Processo C‑17/03
Vereniging voor Energie, Milieu en Water e o.
contra
Directeur van de Dienst uitvoering en toezicht energie
(pedido de decisão prejudicial apresentado
pelo College van Beroep voor het bedrijfsleven)
«Mercado interno da electricidade – Acesso privilegiado à rede de transporte transfronteiriço de electricidade – Empresa anteriormente encarregue da gestão de serviços de interesse económico geral – Contratos de longa duração anteriores à liberalização do mercado – Directiva 96/92/CE – Princípio da não discriminação – Princípios da confiança legítima e da segurança jurídica»
Conclusões da advogada‑geral C. Stix‑Hackl apresentadas em 28 de Outubro de 2004
Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 7 de Junho de 2005
Sumário do acórdão
1. Questões prejudiciais – Competência do Tribunal de Justiça – Limites – Questões manifestamente destituídas de pertinência e questões hipotéticas colocadas num contexto que exclui uma resposta útil
(Artigo 234.° CE)
2. Aproximação das legislações – Medidas destinadas ao estabelecimento e ao funcionamento do mercado interno da electricidade – Directiva 96/92 Regra de acesso sem discriminação à rede nacional de transporte de electricidade – Alcance dos artigos 7.°, n.° 5, e 16.° – Aplicação a qualquer discriminação – Possibilidade de obter medidas derrogatórias através do procedimento previsto no artigo 24.°
(Directiva 96/92 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 7.°, n.° 5, 16.° e 24.°)
3. Direito comunitário – Princípios – Protecção da confiança legítima – Limites – Operador prudente e avisado
4. Direito comunitário – Princípios – Segurança jurídica – Conceito – Regulamentação desfavorável aos particulares – Exigência de clareza e precisão – Alterações legislativas – Admissibilidade – Tomada em consideração de situações particulares
1. No âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, instituída pelo artigo 234.° CE, compete apenas ao juiz nacional apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. O indeferimento, por este, de uma questão apresentada por um órgão jurisdicional nacional só é possível se for manifesto que a interpretação solicitada do direito comunitário não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio ou quando a questão é geral ou hipotética.
(cf. n.° 34)
2. Os artigos 7.°, n.° 5, e 16.° da Directiva 96/92, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade, que exigem que a actuação do operador da rede e a do Estado na implementação do acesso à rede sejam não discriminatórias, não visam apenas as normas técnicas, antes se aplicando a qualquer discriminação.
Opõem‑se a medidas nacionais que atribuam a uma empresa, devido a compromissos assumidos antes da entrada em vigor da directiva, uma capacidade prioritária de transporte transfronteiriço de electricidade, independentemente de essas medidas emanarem do gestor de rede, do controlador da rede ou do legislador, quando não tenham sido autorizadas no âmbito do procedimento previsto no artigo 24.° da referida directiva, que prevê a possibilidade de aplicação, em certas condições, de um regime transitório a fim de atenuar determinadas consequências da liberalização.
(cf. n.os 45‑47, 57, 71, disp. 1, 2)
3. O princípio da protecção da confiança legítima inscreve‑se entre os princípios fundamentais da Comunidade. A possibilidade de o invocar é reconhecida a qualquer operador económico em cuja esfera uma instituição tenha feito surgir esperanças fundadas. Todavia, quando um operador económico prudente e avisado puder prever a adopção de uma medida comunitária susceptível de afectar os seus interesses, não pode, quando essa medida for tomada, invocar o benefício desse princípio.
(cf. n.os 73, 74)
4. O princípio da segurança jurídica exige que uma regulamentação que impõe encargos desfavoráveis aos particulares seja clara e precisa e a sua aplicação previsível para os particulares.
Não se pode, contudo, depositar a confiança na ausência total de alteração legislativa, mas apenas pôr em causa as modalidades de aplicação de tal alteração. Do mesmo modo, o princípio da segurança jurídica não exige a inexistência de alteração legislativa, antes exigindo que o legislador tome em consideração as situações especiais dos operadores económicos e preveja, eventualmente, adaptações à aplicação das novas regras jurídicas.
