CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

DÁMASO RUIZ-JARABO COLOMER

apresentadas em 23 de Janeiro de 2007 1(1)

Processo C‑431/05

Merck Genéricos‑Produtos Farmacêuticos L.da

contra

Merck & Co. Inc.

e

Merck Sharp & Dohme L.da

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal de Justiça (Portugal)]

«Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio – Acordo ADPIC (TRIPs) – Competência do Tribunal de Justiça – Efeito directo»





I –    Introdução

1.        Já se afirmou que os acordos mistos constituem uma complicação a que não se pode escapar, porque contribuem para a organização de uma realidade política também complicada (2). As questões prejudiciais submetidas pelo Supremo Tribunal de Justiça põem, mais uma vez, o dedo na ferida de tal complexidade, paradoxalmente, através de duas perguntas concisas, fáceis de ler e de entender, mas com toda a carga emocional das divergências latentes, que ressurgem devido ao seu carácter inevitável.

2.        É muito conhecido o contexto do pedido: o acordo ADPIC (também conhecido por acordo TRIPs), incluído nos acordos concluídos em 1994 no âmbito da Organização Mundial do Comércio (3). Embora se debata, de novo, a competência do Tribunal de Justiça para interpretar uma norma concreta e o seu eventual efeito directo, existe algo de novo relativamente aos casos anteriores, já que o pedido de decisão prejudicial não se enquadra no direito das marcas, mas sim no das patentes.

3.        É, portanto, necessário proceder a uma análise profunda do que foi aduzido no primeiro âmbito, para averiguar se basta proceder a uma adaptação, se é necessário um trabalho maior ou se, inclusivamente, exige uma revisão completa. De qualquer modo, há que assinalar as importantes consequências práticas que derivam desta jurisprudência, que alterou a forma de exercer a política externa comunitária, evitando especialmente a negociação de acordos mistos (4).

II – Quadro jurídico

A –    Acordo ADPIC

4.        Com o objectivo de harmonizar parcialmente os direitos de propriedade intelectual devido à sua influência ocasional no comércio internacional, o acordo TRIPs contém uma série de disposições aplicáveis às diversas formas de propriedade intelectual. Em seguida, trarei à colação as disposições relativas às patentes que servirão para dilucidar este processo.

5.        Assim, o artigo 33.º desse acordo, incluído na secção 5 da parte II, respeitante às normas relativas à existência, âmbito e exercício dos direitos de propriedade intelectual, sob o título «Duração da protecção», tem o seguinte teor:

«A duração da protecção oferecida não terminará antes do termo de um período de vinte anos calculado a partir da data de depósito.»

6.        Além disso, na parte VII do anexo, relativo às disposições institucionais e finais, o artigo 70.º, intitulado «Protecção dos objectos existentes», dispõe:

«1.      O presente acordo não cria obrigações relativamente a actos ocorridos antes da data de aplicação do acordo ao membro em questão.

2.      Salvo disposição em contrário do presente acordo, […] estabelece obrigações relativamente a todos os objectos existentes à data de aplicação do acordo ao membro em questão, e que sejam protegidos nesse membro na referida data, ou que satisfaçam ou venham posteriormente a satisfazer os critérios de protecção definidos no presente acordo […]

[…]»

B –    Direito nacional

7.        A antiga legislação portuguesa relativa às patentes constava do Decreto n.º 30.679, de 24 de Agosto de 1940, que aprovou, nesse ano, o Código da Propriedade Industrial (a seguir «Código de 1940»). O seu artigo 7.º dispunha que esses direitos imateriais caíam no domínio público ao fim de 15 anos, contados da data da concessão da patente.

8.        O Decreto‑Lei n.º 16/95 aprovou um novo diploma legal que entrou em vigor em 1 de Junho de 1995 (a seguir «Código de 1995»), cujo artigo 94.º consagra a validade da patente por um período de 20 anos, contados da data do respectivo pedido.

9.        No entanto, para resolver as situações de direito transitório, o artigo 3.º do Código de 1995 tinha a seguinte redacção:

«As patentes cujos pedidos foram apresentados antes da entrada em vigor do presente diploma, conservam a duração que lhes era atribuída pelo artigo 7.º do Código [de 1940].»

10.      O artigo 3.º do Código de 1995 foi posteriormente revogado sem efeitos retroactivos pelo artigo 2.º do Decreto‑Lei n.º 141/96, de 23 de Agosto de 1996, que entrou em vigor em 12 de Setembro de 1996. Nos termos do artigo 1.º deste diploma nacional:

«Às patentes cujos pedidos foram apresentados antes da entrada em vigor do Decreto‑Lei n.° 16/95, de 24 de Janeiro de 1995, vigentes em 1 de Janeiro de 1996, ou concedidas após esta data, aplica‑se o disposto no artigo 94.º do Código [de 1995] […]»

11.      O referido artigo 94.º aumentou em cinco anos a protecção desses direitos de propriedade imaterial.

12.      Em 5 de Março de 2003 foi aprovado o actual Código da Propriedade Industrial através do Decreto‑Lei n.° 36/2003; o seu artigo 99.º dispõe:

«Duração

A duração da patente é de 20 anos contados da data do respectivo pedido.»

III – Matéria de facto na origem do litígio

13.      A Merck & Co. Inc. (a seguir «Merck») é titular da patente de invenção n.° 70.542, concedida por despacho de 8 de Abril de 1981, com prioridade reportada a 11 de Dezembro de 1978, intitulada «processo para a preparação de derivados de aminoácidos como hipertensivos», para a preparação do composto químico «Enalapril» e o fabrico do «Maleato de Enalapril». A composição farmacêutica em causa é comercializada desde 1 de Janeiro de 1985 sob a marca Renitec.

14.      A Merck Sharp & Dohme L.da (a seguir «MSD») obteve uma licença de exploração dessa patente para usar, vender ou de qualquer modo dispor dos produtos Renitec em Portugal, bem como os poderes de defesa correspondentes.

15.      Em 1996, a Merck Genéricos‑Produtos Farmacêuticos L.da (a seguir «Merck Genéricos») lançou no mercado um medicamento sob a marca Enalapril Merck a preço substancialmente inferior ao do Renitec e promoveu‑o junto dos médicos, afirmando tratar‑se do mesmo medicamento.

16.      A Merck e a MSD intentaram uma acção contra a Merck Genéricos pedindo que esta se abstivesse de qualquer utilização directa ou indirecta (importação, fabrico, preparação, manipulação, embalagem ou venda), tanto em Portugal, como para exportação, do produto farmacêutico Enalapril Merck, mesmo sob outra denominação comercial, que contivesse as substâncias activas «Enalapril» ou «Maleato de Enalapril», sem a sua autorização expressa e formal. Pediram, também, uma indemnização de 32.500.000 PTE pelos prejuízos morais e materiais sofridos.

