CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

M. POIARES MADURO

apresentadas em 31 de Janeiro de 2008 ( 1 )

Processo C-303/06

S. Coleman

contra

Attridge Law e Steve Law

«Política social — Directiva 2000/78/CE — Igualdade de tratamento em matéria de emprego e na actividade profissional — Artigos 1.o e 2.o, n.os 1, 2, alínea a), e 3, e 3.o, n.o 1, alínea c) — Discriminação directa em razão de deficiência — Assédio ligado à deficiência — Despedimento de um funcionário não deficiente, mas que tem um filho deficiente — Inclusão — Ónus da prova»

1. 

O presente pedido de decisão prejudicial apresentado pelo South London Employment Tribunal suscita, pela primeira vez, uma questão importante relativa ao âmbito de aplicação da Directiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional ( 2 ) (a seguir «directiva»). Esse tribunal pergunta se a proibição de discriminação constante da directiva abrange as situações em que um trabalhador é tratado de forma menos favorável do que os seus colegas por, não obstante ele próprio não ser deficiente, ter uma relação com uma pessoa deficiente.

I — Matéria de facto e questões prejudiciais

2.

A demandante no processo principal, Sharon Coleman, trabalhou desde 2001 como secretária na Attridge Law, uma sociedade de advogados com sede em Londres, da qual Steve Law é sócio. Em 2002, Sharon Coleman teve um filho deficiente, que sofre de broncomalácia e de laringomalácia congénita. Sharon Coleman é quem tem o filho a cargo.

3.

Em 4 de Março de 2005, a demandante aceitou cessar voluntariamente a relação de trabalho, deixando por isso de trabalhar para a Attridge Law. Em 30 de Agosto de 2005, intentou contra os seus anteriores empregadores uma acção com fundamento em que a demissão fora causada pela actuação do empregador («constructive dismissal») e em discriminação baseada na deficiência («disability discrimination»), alegando que aqueles a tinham tratado de forma menos favorável do que aos trabalhadores com filhos não deficientes e adoptaram comportamentos que criaram um ambiente hostil para si. Entre os exemplos de tratamento discriminatório que alega ter sofrido, contam-se os seguintes: os empregadores recusaram autorizar-lhe a voltar a desempenhar as mesmas funções depois de regressar da sua licença de maternidade; chamaram-lhe «preguiçosa» quando pediu dispensa do trabalho para dar assistência ao seu filho e recusaram conceder-lhe a mesma flexibilidade de horário de trabalho que era concedida aos seus colegas que tinham filhos não deficientes; comentaram que estava a usar o «raio do miúdo» («fucking child») para manipular as suas condições de trabalho; instauraram-lhe um processo disciplinar; e não deram seguimento adequado à queixa formal que apresentou por ter sido maltratada.

4.

S. Coleman invocou em seu favor a legislação nacional pertinente, a Lei de 1995 relativa à proibição de discriminação em razão da deficiência (Disability Discrimination Act 1995) e a directiva. Alegou que a directiva se destina a proibir discriminações não apenas contra pessoas que sejam, elas próprias, deficientes mas também contra pessoas que sejam vítimas de discriminação por terem uma relação com uma pessoa deficiente. Segundo S. Coleman, o tribunal nacional deve interpretar o Disability Discrimination Act em conformidade com a directiva e, assim, conceder protecção contra a discriminação por associação [discriminação de uma pessoa em razão das suas relações, discriminação per relationem ou discriminação por associação]. Os demandados no processo principal alegam que o Act só protege pessoas deficientes e que a directiva não se destina a abranger a discriminação por associação.

5.

O pedido de S. Coleman só será procedente se a directiva for de interpretar no sentido de que proíbe a discriminação por associação. Por esta razão, o tribunal nacional não procedeu totalmente à determinação da matéria de facto nem examinou o mérito da acção, tendo, pelo contrário, sobrestado na decisão quanto a essa parte do pedido e realizado uma audiência preliminar limitada à questão de saber se a discriminação por associação é ou não proibida. Após essa audiência, suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«(1)

No contexto da proibição de discriminação em razão de uma deficiência, a directiva protege da discriminação directa e do assédio unicamente as pessoas que são, elas próprias, deficientes?

(2)

Se a resposta à primeira questão for negativa, a directiva protege os trabalhadores que, não sendo eles próprios deficientes, são tratados menos favoravelmente ou assediados em razão da sua relação com uma pessoa que é deficiente?