(cf. n.os 80, 81)
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)
7 de Junho de 2005 (*)
«Mercado interno da electricidade – Acesso privilegiado à rede de transporte transfronteiriço de electricidade – Empresa anteriormente encarregue da gestão de serviços de interesse económico geral – Contratos de longa duração anteriores à liberalização do mercado – Directiva 96/92/CE – Princípio da não discriminação – Princípios da confiança legítima e da segurança jurídica»
No processo C‑17/03,
que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo College van Beroep voor het bedrijfsleven (Países Baixos), por decisão de 13 de Novembro de 2002, entrado no Tribunal de Justiça em 16 de Janeiro de 2003, no processo
Vereniging voor Energie, Milieu en Water,
Amsterdam Power Exchange Spotmarket BV,
Eneco NV
contra
Directeur van de Dienst uitvoering en toezicht energie,
sendo interveniente:
Nederlands Elektriciteit Administratiekantoor BV, anteriormente Samenwerkende ElektriciteitsProduktiebedrijven NV,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),
composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans e A. Rosas (relator), presidentes de secção, J.‑P. Puissochet, R. Schintgen, N. Colneric, S. von Bahr, M. Ilešič, J. Malenovský e U. Lõhmus, juízes,
advogada‑geral: C. Stix‑Hackl,
secretário: M.‑F. Contet, administradora principal,
vistos os autos e após a audiência de 29 de Junho de 2004,
vistas as observações apresentadas:
– em representação da Vereniging voor Energie, Milieu en Water, por I. VerLoren van Themaat e M. het Lam, advocaten,
– em representação da Amsterdam Power Exchange Spotmarket BV, por P. W. A. Goes, advocaat,
– em representação da Eneco NV, por J. J. Feenstra, advocaat,
– em representação da Nederlands Elektriciteit Administratiekantoor BV, por J. de Pree e Y. de Vries, advocaten,
– em representação do Governo neerlandês, por H. G. Sevenster, na qualidade de agente,
– em representação do Governo francês, por G. de Bergues e C. Lemaire, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo finlandês, por T. Pynnä e A. Guimaraes‑Purokoski, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo norueguês, por K. B. Moen e I. Djupvik, na qualidade de agentes,
– em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por H. Støvlbæk, M. van Beek e A. Bouquet, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões da advogada‑geral apresentadas na audiência de 28 de Outubro de 2004,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação, por um lado, do artigo 86.°, n.° 2, CE e, por outro, do artigo 7.°, n.° 5, da Directiva 96/92/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Dezembro de 1996, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade (JO 1997, L 27, p. 20, a seguir «directiva»).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe as empresas Vereniging voor Energie, Milieu en Water, Amsterdam Power Exchange Spotmarket BV e Eneco NV ao Directeur van de Dienst uitvoering en toezicht energie (director do Serviço de Produção e Controlo da Energia, a seguir «DTE» ou «controlador da gestão da rede»), no que respeita à decisão deste último de reservar prioritariamente para a Nederlands Elektriciteit Administratiekantoor BV (a seguir «NEA»), anteriormente Samenwerkende ElektriciteitsProductiebedrijven NV (a seguir «SEP»), no momento da ocorrência do litígio principal, uma parte da capacidade da rede transfronteiriça para a importação de electricidade para os Países Baixos.
Quadro jurídico
Legislação comunitária
3 A directiva marca a segunda fase da liberalização do mercado da electricidade na Comunidade Europeia. Nos termos do seu segundo considerando, visa a concretização de um mercado interno da electricidade concorrencial.
4 Nos termos do seu quarto considerando, «a criação do mercado interno da electricidade é especialmente importante para racionalizar a produção, o transporte e a distribuição da electricidade, reforçando simultaneamente a segurança de abastecimento e a competitividade da economia europeia [...]».
5 Nos termos do seu quinto considerando, «a criação do mercado interno da electricidade deve ser progressiva, a fim de permitir a adaptação flexível e ordenada da indústria ao seu novo contexto e de atender à actual diversidade de organização das redes eléctricas».
6 No vigésimo quinto considerando da directiva, especifica‑se que «cada rede de transporte deve ser gerida e controlada de modo centralizado, a fim de garantir a respectiva segurança, fiabilidade e eficácia, no interesse dos produtores e seus clientes; [...] por conseguinte, deve ser designado um operador da rede de transporte responsável pela exploração, manutenção e eventual desenvolvimento desta; [...] o operador deve actuar de forma objectiva, transparente e não discriminatória».
