serviços em causa, a existência de produtos ou serviços alternativos, os preços e a presença, real ou potencial, de mais do que um fornecedor dos produtos ou serviços em questão.

[…]»

13

No título II, capítulo II, secção III, da Directiva 2004/18, são enumerados os contratos que não são abrangidos por esta directiva. Constam destes os contratos adjudicados nos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais. O artigo 12.o, que se refere aos referidos contratos, estabelece:

«A presente directiva não é aplicável aos contratos públicos nos domínios regidos pela Directiva 2004/17/CE adjudicados por entidades adjudicantes que exerçam uma ou mais das actividades indicadas nos artigos 3.o a 7.o da referida directiva, e que sejam adjudicados para o exercício dessas actividades, […]

[…]»

14

A transposição da referida regulamentação comunitária para o direito austríaco foi assegurada pela Lei federal relativa à celebração de contratos públicos (Bundesvergabegesetz), de 2006.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15

A Fernwärme Wien foi constituída por escritura pública de 22 de Janeiro de 1969, com o objectivo de fornecer, na área do município de Viena, combustível para aquecimento de residências, organismos públicos, escritórios e empresas. Para esse efeito, utiliza energia obtida a partir de resíduos, em vez da proveniente de fontes não renováveis.

16

A Fernwärme Wien, dotada de personalidade jurídica, pertence totalmente ao município de Viena, que nomeia e destitui os gestores, bem como os membros do conselho geral e aprova a sua gestão. Além disso, o município de Viena também pode controlar a gestão económica e financeira desta empresa através do Kontrollamt der Stadt Wien (serviço de controlo do município de Viena).

17

Paralelamente à sua actividade de aquecimento urbano, a Fernwärme Wien trata igualmente do planeamento geral de instalações de frio para projectos imobiliários de alguma envergadura. No âmbito dessa actividade, está em concorrência com outras empresas.

18

Em 1 de Março de 2006, a Fernwärme Wien publicou um anúncio de concurso para a colocação de instalações de frio num futuro complexo de escritórios em Viena, especificando que a legislação austríaca em matéria de contratos públicos não era aplicável ao contrato em causa. A Ing. Aigner participou nesse concurso com uma proposta. Tendo sido informada, em 18 de Maio de 2006, de que a sua proposta já não seria examinada devido à existência de referências negativas, impugnou essa decisão no órgão jurisdicional de reenvio, alegando que deviam ser aplicadas as regras comunitárias em matéria de contratos públicos.

19

O órgão jurisdicional de reenvio observa que as actividades da Fernwärme Wien relativas à exploração de redes fixas de aquecimento urbano são incontestavelmente abrangidas pelo âmbito de aplicação da Directiva 2004/17. Ao invés, as suas actividades relativas às instalações de frio não são abrangidas pelo âmbito de aplicação dessa directiva. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre se essas últimas actividades estão igualmente sujeitas às disposições da referida directiva, em aplicação, mutatis mutandis, dos princípios consagrados no acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de Janeiro de 1998, Mannesmann Anlagenbau Austria e o. (C-44/96, Colect., p. I-73, n.os 25 e 26), abordagem que a doutrina geralmente denomina «teoria do contágio». Em conformidade com a interpretação desse acórdão, dada pelo órgão jurisdicional de reenvio, se uma das actividades de um organismo se enquadra no âmbito de aplicação das directivas em matéria de contratos públicos, todas as restantes actividades dessa entidade também lhes estão sujeitas, independentemente de serem ou não de natureza industrial ou comercial.

20

Na hipótese de o acórdão Mannesmann Anlagenbau Áustria e o., já referido, dizer apenas respeito aos poderes públicos e, mais especificamente, ao conceito de «organismo de direito público», no sentido de que quando um organismo satisfaz necessidades de interesse geral que não são de natureza industrial ou comercial deve ser considerado «organismo de direito público», na acepção das regras comunitárias, independentemente da questão de saber se exerce paralelamente outras actividades que não são dessa natureza, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre se a Fernwärme Wien constitui um organismo de direito público, isto é, um poder público, na acepção das Directivas 2004/17 ou 2004/18.