(3)

No caso de um empregador tratar um trabalhador menos favoravelmente do que trata ou trataria outros trabalhadores, e de se demonstrar que o fundamento para esse tratamento do trabalhador é o facto de este ter um filho deficiente a seu cargo, esse tratamento constitui uma discriminação directa em violação do princípio da igualdade de tratamento consagrado na directiva?

(4)

No caso de um empregador assediar um trabalhador e de se demonstrar que o fundamento para o tratamento do trabalhador é o facto de este ter um filho deficiente a seu cargo, esse assédio constitui uma violação do princípio da igualdade de tratamento consagrado na directiva?»

II — Análise

6.

As quatro questões submetidas ao Tribunal de Justiça pelo Employment Tribunal resumem-se a uma única questão de direito: a directiva protege pessoas não deficientes que, no âmbito do seu trabalho, sofram de discriminação directa e/ou sejam vítimas de assédio em razão da sua relação com uma pessoa deficiente?

7.

A directiva foi adoptada com base no artigo 13.o CE, que foi aditado ao Tratado CE pelo Tratado de Amesterdão e tem a seguinte redacção: «Sem prejuízo das demais disposições do presente Tratado e dentro dos limites das competências que este confere à Comunidade, o Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão e após consulta ao Parlamento Europeu, pode tomar as medidas necessárias para combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual». A primeira coisa a salientar acerca do artigo 13.o CE é que identifica razões específicas de discriminação que considera serem as razões que normalmente estão na origem de uma discriminação ou, para utilizar um conceito do direito constitucional americano, como «suspect classifications» [diferenciação de um grupo tendencialmente sujeito a discriminação, por força de determinada característica, que é efectuada por um acto do poder público e que se presume ser inconstitucional; o termo também é utilizado para referir o próprio grupo ou a característica distintiva do grupo] ( 3 ), tornando-as no alvo da legislação antidiscriminação da Comunidade. Ao abrigo dessa disposição de âmbito amplo, pode ser aprovada legislação com o objectivo de combater discriminações assentes nas referidas razões. Ainda que o Conselho disponha de uma apreciável discricionariedade para adoptar medidas adaptadas a circunstâncias e contextos sociais específicos, o artigo 13.o CE não pode ser interpretado no sentido de que permite a adopção de legislação que seja inconsistente com os seus objectivos e o seu espírito e limite a protecção que os autores do Tratado pretenderam consagrar. Consequentemente, a legislação adoptada com base no artigo 13.o CE deve ser interpretada à luz dos objectivos prosseguidos pelo próprio artigo 13.o ( 4 ).

8.

O artigo 13.o CE é a expressão do compromisso do ordenamento jurídico da Comunidade para com o princípio da igualdade de tratamento e da não discriminação. Por conseguinte, qualquer interpretação desse artigo e de qualquer directiva adoptada com base no mesmo deve ser feita à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa a estes princípios ( 5 ). A própria directiva refere, no artigo 1.o, que tem por objecto«estabelecer um quadro geral para lutar contra a discriminação […], com vista a pôr em prática nos Estados-Membros o princípio da igualdade de tratamento» (o sublinhado é meu). A jurisprudência do Tribunal de Justiça é clara no que se refere ao papel da igualdade de tratamento e da não discriminação na ordem jurídica da Comunidade. A igualdade não é apenas um ideal político e um objectivo a atingir, mas um dos princípios fundamentais do direito comunitário ( 6 ). Como foi referido pelo Tribunal de Justiça no acórdão Mangold, a directiva constitui um aspecto prático do princípio da igualdade ( 7 ). É útil recordar os valores inerentes à igualdade, para determinar o que a igualdade exige em cada situação. São eles a dignidade da pessoa humana e a autonomia pessoal.

9.

No seu nível mínimo, a dignidade humana implica o reconhecimento da igualdade de valor de todos os indivíduos. A vida de cada pessoa vale pelo mero facto de cada pessoa ser um ser humano, e não há vida que valha mais ou menos do que outra. Como Ronald Dworkin recordou recentemente, mesmo quando estamos em profundo desacordo sobre questões de moralidade política, de estrutura das instituições políticas e do funcionamento dos nossos Estados democráticos, continuamos, ainda assim, a partilhar de um compromisso para com este princípio fundamental ( 8 ). Por este motivo, a actuação dos indivíduos e das instituições políticas não deve negar a importância intrínseca de cada vida humana. A autonomia pessoal é um valor de igual relevância, mas diferente. Dela decorre que os indivíduos devem poder traçar e conduzir o curso das suas vidas através de uma sucessão de escolhas entre diversas opções válidas ( 9 ). O exercício da autonomia pressupõe que é dada às pessoas uma série de opções válidas à escolha. Quando actuamos como agentes autónomos que tomam decisões sobre a forma como queremos que a nossa vida se desenvolva, a nossa «integridade pessoal e o sentido de dignidade e de amor-próprio tornam-se realidade» ( 10 ).