7 O último considerando desta directiva enuncia: «a presente directiva constitui uma fase posterior da liberalização; [...] uma vez aplicada, não impedirá que se mantenham alguns obstáculos ao comércio da electricidade entre os Estados‑Membros; [...] por conseguinte, com base na experiência adquirida, poderão ser apresentadas propostas de melhoria do funcionamento do mercado interno da electricidade [...]».
8 Incluído no capítulo IV da directiva, intitulado «Exploração da rede de transporte», o artigo 7.° preceitua:
«1. Os Estados‑Membros designarão, ou solicitarão às empresas proprietárias de redes de transporte que designem, por um período a determinar pelos Estados‑Membros em função de considerações de eficácia e equilíbrio económico, um operador da rede de transporte responsável pela exploração, manutenção e eventual desenvolvimento da rede de transporte numa determinada área e das suas interligações com outras redes, a fim de garantir a segurança de abastecimento.
2. Os Estados‑Membros assegurarão que sejam elaboradas e publicadas normas técnicas que estabeleçam os requisitos mínimos de concepção e funcionamento em matéria de ligação às redes de instalações de produção, redes de distribuição, equipamento de clientes ligados directamente, circuitos de interligação e linhas directas. Esses requisitos deverão garantir a interoperabilidade das redes, ser objectivos e não discriminatórios. [...]
3. O operador da rede de transporte ficará encarregado de gerir os fluxos de energia na rede, tendo em conta as trocas com outras redes interligadas. Para o efeito, será encarregado de garantir a segurança, fiabilidade e eficácia da rede e, nesse contexto, providenciar pela disponibilização dos serviços auxiliares indispensáveis.
[…]
5. O operador da rede de transporte não tomará medidas discriminatórias entre os utilizadores ou categorias de utilizadores da rede, nomeadamente a favor das suas filiais ou dos seus accionistas.
[…]»
9 O artigo 16.°, primeiro período, da directiva, incluído no capítulo VIII desta última, intitulado «Organização do acesso à rede», dispõe que, para efeitos dessa organização, os Estados‑Membros podem optar entre o acesso negociado e o sistema de comprador único. Nos termos do segundo período do mesmo artigo, «[q]ualquer desses sistemas será aplicado segundo critérios objectivos, transparentes e não discriminatórios».
10 O artigo 24.°, n.os 1 e 2, da directiva prevê:
«1. Os Estados‑Membros em que os compromissos ou garantias de funcionamento concedidos antes da entrada em vigor da presente directiva não possam ser cumpridos em virtude das disposições desta, poderão solicitar a aplicação de um regime transitório que lhes poderá ser concedido pela Comissão, tendo nomeadamente em conta a dimensão e o nível de interligação da rede em causa, assim como a estrutura da sua indústria da electricidade. Esta instituição informará os Estados‑Membros desses pedidos antes de tomar uma decisão, no respeito pelo princípio da confidencialidade. Essa decisão será publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias.
2. Este regime transitório terá uma duração limitada e estará ligado ao termo dos compromissos ou garantias a que se refere o n.° 1. O regime transitório pode abranger derrogações aos capítulos IV, VI e VII da presente directiva. Os pedidos de aplicação do regime transitório deverão ser notificados à Comissão, o mais tardar um ano após a data de entrada em vigor da presente directiva nos Estados‑Membros.»
Legislação nacional
11 Nos termos do artigo 2.° da Elektriciteitswet (lei reguladora da produção, importação, transporte e venda de electricidade), de 16 de Novembro de 1989 (Staatsblad 1989, p. 535, a seguir «EW 1989»), uma sociedade designada para esse efeito (a seguir «sociedade designada») foi encarregue, conjuntamente com os concessionários, de assegurar o funcionamento fiável e eficaz da distribuição pública de electricidade a custos tão baixos quanto possível e justificados relativamente à colectividade.
12 Por força do artigo 34.° da EW 1989, a sociedade designada era a única a poder importar para os Países Baixos electricidade destinada à distribuição pública.
13 Nos termos do artigo 35.° da EW 1989, essa sociedade não podia celebrar contratos de importação de electricidade destinada à distribuição pública sem aprovação do ministro competente. Este último apenas podia recusar a aprovação se o bom abastecimento em electricidade e energia eléctrica a isso obrigasse.
14 A sociedade designada na acepção dos artigos 2.°, 34.° e 35.° da EW 1989 foi a SEP, em cujos direitos sucedeu a NEA, a partir de 1 de Janeiro de 2001.
