CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ANTONIO TIZZANO

apresentadas em 27 de Abril de 2006 1(1)

Processo C‑168/05

Elisa María Mostaza Claro

contra

Centro Móvil Milenium SL

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Audiencia Provincial de Madrid (Espanha)]

«Directiva 93/13/CEE – Contratos celebrados com os consumidores – Cláusula compromissória – Natureza abusiva – Ilicitude – Não contestação no processo arbitral – Apreciação no recurso da decisão arbitral»





1.     Por despacho de 15 de Fevereiro de 2005, a Audiencia Provincial de Madrid (a seguir «Audiencia Provincial») submeteu ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, uma questão prejudicial relativa à interpretação da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (a seguir «Directiva 93/13» ou simplesmente «directiva») (2).

2.     Em particular, a Audiencia Provincial pretende saber se o sistema de protecção dos consumidores previsto pela directiva implica que os órgãos jurisdicionais nacionais que decidem um recurso de anulação de uma decisão arbitral podem suscitar, oficiosamente, a ilicitude de uma cláusula compromissória considerada abusiva, também quando a correspondente excepção não foi suscitada durante o processo arbitral e o consumidor a suscita, pela primeira vez, na petição do recurso.

I –    Quadro jurídico

A –    Direito comunitário

A Directiva 93/13

3.     Com o objectivo de «facilitar o estabelecimento do mercado interno» e de garantir, no âmbito do mesmo, «uma protecção mais eficaz dos consumidores» (sexto, oitavo e décimo considerandos), em 5 de Abril de 1993 o Conselho aprovou a Directiva 93/13.

4.     Nos termos do artigo 3.°, n.° 1:

«Uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.»

5.     O artigo 4.°, n.° 1, dispõe que:

«Sem prejuízo do artigo 7.°, o carácter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objecto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.»

6.     O artigo 6.°, n.° 1, estabelece que:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respectivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor [...].»

7.     Além disso, o artigo 7.° prevê que:

«1.      Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.

2.      Os meios a que se refere o n.° 1 incluirão disposições que habilitem as pessoas ou organizações que, segundo a legislação nacional, têm um interesse legítimo na defesa do consumidor, a recorrer, segundo o direito nacional, aos tribunais ou aos órgãos administrativos competentes para decidir se determinadas cláusulas contratuais, redigidas com vista a uma utilização generalizada, têm ou não um carácter abusivo, e para aplicar os meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização dessas cláusulas.»

8.     Por fim, recordo que a directiva inclui um anexo que contém um elenco indicativo de cláusulas que podem ser declaradas abusivas. Entre estas, a alínea q) do referido anexo enumera as cláusulas que têm como objectivo ou efeito:

«Suprimir ou entravar a possibilidade de intentar acções judiciais ou seguir outras vias de recurso, por parte do consumidor, nomeadamente obrigando‑o a submeter‑se exclusivamente a uma jurisdição de arbitragem não abrangida por disposições legais, limitando indevidamente os meios de prova à sua disposição ou impondo‑lhe um ónus da prova que, nos termos do direito aplicável, caberia normalmente a outra parte contratante.»

B –    Direito nacional

A legislação espanhola sobre cláusulas abusivas

9.     No ordenamento espanhol a Directiva 93/13 foi transposta pela Lei n.° 7, de 13 de Abril de 1998 (a seguir «Lei n.° 7/1998») (3).

10.   O artigo 8.°, n.° 2, prevê que:

«[...] são nulas as condições gerais abusivas nos contratos celebrados com um consumidor, entendendo‑se como tal, de qualquer forma, as definidas no artigo 10.°‑A e primeira disposição adicional da Lei n.° 26/1984, de 19 de Julho de 1984» (a seguir «Lei n.° 26/1984») (4).

11.   Os artigos 10.° e 10.°‑A da Lei n.° 26/1984 definem o conceito de cláusula abusiva. Por outro lado, o n.° 26 da primeira disposição adicional dessa lei estabelece que é considerado abusivo «a sujeição a arbitragens que não de consumo, excepto se se tratar de órgãos de arbitragem criados por normas legais para um sector ou situação específica».