10.

O artigo 13.o CE e a directiva têm por objectivo proteger a dignidade e a autonomia das pessoas abrangidas pelas referidas «suspect classifications». A forma mais evidente de afectar a dignidade e a autonomia de uma pessoa consiste em ser-se directamente atacado por se ter uma característica que está normalmente na origem de uma discriminação («suspect characteristic»). Tratar alguém menos bem por motivos como sejam as crenças religiosas, a idade, a deficiência e a orientação sexual prejudica este valor especial e único que as pessoas têm pelo facto de serem seres humanos. Reconhecer o valor igual de todos os seres humanos significa que deveríamos ignorar considerações deste tipo quando impomos a alguém um ónus ou privamos alguém de um benefício. Dito de outro modo, estas são características que não devem desempenhar um papel na avaliação da questão de saber se é ou não correcto tratar alguém de forma menos favorável.

11.

Do mesmo modo, um compromisso para com a autonomia significa que as pessoas não devem ser privadas da possibilidade de fazer opções válidas em áreas de importância fundamental para as suas vidas, com base em «suspect classifications». O acesso ao emprego e o desenvolvimento profissional têm um significado fundamental para todos os indivíduos, não apenas como forma de ganhar a vida mas também como meio importante de realização pessoal e de realização do potencial de cada um. Aquele que discrimina um indivíduo abrangido por uma «suspect classification» impede-o injustamente de fazer opções válidas. Consequentemente, a capacidade de essa pessoa levar uma vida autónoma é seriamente comprometida, na medida em que um aspecto importante da sua vida é determinado não pelas suas próprias escolhas mas pelo preconceito de outrem. Ao tratar pessoas que pertencem a estes grupos menos bem devido às suas características, aquele que discrimina impede-as de exercerem a sua autonomia. Nesse ponto, é justo e razoável que a legislação antidiscriminação intervenha. Em substância, ao valorizarmos a igualdade e ao nos comprometermos a realizar a igualdade através da lei, procuramos garantir a qualquer pessoa as condições para uma vida autónoma.

12.

No entanto, atacar directamente uma pessoa que possui uma determinada característica não é a única maneira de a discriminar; há também outras formas mais subtis e menos óbvias de o fazer. Uma maneira de lesar a dignidade e a autonomia das pessoas que pertencem a um determinado grupo consiste em não as atacar a elas, mas a terceiros com quem têm uma relação estreita e que não pertencem, eles próprios, ao grupo. Um conceito sólido de igualdade implica que estas formas mais subtis de discriminação devem também ser abrangidas pela legislação antidiscriminação, na medida em que afectam, também, as pessoas que são objecto de «suspect classifications».

13.

Na realidade, a dignidade da pessoa que possui uma característica que está normalmente na origem de uma discriminação é tão afectada quando ela é directamente alvo de discriminação como quando vê outra pessoa ser alvo de discriminação apenas por estar ligada a ela. Desta forma, a pessoa que é a vítima directa da discriminação sofre não só, ela própria, uma injustiça como também se transforma no meio através do qual a dignidade da pessoa abrangida por uma «suspect classification» é lesada.

14.

Além disso, esta forma mais subtil de discriminação enfraquece a capacidade de as pessoas que possuem uma característica que está normalmente na origem de uma discriminação serem autónomas. Por exemplo, a autonomia de membros de um grupo religioso pode ser afectada (designadamente, relativamente a com quem casar ou onde viver) se souberem que a pessoa com quem irão casar será provavelmente alvo de discriminação devido à filiação religiosa do seu cônjuge. O mesmo poder suceder, embora em menor dimensão, com indivíduos deficientes. Pessoas que pertencem a um determinado grupo são frequentemente mais vulneráveis do que as pessoas comuns, pelo que têm de depender de indivíduos com os quais têm uma relação estreita, para os ajudarem a levar uma vida condicente com as escolhas fundamentais que fizeram. Quando aquele que discrimina priva um indivíduo de opções válidas em áreas que são de importância fundamental para as nossas vidas, por esse indivíduo estar ligado a uma pessoa que possui uma característica que está normalmente na origem de uma discriminação, então também priva esta pessoa de opções válidas e impede-a de ser autónoma. Dito de outro modo, à pessoa abrangida pela «suspect classification» é negado uma multiplicidade de oportunidades que, de outra forma, lhe teriam sido concedidas.

