Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Parte decisória
No processo C‑89/05,
que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pela House of Lords (Reino Unido), por decisão de 3 de Novembro de 2004, entrado no Tribunal de Justiça em 18 de Fevereiro de 2005, no processo
United Utilities plc
contra
Commissioners of Customs & Excise,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),
composto por: C. W. A. Timmermans, presidente de secção, R. Schintgen (relator), R. Silva de Lapuerta, G. Arestis e J. Klučka, juízes,
advogada‑geral: C. Stix‑Hackl,
secretário: K. Sztranc, administradora,
vistos os autos e após a audiência de 2 de Fevereiro de 2006,
vistas as observações apresentadas:
– em representação da United Utilities plc, por D. Goy, QC, e C. McDonnell, barrister, mandatados por P. Drinkwater, solicitor,
– em representação dos Commissioners of Customs & Excise, por R. Hill, barrister,
– em representação do Governo do Reino Unido, por C. White e T. Harris, na qualidade de agentes, assistidas por K. Parker, QC, e R. Hill, barrister,
– em representação do Governo português, por L. Fernandes e A. Matos Barros, na qualidade de agentes,
– em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por R. Lyal, na qualidade de agente,
vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,
profere o presente
Acórdão
1. O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54; a seguir «Sexta Directiva»).
2. Esse pedido foi apresentado no quadro de um litígio que opõe a United Utilities plc (a seguir «United Utilities») aos Commissioners of Customs & Excise (a seguir «Commissioners»), autoridade competente no Reino Unido em matéria de cobrança do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA»), relativamente à sujeição a IVA das prestações fornecidas pela Vertex Data Science Ltd (a seguir «Vertex») à Littlewoods Promotions Ltd (a seguir «Littlewoods»), que organiza apostas por telefone.
Quadro jurídico
Regulamentação comunitária
3. O artigo 2.° da Sexta Directiva, que constitui o título II desta, com a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe:
«Estão sujeitas ao imposto sobre o valor acrescentado:
1. As entregas de bens e as prestações de serviços, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;
[...]»
4. Nos termos do artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva, os Estados‑Membros isentarão de IVA «as apostas, lotarias e outros jogos de azar ou a dinheiro, sem prejuízo das condições e dos limites estabelecidos pelos Estados‑Membros».
Legislação nacional
5. O artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva foi transposto para direito interno pelo anexo 9, grupo 4, da Lei de 1994 relativa ao IVA (Value Added Tax Act 1994), que isenta de IVA a disponibilização de instalações e de equipamentos para a realização de apostas ou para o desenrolar de jogos de azar de todos os géneros.
Litígio no processo principal e questão prejudicial
6. A United Utilities é o membro representante de um grupo de sociedades tratadas como um único sujeito passivo, na acepção do artigo 4.°, n.° 4, segundo parágrafo, da Sexta Directiva. A Vertex é igualmente membro desse grupo.
7. A Littlewoods organiza apostas por telefone conhecidas pelo nome de «Bet Direct». Os seus clientes podem apostar no resultado de eventos desportivos ou de outros eventos aleatórios, como fenómenos meteorológicos. As apostas são exclusivamente feitas por telefone. Em 1999, a Littlewoods decidiu subcontratar uma parte da sua actividade e, para esse efeito, celebrou um acordo de prestação de serviços de «call centre» com a Vertex. Em conformidade com esse acordo, a Vertex, que está também autorizada a agir como mandatário da Littlewoods, deve fornecer o pessoal, os espaços bem como o equipamento telefónico e informático necessário para poder recolher as apostas em questão.
8. A Littlewoods escolhe os eventos desportivos ou outros em relação aos quais as apostas podem ser feitas, fixa as cotações, avalia as apostas e gere as receitas e despesas a estas relativas.
9. A Vertex, por seu turno, apenas recebe as chamadas telefónicas e regista as apostas em conformidade com as condições emitidas pela Littlewoods. Não dispõe, neste particular, de um poder de apreciação. Por outro lado, o pessoal da Vertex em momento algum informa os apostadores de que estão a tratar com a Vertex e não com a Littlewoods. Além disso, o nome da Vertex não aparece em nenhum documento destinado aos apostadores.
10. A remuneração da Vertex compõe‑se de uma parte fixa e de uma parte variável. Esta é calculada com base no número de minutos de chamadas telefónicas recebidas pela Vertex. Estão previstas diversas penalizações no caso de esta cometer erros no exercício das suas funções. A remuneração não tem em conta o número, o valor das apostas registadas nem a cotação dessas apostas. A Vertex não suporta qualquer risco financeiro em relação às apostas propostas pela Littlewoods.