17.      Em sua defesa, a Merck Genéricos alegou que a patente n.° 70.542 tinha caído no domínio público em 8 de Abril de 1996, no termo do prazo de quinze anos previsto no artigo 7.º do Código de 1940, por força do regime transitório previsto no artigo 3.º do Código de 1995.

18.      A empresa MSD baseou‑se no artigo 33.º do acordo TRIPs para considerar que a protecção da patente não tinha terminado antes de 4 de Dezembro de 1999.

19.      A acção foi julgada improcedente em primeira instância.

20.      Em segunda instância, o Tribunal da Relação de Lisboa acolheu o pedido das recorrentes e condenou a Merck Genéricos no ressarcimento dos danos causados com a violação da patente n.° 70.542, dado que, segundo o artigo 33.º do acordo TRIPs, que tem efeito directo, a patente não tinha caducado em 9 de Abril de 1996, como afirmava a recorrida, mas sim cinco anos depois.

21.      A Merck Genéricos interpôs recurso de revista desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, contestando que o referido artigo 33.º tivesse efeito directo.

22.      O Supremo Tribunal português observa que, embora o artigo 94.º do Código de 1995 tenha dilatado para 20 anos a protecção das patentes, esta disposição não se aplicava ao presente processo, pelo que a patente tinha caducado em 8 de Abril de 1996, no termo dos quinze anos previstos no artigo 7.º do Código de 1940. Assim, a aplicação do artigo 33.º do acordo TRIPs, que concede às patentes uma duração mínima de vinte anos, implicava a procedência dos pedidos formulados pela MSD.

23.      O Supremo Tribunal considera que, em conformidade com os princípios que em Portugal regem a interpretação dos Tratados internacionais, o artigo 33.º do acordo TRIPs tem efeito directo e pode ser invocado entre particulares no processo.

24.      Contudo, tendo dúvidas sobre a eventual extrapolação para o domínio das patentes da jurisprudência comunitária sobre o acordo TRIPs relativo às marcas, tanto na sua vertente substantiva como no que respeita à competência de interpretação deste Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio suspendeu a instância e, nos termos do artigo 234.º CE, submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias é competente para interpretar o artigo 33.º do acordo [ADPIC]?

2.      Em caso de resposta positiva à primeira questão, devem as jurisdições nacionais aplicar o mencionado artigo, oficiosamente ou a pedido de uma das partes, em litígio perante elas pendente?»

IV – Tramitação processual no Tribunal de Justiça

25.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 5 de Dezembro de 2005.

26.      Foram apresentadas observações escritas, dentro do prazo referido no artigo 23.º do Estatuto do Tribunal de Justiça, pela Merck e pela MSD, conjuntamente, pela Merck Genéricos, pelos Governos português e francês e pela Comissão.

27.      Na audiência, que decorreu em 28 de Novembro de 2006, compareceram os representantes das partes no processo principal, do Governo francês, do Governo do Reino Unido e da Comissão para, oralmente, apresentarem as respectivas alegações.

V –    Análise das questões prejudiciais

A –    Exposição

28.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional pergunta se o Tribunal de Justiça é competente para interpretar o acordo TRIPs, em especial o seu artigo 33.º

29.      A Merck e a MSD alegam nas suas observações que, segundo jurisprudência assente (5), essa questão não é objectivamente necessária para a resolução do litígio principal. Contudo, não parecem pôr em causa a sua admissibilidade, uma vez que apenas pedem que não se lhe responda.

30.      Poderia compartilhar desta análise, embora apenas parcialmente, porquanto não é imprescindível responder à questão enquanto tal, não pela razão apresentada pelas duas referidas sociedades, mas porque o Tribunal de Justiça tem de examinar oficiosamente a sua competência nos processos relativos a acordos internacionais mistos.

31.      Além disso, como a seguir se demonstrará, através da análise da jurisprudência comunitária, seria ao Supremo Tribunal português que caberia a competência em causa se o Tribunal de Justiça declinasse a sua.

32.      Por conseguinte, a primeira questão suscitada não é analisada com o intuito de satisfazer a curiosidade do órgão jurisdicional de reenvio, mas para determinar oficiosamente a própria competência do Tribunal de Justiça.

B –    Quanto à competência do Tribunal de Justiça para interpretar o acordo TRIPs

33.      Já anteriormente se estudou a competência do Tribunal de Justiça para se pronunciar sobre tratados internacionais mistos, concretamente os que dizem respeito a poderes partilhados pelas Comunidades e pelos Estados‑Membros, existindo abundante jurisprudência. Mas, longe de estarem isentos de dificuldades, os sucessivos desenvolvimentos deram lugar a um caminho longo e tortuoso, que exige a introdução de certas correcções no seu complexo traçado para favorecer o trânsito dos seus perplexos utentes.

1.      Resposta segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça

a)      Origens

34.      A recorrida começa com o acórdão Haegeman (6), confirmado pelo acórdão Demirel (7). A partir desse momento, esses tratados mistos integram a competência de interpretação deste Tribunal de Justiça, sendo considerados actos aprovados pelos órgãos comunitários (8); os acordos mistos também se incluem na competência do Tribunal de Justiça, devido ao paralelismo com os poderes da Comunidade, como reflexo do princípio fundamental do direito comunitário das competências de atribuição, consagrado no artigo 5.º CE e esboçado na redacção do artigo 220.º CE (9).

35.      No acórdão Demirel (10), o Tribunal de Justiça declarou que estes acordos gozam do mesmo estatuto, na ordem jurídica da União, que os acordos puramente comunitários, uma vez que dizem respeito a atribuições conferidas à Comunidade (11). É verdade que o acórdão se referia ao acordo de associação com a Turquia (12), que se afirmava integrar plenamente as matérias abrangidas pelo Tratado CE, o que não invalida, contudo, o carácter geral da afirmação anterior (13).

36.      Entrando no mérito do litígio, há que referir que a questão da interpretação do acordo TRIPs foi por diversas vezes submetida ao Tribunal de Justiça. No entanto, não se pode deixar de ter em consideração o parecer 1/94 (14), proferido a pedido da Comissão com vista a clarificar o alcance das competências da Comunidade Europeia para subscrever todas as partes do acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (a seguir «OMC»). Todavia, o parecer não incidia sobre as competências do Tribunal de Justiça.

37.      Assim, ao estudar a natureza, exclusiva ou partilhada, de tais atribuições, o parecer baseou‑se no acórdão AETR (15) para abordar os actos de direito derivado das instituições comunitárias que podiam ser afectados pela participação dos Estados‑Membros no acordo TRIPs como pressuposto dos poderes da Comunidade. O parecer salientou que a harmonização dos direitos de propriedade intelectual fundados no anexo C do acordo OMC tinha sido até então incompleta, referindo a inexistência de regulamentação comunitária vigente em matéria de patentes (16), a que importa para efeitos do litígio no processo principal.