21

Por último, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre a questão de saber se, quando um organismo exerce actividades que não são de natureza industrial ou comercial e, paralelamente, actividades sujeitas à concorrência, é possível distinguir estas últimas actividades e não as incluir no âmbito de aplicação das regras comunitárias em matéria de contratos públicos, se puder ser estabelecida uma separação entre esses dois tipos de actividades e, portanto, se se puder determinar que não há interferência económica entre elas. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio faz referência ao n.o 68 das conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs, de 21 de Abril de 2005, no processo que, devido à retirada do pedido prejudicial, deu origem ao despacho de cancelamento de 23 de Março de 2006, Impresa Portuale di Cagliari (C-173/03), em que foi proposto atenuar neste sentido o princípio do acórdão Mannesmann Anlagenbau Austria e o., já referido.

22

Face ao exposto, o Vergabekontrollsenat des Landes Wien decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

A Directiva 2004/17 […] deve ser interpretada no sentido de que uma entidade adjudicante que exerça uma actividade sectorial prevista no artigo 3.o desta directiva também é abrangida pelo âmbito de aplicação desta directiva relativamente a uma actividade paralela exercida em situação de concorrência?

2)

No caso de este regime só se aplicar aos poderes públicos: uma empresa como a [Fernwärme Wien] deve ser qualificada como um organismo de direito público na acepção da Directiva 2004/17 ou da Directiva 2004/18 […], quando forneça combustível para aquecimento urbano num determinado território sem verdadeira concorrência, ou deve tomar-se como referência o mercado do aquecimento urbano que também inclui fornecedores de energia como o gás, o gasóleo, o carvão, etc.?

3)

Uma actividade exercida em regime de livre concorrência por uma sociedade que não exerça essa actividade com carácter industrial ou comercial deve ser incluída no âmbito de aplicação da Directiva 2004/17 ou da Directiva 2004/18 quando, através de medidas eficazes, tais como a existência de contabilidade e balanços separados, pode excluir-se a ocorrência de financiamento cruzado das actividades exercidas em situação de concorrência?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

23

Através desta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se uma entidade adjudicante, na acepção da Directiva 2004/17, que exerça actividades pertencentes a um dos sectores referidos nos artigos 3.o a 7.o dessa directiva, deve aplicar o procedimento estabelecido pela referida directiva para a adjudicação de contratos relacionados com actividades exercidas paralelamente por esta entidade, em condições de concorrência, em sectores não abrangidos pelas mencionadas disposições.

24

Para responder a esta questão, importa observar que as Directivas 2004/17 e 2004/18 têm diferenças significativas no que respeita tanto às entidades sujeitas às regras previstas por essas directivas como à natureza e ao âmbito de aplicação das mesmas.

25

No que respeita, em primeiro lugar, às entidades às quais são aplicáveis as normas correspondentes das referidas directivas, cumpre observar que, diversamente da Directiva 2004/18, que, nos termos do seu artigo 1.o, n.o 9, primeiro parágrafo, se aplica às «entidades adjudicantes», as entidades referidas na Directiva 2004/17 são denominadas, no seu artigo 2.o, «poderes públicos». Resulta do mesmo artigo 2.o, n.o 2, alíneas a) e b), que esta última directiva se aplica não apenas às entidades adjudicantes que sejam «poderes públicos» mas também às que sejam «empresas públicas» ou empresas que beneficiem de «direitos especiais ou exclusivos concedidos por uma autoridade competente de um Estado-Membro», na medida em que todas essas entidades exerçam uma das actividades referidas nos artigos 3.o a 7.o da referida directiva.

26

Em segundo lugar, decorre dos artigos 2.o a 7.o da Directiva 2004/17 que a coordenação efectuada por esta directiva não se estende a todos os domínios da actividade económica, mas apenas a sectores especificamente definidos, como, de resto, é evidenciado pelo facto de esta directiva ser comummente denominada «directiva sectorial». Pelo contrário, o âmbito de aplicação da Directiva 2004/18 engloba quase todos os sectores da vida económica, justificando assim a sua denominação de «directiva geral».

27

Nestas circunstâncias, importa assinalar, antes de mais, que o alcance geral da Directiva 2004/18 e o alcance restrito da Directiva 2004/17 exigem que as disposições desta última sejam interpretadas restritivamente.