O modo de funcionamento da directiva

15.

O legislador comunitário adoptou a directiva com o objectivo de proteger, na área do emprego e da actividade profissional, as pessoas abrangidas por «suspect classifications» e de garantir que a sua dignidade e a sua autonomia não seriam postas em causa tanto por discriminações óbvias e directas como subtis e menos óbvias. Uma indicação de como este objectivo deve ser atingido consta, desde logo, do artigo 1.o da directiva, que tem a seguinte redacção: «A presente directiva tem por objecto estabelecer um quadro geral para lutar contra a discriminação em razão da religião ou das convicções, de uma deficiência, da idade ou da orientação sexual, no que se refere ao emprego e à actividade profissional, com vista a pôr em prática nos Estados-Membros o princípio da igualdade de tratamento» (o sublinhado é meu).

16.

A expressão aqui relevante é «em razão d[e]». Diz-se frequentemente na área do direito e da filosofia moral que nem todas as discriminações são erradas. No contexto do emprego, por exemplo, é perfeitamente aceitável que um empregador contrate um candidato responsável, digno de confiança e educado e exclua candidatos que sejam irresponsáveis, indignos de confiança e rudes. Em sentido contrário, entendemos ser errado rejeitar alguém devido à sua raça ou religião, sendo que, na maioria dos sistemas jurídicos, a legislação intervém para impedir que essa discriminação ocorra. O que determina se a conduta do empregador é ou não aceitável, e determina que a lei seja aplicada, é o motivo de discriminação em que o empregador se baseia em cada situação.

17.

O facto de a injustiça da discriminação depender das razões nas quais esta se baseia reflecte-se na forma como a legislação pertinente está estruturada. Em teoria, todas as leis antidiscriminação proíbem as discriminações com base numa série de razões específicas. Foi esta a estratégia adoptada pelo legislador comunitário na directiva, que proíbe a discriminação baseada na religião ou nas convicções, na deficiência, na idade e na orientação sexual. O dever principal imposto pela legislação antidiscriminação, como a directiva, consiste em tratar as pessoas de uma determinada forma que seja comparável com a forma como outros são tratados ( 11 ). Ao adoptar a directiva, o Conselho deixou claro que é errado um empregador invocar qualquer uma dessas razões para tratar um trabalhador menos bem do que os seus colegas. A partir do momento em que se determine que a conduta de um empregador se baseia numa das razões proibidas, entramos no domínio da discriminação ilegal.

18.

No sentido acima descrito, a directiva desempenha uma função de exclusão: exclui as crenças religiosas, a idade, a deficiência e a orientação sexual da panóplia de razões admissíveis em que um empregador se pode legitimamente fundar para tratar um trabalhador de forma menos favorável de que outro. Por outras palavras, depois de a directiva ter entrado em vigor, estas considerações deixaram de poder constituir razões válidas para um empregador tratar um trabalhador de forma menos favorável.

19.

