Processo C‑70/03

Comissão das Comunidades Europeias

contra

Reino de Espanha

«Incumprimento de Estado – Directiva 93/13/CEE – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Regras de interpretação – Normas de conflitos de leis»

Sumário do acórdão

1.        Aproximação das legislações – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Directiva 93/13 – Regra da interpretação mais favorável ao consumidor em caso de dúvida sobre o significado de uma cláusula – Distinção entre as acções envolvendo um consumidor individual e as acções colectivas inibitórias

(Directiva 93/13 do Conselho, artigos 5.° e 7.°, n.° 2)

2.        Aproximação das legislações – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Directiva 93/13 – Contrato regido pelo direito de um país terceiro que apresenta uma relação estreita com o território dos Estados‑Membros – Conceito de «relação estreita» – Critérios de ligação referidos no artigo 5.°, n.° 2, da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais – Exclusão

(Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980, artigo 5.°; Directiva 93/13 do Conselho, artigo 6.°, n.° 2)

1.        A precisão contida no artigo 5.°, terceiro período, da Directiva 93/13, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, segundo a qual a regra de que prevalece a interpretação mais favorável ao consumidor em caso de dúvida sobre o significado de uma cláusula não é aplicável no âmbito das chamadas acções «inibitórias», previstas no artigo 7.°, n.° 2, da directiva, constitui uma regra normativa e obrigatória, que confere direitos aos consumidores e contribui para definir o resultado procurado pela directiva.

Efectivamente, a distinção assim efectuada, quanto à regra de interpretação aplicável, entre as acções envolvendo um consumidor individual e as acções inibitórias, relativas a pessoas ou a organizações representativas do interesse colectivo dos consumidores, explica‑se pela diferente finalidade destas acções. No primeiro caso, os tribunais ou os órgãos competentes são chamados a apreciar in concreto o carácter abusivo de uma cláusula incluída num contrato já celebrado, ao passo que, no segundo caso, compete‑lhes efectuar uma apreciação in abstracto sobre o carácter abusivo de uma cláusula susceptível de ser incorporada em contratos que ainda não foram celebrados. No primeiro caso, uma interpretação favorável ao consumidor individual beneficia‑o de imediato. Em contrapartida, no segundo caso, para obter, a título preventivo, o resultado mais favorável a todos os consumidores, não há, em caso de dúvida, que interpretar a cláusula como se tivesse efeitos favoráveis a seu respeito. Uma interpretação objectiva permite assim proibir mais vezes a utilização de uma cláusula obscura ou ambígua, o que tem como consequência uma protecção mais ampla dos consumidores.

(cf. n.os 16, 17)

2.        O artigo 6.°, n.° 2, da Directiva 93/13, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, nos termos do qual os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que o consumidor não seja privado da protecção concedida pela referida directiva pelo facto de ter sido escolhido o direito de um país terceiro como direito aplicável ao contrato, desde que o contrato apresente uma relação estreita com o território dos Estados‑Membros, deve ser interpretado no sentido de que a noção deliberadamente vaga de «relação estreita», que tem por objectivo permitir a tomada em consideração de vários elementos de conexão em função das circunstâncias do caso concreto, pode eventualmente ser concretizada por presunções. Não pode, no entanto, ser limitada por uma combinação de critérios de ligação predefinidos como os requisitos cumulativos relativos à residência do consumidor e à celebração do contrato referidos no artigo 5.° da Convenção de 19 de Junho de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais.

(cf. n.os 32, 33)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)
9 de Setembro de 2004(1)

«Incumprimento de Estado – Directiva 93/13/CEE – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Regras de interpretação – Normas de conflitos de leis»

No processo C-70/03,que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE,entrada em 17 de Fevereiro de 2003,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por I. Martínez del Peral e M. França, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

Reino de Espanha, representado por L. Fraguas Gadea, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandado,



O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),,



composto por: P. Jann (relator), presidente de secção, A. Rosas e R. Silva de Lapuerta, juízes,

advogado-geral: L. A. Geelhoed,
secretário: R. Grass,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 29 de Abril de 2004,

profere o presente



Acórdão



1
Na sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao não ter transposto correctamente para direito interno os artigos 5.° e 6.°, n.° 2, da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29, a seguir «directiva»), o Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força das disposições do Tratado CE e da referida directiva.