38.      Desta forma se deu início a uma jurisprudência que defendia a existência de uma regulamentação comunitária como critério determinante da competência do Tribunal de Justiça para interpretar os acordos internacionais mistos.

b)      Acórdãos relativos ao acordo TRIPs

39.      Mais tarde, o acórdão Hermès (17) confirmou esta doutrina; o artigo 99.º do regulamento sobre a marca comunitária (18), que entrou em vigor um mês antes de ser aprovada a acta final e o acordo OMC (19), serviu para inferir da competência da Comunidade, devido ao título de propriedade industrial unitário, a sua protecção jurisdicional nos termos do artigo 50.º do acordo TRIPs, proclamando a competência do Tribunal de Justiça para interpretar esta última disposição (20).

40.      Criticou‑se o facto de o litígio que deu origem à questão prejudicial no processo Hermès dizer respeito a uma marca Benelux e não a uma marca comunitária e de, em todo o caso, o artigo 99.º do Regulamento n.° 40/94 remeter para o direito nacional (21), mas o Tribunal de Justiça corroborou a referida decisão no acórdão Dior (22), em cujo n.° 39 alargou a sua competência de interpretação do artigo 50.º do acordo TRIPS, para além das marcas, aos restantes direitos de propriedade intelectual.

41.      No fundo, a sua argumentação consistia em afirmar que, enquanto disposição processual que se aplica em todas as situações que se enquadram no âmbito em que produz efeitos, aplicável tanto a situações reguladas pelo direito nacional como pelo direito comunitário, a obrigação de cooperação [do artigo 10.º CE] requer, tanto por razões práticas como por razões jurídicas, que as instâncias dos Estados‑Membros e da Comunidade interpretem de forma uniforme o artigo 50.º do acordo TRIPs (23).

42.      Nascia, assim, a necessidade dessa interpretação uniforme como corolário da obrigação de cooperação leal, uma das ideias centrais defendidas pelo advogado‑geral G. Tesauro nas conclusões que apresentou no processo Hermès, que não foi acolhida no acórdão, para cimentar a competência do Tribunal de Justiça relativamente aos acordos mistos como o TRIPs (24), opinião sobre a qual me pronunciarei mais à frente.

43.      Contudo, em vez de elevar essa necessidade à categoria de «exigência fundamental», como propunha o referido advogado‑geral, o que o autorizaria a erigir‑se em garante único da correcta interpretação dos acordos mistos concluídos pela Comunidade, o Tribunal de Justiça limitou‑se a inferir desse argumento a sua competência para analisar o artigo 50.º do acordo TRIPs, como já tinha efectuado no acórdão Hermès, embora sem trazer à colação essa premissa. Consequentemente, há que colocar a questão do alcance da remissão para o artigo 10.º CE no acórdão Dior, uma vez que o Tribunal de Justiça manteve o mesmo raciocínio que no acórdão Hermès (25), baseando a sua capacidade para interpretar os tratados internacionais mistos na regulamentação europeia em vigor.

c)      Apreciação

44.      A jurisprudência corroborou esta linha de pensamento no acórdão Comissão/Irlanda (26) sobre a adesão à Convenção de Berna(27) relativa à propriedade intelectual que, numa acção por incumprimento, revela a utilização de uma metodologia idêntica para delimitar as competências comunitárias; também o acórdão Lagoa de Berre (28) e o mais recente Fábrica MOX (29) se inscrevem na esteira do acórdão Hermès, determinando as competências do Tribunal de Justiça em função da presença de actos normativos comunitários.

45.      Mas o acórdão Lagoa de Berre introduziu um pequeno matiz ao declarar que a circunstância de uma determinada situação, incluída numa matéria com ampla legislação europeia, não ter sido objecto de regulação na União não impede que também seja considerada de competência comunitária (30). O acórdão Fábrica MOX refere expressamente o precedente (31) reafirmando, pois, a importante ressalva introduzida no silogismo dedutivo da sua competência interpretativa.

46.      Portanto, a manter‑se a actual jurisprudência para apreciar se o Tribunal de Justiça possui a faculdade de analisar os acordos mistos, em especial o acordo TRIPs em matéria de patentes, deveria investigar‑se a eventual legislação comunitária nesse ramo da propriedade industrial, sem deixar de ter em conta a descrita «cláusula de flexibilização» do acórdão Lagoa de Berre.

d)      Aplicação ao presente processo

47.      Tem assim relevância a lista de medidas da Comunidade, apresentada pela Comissão nas suas observações, que inclui: o Regulamento (CEE) n.° 1768/92, relativo à criação de um certificado complementar de protecção para os medicamentos (32), o Regulamento (CE) n.° 2100/94 relativo ao regime comunitário de protecção das variedades vegetais (33), o Regulamento (CE) n.° 1610/96 relativo à criação de um certificado complementar de protecção para os produtos fitofarmacêuticos (34), a Directiva 98/44/CE relativa à protecção jurídica das invenções biotecnológicas (35), a proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à concessão obrigatória de licenças para patentes respeitantes a fabrico de produtos farmacêuticos destinados à exportação para países com problemas de saúde pública (36), a proposta de regulamento do Conselho relativo à patente comunitária (37), bem como a proposta de decisão do Conselho que atribui ao Tribunal de Justiça competência para decidir sobre litígios ligados a patentes comunitárias (38), e a proposta de decisão do Conselho relativa à criação do Tribunal da Patente Comunitária e ao recurso para o Tribunal de Primeira Instância (39).

48.      Diversamente das marcas, contexto em que se adoptaram tanto a Directiva 89/104/CEE (40) como o Regulamento n.º 40/94 sobre a marca comunitária, o panorama normativo europeu sobre patentes está longe de oferecer uma resposta tão clara acerca da possível competência do Tribunal de Justiça para apreciar o acordo TRIPs. Da lista de actos normativos enunciados no número anterior, alguns, como o das variedades vegetais, nem sequer podem equiparar‑se às patentes, segundo confessa a própria Comissão. Outros, em contrapartida, ficaram na fase preparatória e não foram adoptados.

49.      Com efeito, falta uma norma harmonizadora e a criação de uma patente comunitária deparou com resistências insuperáveis no Conselho. Neste estado de coisas, surge a jurisprudência Hermès, modulada pelo acórdão Lagoa de Berre, que reclama a adopção de normas, embora se suscite imediatamente a dúvida acerca dos parâmetros que permitem conhecer o nível de actividade normativa suficiente para garantir que existe competência comunitária e, portanto, do Tribunal de Justiça.

50.      Neste processo prejudicial não se discute o exercício das prerrogativas atribuídas à Comunidade, tanto as que lhe confere o artigo 95.º CE, também no que respeita aos diferentes tipos de títulos de propriedade imaterial tendo em vista o mercado interno, como as que lhe cabem por via do artigo 308.º CE, por exemplo, para obter a patente comunitária, projecto que não vingou. Há que sublinhar neste contexto o quanto intricada e complexa é para a Comunidade a utilização dos seus poderes.