A directiva proíbe a discriminação directa ( 12 ), o assédio ( 13 ) e a discriminação indirecta ( 14 ). O traço distintivo da discriminação directa e do assédio reside no facto de estes apresentarem uma relação necessária com uma «suspect classification» específica. Aquele que discrimina baseia-se numa «suspect classification» para actuar de determinada maneira. Essa diferenciação não é uma mera contingência, antes consistindo numa premissa essencial do seu raciocínio. O facto de o empregador se basear nessas razões que estão normalmente na origem de uma discriminação é entendido pela ordem jurídica comunitária como um mal que tem de ser erradicado. Por esse motivo, a directiva proíbe a utilização dessas diferenciações como razões nas quais o raciocínio de um empregador se pode basear. Pelo contrário, nos casos de discriminação indirecta, as intenções do empregador e os motivos que tem para actuar ou não actuar são irrelevantes. Na realidade, é esta a questão central da proibição da discriminação indirecta: mesmo as medidas neutras, inocentes ou de boa fé e as políticas adoptadas sem nenhum objectivo discriminatório serão abrangidas se o seu impacto nas pessoas que possuem uma característica específica for maior do que o seu impacto nas outras pessoas ( 15 ). O objecto da legislação relativa à discriminação indirecta é este «impacto diferente» dessas medidas em determinadas pessoas. A proibição dessa discriminação está ligada à obrigação de os empregadores «acomodarem» esses grupos através da adopção de medidas e do desenvolvimento de políticas de forma a não lhes impor um ónus excessivo quando comparados com outras pessoas ( 16 ). Deste modo, enquanto que a proibição de discriminação directa e de assédio opera como um mecanismo de exclusão (ao excluir que o raciocínio de um empregador assente em determinadas razões), a proibição de discriminação indirecta opera como um mecanismo de inclusão (ao obrigar os empregadores a tomarem em consideração e a proverem às necessidades de indivíduos com determinadas características). É por este motivo que, ainda que aceitássemos o argumento do Governo do Reino Unido segundo o qual a discriminação por associação está claramente fora do âmbito da proibição da discriminação indirecta, isso não significaria, de forma alguma, que a mesma também cai fora do âmbito da proibição da discriminação directa e do assédio. Pelo contrário, incluir a discriminação por associação no âmbito da proibição da discriminação directa e do assédio é a consequência natural do mecanismo de exclusão através do qual a proibição deste tipo de discriminação opera.

20.

O processo de S. Coleman suscita uma questão de discriminação directa. Como resulta claramente da decisão de reenvio, S. Coleman não se queixa do impacto que uma medida neutra teve nela como mãe e pessoa responsável por uma criança deficiente, mas alega que o seu empregador a pôs de parte e a tornou num alvo precisamente por causa do seu filho deficiente. Por esse motivo, a questão que o Tribunal de Justiça tem de analisar é a de saber se a discriminação directa por associação é proibida pela directiva.

21.

Não há dúvidas de que a directiva seria aplicável se a própria demandante fosse deficiente. Alega-se no entanto no presente processo que foi a deficiência do filho da demandante que deu origem ao tratamento discriminatório. Por conseguinte, a pessoa deficiente e a pessoa que é a vítima indiscutível ou o objecto da discriminação não são a mesma. Será que este facto torna a directiva inaplicável? Atendendo à análise que acima desenvolvi, penso que não.

22.

Como já referi, a directiva tem por efeito proibir que um empregador se baseie na religião, na idade, na deficiência ou na orientação sexual para tratar alguns trabalhadores menos bem do que outros. Fazê-lo equivale a sujeitar estes indivíduos a um tratamento injusto e a desrespeitar a sua dignidade e autonomia. Este facto não se altera quando o trabalhador que é objecto da discriminação não é ele próprio deficiente. A razão que serve de base para a discriminação que sofre continua a ser uma deficiência. A directiva opera ao nível das razões da discriminação. O mal que pretende solucionar é a utilização de determinadas características como razões para tratar alguns trabalhadores menos bem do que outros; a directiva retira totalmente a religião, a idade, a deficiência e a orientação sexual da lista de razões que um empregador pode legitimamente usar para tratar algumas pessoas menos bem. Dito de outro modo, a directiva não permite que a hostilidade que um empregador possa mostrar contra pessoas abrangidas pelas referidas «suspect classifications» funcione como base para qualquer tipo de tratamento menos favorável no contexto do emprego e da actividade profissional. Como já expliquei, esta hostilidade pode ser expressa abertamente, ao visar os próprios indivíduos que possuem determinadas características ou, de uma maneira mais subtil e dissimulada, ao visar aqueles que têm uma relação com os indivíduos que possuem as características. Na primeira situação, penso que tal conduta está errada e deve ser proibida; a segunda situação é exactamente idêntica em todos os aspectos materiais. Nos dois casos, é a hostilidade do empregador para com idosos, deficientes, homossexuais ou pessoas com uma determinada crença religiosa que o leva a tratar menos bem alguns trabalhadores.

23.