2
Nos termos do seu artigo 1.°, n.° 1, a directiva tem por objectivo a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores.

3
De acordo com o artigo 10.°, n.° 1, da directiva, os Estados‑Membros deviam adoptar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à mesma o mais tardar em 31 de Dezembro de 1994.

4
A directiva foi transposta para a ordem jurídica espanhola pela Ley 7/1998, de 13 de abril, sobre condiciones generales de la contratación (Boletín Oficial del Estado n.° 89, de 14 de Abril de 1998, p. 12304, a seguir «Lei n.° 7/1998»), que alterou a Ley General 26/1984, de 19 de julio, para la defensa de los consumidores y usuarios (Boletín Oficial del Estado n.° 176, de 24 de Julho de 1984, p. 21686, a seguir «Lei n.° 26/1984 alterada»).


Fase pré‑contenciosa

5
Depois de ter notificado o Reino de Espanha para lhe apresentar as suas observações, a Comissão enviou‑lhe, em 25 de Maio de 2000, um parecer fundamentado, em que o censurava por ter transposto de forma incorrecta os artigos 5.° e 6.°, n.° 2, da directiva e o convidava a dar cumprimento a este parecer no prazo de dois meses a contar da sua notificação.

6
O Governo espanhol indicou, por carta de 27 de Setembro 2000, as razões pelas quais considerava que tinha procedido a uma transposição correcta das referidas disposições da directiva.

7
Tendo a resposta do Reino de Espanha ao parecer fundamentado sido julgada insatisfatória pela Comissão, esta intentou a presente acção.


Quanto à primeira acusação, baseada na transposição incorrecta do artigo 5.° da directiva

Quadro jurídico

A directiva

8
O artigo 5.° da directiva dispõe:

«No caso dos contratos em que as cláusulas propostas ao consumidor estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, essas cláusulas deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível. Em caso de dúvida sobre o significado de uma cláusula, prevalecerá a interpretação mais favorável ao consumidor. Esta regra de interpretação não é aplicável no âmbito dos processos previstos no n.° 2 do artigo 7.°»

9
Os procedimentos previstos no artigo 7.°, n.° 2, da directiva são as chamadas acções «inibitórias», ou seja, os procedimentos «que habilitem as pessoas ou organizações que, segundo a legislação nacional, têm um interesse legítimo na defesa do consumidor, a recorrer, segundo o direito nacional, aos tribunais ou aos órgãos administrativos competentes para decidir se determinadas cláusulas contratuais, redigidas com vista a uma utilização generalizada, têm ou não um carácter abusivo, e para aplicar os meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização dessas cláusulas».

Legislação nacional

10
O artigo 10.°, n.° 2, da Lei n.° 26/1984 alterada prevê:

«Em caso de dúvida sobre o significado de uma cláusula prevalecerá a interpretação mais favorável ao consumidor.»

11
O artigo 6.°, n.° 2, da Lei n.° 7/1998 enuncia:

«As dúvidas sobre a interpretação de condições gerais obscuras são solucionadas a favor da parte que adere ao contrato.»

Fundamentos e argumentos das partes

12
A Comissão censura ao Reino de Espanha o facto de o legislador nacional não ter precisado que a regra da interpretação favorável ao consumidor não se aplica no âmbito de acções inibitórias colectivas referidas no artigo 7.°, n.° 2, da directiva. Esta omissão pode comprometer a eficácia de tais acções, na medida em que o profissional, ao invocar a regra da interpretação mais favorável ao consumidor, pode conseguir que uma cláusula obscura e susceptível de ser interpretada como cláusula abusiva não seja proibida.