11. A United Utilities considera que as prestações de serviços fornecidas pela Vertex entram no âmbito de aplicação do artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva e devem, por isso, beneficiar da isenção de IVA prevista por essa disposição.
12. Em apoio da sua posição, a United Utilities alega, em primeiro lugar, que o artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva visa isentar a instituição do quadro em que se desenrola um jogo de azar. Podiam, por isso, ser isentas as actividades que têm por finalidade formar o quadro, ou mesmo a estrutura, nos quais ou por meio dos quais os jogos de azar podem desenrolar‑se.
13. Resulta, além disso, dos acórdãos de 5 de Junho de 1997, SDC (C‑2/95, Colect., p. I‑3017), e de 13 de Dezembro de 2001, CSC Financial Services (C‑235/00, Colect., p. I‑10237), que a isenção requerida no processo principal deve aplicar‑se às prestações de um mandatário na medida em que este seja um instrumento da operação relacionada com o próprio jogo de azar. Qualquer outra interpretação teria por consequência que a referida isenção se aplicasse apenas a alguns dos elementos que constituem o quadro no qual se efectua uma operação relacionada com jogos de azar.
14. A United Utilities sustenta, em seguida, que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à isenção de IVA dos serviços financeiros (acórdãos SDC, já referido; de 25 de Fevereiro de 1999, CPP, C‑349/96, Colect., p. I‑973, e CSC Financial Services, já referido) que, quando um mandatário efectuar uma operação por conta de um mandante, as prestações desse mandatário em benefício do mandante devem, para efeitos de isenções de IVA, ser analisadas por referência ao seu papel preciso na operação subjacente entre o mandante e o cliente final. Só na hipótese de um mandatário efectuar «um acto essencial que dê origem a uma modificação da situação jurídica e financeira das partes», numa operação abrangida pelo âmbito de aplicação de uma das categorias isentas, é que a prestação desse mandatário está isenta. A questão de saber se o referido mandatário é um mandatário do mandante ou do cliente é, a este respeito, desprovida de pertinência.
15. Ainda segundo a United Utilities, esta jurisprudência aplica‑se, mutatis mutandis , à isenção das apostas e dos jogos de azar. Assim, em matéria de apostas e de jogos de azar, a celebração do contrato de aposta constitui a função específica e essencial da referida aposta, dado que modifica a situação jurídica e financeira entre as partes. Uma vez que a aceitação verbal das apostas pela Vertex basta para criar o vínculo jurídico entre os apostadores e a Littlewoods, a Vertex desempenha a função específica e essencial de um organizador de apostas.
16. A United Utilities alega, finalmente, que a interpretação que preconiza não é posta em causa pela circunstância de a Vertex não dispor de qualquer poder discricionário no que diz respeito à aceitação ou à recusa de uma aposta por conta da Littlewoods, já que a celebração do contrato nunca constitui um acto de natureza administrativa.
17. Os Commissioners não partilham deste ponto de vista e consideram, por seu turno, que a isenção visada no artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva não é aplicável aos serviços fornecidos pela Vertex, uma vez que constituem uma simples prestação material, técnica ou administrativa em benefício do organizador de apostas.
18. O VAT and Duties Tribunal, a High Court of Justice bem como a Court of Appeal rejeitaram sucessivamente a argumentação da United Utilities.
19. Nestas condições, a House of Lords, chamada a conhecer da causa, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«A isenção relativa às apostas estabelecida no artigo 13.°, B), alínea f), da Sexta Directiva [...] é aplicável nos casos em que uma pessoa (‘mandatário’) presta serviços em nome e por conta de outra pessoa (‘mandante’) aceitando apostas de clientes e comunicando‑lhes a aceitação destas apostas pelo mandante quando:
a) os actos do mandatário constituem um passo indispensável na criação da relação jurídica da aposta entre o mandante e o seu cliente, concluindo o contrato de aposta; mas
b) o mandatário não toma qualquer decisão quanto à fixação das cotações, que são determinadas pelo mandante ou, nalguns casos, por terceiros, nos termos das regras do desporto em causa; e
c) o mandatário decide se aceita ou não as apostas em nome e por conta do mandante de acordo com critérios estabelecidos pelo mandante, de forma que o mandatário não tem poder discricionário na matéria?»