28

A fronteira entre os âmbitos de aplicação dessas duas directivas é igualmente traçada por disposições explícitas. Assim, o artigo 20.o, n.o 1, da Directiva 2004/17 dispõe que esta não se aplica aos contratos que as entidades adjudicantes celebrem para fins que não correspondam à prossecução das suas actividades exercidas nos sectores referidos nos artigos 3.o a 7.o da mesma directiva. O artigo 12.o, n.o 1, da Directiva 2004/18 reflecte esta disposição, nos termos da qual a directiva não é aplicável aos contratos públicos celebrados por entidades adjudicantes que exerçam uma ou mais das actividades previstas nos artigos 3.o a 7.o da Directiva 2004/17, e que sejam adjudicados para o exercício dessas actividades.

29

O âmbito de aplicação da Directiva 2004/17 é assim estritamente circunscrito, o que não permite que os procedimentos nela instituídos ultrapassem o seu âmbito de aplicação.

30

Por conseguinte, as mencionadas disposições não deixam margem de aplicação alguma, no âmbito da Directiva 2004/17, para a abordagem denominada «teoria do contágio», desenvolvida na sequência do acórdão Mannesmann Anlagenbau Austria e o., já referido. Este acórdão foi proferido pelo Tribunal de Justiça no âmbito da Directiva 93/37/CEE do Conselho, de 14 de Junho 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (JO L 199, p. 54), concretamente, num domínio que está actualmente abrangido pelo âmbito de aplicação da Directiva 2004/18.

31

Por conseguinte, como observam correctamente os Governos austríaco, húngaro e finlandês, assim como a Comissão das Comunidades Europeias, só estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da Directiva 2004/17 os contratos que uma entidade, que tenha a qualidade de «entidade adjudicante» na acepção dessa directiva, celebre no contexto e para o exercício de actividades nos sectores previstos nos artigos 3.o a 7.o da referida directiva.

32

Essa é, de resto, a conclusão que resulta igualmente do acórdão de 16 de Junho de 2005, Strabag e Kostmann (C-462/03 e C-463/03, Colect., p. I-5397, n.o 37). Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que se um contrato não estiver abrangido pelo exercício de uma das actividades reguladas na directiva sectorial, será regido pelas normas previstas nas directivas relativas, consoante o caso, à celebração de contratos de prestação de serviços, de empreitadas ou de fornecimentos.

33

Face ao exposto, cumpre responder à primeira questão colocada que uma entidade adjudicante, na acepção da Directiva 2004/17, deve aplicar o procedimento estabelecido nessa directiva apenas à adjudicação de contratos no contexto de actividades que essa entidade exerça num ou mais sectores previstos nos artigos 3.o a 7.o da referida directiva.

Quanto à segunda questão

34

Através da sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se uma entidade como a Fernwärme Wien deve ser considerada um organismo de direito público, na acepção da Directiva 2004/17 ou da Directiva 2004/18.

35

A este respeito, importa recordar que, como decorre do n.o 5 do presente acórdão, as disposições do artigo 2.o, n.o 1, alínea a), segundo parágrafo, da Directiva 2004/17 e do artigo 1.o, n.o 9, segundo parágrafo, da Directiva 2004/18 contêm uma definição idêntica do conceito de «organismo de direito público».

36

Dessas disposições decorre que por «organismo de direito público» se deve entender qualquer organismo que, em primeiro lugar, tenha sido criado para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral com carácter não industrial ou comercial, em segundo lugar, seja dotado de personalidade jurídica e, em terceiro lugar, cuja actividade seja financiada maioritariamente pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público, ou cuja gestão esteja sujeita a controlo por parte destes últimos, ou em cujos órgãos de administração, direcção ou fiscalização mais de metade dos membros sejam designados pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público. De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, estes três requisitos são cumulativos (acórdão de 1 de Fevereiro de 2001, Comissão/França, C-237/99, Colect., p. I-939, n.o 40 e jurisprudência referida).

37

Além disso, tendo em conta o objectivo das directivas comunitárias em matéria de celebração de contratos públicos, de excluir, nomeadamente, a possibilidade de um organismo financiado ou controlado pelo Estado, as autarquias locais ou outros organismos de direito público se guiarem por considerações não económicas, o conceito de «organismo de direito público» deve ser interpretado de modo funcional (v., neste sentido, o acórdão de 13 de Dezembro de 2007, Bayerischer Rundfunk e o., ainda não publicado na Colectânea, n.os 36 e 37 e jurisprudência referida).

38

No caso vertente, é pacífico que estão preenchidos os dois últimos requisitos estabelecidos na regulamentação indicada no n.o 36 do presente acórdão, uma vez que a Fernwärme Wien é dotada de personalidade jurídica e que o município de Viena detém integralmente o capital dessa entidade e controla a sua gestão económica e financeira. Por conseguinte, cabe analisar se essa entidade foi criada para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral com carácter não industrial ou comercial.