A legislação espanhola em matéria de arbitragem

12.   Aquando dos factos em causa no processo, os processos arbitrais eram disciplinados pela Lei n.° 36 de 5 de Dezembro de 1988 (a seguir «Lei n.° 36/1988») (5).

13.   Para o que aqui interessa, recordo, em especial, o artigo 23.° dessa lei, que dispõe o seguinte:

«1. A oposição à arbitragem por incompetência objectiva dos árbitros, inexistência, nulidade ou caducidade da convenção arbitral deve ser formulada no momento da apresentação das alegações iniciais das respectivas partes.

[...]»

14.   Por outro lado, importa referir o artigo 45.°, o qual prevê que:

«A decisão só pode ser revogada nos seguintes casos:

1. Quando a convenção arbitral for nula.

2. Quando na nomeação dos árbitros e no desempenho da actividade arbitral não tenham sido observadas as formalidades e princípios essenciais estabelecidos na lei.

3. Quando a decisão tiver sido proferida fora de prazo.

4. Quando os árbitros tenham decidido pontos não sujeitos à sua apreciação ou que, estando‑o, não podem ser objecto de arbitragem. Nestes casos a anulação só afectará os pontos não sujeitos a apreciação ou não susceptíveis de arbitragem, desde que sejam independentes e não estejam indissoluvelmente unidos à questão principal.

5. Quando a decisão for contrária à ordem pública.»

II – Factos e tramitação processual

15.   O litígio em apreço opõe Mostaza Claro à sociedade Centro Móvil Milenium SL (a seguir «Centro Móvil»).

16.   Em 2 de Maio de 2002, Mostaza Claro celebrou com o Centro Móvil um contrato de telefonia móvel (a seguir «contrato») que previa uma duração mínima da assinatura. O contrato incluía uma cláusula compromissória que remetia os eventuais litígios emergentes do mesmo para a decisão de um árbitro designado pela Asociación Europea de Arbitraje de Derecho y Equidad (a seguir «AEDE»).

17.   Considerando que o prazo mínimo de assinatura foi violado, o Centro Móvil deu início ao processo arbitral na AEDE, que concedeu a Mostaza Claro um prazo de 10 dias para comunicar se recusava a arbitragem e para apresentar ao árbitro as suas alegações e os meios de prova em abono da sua posição. Dentro do prazo fixado, Mostaza Claro expôs alguns argumentos em sua defesa, mas não arguiu a nulidade da cláusula compromissória.

18.   Em 22 de Setembro de 2003, o árbitro proferiu uma decisão arbitral que, considerando a defesa apresentada improcedente, reconhecia ao Centro Móvil o direito ao ressarcimento dos prejuízos sofridos e ao reembolso das despesas suportadas com o processo.

19.   Mostaza Claro interpôs recurso dessa decisão na Audiencia Provincial. Perante este tribunal, a recorrente alegou, pela primeira vez, a natureza abusiva da cláusula compromissória e pediu que a decisão arbitral fosse anulada. O Centro Móvil opôs‑se a esta pretensão alegando que, nos termos do artigo 23.° da Lei n.° 36/1988, a nulidade da referida cláusula deveria ter sido arguida no processo arbitral, já não podendo, por conseguinte, ser suscitada no recurso da decisão arbitral.

20.   A Audiencia Provincial, nos termos da Lei n.° 26/1984 (artigos 10.° e 10.°‑A e primeira disposição adicional) e da Lei n.° 7/1998 (artigo 8.°), declarou que a cláusula compromissória inserida no contrato era abusiva. Contudo, não tendo sido especificamente contestada pelo consumidor no processo arbitral, teve dúvidas quanto à possibilidade de conhecer, oficiosamente, da nulidade.