51.      Assim, a Convenção sobre a concessão de patentes europeias de 1973 (a seguir «Convenção de Munique»), a que aderiram sucessivamente os Estados‑Membros, instituiu um instrumento pan‑europeu que coexiste com os nacionais. Com a proposta de regulamento relativo à patente comunitária pretendia‑se uma simbiose entre os sistemas comunitário e interestatal, intento que implica: a adopção do regulamento relativo à patente comunitária, a ponderação adequada da Convenção de Munique e do Estatuto do Instituto Europeu de Patentes, a adesão da Comunidade à Convenção de Munique, bem como a futura coordenação dos correspondentes desenvolvimentos do regulamento e da convenção. Além disso, a Convenção de Munique não autoriza o Instituto a encarregar‑se dessas funções, pelo que é necessária a sua alteração (41).

52.      Parece difícil determinar se, nesta conjuntura, seria iníquo castigar a Comunidade por não ter coroado de êxito as suas diligências, sobretudo num procedimento submetido à regra da unanimidade (42). Talvez esteja certo quem escreveu, a propósito dos acordos mistos, que, quando a competência se erige em critério para determinar a jurisdição, converte‑a em refém da sua complexidade (43). Com o gradual aumento das competências partilhadas nos numerosos e variados sectores que se «comunitarizam», vaticina‑se uma avalanche de questões ao Tribunal de Justiça para que se pronuncie sobre a sua própria competência a esse respeito, sem poder eximir‑se em cada caso à apreciação da legislação comunitária pertinente.

53.      Em suma, aplicando à letra a jurisprudência referida, haveria que declarar que o Tribunal de Justiça não tem competência devido à inexistência de disposições comunitárias, mas também, como insinua a Comissão, entender que efectivamente a possui, considerando a propriedade intelectual um sector único, integrado pelas marcas, os modelos e os restantes tipos de direitos de que se ocupa o acordo TRIPs, e em que existem carências de intervenção legislativa comunitária, como a duração da protecção concedida por força das patentes de invenção, isso não prejudica, tendo em consideração o acórdão Lagoa de Berre, a competência interpretativa deste Tribunal de Justiça.

2.      Proposta alternativa

54.      Perante as dificuldades da jurisprudência referida, em que o próprio Tribunal de Justiça se enredou, prefiro apadrinhar uma tese que permita superar a posição tão firmemente consolidada e empreender uma missão renovadora em benefício do interesse comunitário, sustentando a competência global do Tribunal de Justiça para interpretar o acordo TRIPs pelas seguintes razões.

55.      Em primeiro lugar, merece maior atenção do que aquela que se prestou até agora à incorporação dos acordos OMC no contexto do direito internacional, em que os acordos se ratificam com a intenção de serem cumpridos de boa fé. De qualquer forma, há que sublinhar a alteração que sofreu o GATT, que debilitou o seu carácter «contratual» inicial para se transformar num padrão praticamente «constitucional» para o comércio mundial através do seu total alinhamento pelos modelos dos tratados internacionais, segundo a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de Maio de 1969 (44). É pois oportuno manter o ponto de partida dos acórdãos Haegemann e Demirel no que respeita aos tratados mistos, para os considerar integrados no ordenamento jurídico comunitário.

56.      Em segundo lugar, os acordos ratificados conjuntamente pela Comunidade e pelos Estados‑Membros revelam o desígnio comum que prosseguem e que os obriga face aos países terceiros partes nesses acordos; o princípio da cooperação leal do artigo 10.º CE obriga os Estados‑Membros a cooperar não apenas nas fases de negociação e assinatura de tais acordos mas também na sua execução (45), o que deve ser lido em consonância com o dever de alcançar o efeito útil do direito comunitário não apenas no âmbito legislativo mas também nos domínios executivo e judicial (46).

57.      Em terceiro lugar, a melhor forma de assumir os compromissos internacionais com terceiros e de obter a necessária harmonia de interpretação dos tratados mistos é assegurar a sua interpretação uniforme, ideia que se consolida com a possível interconexão das normas do acordo, como afirmava o advogado‑geral G. Tesauro (47); nesta linha, o único órgão capaz de desempenhar tal missão seria este Tribunal de Justiça, sempre com a inestimável ajuda dos juízes nacionais através do mecanismo do reenvio prejudicial do artigo 234.º CE. Além disso, esta sensibilidade pela harmonia na interpretação do direito comunitário está patente no parecer 1/91, relativo ao Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, que reforçou a tese de não dispersar a competência interpretativa dos textos comunitários enquanto garantia da sua coerência (48).

58.      Em quarto lugar, o facto de o Tribunal de Justiça se considerar competente para apreciar os acordos mistos, em especial o TRIPs, não implicaria transferir para a Comunidade as competências legislativas nacionais, mesmo aquelas que acabam por incumbir aos Estados‑Membros por inércia das instituições comunitárias. Pelo contrário, ao efectuar uma interpretação uniforme obrigatória para todos, mesmo nos campos em que ainda não tivesse havido intervenção da Comunidade, os Estados‑Membros poderiam cumprir mais facilmente o postulado do artigo 10.º CE, fazendo uso dessas prerrogativas.

59.      Em quinto e último lugar, é surpreendente a situação gerada pela jurisprudência actual sobre os tratados mistos, pois negar ao Tribunal de Justiça a competência para apreciar um acordo dessa índole, ratificado pela Comunidade, enquanto não se legisle sobre determinadas matérias é tão ilógico como proibir um órgão jurisdicional nacional de interpretar uma lei‑quadro até que as autoridades em que se delegou a função normativa lhe dêem execução.

60.      Por conseguinte, o Tribunal de Justiça deveria ter consciência das deficiências da sua jurisprudência e tentar decidir a eterna questão da sua competência para analisar os acordos mistos, atrevendo‑se a mudar o rumo e a assumir a sua responsabilidade, tanto para reorientar a sua doutrina e conformá‑la com os princípios básicos do direito internacional, como para conferir‑lhe a segurança jurídica que reclamam os operadores institucionais no plano intracomunitário. Já deu um passo nessa direcção com o acórdão Dior, incorporando no seu raciocínio a referência ao artigo 10.º CE, mas errou ao não conceder‑lhe o alcance que proponho.

61.      Vistas as considerações expostas, sugiro ao Tribunal de Justiça que se declare competente para interpretar o acordo TRIPs e, em consequência, o seu artigo 33.º

C –    Quanto ao efeito directo do artigo 33.º do acordo TRIPs

62.      Se, na partitura dos problemas jurídicos relativos às relações externas da Comunidade, a interpretação dos acordos mistos se converteu no refrão, o efeito directo constitui a parte vocal indissoluvelmente ligada, nunca se apresentando um sem a outra. A comparação não é gratuita, pois, como a seguir se comprovará, os argumentos da jurisprudência comunitária revelam grandes concomitâncias metodológicas.