39

Em primeiro lugar, quanto ao objectivo da criação da entidade em questão e quanto à natureza das necessidades satisfeitas, há que observar que, como resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça, a Fernwärme Wien foi criada com o objectivo específico de assegurar, na área do município de Viena, o aquecimento de residências, edifícios públicos, empresas e escritórios, através da utilização da energia obtida a partir da combustão de resíduos. Na audiência no Tribunal de Justiça, foi assinalado que, actualmente, esse sistema de aquecimento serve cerca de 250000 residências, numerosos escritórios e instalações industriais, assim como praticamente todos os edifícios públicos. Assegurar o aquecimento de uma aglomeração urbana através de um procedimento que respeite o ambiente constitui um objectivo de indubitável interesse geral. Não pode, portanto, ser contestado que a Fernwärme Wien foi constituída especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral.

40

A este respeito, é indiferente que essas necessidades também sejam ou possam ser satisfeitas por empresas privadas. Importa que se trate de necessidades que, por razões ligadas ao interesse geral, o próprio Estado ou uma colectividade territorial entendam satisfazer, em geral, ou em relação às quais pretendam manter uma influência determinante (v., neste sentido, acórdãos de 10 de Novembro de 1998, BFI Holding, C-360/96, Colect., p. I-6821, n.os 44, 47, 51 e 53, e de 10 de Maio de 2001, Agorà e Excelsior, C-223/99 e C-260/99, Colect., p. I-3605, n.os 37, 38 e 41).

41

Em segundo lugar, para determinar se as necessidades satisfeitas pela entidade em causa no processo principal não têm natureza industrial ou comercial, há que ter em conta a totalidade dos elementos de direito e de facto relevantes, tais como as circunstâncias que presidiram à criação do organismo em causa e as condições em que o mesmo exerce a sua actividade. A este respeito, importa, nomeadamente, verificar se o organismo em questão exerce as suas actividades em situação de concorrência (v. acórdão de 22 de Maio de 2003, Korhonen e o., C-18/01, Colect., p. I-5321, n.os 48 e 49 e jurisprudência referida).

42

Como foi referido no n.o 39 do presente acórdão, a Fernwärme Wien foi criada com o objectivo específico de assegurar o aquecimento na área do município de Viena. É pacífico que não foi a obtenção de lucros que presidiu à criação dessa entidade. Apesar de não estar excluída a possibilidade de essa actividade gerar lucros distribuídos sob a forma de dividendos aos accionistas da referida entidade, a obtenção desses lucros não constitui, em caso algum, o seu objectivo principal (v., neste sentido, acórdão Korhonen e o., já referido, n.o 54).

43

No que respeita, em seguida, ao contexto económico pertinente ou, dito de outro modo, ao mercado de referência que deve ser tido em consideração para verificar se a entidade em questão exerce ou não as suas actividades em situação de concorrência, há que tomar em consideração, como propõe o advogado-geral nos n.os 53 e 54 das suas conclusões, à luz da interpretação funcional do conceito de «organismo de direito público», o sector para o qual a Fernwärme Wien foi criada, isto é, o do fornecimento de aquecimento urbano através da utilização da energia obtida a partir da combustão de resíduos.

44

Resulta da decisão de reenvio que a Fernwärme Wien goza, nesse sector, de uma situação de quase monopólio de facto, na medida em que as outras duas sociedades que nele exercem as suas actividades são de pequena dimensão, não podendo, portanto, constituir verdadeiros concorrentes. Além disso, esse sector apresenta uma autonomia considerável, na medida em que o sistema de aquecimento urbano dificilmente poderá ser substituído por outras energias, dado que isso exigiria a realização de importantes obras de transformação. Por último, o município de Viena atribui uma importância particular a esse sistema de aquecimento, também por razões ambientais. Tendo igualmente em conta a pressão da opinião pública, o município de Viena não permitiria a sua supressão, ainda que esse sistema viesse a ter prejuízo.

45

À luz destas indicações divergentes fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio e como observa o advogado-geral no n.o 57 das suas conclusões, verifica-se que a Fernwärme Wien é actualmente a única empresa capaz de satisfazer essas necessidades de interesse geral no sector em causa, pelo que, na celebração dos seus contratos, se pode guiar por considerações não estritamente económicas.