21.   Por estes motivos, o referido órgão jurisdicional colocou ao Tribunal de Justiça a seguinte questão:

«A protecção dos consumidores assegurada pela Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, pode implicar que, em sede de recurso de decisão arbitral, o tribunal aprecie a nulidade da convenção arbitral e revogue a decisão por considerar que essa convenção contém uma cláusula abusiva em prejuízo do consumidor, quando esta questão é suscitada pelo consumidor no recurso, não o tendo sido no processo arbitral?»

22.   No processo que assim se iniciou, apresentaram observações escritas o Centro Móvil, os Governos espanhol, alemão, húngaro e finlandês, bem como a Comissão.

III – Análise jurídica

Introdução: quanto à natureza abusiva da cláusula compromissória objecto do litígio principal

23.   Antes de se pronunciarem quanto à questão colocada, as partes que apresentaram observações escritas discutiram, prolongadamente, uma questão prévia: concretamente, se a cláusula em discussão na acção principal é realmente uma cláusula abusiva, isto é, «uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual» e quando, «a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato» (v. artigo 3.°, n.° 1, da directiva).

24.   O Centro Móvil considera que, no caso em apreço, se pode excluir a existência de uma cláusula proibida pela Directiva 93/13 na medida em que, tendo celebrado o contrato de assinatura telefónica no âmbito da sua actividade profissional, Mostaza Claro não pode ser considerada um «consumidor». Por outro lado, a cláusula em causa teria sido objecto de negociação individual com a recorrente, não se incluindo, portanto, entre as referidas no artigo 3.°

25.   O Governo húngaro, pelo contrário, sustenta que do despacho de reenvio não resulta, de forma clara, se a cláusula em questão preenche os requisitos fixados pela Directiva 93/13. De qualquer modo, continua aquele governo, a directiva não impõe aos Estados‑Membros a obrigação de considerar abusivas todas as cláusulas inseridas nos contratos com os consumidores que prevêem meios alternativos de resolução dos litígios reconhecidos pela lei.

26.   Posição diferente assumem, ainda, o Governo finlandês e a Comissão. De facto, no entender destes, a cláusula objecto do litígio principal preenche, sem dúvida, os requisitos fixados pelo artigo 3.° Em particular, no entender do Governo finlandês, essa cláusula conduz a um significativo desequilíbrio contratual em prejuízo do consumidor, que, em regra, não dispõe das competências jurídicas necessárias para avaliar as implicações resultantes da inserção num contrato de uma cláusula compromissória. Por outro lado, acrescentam o Governo finlandês e a Comissão, essa cláusula inclui‑se entre as elencadas, a título indicativo, no anexo da directiva, em particular, na alínea q) desse anexo, que se refere às cláusulas que têm «como objectivo ou efeito suprimir ou entravar a possibilidade de intentar acções judiciais ou seguir outras vias de recurso, por parte do consumidor».

27.   Pela minha parte, sou levado, quanto ao mérito da questão, a partilhar mais da posição da Comissão e do Governo finlandês. Mas, independentemente disso, parece‑me que importa, preliminarmente, colocar uma outra questão.

28.   Como se sabe, no âmbito do exercício da competência de interpretação do direito comunitário que lhe é atribuída pelo artigo 234.° CE, o Tribunal de Justiça pode, sem dúvida, «interpretar os critérios gerais utilizados pelo legislador comunitário para definir o conceito de cláusula abusiva». Ao invés, não se pode «pronunciar sobre a aplicação desses critérios gerais a uma cláusula particular», na medida em que tal aplicação requer, nos termos do artigo 4.° da directiva, o exame de todas as circunstâncias «próprias do caso» que acompanham a celebração do contrato, das quais só os órgãos jurisdicionais nacionais podem ter um conhecimento directo (6).

29.   Na repartição de competências prevista pelo Tratado, compete ao órgão jurisdicional nacional, que é o único a ter conhecimento directo daquelas circunstâncias, «determinar se uma cláusula contratual [...] objecto do litígio no processo principal preenche os critérios exigidos para ser qualificada de abusiva na acepção do artigo 3.°, n.° 1, da directiva» (7).