13
O Governo espanhol alega que a regra da interpretação em causa apenas diz respeito a acções individuais e que, em relação às acções colectivas, a regra é a da interpretação objectiva. Acrescenta que a legislação nacional, que oferece uma protecção superior à prevista na directiva, inclui uma lista de cláusulas que têm, em todos os casos, carácter abusivo. A natureza imperativa desta lista opõe‑se a que seja invocada uma interpretação favorável ao consumidor para paralisar as acções inibitórias.

Apreciação do Tribunal de Justiça

14
Assim como referiu o advogado‑geral no n.° 7 das suas conclusões, o que opõe as partes relativamente à primeira acusação não é tanto o conteúdo da obrigação resultante do artigo 5.° da directiva, mas antes a forma e os meios como essa obrigação deve ser transposta para o direito interno.

15
Segundo jurisprudência assente, embora a transposição de uma directiva não exija necessariamente uma actuação legislativa de cada Estado‑Membro, é, no entanto, indispensável que o direito nacional em causa garanta efectivamente a plena aplicação da directiva, que a situação jurídica decorrente desse direito seja suficientemente precisa e clara e que os beneficiários sejam colocados em situação de conhecer a plenitude dos seus direitos e, sendo caso disso, de os poder invocar perante os órgãos jurisdicionais nacionais (v., designadamente, acórdãos de 10 de Maio de 2001, Comissão/Países Baixos, C‑144/99, Colect., p. I‑3541, n.° 17, e de 7 de Maio de 2002, Comissão/Suécia, C‑478/99, Colect., p. I‑4147, n.° 18).

16
A distinção efectuada no artigo 5.° da directiva, quanto à regra de interpretação aplicável, entre as acções envolvendo um consumidor individual e as acções inibitórias, relativas a pessoas ou a organizações representativas do interesse colectivo dos consumidores, explica‑se pela diferente finalidade destas acções. No primeiro caso, os tribunais ou os órgãos competentes são chamados a apreciar in concreto o carácter abusivo de uma cláusula incluída num contrato já celebrado, ao passo que, no segundo caso, compete‑lhes efectuar uma apreciação in abstracto sobre o carácter abusivo de uma cláusula susceptível de ser incorporada em contratos que ainda não foram celebrados. No primeiro caso, uma interpretação favorável ao consumidor individual beneficia‑o de imediato. Em contrapartida, no segundo caso, para obter, a título preventivo, o resultado mais favorável a todos os consumidores, não há, em caso de dúvida, que interpretar a cláusula como se tivesse efeitos favoráveis a seu respeito. Uma interpretação objectiva permite assim proibir mais vezes a utilização de uma cláusula obscura ou ambígua, o que tem como consequência uma protecção mais ampla dos consumidores.

17
Daí resulta que a precisão contida no artigo 5.°, terceiro período, da directiva constitui uma regra normativa e obrigatória, que confere direitos aos consumidores e contribui para definir o resultado procurado pela directiva.

18
Ora, o Governo espanhol não demonstrou que esse resultado pode ser atingido na ordem jurídica nacional.

19
Em relação à afirmação das autoridades espanholas segundo a qual a regra de interpretação favorável aos consumidores apenas diz respeito às acções individuais, há que salientar que o Reino de Espanha não identificou nenhuma disposição da sua ordem jurídica nem nenhuma decisão dos órgãos jurisdicionais nacionais em apoio dessa tese.

20
Com efeito, há que referir que o artigo 10.°, n.° 2, da Lei n.° 26/1984 alterada e o artigo 6.°, n.° 2, da Lei n.° 7/1998 estabelecem uma regra geral de interpretação favorável aos consumidores sem nenhuma forma de limitação e que o artigo 12.° da Lei n.° 7/1998, relativo às acções inibitórias colectivas, não inclui nenhuma excepção quanto à aplicação dessa regra de interpretação.

21
O alcance dessas disposições é corroborado pelo lugar que ocupam na legislação nacional. Com efeito, o artigo 10.° da Lei n.° 26/1984 alterada está integrado no capítulo II dessa lei, intitulado «Protecção dos interesses económicos e sociais», ao passo que o artigo 6.° da Lei n.° 7/1998 figura no capítulo I da referida lei, ele próprio intitulado «Disposições gerais». Tais títulos deixam entender que se trata de disposições de aplicação geral, que não incluem qualquer restrição quanto ao caso especial das acções inibitórias colectivas.