46

Nos acórdãos, já referidos, BFI Holding (n.o 49) e Agorà e Excelsior (n.o 38), o Tribunal de Justiça sublinhou que a existência de uma concorrência desenvolvida pode ser um indício de que não se trata de uma necessidade de interesse geral de natureza não industrial ou comercial. Nas circunstâncias do processo principal, resulta claramente do pedido de decisão prejudicial que esse critério da existência de uma concorrência desenvolvida está longe de ser preenchido.

47

A este respeito, deve acrescentar-se que é indiferente que, para além dessa missão de interesse geral, a referida entidade realize igualmente outras actividades com fins lucrativos, uma vez que continua a encarregar-se de prover às necessidades de interesse geral que é especificamente obrigada a satisfazer. A parte que as actividades exercidas com fins lucrativos representa no âmbito das actividades globais da referida entidade é igualmente irrelevante para efeitos da sua qualificação como organismo de direito público (v., neste sentido, acórdãos Mannesmann Anlagenbau Austria e o., já referido, n.o 25; de 27 de Fevereiro de 2003, Adolf Truley, C-373/00, Colect., p. I-1931, n.o 56, e Korhonen e o., já referido, n.os 57 e 58).

48

Face ao exposto, cumpre responder à segunda questão que uma entidade como a Fernwärme Wien deve ser considerada um organismo de direito público, na acepção dos artigos 2.o, n.o 1, alínea a), segundo parágrafo, da Directiva 2004/17 e 1.o, n.o 9, segundo parágrafo, da Directiva 2004/18.

Quanto à terceira questão

49

Através da sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se todos os contratos celebrados por uma entidade que tenha a qualidade de organismo de direito público, na acepção da Directiva 2004/17 ou da Directiva 2004/18, devem estar sujeitos às regras de uma ou de outra dessas directivas, quando, através da aplicação de medidas eficazes, seja possível separar claramente as actividades que esse organismo exerce para desempenhar a sua missão de satisfazer necessidades de interesse geral das actividades que exerce em condições de concorrência, separação que exclui o financiamento cruzado entre esses dois tipos de actividades.

50

Importa recordar, a este respeito, que a problemática que está na base desta questão foi pela primeira vez apreciada pelo Tribunal de Justiça no processo que deu origem ao acórdão Mannesmann Anlagenbau Austria e o., já referido, relativo à interpretação da Directiva 93/37 sobre os contratos de empreitada de obras públicas. O Tribunal de Justiça chegou à conclusão, no n.o 35 desse acórdão, que todos os contratos celebrados por um organismo que tem a qualidade de entidade adjudicante, seja qual for a sua natureza, devem estar sujeitos às regras dessa directiva.

51

O Tribunal de Justiça reiterou a sua posição, no que respeita aos contratos públicos de serviços, nos acórdãos, já referidos, BFI Holding (n.os 55 e 56) e Korhonen e o. (n.os 57 e 58), assim como, no que respeita aos contratos públicos de fornecimentos, no acórdão Adolf Truley, já referido (n.o 56). Esta posição é igualmente aplicável à Directiva 2004/18, que constitui uma reformulação das disposições de todas as directivas anteriores em matéria de adjudicação de contratos públicos, às quais sucedeu (v., neste sentido, acórdão Bayerischer Rundfunk e o, já referido, n.o 30).

52

Esta conclusão também se impõe às entidades que aplicam uma contabilidade que tem em vista uma clara separação interna entre as actividades que exercem para desempenhar a sua missão de satisfazer necessidades de interesse geral e as actividades que exercem em condições de concorrência.

53

Com efeito, como sublinha o advogado-geral nos n.os 64 e 65 das suas conclusões, pode seriamente pôr-se em dúvida que seja efectivamente possível estabelecer essa separação entre as diferentes actividades de uma entidade que constitui uma única pessoa jurídica, que tem um regime patrimonial e de propriedade único e cujas decisões em matéria de direcção e gestão são tomadas por unanimidade, isto apesar de não ter em conta muitos outros obstáculos de ordem prática quanto ao controlo, ex ante et ex post, da separação absoluta entre os diferentes domínios de actividade da entidade em questão e da inclusão da actividade em causa num ou noutro domínio.