Por esse motivo, se alguém for objecto de discriminação devido a alguma das características referidas no artigo 1.o, então essa pessoa pode invocar utilmente a protecção da directiva, ainda que ela própria não possua uma dessas características. Não é necessário que alguém que é objecto de discriminação tenha sido maltratado devido «à sua deficiência». Basta que tenha sido maltratado em razão de uma «deficiência». Assim, uma pessoa pode ser vítima de uma discriminação ilegal em razão de uma deficiência abrangida pela directiva, sem que ela própria seja deficiente; o importante é que a deficiência — no presente caso, a deficiência do filho de S. Coleman — foi usada como motivo para a tratar menos bem. A directiva não se aplica apenas quando o queixoso é ele próprio deficiente, mas sempre que houver um tratamento menos favorável que seja devido a uma deficiência. Consequentemente, se S. Coleman conseguir provar que foi tratada de forma menos favorável por causa da deficiência do seu filho, deve poder invocar utilmente a directiva.

24.

Por fim, o Governo do Reino Unido alegou que a directiva foi adoptada com o objectivo de apenas estabelecer prescrições mínimas. Segundo este governo, o facto de o Conselho ter actuado numa área onde a competência continua, em grande medida, a ser dos Estados-Membros apoia esse entendimento. Consequentemente, cabe aos Estados-Membros decidir se proíbem ou não a discriminação por associação no âmbito do emprego e da actividade profissional. Não concordo. Em primeiro lugar, o facto de uma área não estar totalmente harmonizada ou de a Comunidade ter apenas competência limitada para legislar não implica de modo algum que a intervenção do direito comunitário, independentemente da forma que revista, tenha de ocorrer ao nível mais baixo. Por outras palavras, o facto de a Comunidade ter competência limitada na área dos direitos fundamentais não significa que quando decide exercer essa competência apenas possa estabelecer prescrições mínimas de protecção dos direitos fundamentais. Em segundo lugar, não há nada na directiva ou nos seus considerandos que indique que foi essa a intenção do Conselho. Pelo contrário, o sexto considerando, por exemplo, refere «a importância da luta contra todas as formas de discriminação» (o sublinhado é meu) ( 17 ).

III — Conclusão

25.

Pelos motivos acima expostos, sugiro que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo à pergunta do Employment Tribunal, London:

«A Directiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional, protege as pessoas que, não sendo elas próprias deficientes, sejam objecto de discriminação directa e/ou de assédio no âmbito do emprego e da actividade profissional, por terem uma relação com uma pessoa deficiente.»


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) JO L 303, p. 16.

( 3 ) Sobre o desenvolvimento do conceito de «suspect classifications» no direito constitucional americano e a jurisprudência relevante do Supremo Tribunal, v. Balkin, J. — «Plessy, Brown and Grutter: A Play in Three Acts», Cardozo L. Rev., n.o 26, 2005, p. 1689.

( 4 ) Na realidade, não se pode excluir a possibilidade de medidas antidiscriminatórias adoptadas com base no artigo 13.o violarem esta mesma disposição (por exemplo, medidas que ofereçam protecção contra a discriminação baseada em crenças religiosas aos adeptos de apenas algumas, e não de todas, as religiões). De igual modo, como sugere Christopher McCrudden em «Thinking about the discrimination Directives», European Journal of Anti-Discrimination Law, n.o 1, 2005, p. 17, em especial p. 20, a igualdade de tratamento e a não discriminação, tal como são garantidas pela directiva, devem ser inseridas num contexto de direitos humanos mais alargado. O quarto considerando da directiva refere-se ao «direito universal» à «igualdade perante a lei e à protecção contra a discriminação», que é «reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Convenção das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, pelos pactos internacionais das Nações Unidas sobre os direitos civis e políticos e sobre os direitos económicos, sociais e culturais, e pela Convenção das Nações Unidas para a protecção dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais». Acrescento a esta lista a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, cujo título III tem por objecto a igualdade e que inclui uma disposição específica sobre a integração das pessoas com deficiência (artigo 26.o). A adopção da Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência e do seu Protocolo facultativo constitui um desenvolvimento recente na área dos direitos humanos a nível internacional, relativamente às questões sobre deficiência. A Convenção foi adoptada pela assembleia geral em 13 de Dezembro de 2006 e aberta para assinatura em 30 de Março de 2007, depois de assinada por 81 Estados e pela Comunidade Europeia. Dispõe, entre outros, que as partes signatárias proibirão «qualquer discriminação baseada na deficiência» (artigo 5.o, n.o 2).