63.      A formulação da questão do Supremo Tribunal de Justiça dá lugar a equívocos e parece aludir tanto ao efeito directo como à invocabilidade das normas dos acordos OMC pelas partes nos litígios pendentes nos tribunais nacionais, mas a leitura do despacho de reenvio e as observações efectuadas neste processo prejudicial põem a tónica na aplicabilidade directa imediata do artigo 33.º do acordo TRIPs.

64.      Há, pois, que começar pelos pressupostos da doutrina do Tribunal de Justiça para obter a resposta pertinente, adaptando‑a em função de certas considerações.

1.      Resposta segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça

a)      De Hermès a Van Parys

65.      O acórdão Demirel considerou directamente aplicável uma disposição de um acordo celebrado pela Comunidade com países terceiros sempre que, atendendo aos seus termos, ao seu objecto e à sua natureza, consagre uma obrigação clara e precisa cuja execução não esteja dependente da adopção de qualquer acto posterior (49).

66.      Pese embora o acórdão Hermès não se ter manifestado sobre este aspecto, o advogado‑geral G. Tesauro mostra‑se inclinado para aceitar o efeito directo dos acordos OMC, baseando‑se no facto de que as objecções do Tribunal de Justiça sobre o GATT tinham sido superadas pelo acordo que lhe sucedeu (50). Sublinha, todavia, que o acordo TRIPs é invocável pelos particulares «no que respeita às normas que o permitam», o que recorda a citação do acórdão Demirel reproduzida no número anterior, dado que «o que importa é a susceptibilidade [de a] disposição em questão [...] ser aplicada, o que se verifica sempre que não necessit[e] de qualquer acto ulterior para poder produzir os seus efeitos» (51).

67.      O Tribunal de Justiça expressou a sua opinião no processo Portugal/Conselho (52), cujo contexto factual era alheio ao acordo TRIPs, uma vez que se impugnava a validade de dois tratados, um com a Índia e outro com o Paquistão, em matéria de acesso de produtos têxteis ao mercado, alegando a ilegalidade da decisão de assinatura desses tratados (53) por violarem normas e princípios fundamentais da OMC.

68.      O acórdão esteve na origem de uma doutrina abundante, na sua maioria muito crítica (54); para não tornar estas conclusões demasiado extensas, procederei à sua exposição sumária. Assim, apesar de reconhecer que os acordos OMC comportam divergências notáveis com o GATT de 1947, sobretudo quanto ao reforço do regime de salvaguarda e ao mecanismo de resolução dos litígios (55), o Tribunal de Justiça enfatizou o papel negociador dos Estados, para concluir que aceitar o efeito directo desse Tratado implicaria privar os órgãos legislativos ou executivos das partes contratantes da possibilidade de alcançar, mesmo com carácter temporário, soluções concertadas, possibilidade que lhes é conferida pelo artigo 22.º do memorando de entendimento (56).

69.      O Tribunal de Justiça acrescentou que a finalidade dos acordos OMC não faculta os meios jurídicos para garantir a sua execução de boa fé na ordem jurídica interna das partes contratantes (57), pelo que as normas desses acordos não servem para fiscalizar a legalidade dos actos das instituições comunitárias (58).

70.      No entanto, referiu dois casos em que tinha atribuído efeito directo às normas do GATT, concretamente, quando a Comunidade se proponha cumprir uma obrigação assumida no âmbito da OMC (processo Fediol) (59) ou quando o acto comunitário remeta expressamente para os acordos OMC (processo Nakajima) (60), casos em que compete ao Tribunal de Justiça apreciar a validade do acto europeu à luz das normas da OMC, que constituem as duas únicas excepções à regra geral, como decorre do acórdão Van Parys (61).

71.      Neste último acórdão, a negação do efeito directo às normas da OMC adquire carácter absoluto, dado que o Tribunal de Justiça impediu que se invocasse num órgão jurisdicional de um Estado‑Membro a incompatibilidade de uma norma comunitária com os acordos OMC, mesmo tendo‑se o Órgão de Resolução de Litígios (62) manifestado a favor de tal incompatibilidade (63). Poderia considerar‑se existir uma violação do princípio pacta sunt servanda, acolhido no artigo 26.º da Convenção de Viena (64), por terem sido ignoradas as decisões de um órgão cuja competência tinha sido aceite pela Comunidade ao assinar os acordos OMC; mas, além disso, o acórdão Van Parys surpreende, porque este Tribunal de Justiça sempre procurou que os seus acórdãos sejam respeitados a todos os níveis nacionais, administrativo, legislativo ou judicial.

b)      Efeitos do acórdão Dior

72.      Diversamente do acórdão Hermès, o acórdão Dior não eludiu as questões dos órgãos jurisdicionais neerlandeses sobre a força jurídica imediata do acordo TRIPs. Todavia, não lhes respondeu no sentido defendido pelo advogado‑geral G. Tesauro no processo Hermès, antes tendo persistido na repartição de competências entre os Estados‑Membros e a Comunidade.

73.      Com base no n.° 14 do referido acórdão Demirel e após recordar que os particulares não podem invocar nos tribunais nacionais as normas OMC (acórdão Portugal/Conselho), distinguiu as matérias reguladas pelo direito europeu daquelas em que a Comunidade ainda não exerceu as suas competências (65). Relativamente às primeiras, reiterou a obrigação de interpretar o acordo TRIPs à luz da sua letra e da sua finalidade (66); quanto às segundas, considerou que, ao não se regerem pelo direito da União, «não [se] obriga nem [se] proíbe que a ordem jurídica de um Estado‑Membro reconheça aos particulares o direito de se [basearem] directamente [no acordo TRIPs]».

74.      Em suma, nos termos dessa jurisprudência, readquire sentido a competência, comunitária ou nacional, para aplicar o preceito concreto e para determinar a quem compete apreciar a invocabilidade. Transpondo esta ideia para o presente processo, é oportuno salientar que, se o artigo 33.º do acordo TRIPs se incluísse nas matérias comunitárias, a competência para essa apreciação seria do Tribunal de Justiça e, se se situasse na órbita das atribuições nacionais, seria dos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros (67).

75.      Como aconteceu com a primeira questão, esta actuação do Tribunal de Justiça, que se concentra nas competências respectivas da Comunidade e dos países que a integram, também não me convence, pois obriga de novo a indagar se a União se dotou de competências suficientes; surgem assim de novo os problemas de falta de previsibilidade para os operadores institucionais e do protagonismo excessivo do Tribunal de Justiça, decidindo o contencioso através da repartição de competências. Mas, sobretudo, põe‑se em perigo a unidade e a coerência da interpretação do direito comunitário, incluindo os tratados internacionais em que participam os Estados‑Membros com a Comunidade, o que parece exigir outra metodologia.