22
Por conseguinte, há que concluir que a primeira acusação é procedente.


Quanto à segunda acusação, baseada na transposição incorrecta do artigo 6.°, n.° 2, da directiva

Quadro jurídico

A directiva

23
O artigo 6.°, n.° 2, da directiva tem a seguinte redacção:

«Os Estados‑Membros tomarão as medidas necessárias para que o consumidor não seja privado da protecção concedida pela presente directiva pelo facto de ter sido escolhido o direito de um país terceiro como direito aplicável ao contrato, desde que o contrato apresente uma relação estreita com o território dos Estados‑Membros.»

Legislação nacional

24
O artigo 10.°‑A, n.° 3, da Lei n.° 26/1984 alterada prevê:

«As disposições relativas à protecção do consumidor contra cláusulas abusivas nos contratos são aplicáveis nas condições previstas no artigo 5.° da Convenção de Roma de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, independentemente da escolha do direito aplicável ao contrato declarada pelas partes.»

25
O artigo 3.°, n.° 2, da Lei n.° 7/1998 dispõe:

«[Esta lei] é ainda aplicável aos contratos regulados por lei estrangeira quando a parte tenha manifestado a sua vontade no território espanhol e quando a mesma aí possua a sua residência habitual, sem prejuízo das disposições dos tratados e acordos internacionais.»

Convenção de Roma

26
Nos termos do artigo 5.°, n.° 1, da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta a assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980 (JO L 266, p. 1; EE 01 F3 p. 36, a seguir «Convenção de Roma»), este artigo «aplica‑se aos contratos que tenham por objecto o fornecimento de bens móveis corpóreos ou de serviços a uma pessoa, o ‘consumidor’, para uma finalidade que pode considerar-se estranha à sua actividade profissional, bem como aos contratos destinados ao financiamento desse fornecimento». Segundo os seus n.os 4 e 5, o referido artigo 5.° não se aplica ao contrato de transporte, salvo se este oferecer por um preço global prestações combinadas de transporte e alojamento, nem ao contrato de prestação de serviços, quando os serviços devidos ao consumidor devam ser prestados exclusivamente num país diferente daquele em que este tem a sua residência habitual.

27
O artigo 5.°, n.° 2, da Convenção de Roma prevê:

«[A] escolha pelas partes da lei aplicável não pode ter como consequência privar o consumidor privado da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei do país em que tenha a sua residência habitual:

se a celebração do contrato tiver sido precedida, nesse país, de uma proposta que lhe foi especialmente dirigida ou de anúncio publicitário, e se o consumidor tiver executado nesse país todos os actos necessários à celebração do contrato,

ou

se a outra parte ou o respectivo representante tiver recebido o pedido do consumidor nesse país,

ou

se o contrato consistir numa venda de mercadorias e o consumidor, se tenha deslocado desse país a um outro país e aí tenha feito o pedido, desde que a viagem tenha sido organizada pelo vendedor com o objectivo de incitar o consumidor a comprar.»

Fundamentos e argumentos das partes

28
A Comissão alega que, enquanto o artigo 6.°, n.° 2, da directiva tem por objectivo oferecer protecção a todos os consumidores na celebração de todos os tipos de contratos concluídos com um profissional, o artigo 10.°‑A da Lei n.° 26/1984 alterada restringe esta protecção a determinados tipos de contratos, ou seja, os contratos referidos no n.° 1 do artigo 5.° da Convenção de Roma, e apenas no caso de serem cumpridas determinadas condições, ou seja, os requisitos estipulados no n.° 2 desse artigo 5.° Estas condições são mais rigorosas que a única condição imposta pelo n.° 2 do artigo 6.° da directiva, que exige apenas que «o contrato apresente uma relação estreita com o território dos Estados‑Membros».