30.   Nem o processo Océano Grupo Editorial (8), no qual – como recordou a Comissão – o Tribunal de Justiça, pelo contrário, procedeu àquela avaliação, pode conduzir a uma conclusão diferente. Efectivamente, depois, no acórdão Freiburger (9), o Tribunal de Justiça esclareceu que o caso que acabei de referir representa um precedente absolutamente excepcional e, portanto, insusceptível de generalização.

31.   De facto, também de acordo com o Tribunal de Justiça, no processo Océano Grupo Editorial o litígio principal dizia respeito a uma cláusula contendo um pacto de aforamento que permitia ao profissional «atribuir competência, para todos os litígios decorrentes do contrato, ao órgão jurisdicional do foro onde esta[va] situada a sede do profissional». Isto é, tratava‑se de uma cláusula inserida «em benefício exclusivo do profissional e sem contrapartida para o consumidor», ou seja, uma cláusula cujo carácter abusivo era evidente. Apenas por esta razão o Tribunal de Justiça pode declarar a sua natureza abusiva «sem ter de examinar todas as circunstâncias próprias da celebração do contrato» (10).

32.   Porém, na generalidade dos casos, falta esta evidência e, portanto, a aplicação concreta dos critérios fixados pelo artigo 3.°, n.° 1, da directiva deve ser remetida ao órgão jurisdicional nacional.

33.   Ora, no caso em apreço, com efeito, foi feita pelo tribunal de reenvio uma avaliação da natureza abusiva da cláusula compromissória em questão. Efectivamente, no seu despacho, a Audiencia Provincial defendeu que não existe «qualquer dúvida de que a convenção arbitral incluída no [...] contrato promocional de telefonia móvel celebrado entre E. Mostaza e o Centro Móvil Milenium SL é nula, por conter uma cláusula abusiva», nos termos da legislação nacional que transpõe a Directiva 93/13.

34.   Por conseguinte, nesta situação, considero que o Tribunal de Justiça não pode deixar de ter em conta essa avaliação. E isto tanto mais que o tribunal de reenvio não o questionou, de forma alguma, quanto à natureza da cláusula, mas apenas quanto à possibilidade de conhecer, oficiosamente, da sua ilicitude.

35.   Ora, é sabido que, segundo jurisprudência assente, na repartição de competências prevista pelo Tratado, compete ao órgão jurisdicional nacional decidir quais são as questões necessárias para a solução do litígio principal e é sobre essas questões que o Tribunal de Justiça deve, em princípio, pronunciar‑se (11).

36.   Apenas excepcionalmente, e na medida do necessário para dar uma resposta «útil ao órgão jurisdicional nacional», o Tribunal de Justiça pode modificar a questão e/ou examinar questões novas (12). Porém, no presente caso, nenhuma das partes alegou tais circunstâncias, nem das peças processuais resulta a sua verificação.

37.   Parece‑me, portanto, em definitivo, que no presente processo importa ter em conta a avaliação feita pelo órgão jurisdicional nacional, que considerou abusiva a cláusula objecto do litígio principal. É, portanto, à luz destas considerações que passo a examinar a questão suscitada.

Quanto à questão prejudicial

38.   Como vimos, com a única questão colocada, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se o sistema de protecção dos consumidores estabelecido pela directiva implica que os órgãos jurisdicionais nacionais chamados a pronunciar‑se sobre o recurso de uma decisão arbitral podem conhecer da nulidade de uma cláusula compromissória considerada abusiva e, consequentemente, anular a decisão, mesmo que o consumidor não tenha arguido a excepção no decurso do processo arbitral e o faça pela primeira vez na petição inicial do recurso.

39.   A este respeito, parece‑me, juntamente com os Governos espanhol, húngaro e finlandês e com a Comissão, que, considerando a jurisprudência do Tribunal de Justiça, se pode responder afirmativamente à questão.

40.   Com efeito, o Tribunal de Justiça já reconheceu que os órgãos jurisdicionais nacionais têm a faculdade de, oficiosamente, conhecer da ilicitude das cláusulas abusivas inseridas nos contratos de que os profissionais pedem a execução.