2.      Proposta alternativa

76.      O fio condutor da minha tese é mais simples, parte da necessidade de respeitar os compromissos internacionais da União segundo o princípio da boa fé, que deve sempre presidir à actuação dos Estados, mas também à das organizações que operam na ordem mundial, bem como à interpretação dos acordos que subscrevem (68), em conformidade com os artigos 26.º e 31.º da já referida Convenção de Viena.

77.      Creio não errar ao enquadrar o acórdão Demirel nesta mesma filosofia, quando, no referido n.° 14, fez depender a aplicabilidade directa dos acordos celebrados pela Comunidade, por um lado, dos seus termos, objecto e natureza e, por outro, do facto de estabelecer uma obrigação clara, precisa e incondicional. Estes dois critérios sucessivos devem ser o guia para a apreciação do efeito directo, mais do que a doutrina jurisprudencial exposta.

78.      Todavia, enquanto persistirem as orientações do acórdão Portugal/Conselho, confirmadas no acórdão Van Parys, não se vislumbra nenhuma possibilidade de abandonar o sistema dualista em que, com duvidosa base jurídica, o Tribunal de Justiça transformou a recepção na Comunidade do ius gentium, e dos acordos OMC, para esquivar‑se aos seus deveres (69). Em consequência, uma norma desse tipo nunca produziria directamente efeitos na União Europeia, salvo nos casos contemplados nos já referidos acórdãos Fediol e Nakajima.

79.      Como os argumentos do Tribunal de Justiça andam mais à volta da esfera política do que da jurídica (70), é desnecessário aprofundar o debate e esperar que as críticas doutrinais vençam a resistência em aceitar a posição do advogado‑geral A. Saggio, para quem uma norma convencional pode, em princípio, devido ao seu conteúdo claro, preciso e incondicional, constituir um parâmetro de legalidade dos actos comunitários e os particulares apenas estão autorizados a invocá‑la nos órgãos jurisdicionais nacionais quando essa possibilidade resulte do contexto do acordo no seu conjunto (71).

80.      Apenas me resta esboçar mais dois pensamentos nesta controvérsia, aparentemente resolvida por jurisprudência consolidada.

81.      Em primeiro lugar, se o verdadeiro motivo pelo qual o Tribunal de Justiça nega efeito directo aos acordos OMC radica na sua intenção de não interferir nas prerrogativas das instituições políticas comunitárias para actuarem dentro da margem de negociação que lhes confere o memorando de resolução dos litígios (72), tal motivo só seria válido nos casos em que houvesse verdadeiramente possibilidade de transacção.

82.      Embora o memorando de entendimento inclua o acordo TRIPs nas matérias a que se aplica, a natureza da regulamentação que pretende harmonizar, os direitos de propriedade intelectual e industrial, coaduna‑se mal com o mecanismo de resolução de litígios pois, por definição, esses direitos respeitam aos indivíduos e não aos Estados (73).

83.      A essência deste anexo do acordo OMC distingue‑se claramente do acordo geral sobre o qual o Tribunal de Justiça teceu as suas considerações no acórdão Portugal/Conselho; é difícil pôr em pé de igualdade, sem incongruências, padrões mínimos de protecção, como a duração das patentes, com as normas que, por exemplo, exigem a redução ou a supressão dos direitos alfandegários para facilitar o acesso dos produtos ao mercado. Duvido que esses tipos diferentes de regras ofereçam a mesma elasticidade para se chegar a um compromisso. Por conseguinte, deveria prestar‑se mais atenção ao preceito que se interpreta, no momento de apurar se é possível evitar a sua aplicação através de negociação.

84.      Em segundo lugar, a importância que o critério adoptado pelo Tribunal de Justiça atribui ao sistema de resolução de litígios da OMC é excessiva, dado que sobrepõe a possibilidade de declinar as responsabilidades assumidas por força do acordo OMC ao seu valor vinculativo enquanto tratado internacional multilateral.

85.      É certo que esse acordo não prevê uma solução como a da acção por incumprimento do artigo 226.º CE e muito menos as medidas coercivas do artigo 228.º CE, mas esta carência não permite que se invertam os termos do pacto transnacional, atribuindo ao método de resolução de litígios a classificação de subterfúgio jurídico e alternativo ao imperativo do respeito de boa fé do direito internacional. Não se lhe pode atribuir tal preponderância, desvirtuando o que deve ser uma excepção. Além disso, a saída negociada tem sempre carácter provisório (74), e deve ter em vista o respeito do acordo (75), o que milita a favor da tese daqueles que sublinham a singularidade do mecanismo de resolução dos litígios.

86.      Do mesmo modo, embora o artigo IX do acordo OMC atribua competência exclusiva à Conferência Ministerial e ao Conselho Geral para interpretar o acordo e os acordos comerciais multilaterais, é necessária, para esse efeito, uma maioria de três quartos dos membros. Dado o elevado número de partes na OMC, é complicado obter essa maioria, pelo que não subscrevo da opinião de que essa faculdade do artigo IX mitiga o carácter jurisdicional do mecanismo de resolução de litígios (76), dado que até à data nunca foi utilizado (77).

87.      As reflexões anteriores permitem superar o primeiro obstáculo, relativo à essência e ao contexto do acordo que se pretende analisar. Portanto, falta apenas a interpretação do artigo 33.º do acordo TRIPs para exprimir uma opinião acerca da sua força executiva imediata.

88.      Admitindo, contudo, que a proposta formulada à luz da jurisprudência indicada no subtítulo do título C da parte V destas conclusões não tem interesse para o órgão jurisdicional de reenvio, que procura na realidade modelos de interpretação que o ajudem a identificar o efeito directo da disposição controvertida, é necessário estudá‑la sob um terceiro aspecto que, partindo de uma análise metodológica, se considere comum aos outros dois. A lógica a isso obriga, já que ambos os caminhos convergem para a conclusão de que a aplicabilidade imediata da norma implica a sua análise atenta.

3.      Análise do artigo 33.º do acordo TRIPs

89.      Muitas das observações apresentadas neste processo prejudicial salientaram a clareza da disposição em causa, baseando‑se numa leitura demasiado superficial do seu texto.

90.      Não compartilho dessa posição. O artigo 33.º do acordo TRIPs contém duas premissas: uma, a duração mínima da protecção das patentes, que fixa em 20 anos; outra, a duração máxima, que deixa ao livre arbítrio do legislador nacional.

91.      A redacção não é clara e provocou uma interpretação errada. O sentido correcto da norma é o de uma obrigação para os Estados signatários: devem adaptar as suas legislações sobre patentes à primeira premissa, prevendo uma protecção desses direitos de propriedade industrial que seja de, pelo menos, vinte anos a partir do pedido. Em contrapartida, a segunda premissa da disposição concede aos Estados uma margem de discricionariedade para fixar a duração máxima.