54

Assim, por razões de segurança jurídica, de transparência e de previsibilidade, que regulam a execução dos procedimentos de todos os contratos públicos, há que ter em consideração a jurisprudência do Tribunal de Justiça exposta nos n.os 50 e 51 do presente acórdão.

55

Todavia, como resulta do n.o 49 do presente acórdão, a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio diz simultaneamente respeito às Directivas 2004/17 e 2004/18.

56

A este propósito, cumpre observar que, no âmbito da apreciação da segunda questão prejudicial, foi referido que uma entidade como a Fernwärme Wien deve ser considerada um organismo de direito público, na acepção das Directivas 2004/17 e 2004/18. Além disso, quando da apreciação da primeira questão prejudicial, o Tribunal de Justiça concluiu que uma entidade adjudicante, na acepção da Directiva 2004/17, deve aplicar o procedimento estabelecido nessa directiva apenas à adjudicação de contratos no contexto de actividades que essa entidade exerça num ou mais sectores previstos nos artigos 3.o a 7.o da referida directiva.

57

Importa precisar que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a Directiva 2004/17 abrange os contratos que são celebrados no domínio de uma das actividades expressamente referidas nos artigos 3.o a 7.o da referida directiva e os contratos que, não obstante serem de natureza diferente e poderem, assim, enquanto tais, ser abrangidos normalmente pelo âmbito de aplicação da Directiva 2004/18, são celebrados para efeitos do exercício das actividades definidas na Directiva 2004/17 (v., neste sentido, acórdão Strabag e Kostmann, já referido, n.os 41 e 42).

58

Por conseguinte, os contratos celebrados por uma entidade como a Fernwärme Wien estão abrangidos pelos procedimentos previstos na Directiva 2004/17, na medida em que estão relacionados com uma actividade que a mesma exerce nos sectores referidos nos artigos 3.o a 7.o dessa directiva. Ao invés, todos os contratos celebrados por essa entidade no contexto do exercício de outras actividades estão sujeitos aos procedimentos previstos na Directiva 2004/18.

59

Por conseguinte, importa responder à terceira questão que os contratos celebrados por uma entidade que tem a qualidade de organismo de direito público, na acepção das Directivas 2004/17 e 2004/18, no contexto do exercício de actividades dessa entidade num ou mais sectores previstos nos artigos 3.o a 7.o da Directiva 2004/17, devem estar sujeitos aos procedimentos previstos nesta directiva. Ao invés, todos os outros contratos celebrados por essa entidade no contexto do exercício de outras actividades estão sujeitos aos procedimentos previstos na Directiva 2004/18. Cada uma dessas directivas aplica-se, sem distinção entre as actividades que a referida entidade exerce para desempenhar a sua missão de satisfazer necessidades de interesse geral e as actividades que exerce em condições de concorrência, mesmo que haja uma contabilidade que tem em vista separar os sectores de actividade dessa entidade, a fim de evitar os financiamentos cruzados entre esses sectores.

Quanto às despesas

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Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

1)

Uma entidade adjudicante, na acepção da Directiva 2004/17/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais, deve aplicar o procedimento estabelecido nessa directiva apenas à adjudicação de contratos no contexto de actividades que essa entidade exerça num ou mais sectores previstos nos artigos 3.o a 7.o da referida directiva.

 

2)

Uma entidade como a Fernwärme Wien GmbH deve ser considerada um organismo de direito público, na acepção dos artigos 2.o, n.o 1, alínea a), segundo parágrafo, da Directiva 2004/17 e 1.o, n.o 9, segundo parágrafo, da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços.

 

3)

Os contratos celebrados por uma entidade que tem a qualidade de organismo de direito público, na acepção das Directivas 2004/17 e 2004/18, no contexto do exercício de actividades dessa entidade num ou mais sectores referidos nos artigos 3.o a 7.o da Directiva 2004/17, devem estar sujeitos aos procedimentos previstos nesta directiva. Ao invés, todos os outros contratos celebrados por essa entidade no contexto do exercício de outras actividades estão sujeitos aos procedimentos previstos na Directiva 2004/18. Cada uma dessas directivas aplica-se, sem distinção entre as actividades que a referida entidade exerce para desempenhar a sua missão de satisfazer necessidades de interesse geral e as actividades que exerce em condições de concorrência, mesmo que haja uma contabilidade que tem em vista separar os sectores de actividade dessa entidade, a fim de evitar os financiamentos cruzados entre esses sectores.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.