41.   Efectivamente, no citado acórdão Océano Grupo Editorial (13), o Tribunal de Justiça relembrou que o artigo 7.°, n.° 2, da directiva introduz a possibilidade de as organizações de consumidores reconhecidas recorrerem às autoridades judiciárias para que verifiquem se cláusulas redigidas para uma utilização generalizada são abusivas e, eventualmente, declarem a sua ilicitude, mesmo que essas cláusulas não tenham sido inseridas num determinado contrato. E isto porque, continua o Tribunal de Justiça, aquela previsão faz parte de um sistema de protecção que «repousa na ideia de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade relativamente ao profissional no que respeita quer ao poder de negociação quer ao nível de informação» e que essa «situação de desequilíbrio entre o consumidor e o profissional só pode ser compensada por uma intervenção positiva, exterior às partes do contrato» (14).

42.   De acordo com o Tribunal de Justiça, num sistema que admite intervenções deste tipo, «dificilmente se pode conceber que [...] o juiz encarregado de um litígio respeitante a determinado contrato, no qual está inserida uma cláusula abusiva, não possa afastar a aplicação desta cláusula pela simples razão de que o consumidor não invocou o carácter abusivo da mesma» (15). Pelo contrário, é coerente com este sistema a admissão de uma intervenção positiva do órgão jurisdicional nacional que consiste na verificação, oficiosa, da ilicitude da cláusula e da sua eventual não aplicação.

43.   Assim, no acórdão Cofidis, o Tribunal de Justiça acrescentou que a faculdade de conhecer da ilicitude de uma cláusula abusiva deve ser reconhecida aos órgãos jurisdicionais mesmo que o consumidor não a tenha alegado dentro do prazo fixado pelo direito nacional (16).

44.   A este respeito, o Tribunal de Justiça sublinhou que a protecção que a Directiva 93/13 pretende garantir aos consumidores é uma «tutela efectiva» e visa acabar com a inserção, por parte dos profissionais, de cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (v. artigo 7.°), bem como impedir que as cláusulas que, eventualmente, sejam incluídas nos referidos contratos possam vincular esses consumidores (v. artigo 6.°) (17).

45.   De acordo com o Tribunal de Justiça, nos processos intentados pelos profissionais, esse objectivo poderia sair prejudicado pelo «risco não despiciendo de [o consumidor] ignorar os seus direitos» ou ser dissuadido «de o fazer devido aos custos de uma acção judicial». Para prevenir esse risco, é, portanto, necessário que a faculdade em questão também abranja, pelo menos nas acções intentadas pelos profissionais, os «casos em que o consumidor [...] se abstenha de invocar o carácter abusivo» da cláusula inserida no contrato dentro do «prazo de caducidade» fixado pela norma nacional (18).

46.   Porém, o Centro Móvil e o Governo alemão alegam que as referidas considerações não podem ser transpostas para o caso em análise. De facto, neste caso, o risco de prejudicar a protecção do consumidor estaria excluído, já que Mostaza Claro podia, ao abrigo da cláusula compromissória, recusar o árbitro e, nos termos do artigo 23.° da Lei n.° 36/1988, arguir a nulidade da referida cláusula na contestação apresentada ao árbitro.

47.   Porém, importa referir que no presente caso, exactamente como no caso Cofidis, existia o risco não despiciendo (e efectivamente verificado) de no procedimento intentado pelo profissional o consumidor não poder exercer concretamente essa faculdade por ignorância ou por receio de ter de suportar, uma vez recusado ou declarado nulo o compromisso arbitral, os custos inerentes a uma acção nos órgãos jurisdicionais ordinários.