92.      Há que salientar o efeito directo «assimétrico» da primeira premissa, para casos como o presente, quando a infracção provém do facto de ter sido mantida a protecção dos direitos incorpóreos dessa natureza abaixo do limite temporal descrito, uma vez esgotado o período transitório autorizado pelo próprio acordo TRIPs. Parece indiscutível que a obrigação dos Estados reúne os requisitos para a sua aplicação imediata. Assim, as pessoas que tenham sido afectadas pela inactividade reguladora têm legitimidade para invocar a norma em causa contra o Estado que cometeu a infracção. Esta sanção encontra assim suporte na jurisprudência deste Tribunal de Justiça relativa ao efeito directo vertical das directivas.

93.      O reconhecimento de um efeito directo horizontal suscita dúvidas maiores devido à inexistência de um limite máximo. O termo do prazo de tutela desses direitos de propriedade especiais não diz respeito apenas ao seu titular mas, em especial, aos terceiros e ao domínio público que, nesta matéria, representa o interesse geral. Os concorrentes, mas também a adequada gestão do registo desses direitos, têm de saber quando termina a protecção da patente na ordem jurídica nacional.

94.      Se o poder legislativo não exercer essa faculdade, é impossível determinar, a partir do simples teor do artigo 33.º, o momento exacto em que cessa a vigência do monopólio legalmente concedido. Em especial, decidir que basta adoptar a opção mínima dos 20 anos equivaleria a arrogar‑se uma prerrogativa do legislador e essa opção não poderia ser oponível a terceiros.

95.      Em consequência, uma vez que depende do poder legislativo nacional para determinar a duração exacta da protecção concedida às patentes nos termos do seu ordenamento jurídico, o artigo 33.º do acordo TRIPs não tem efeito directo.

96.      Por último, há que acrescentar que o artigo 70.º do acordo TRIPs, relativo à «Protecção dos objectos existentes», invocado em apoio da força executiva imediata do referido artigo 33.º, visa assegurar aos direitos existentes à data de entrada em vigor do acordo TRIPs a mesma protecção que é concedida aos novos direitos ao abrigo das normas aprovadas pelos Estados contratantes para implementar esse acordo. Trata‑se, portanto, de tornar extensiva às patentes antigas a nova protecção, pelo que não tem relação com o efeito directo das suas normas.

VI – Conclusão

97.      Vistas as considerações expostas, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal declarando que:

«Uma vez que depende de uma actividade regulamentar posterior do legislador nacional no sentido de fixar a duração exacta da protecção concedida às patentes, o artigo 33.º do acordo TRIPs não tem efeito directo e não pode, portanto, ser invocado nos órgãos jurisdicionais nacionais por um particular contra outros particulares.»


1 – Língua original: espanhol.


2 – Dashwood, A., «Why continue to have mixed agreements at all?», in Bourgeois, H.‑J./Dewost, J.‑L./Gaiffe, M.‑A., (coordenadores), La Communauté européenne et les accords mixtes: quelles perspectives?, Collège d'Europe, Bruges, 1997, p. 98.


3 – Acordo sobre os aspectos do direito de propriedade intelectual relacionados com o comércio (TRIPs) – Anexo 1C do acordo que institui a Organização Mundial do Comércio, aprovados, no que respeita à Comunidade, pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986/1994) (JO L 336, p. 1; o acordo TRIPs encontra‑se na p. 213).


4 – Rosas, A., «The European Union and mixed agreements», in Dashwood, A./Hillion, Ch., The General Law of E.C. External Relations, Sweet & Maxwell, Londres, 2000, pp. 216 e segs.


5 – Acórdãos de 17 de Maio de 1994, Corsica Ferries (C‑18/93, Colect., p. I‑1783, n.° 14); de 5 de Outubro de 1995, Centro Servizi Spediporto (C‑96/94, Colect., p. I‑2883, n.° 45); de 18 de Junho de 1998, Corsica Feries France (C‑266/96, Colect., p. I‑3949, n.° 27); e de 9 de Outubro de 1997, Grado e Bashir (C‑291/96, Colect., p.  I‑5531, n.° 2).


6 – Acórdão de 30 de Abril de 1974 (181/73, Colect., p. 251).


7 – Acórdão de 30 de Setembro de 1987 (12/86, Colect., p. 3719, n.° 7).


8 – N.os 4 a 6 do acórdão Haegeman, já referido.


9 – Wegener, B., «Artikel 220», in Callies, Ch./Ruffert, M., Kommentar zu EU‑Vertrag und EG‑Vertrag, Ed. Luchterhand, 2a. ed. Revista e ampliada, Neuwied/Kriftel, 2002, p. 1991, n.° 17.


10 – N.º 9.


11 – Confirmado, entre outros, pelo acórdão de 19 de Março de 2002, Comissão/Irlanda (C‑13/00, Colect., p. I‑2943, n.° 14).


12 – Acordo que cria uma associação entre a Comunidade Económica Europeia e a Turquia, assinado em Ancara em 12 de Setembro de 1963, concluído em nome da Comunidade por decisão do Conselho de 23 de Setembro de 1963 (JO 1964, p. 3687; EE 11 F1 p. 18).


13 – Jurisprudência enunciada no acórdão de 26 de Outubro de 1982, Kupferberg (104/81, Recueil, p. 3641, n.° 13).


14 – Parecer proferido nos termos do artigo 228.º, n.° 6, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 300.º CE) (parecer 1/94, Colect., p. I‑5267).


15 – Acórdão de 31 de Março de 1971, Comissão/Conselho (22/70, Colect., p. 69).


16 – N.º 103 do parecer 1/94.


17 – Acórdão de 16 de Junho de 1998 (C‑53/96, Colect., p. I‑3603).


18 – Regulamento (CE) n.º 40/94 do Conselho, de 20 de Dezembro de 1993, sobre a marca comunitária (JO 1994, L 11, p. 1).


19 – Acórdão Hermès, já referido, n.° 25.


20 – Acórdão Hermès, n.os 26 a 29.


21 – Assim se manifestou o advogado‑geral F. G. Jacobs nas conclusões que apresentou no processo em que foi proferido o acórdão de 13 de Setembro de 2001, Schieving‑Nijstad e o. (C‑89/99, Colect., p. I‑5851, n.° 40). V., também, Heliskoski, J., «The jurisdiction of the European Court of Justice to give preliminary rulings on the interpretation of mixed agreements», in Nordic Journal of International Law, vol. 69, n.º 4/2000, pp. 402 e segs.; e também Cebada Romero, A., La Organización Mundial del Comercio y la Unión Europea, Ed. La Ley, Madrid, 2002, p. 358.