Quanto à questão prejudicial
20. Através da sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que a prestação de serviços de «call centre», efectuada em benefício de um organizador de apostas por telefone e que inclui a aceitação das apostas, em nome do organizador, pelo pessoal do prestador dos referidos serviços, constitui uma operação de apostas na acepção dessa disposição e pode, por isso, beneficiar da isenção de IVA nela prevista.
21. Com vista a responder a essa questão, há que começar por recordar que os termos utilizados para designar as isenções previstas no artigo 13.° da Sexta Directiva são de interpretação estrita, dado que essas isenções constituem derrogações ao princípio geral segundo o qual o IVA é cobrado sobre cada prestação de serviços efectuada a título oneroso por um sujeito passivo (v., nomeadamente, acórdãos SDC, já referido, n.° 20, e de 3 de Março de 2005, Arthur Andersen, C‑472/03, Colect., p. I‑1719, n.° 24).
22. Além disso, a interpretação dos termos utilizados nessa disposição deve estar em conformidade com os objectivos prosseguidos pelas referidas isenções e respeitar as exigências do princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum de IVA (acórdão de 6 de Novembro de 2003, Dornier, C‑45/01, Colect., p. I‑12911, n.° 42).
23. No que toca mais particularmente às apostas, lotarias e outros jogos de azar, deve salientar‑se que a isenção de que beneficiam é motivada por considerações de ordem prática, já que as operações de jogos de azar se prestam dificilmente à aplicação do IVA (acórdão de 29 de Maio de 2001, Freemans, C‑86/99, Colect., p. I‑4167, n.° 30), e não, como acontece em relação a certas prestações de serviço de interesse geral realizadas no sector social, pela intenção de assegurar a essas actividades um tratamento mais favorável em matéria de IVA.
24. É à luz destas considerações que há que examinar se uma actividade como a que está em causa no processo principal constitui uma operação de apostas na acepção do artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva susceptível, como tal, de beneficiar da isenção de IVA.
25. Como resulta da decisão de reenvio, a prestação de serviços efectuada pela Vertex consiste em fornecer o pessoal, os espaços bem como o equipamento telefónico e informático necessário para poder recolher apostas, cujo objecto e a cotação são, todavia, fixados pelo beneficiário dessa prestação, neste caso a Littlewoods.
26. Ora, há que reconhecer que essa actividade, por si só, contrariamente à operação de apostas visada no artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva, de forma alguma se caracteriza pela atribuição de uma oportunidade de ganho aos apostadores e pela aceitação, em contrapartida, do risco de ter de financiar esses ganhos, e não pode, por isso, ser qualificada de operação de apostas na acepção dessa disposição.
27. Por esta mesma razão, tal interpretação não é posta em causa pela circunstância de a aceitação das apostas, efectuada neste caso pelo pessoal da Vertex, constituir um elemento, por mais importante que seja, da realização dessas apostas, uma vez que é através dessa aceitação que nasce um vínculo jurídico entre a Littlewoods e os seus clientes.
28. Além disso, a jurisprudência segundo a qual a modificação da relação jurídica e financeira entre um prestador de serviços e o seu cliente é uma função específica das operações de transferência (acórdãos, já referidos, SDC, n.° 66, e CSC Financial Services, n.° 26) não pode ser transposta, mutatis mutandis , para as actividades visadas no artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva, uma vez que os objectivos que estão na base das isenções previstas em matéria de operações de transferência na acepção do artigo 13.°, B, alínea d), desta directiva não são os mesmos que os que motivaram a isenção que figura no artigo 13.°, B, alínea f), da mesma directiva.
29. Tendo presentes as considerações que precedem, deve responder‑se à questão submetida que o artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que a prestação de serviços de «call centre», efectuada em benefício de um organizador de apostas por telefone e que inclui a aceitação das apostas, em nome do organizador, pelo pessoal do prestador dos referidos serviços, não constitui uma operação de apostas na acepção dessa disposição e não pode, por isso, beneficiar da isenção de IVA nela prevista.
Quanto às despesas
30. Revestindo o process o, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:
O artigo 13.°, B, alínea f), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que a prestação de serviços de «call centre», efectuada em benefício de um organizador de apostas por telefone e que inclui a aceitação das apostas, em nome do organizador, pelo pessoal do prestador dos referidos serviços, não constitui uma operação de apostas na acepção dessa disposição e não pode, por isso, beneficiar da isenção de IVA nela prevista.