48.   Mais ainda, a escolha entre valer‑se da referida faculdade ou renunciar à mesma na esperança de uma mais rápida e menos onerosa resolução do litígio era colocada em prazos tão breves que tornavam excessivamente difícil, se não impossível, o seu exercício. Efectivamente, como resulta do despacho de reenvio, a cláusula compromissória prevista pelo Centro Móvil remeteu a resolução dos litígios resultantes do contrato para um organismo arbitral (o AEDE) que, no cumprimento das suas regras processuais, concedeu a Mostaza Claro um prazo de apenas dez dias para decidir recusar ou não o árbitro e, na negativa, para apresentar as observações e os meios de prova em sua defesa.

49.   Por conseguinte, ao contrário do defendido pelo Centro Móvil e pelo Governo alemão, naquele processo os direitos de defesa do consumidor foram gravemente limitados.

50.   Mas a objecção de fundo que o Centro Móvil e o Governo alemão levantam à aplicação da jurisprudência Océano Grupo Editorial e Cofidis ao caso concreto é outra. Efectivamente, no seu entender, o reconhecimento ao tribunal de recurso da faculdade de conhecer da ilicitude da cláusula compromissória, mesmo não havendo uma tempestiva arguição da excepção, prejudicaria gravemente a exigência de eficácia e certeza dos tribunais arbitrais. Exigência que a lei espanhola, pelo contrário, pretende salvaguardar quando, precisamente, fixa limites processuais às excepções relativas à cláusula compromissória e quando reduz os casos de anulação da decisão arbitral a hipóteses taxativamente elencadas (v. artigos 23.° e 45.° da Lei n.° 36/1988).

51.   Ora, não tenho dúvidas de que a «eficácia do processo arbitral» é uma exigência que justifica uma limitação do «controlo das decisões arbitrais» (19). Como referiram precisamente o Centro Móvil e o Governo alemão, esta exigência traduz‑se, em numerosos ordenamentos processuais e em diversos instrumentos internacionais (20), na identificação de um número definido de casos nos quais «a anulação de uma decisão [...] [pode] ser obtida, ou o seu reconhecimento recusado» (21).

52.   Não me parece, contudo, que no presente caso se corra o risco de subverter aquela exigência. Com efeito, como a maior parte das legislações nacionais e dos instrumentos internacionais da matéria (22), também a legislação espanhola inclui, entre os casos em que é possível anular a decisão arbitral, a contradição da mesma com as normas de direito público (v. artigo 45.°, n.° 5, da Lei n.° 36/1988), e isto independentemente de qualquer contestação da parte.

53.   De resto, o próprio Tribunal de Justiça, no conhecido acórdão Eco Swiss, estabeleceu que «na medida em que um órgão jurisdicional nacional deva, segundo as suas regras processuais internas, deferir um pedido de anulação de uma decisão arbitral baseado na violação das normas nacionais de ordem pública, deve igualmente deferir um tal pedido baseado na violação» de normas comunitárias deste tipo (23).

54.   Era esse o caso, de acordo com o Tribunal de Justiça, do artigo 81.° CE, qualificado como norma de ordem pública, enquanto disposição «fundamental» e «indispensável para o cumprimento das missões confiadas à Comunidade e, em particular, para o funcionamento do mercado interno» (24).

55.   Com base nesse precedente e considerando a importância que no ordenamento comunitário assume a protecção do consumidor, a Comissão considera que as disposições da Directiva 93/13 podem, também elas, ser qualificadas como normas de ordem pública. Efectivamente, em seu entender, estamos perante disposições de harmonização aprovadas com o objectivo de garantir uma protecção mais eficaz do consumidor no mercado interno. Tratam‑se, portanto, de importantes disposições tendo por objectivo o «reforço da protecção dos consumidores», elencado no artigo 3.°, alínea t), CE, entre os fundamentais da Comunidade. Consequentemente, os órgãos jurisdicionais nacionais devem assegurar o respeito por essas decisões nos recursos das decisões arbitrais, mesmo quando – como acontece no vertente caso – não tenha sido alegada a violação dessa protecção nos processos arbitrais.