22 – Acórdão de 14 de Dezembro de 2000 (C‑300/98 e C‑392/99, Colect., p. I‑11307).


23 – N.º 37 do acórdão Dior e o., já referido na nota 22.


24 – Conclusões lidas em 13 de Novembro de 1997 (Colect. 1998, p. I‑3606).


25 – Eeckhout, P., External relations of the European Union – Legal and constitutional foundations, Oxford University Press, Oxford, 2004, p. 242.


26 – Acórdão de 19 de Março de 2002 (C‑13/00, Colect., p. I‑2943), concretamente n.os 15 a 20.


27 – Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas (Acto de Paris de 24 de Julho de 1971).


28 – Acórdão de 7 de Outubro de 2004, Comissão/França (C‑239/03, Colect., p. I‑9325).


29 – Acórdão de 30 de Maio de 2006, Comissão/Irlanda (C‑459/03, Colect., p. I‑4635).


30 – Acórdão Lagoa de Berre, já referido, n.os 29 e 30. Este acórdão dizia respeito a descargas de água doce e limos no meio marítimo, relativamente às quais não se tinham adoptado disposições comunitárias, embora sejam objecto de abundante regulamentação comunitária ambiental harmonizada.


31 – N.° 95 desse acórdão.


32 – Regulamento do Conselho, de 18 de Junho de 1992 (JO L 182, p. 1).


33 – Regulamento do Conselho, de 27 de Julho de 1994 (JO L 227, p. 1).


34 – Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Julho de 1996 (JO L 198, p. 30).


35 – Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Julho de 1998 (JO L 213, p. 13).


36 – COM (2004) 737 final e SEC (2004) 1348.


37 – COM (2000) 412 final (JO C 337 E, p. 278).


38 – COM (2003) 827 final.


39 – COM (2003) 828 final.


40 – Primeira Directiva do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1).


41 – Ponto 2.3 da proposta de regulamento relativo à patente comunitária, já referida.


42 – O projecto de regulamento relativo à patente comunitária foi apresentado com base no artigo 308.º CE, que obriga à unanimidade no Conselho. Na audiência, a Comissão, questionada sobre as causas do fracasso do projecto no Conselho, referiu o regime linguístico como o principal travão à sua aprovação.


43 – Eeckhout, P., op. cit., p. 237.


44 – Em vigor desde 27 de Janeiro de 1980 [U. N. Doc A/CONF.39/27 (1969), 1155 U.N.T.S. 331]. Pescatore, P., «Opinión 1/94 on “conclusion” of the WTO Agreement: is there an escape from a programmed disaster?», in Common Market Law Review, vol. 36, 1999, p. 400.


45 – Parecer 1/94, já referido, n.° 108.


46 – Kahl, W., «Artikel 10», in Callies, Ch./Ruffert, M., op. cit., pp. 451 e segs.


47 – N.os 20 e 21 das suas conclusões no processo Hermès, já referidas.


48 – Parecer emitido nos termos do artigo 228.º, n.° 1, segundo parágrafo, do Tratado CEE, em 14 de Dezembro de 1991 (parecer 1/91, Colect., p. I‑6079, n.os 43 a 45).


49 – Acórdão Demirel, já referido na nota 7, n.° 14.


50 – Conclusões apresentadas no processo em que foi proferido o acórdão Hermès, n.° 30, segundo parágrafo.


51 – Ibidem, n.° 37, o sublinhado é meu.


52 – Acórdão de 23 de Novembro de 1999 (C‑149/96, Colect., p. I‑8395, n.os 42 a 47).


53 – Decisão 96/386/CE do Conselho, de 26 de Fevereiro de 1996, relativa à celebração de memorandos de acordo entre a Comunidade Europeia e a República Islâmica do Paquistão e entre a Comunidade Europeia e a República da Índia sobre acordos em matéria de acesso de produtos têxteis ao mercado (JO L 153, p. 47).


54 – Perfeitamente resumida em Cebada Romero, A., op. cit., pp. 467 e segs.


55 – Memorando de entendimento sobre as regras e processos que regem a resolução dos litígios (anexo 2 dos acordos OMC).


56 – Acórdão Portugal/Conselho, já referido, n.os 36 a 40.


57 – N.º 41 do acórdão referido na nota anterior.


58 – N.º 47 do acórdão Portugal/Conselho.


59 – Acórdão de 22 de Junho de 1989, Fediol/Comissão (70/87, Colect., p. 1781, n.os 19 a 22).


60 – Acórdão de 7 de Maio de 1991, Nakajima/Conselho (C‑69/89, Colect., p. I‑2069, n.° 31).


61 – Acórdão de 1 de Março de 2005 (C‑377/02, Colect., p. I‑1465, n.os 39 e 40).


62 – Previsto no artigo 2.º, n.° 1, do referido memorando de entendimento.


63 – Acórdão Van Parys, já referido na nota 61, n.° 54.


64 – Laget‑Annamayer, A., «Le Statut des accords OMC dans l'ordre juridique communautaire: en attendant la consécration de l'invocabilité», in Revue trimestrielle de droit européen, 42 (2), Abril/Junho de 2006, pp. 281 e segs.


65 – Acórdão Dior, já referido na nota 22, n.os 47 e 48.


66 – Segundo o acórdão Hermès, já referido na nota 17, n.° 28.


67 – V., também, o acórdão Schieving‑Nijstad e o., já referido na nota 21, n.os 51 a 55.


68 – Dupuy, P. M., Droit international public, Dalloz, 4.ª ed., Paris, 1998, p. 284.


69 – Pescatore, P., «Free World Trade and the European Union», in Pérez van Kappel, A./Heusel, W., (coordenadores) Free World Trade and the European Union – The reconciliation of Interest and the Review of the Understanding on Dispute Settlement in the Framework of the World Trade Organisation, Academy of European Law, vol. 28, Tréveris, 2000, p. 12.


70 – Laget‑Annamayer, A., op. cit., p. 287; igualmente Cebada Romero, A., op. cit., p. 490.


71 – Conclusões apresentadas no processo em que foi proferido o acórdão Portugal/Conselho, já referido na nota 52, n.° 18.


72 – Eeckhout, P., op. cit., p. 306.


73 – Quarto considerando do preâmbulo do acordo TRIPs.


74 – Artigo 22.º n.° 1, do memorando de entendimento.


75 – Assim se deduz do artigo 3.º, n.° 7, do memorando de entendimento segundo o qual «[…] É preferível uma solução mutuamente aceitável para as partes e conforme aos acordos abrangido. […]»; o sublinhado é meu.


76 – Timmermans, C. W. A., «L’Uruguay Round: sa mise en oeuvre par la Communauté européenne», in Revue du Marché Unique Européen, n.º 4/1994, p. 178.


77 – Segundo informações prestadas oralmente pelos serviços jurídicos da OMC.