( 5 ) Na doutrina sobre discriminação, tem sido referido que não decorre do artigo 13.o nem das directivas que foram adoptadas ao abrigo deste uma resposta conclusiva à questão de saber se a discriminação por associação é proibida. No entanto, tem sido sugerido que essa discriminação virá provavelmente a ser considerada abrangida pelas directivas antidiscriminação. V. Schiek, D.; Waddington L.; Bell M. (ed.) — Cases, Materials and Text on National, Supranational and International Non-Discrimination Law, Hart Publishing, 2007, pp. 169-170.

( 6 ) V., inter alia, acórdão de 12 de Março de 2002, Omega Air e o. (C-27/00 e C-122/00, Colect., p. I-2569 e a jurisprudência aí referida). V. também a análise efectuada por Tridimas, T. — The General Principles of EU Law, Oxford University Press, 2007, 2.a edição; e Dashwood, A.; O’Leary, S., (ed.) — The Principle of Equal Treatment in EC Law, Sweet and Maxwell, 1997.

( 7 ) Acórdão de 22 de Novembro de 2005, Mangold (C-144/04, Colect., p. I-9981, n.o 74).

( 8 ) Dworkin, R. — Is Democracy Possible Here?: Principles for a New Political Debate, Princeton University Press, 2006, capítulo 1.

( 9 ) Raz, J. — The Morality of Freedom, Oxford University Press, 1986. Com uma preocupação de precisão, refira-se que alguns autores incluem o valor da autonomia pessoal no da dignidade. O mesmo sucede com o tratamento destes dois conceitos na jurisprudência de alguns tribunais constitucionais. Esta questão, que poderá revestir importância no contexto da interpretação de disposições jurídicas que se referem apenas ao valor da dignidade da pessoa humana, não é pertinente para o presente processo.

( 10 ) Ibidem, p. 154.

( 11 ) Gardner, J. — «Discrimination as Injustice», Oxford Journal of Legal Studies, n.o 16, 1996, p. 353, em especial p. 355. Como explica J. Gardner, é uma questão de justiça. Assim, quando dizemos que é errado tratar alguém de modo menos favorável por determinadas razões, aquilo que queremos dizer é que a justiça exige que não nos baseemos nessas razões para afectar negativamente a situação dessa pessoa. Dito de outro modo, se nos basearmos nessas razões proibidas, teremos cometido uma injustiça em relação à pessoa em causa.

( 12 ) Definida no artigo 2.o, n.o 2, alínea a), como a situação em que «por qualquer dos motivos referidos no artigo 1.o, uma pessoa seja objecto de um tratamento menos favorável do que aquele que é, tenha sido ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável».

( 13 ) Definido no artigo 2.o, n.o 3, como um comportamento relacionado com os motivos referidos no artigo 1.o, «com o objectivo ou o efeito de violar a dignidade de uma pessoa e de criar um ambiente de trabalho intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou destabilizador».

( 14 ) Definida no artigo 2.o, n.o 2, alínea b), como uma situação em que «uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra seja susceptível de colocar numa situação de desvantagem pessoas com uma determinada religião ou convicções, com uma determinada deficiência, pessoas de uma determinada classe etária ou pessoas com uma determinada orientação sexual, comparativamente com outras pessoas».

( 15 ) A questão da discriminação anterior e da igualdade de tratamento no contexto da igualdade entre homens e mulheres já foi analisada nas minhas conclusões de 29 de Junho de 2004 no processo Briheche (acórdão de 30 de Setembro de 2004, C-319/03, Colect., pp. I-8807, I-8809).

( 16 ) V. a análise de Jolls, C. — «Antidiscrimination and Accommodation», Harvard Law Review, n.o 115, 2001, p. 642.

( 17 ) Há um outro motivo que prejudica a opinião do Reino Unido. As obrigações de igualdade de tratamento que a directiva impõe podem ter custos, sobretudo para os empregadores, e, em certa medida, a imposição dessas obrigações implica uma decisão de repartir socialmente os custos através de mecanismos de mercado específicos. Isto apenas pode ser alcançado de um modo eficiente e equitativo que não distorça a concorrência se essas obrigações de igualdade de tratamento forem interpretadas e aplicadas uniformemente em todo o mercado comum. Se esta situação não se verificar, corre-se o risco de criar uma desigualdade de circunstâncias na Europa, visto que a configuração das obrigações de igualdade de tratamento impostas aos operadores económicos pelo direito comunitário não seria a mesma em todo o mercado comum, mas dependeria do facto de um determinado Estado-Membro ter escolhido declarar ilegal um tipo específico de discriminação.