56.   Em princípio, não pretendo excluir a legitimidade desta abordagem. Receio, contudo, que a mesma se preste à objecção de que dessa forma se corre o risco de dar um âmbito excessivamente alargado a um conceito, o de norma de ordem pública, que tradicionalmente se refere apenas às regras de um ordenamento jurídico consideradas de primária e absoluta importância.

57.   De qualquer modo, não me parece que aquela proposta da Comissão seja a única via possível para admitir que se possa conhecer, oficiosamente, da nulidade da decisão arbitral em sede de recurso. Efectivamente, considero que, de acordo com as orientações gerais da jurisprudência comunitária e com os precedentes referidos supra, no caso em apreço, essa apreciação deve ser admitida, uma vez que se trata de assegurar o respeito de um princípio fundamental do ordenamento, e particularmente, o respeito do direito de defesa.

58.   De facto, como vimos antes (v. n.os 48 e segs.), é precisamente e principalmente esse direito que é gravemente comprometido pela cláusula objecto do presente processo.

59.   Ora, de acordo com a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, o direito de defesa é salvaguardado «em qualquer processo instaurado contra uma pessoa [...] susceptível de culminar num acto que a afecte» (25), e, portanto, também nos processos arbitrais. O respeito do mesmo constitui, de facto, um «princípio fundamental do direito comunitário» que «figura entre os direitos fundamentais que resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros» (26).

60.   Assim, por este motivo, bem se pode dizer que estamos perante um princípio que se inscreve no conceito de ordem pública comunitária, como foi definido pelo próprio Tribunal de Justiça.

61.   De resto, uma confirmação nesse sentido decorre do acórdão Krombach, no qual o Tribunal de Justiça foi chamado a interpretar o artigo 27.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas (27). Essa disposição permitia aos tribunais de um Estado contratante (denominado Estado requerido) recusar o reconhecimento de um acórdão proferido num outro Estado contratante (denominado Estado de origem), quando o mesmo fosse «contrário à ordem pública». Partindo precisamente da consagração assumida no ordenamento comunitário do respeito dos direitos de defesa, o Tribunal de Justiça admitiu o recurso à cláusula de «ordem pública» prevista nessa Convenção, na medida em que naquele caso as garantias previstas pelo Estado de origem «não basta[vam] para proteger o arguido de uma violação manifesta do seu direito de se defender» (28).

62.   Face às considerações expostas supra, considero, portanto, que o sistema de protecção dos consumidores previsto na Directiva 93/13 implica que, num caso como o aqui em causa, um órgão jurisdicional nacional, chamado a pronunciar‑se sobre um pedido de anulação de uma decisão arbitral, pode verificar o carácter abusivo de uma cláusula compromissória e declarar a nulidade da decisão arbitral por ser contrária à ordem pública, mesmo que esse vício não tenha sido alegado pelo consumidor no decurso do processo arbitral e seja alegado pela primeira vez na petição inicial do recurso de anulação.

IV – Conclusão

63.   À luz das considerações que antecedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à Audiencia Provincial de Madrid que:

«O sistema de protecção dos consumidores previsto na Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, implica que, num caso como o aqui em causa, um órgão jurisdicional nacional, chamado a pronunciar‑se sobre um pedido de anulação de uma decisão arbitral, pode verificar o carácter abusivo de uma cláusula compromissória e declarar a nulidade da decisão arbitral por ser contrária à ordem pública, mesmo que esse vício não tenha sido alegado pelo consumidor no decurso do processo arbitral e seja alegado pela primeira vez na petição inicial do recurso de anulação.»


1 – Língua original: italiano.


2 – JO L 95, p. 29.


3 – Ley 7/1998, de 13 de Abril de 1998, sobre condiciones generales de la contratación (BOE n.° 89, de 14 de Abril de 1998, p. 12304).


4 –      Ley 26/1984, de 19 de Julho de 1984, General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios (BOE, de 24 de Julho de 1984, n.° 21686).


5 – Ley 36/1988, de 5 de Dezembro de 1988, de Arbitraje (BOE n.° 293, de 7 de Dezembro de 1988, p. 34605).