29
De acordo com o Governo espanhol, decorre da interpretação integradora das disposições nacionais relativas à protecção do consumidor contra as cláusulas abusivas que as mesmas possuem natureza imperativa, qualquer que seja a lei escolhida pelas partes para reger o contrato. Alega que o n.° 2 do artigo 3.° da Lei n.° 7/1998 prevê a aplicação imperativa das referidas disposições nacionais, ou seja, da protecção concedida pela directiva, aos contratos regulados por uma lei estrangeira quando o contratante manifestou o seu consentimento no território espanhol e tem aí a sua residência. Assim, o conceito de «relação estreita com o território dos Estados‑Membros», na acepção do artigo 6.°, n.° 2, da directiva, concretiza‑se para os contratos que tenham uma relação com o direito espanhol.

Apreciação do Tribunal de Justiça

30
Como resulta do seu sexto considerando, a directiva visa «proteger os cidadãos que, na qualidade de consumidores, adquiram bens e serviços mediante contratos regidos pela legislação de outros Estados‑Membros» (v., a este respeito, acórdãos, já referidos, Comissão/Países Baixos, n.° 18, e Comissão/Suécia, n.° 18). O artigo 6.°, n.° 2, da directiva completa esse dispositivo. Conforme resulta do vigésimo segundo considerando da mesma directiva, essa disposição visa prevenir o risco que existe, em certos casos, de o consumidor ser privado da protecção comunitária pela designação do direito de um país terceiro como direito aplicável ao contrato. Para esse efeito, prevê a manutenção, nas relações contratuais que envolvam países terceiros, da protecção que a referida directiva concede aos consumidores nas relações contratuais intracomunitárias, quando o contrato apresente uma relação estreita com o território dos Estados‑Membros.

31
Quanto ao âmbito de aplicação material da protecção concedida pela directiva, resulta dos artigos 1.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1, desta última que a mesma se aplica, em relação a todos os contratos celebrados entre um profissional e um consumidor, às cláusulas que não foram objecto de uma negociação individual. É verdade que, como alega com razão a Comissão, o artigo 10.°‑A da Lei n.° 26/1984 alterada tem um âmbito de aplicação mais limitado, uma vez que só se aplica aos tipos de contratos referidos no artigo 5.°, n.os 1, 4 e 5, da Convenção de Roma. No entanto, como alegou o Governo espanhol, essa lacuna é colmatada pelo artigo 3.°, n.° 2, da Lei n.° 7/1998, que se aplica a todos os contratos celebrados, sem negociação individual, com base em cláusulas gerais.

32
Em relação à conexão com a Comunidade, o artigo 6.°, n.° 2, da directiva limita‑se a indicar que o contrato deve apresentar «uma relação estreita com o território dos Estados‑Membros». Esta fórmula geral tem por objectivo permitir a tomada em consideração de vários elementos de conexão em função das circunstâncias do caso concreto.

33
Se a noção deliberadamente vaga de «relação estreita» que o legislador comunitário escolheu pode eventualmente ser concretizada por presunções, não pode, no entanto, ser limitada por uma combinação de critérios de ligação predefinidos como os requisitos cumulativos relativos à residência e à celebração do contrato referidos no artigo 5.° da Convenção de Roma.

34
Referindo‑se a essa última disposição, de forma explícita no que respeita ao artigo 10.°‑A da Lei n.° 26/1984 alterada e de forma implícita relativamente ao artigo 3.°, n.° 2, da Lei n.° 7/1998, as disposições da ordem jurídica espanhola que deveriam transpor o artigo 6.°, n.° 2 da directiva introduzem, portanto, uma restrição incompatível com o nível de protecção por ela estabelecido.

35
Daí resulta que a segunda acusação também é procedente.

36
Nestas condições, há que concluir que, ao não transpor correctamente para o seu direito interno os artigos 5.° e 6.°, n.° 2, da directiva, o Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da mesma.


Quanto às despesas

37
Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação do Reino de Espanha e tendo este sido vencido, há que condená‑lo nas despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) decide:

1)
Ao não transpor correctamente para o seu direito interno os artigos 5.° e 6.°, n.° 2, da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, o Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força da mesma.

2)
O Reino de Espanha é condenado nas despesas.

Assinaturas.


1
Língua do processo: espanhol.