6 – Acórdão de 1 de Abril de 2004, Freiburger Kommunalbauten (C‑237/02, Colect., p. I‑3403, n.° 22). V. também acórdãos de 22 de Junho de 1999, Lloyd Schuhfabrik Meyer (C‑342/97, Colect., p. I‑3819, n.° 11), e de 27 de Setembro de 2001, Bacardi (C‑253/99, Colect., p. I‑6493, n.° 58).


7 – Acórdão Freiburger Kommunalbauten, já referido na nota 6, n.° 25.


8 – Acórdão de 27 de Junho de 2000 (C‑240/98 a C‑244/98, Colect., p. I‑4941).


9 – Acórdão Freiburger Kommunalbauten, já referido na nota 6.


10 – Acórdão Freiburger Kommunalbauten, já referido na nota 6, n.° 23.


11 – Acórdãos de 29 de Novembro de 1978, Redmond (83/78, Colect. 1978, p. 821), de 8 de Novembro de 1990, Gmurzynska‑Bscher (C‑231/89, Colect., p. I‑4003, n.° 20), de 28 de Novembro de 1991, Durighello/INPS (C‑186/90, Colect., p. I‑5773), e de 16 de Julho de 1992, Meilicke (C‑83/91, Colect., p. I‑4871, n.° 23).


12 – V. acórdãos de 1 de Abril de 2004, Borgmann (C‑1/02, Colect., p. I‑2893, n.° 19). Mas v. também, nomeadamente, acórdãos de 20 de Março de 1986, Tissier (35/85, Colect., p. 1207, n.° 9), e de 11 de Dezembro de 1997, Immobiliare SIF (C‑42/96, Colect., p. I‑7089, n.° 28).


13 – Acórdão Océano Grupo Editorial, já referido na nota 8.


14 – Acórdão Océano Grupo Editorial, já referido na nota 8, n.os 25 e 27.


15 – Acórdão Océano Grupo Editorial, já referido na nota 8, n.° 28.


16 – Acórdão de 21 de Novembro de 2002, Cofidis (C‑473/00, Colect., p. I‑10875).


17 – Acórdão Cofidis, já referido na nota 16, n.os 32 e 33.


18 – Acórdão Cofidis, já referido na nota 16, n.os 33 a 36.


19 – Acórdão de 1 de Junho de 1999, Eco Swiss (C‑126/97, Colect., p. I‑3055, n.° 35).


20 – V. artigo 5.° da Convenção de Nova Iorque de 10 de Junho de 1958, relativa ao reconhecimento e execução de decisões arbitrais estrangeiras, bem como o artigo 34.° da lei‑quadro relativa à arbitragem comercial internacional apresentada pela Comissão das Nações Unidas para o direito comercial internacional.


21 – Acórdão Eco Swiss, já referido na nota 19, n.° 35.


22 – V. artigo 5.°, n.° 2, alínea b) da referida Convenção de Nova Iorque, bem como o artigo 34.°, n.° 2, alínea b), da citada lei‑quadro relativa à arbitragem comercial internacional.


23 – Acórdão Eco Swiss, já referido na nota 19, n.° 37.


24 – Acórdão Eco Swiss, já referido na nota 19, n.° 36.


25 – V. acórdãos de 29 de Junho de 1994, Fiskano/Comissão (C‑135/92, Colect., p. I‑2885, n.° 39), e de 24 de Outubro de 1996, Comissão/Lisrestal e o. (C‑32/95 P, Colect., p. I‑5373, n.° 21).


26 – Acórdão de 28 de Março de 2000, Krombach (C‑7/98, Colect., p. I‑1935, n.° 38).


27 – Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial; três questões prejudiciais relativas à interpretação do artigo 27.°, n.° 1, da citada Convenção de 27 de Setembro de 1968 (JO 1972, L 299, p. 32), alterada pela Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido (JO L 304, p. 1 e – texto alterado – p. 77) e pela Convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da Grécia (JO L 388, p. 1).


28 – Acórdão Krombach, já referido na nota 26, n.° 44.