15 A Elektriciteitswet (lei reguladora da produção, transporte e fornecimento de electricidade), de 2 de Julho de 1998 (Staatsblad 1998, p. 427, a seguir «EW 1998»), destinava‑se a transpor a directiva e revogou a EW 1989, com efeitos a partir de 1 de Julho de 1999.
16 Depois da entrada em vigor da EW 1998, a SEP transferiu a gestão da rede de alta tensão para a sua filial TenneT BV (a seguir «TenneT»). A propriedade dessa rede foi cedida em 2001 à Saranne BV (a seguir «Saranne»), também filial da SEP. Ao longo desse mesmo ano, o Estado tornou‑se, sucessivamente, proprietário da TenneT e da Saranne.
17 Nos termos do artigo 16.° da EW 1998, a TenneT tem por missão, designadamente, criar e manter a referida rede, garantir a sua fiabilidade e segurança, garantir uma capacidade de reserva suficiente e entregar a terceiros a electricidade importada para os Países Baixos e exportada dos Países Baixos para o estrangeiro.
18 Por força do artigo 24.° da EW 1998, o operador da rede tem de assegurar o acesso à rede em condições não discriminatórias aos produtores, intermediários, fornecedores e compradores de electricidade.
19 A tutela da gestão da rede e do operador da rede é confiada, em observância da EW 1998, ao DTE. Este último depende, de um ponto de vista hierárquico, do Ministro dos Assuntos Económicos, que pode formular directrizes tanto de carácter individual como geral.
20 Nos termos, designadamente, do artigo 36.° da EW 1998, o DTE aprova, sob proposta do gestor de rede, as condições de acesso a esta.
21 Para o efeito, o DTE aprovou, por decisão de 12 de Novembro de 1999, as condições relativas à gestão da rede de transporte transfronteiriço de electricidade (a seguir «código de rede»).
22 Nos termos, designadamente, dos pontos 5.6.4 e 5.6.7 do capítulo 5 do código de rede, relativamente ao ano de 2000, ficou reservada para a SEP, a título prioritário e no que respeita ao encaminhamento da electricidade objecto dos contratos de aquisição celebrados por esta ao abrigo do artigo 35.° da EW 1989, uma capacidade de importação de electricidade de 1 500 MW sobre os 3 200 MW disponíveis nas linhas transnacionais.
23 Trata‑se de três contratos para aquisição de electricidade que a SEP celebrou para cumprir a sua missão prevista no artigo 2.° da EW 1989.
24 Estes contratos foram celebrados respectivamente:
– em 1989, com a Electricité de France, para a aquisição de 600 MW por ano até 31 de Março de 2002 e de 750 MW por ano entre 1 de Abril de 2002 e 31 de Março de 2009;
– em 1989, com a Preussen Elektra AG, para a aquisição de 300 MW por ano até 31 de Dezembro de 2005;
– em 1990, com a Vereinigte Elektrizitätswerke Westfalen AG, para a aquisição de 600 MW por ano até 31 de Março de 2003 (a seguir, os três contratos considerados no seu conjunto, «contratos internacionais da SEP»).
25 Em seguida, a atribuição prioritária à SEP de uma capacidade anual de transporte transfronteiriço de electricidade para o período posterior ao ano de 2000 foi expressamente regulada pela Overgangswet elektriciteitsproduktiesector (lei de transição para o sector da produção da electricidade), de 21 de Dezembro de 2000 (Staatsblad 2000, p. 607, a seguir «Overgangswet 2000»).
26 Esta última prevê, no seu artigo 13.°, n.° 1:
«O operador da rede de transporte nacional de alta tensão atribui, a pedido, até 31 de Março de 2005, o máximo de 900 MW e, de 1 de Abril de 2005 até 31 de Março de 2009, o máximo de 750 MW à sociedade designada para o transporte da electricidade, se esse transporte se destinar à execução dos acordos celebrados em 1989 e 1990 entre a sociedade designada, por um lado, e respectivamente, a Electricité de France, a Preussen Elektra AG e a Vereinigte Elektrizitätswerke Westfalen AG, por outro, na sua redacção aplicável em 1 de Agosto de 1998 e na medida em que estes acordos ainda vigorem. [...]»
Litígio no processo principal e questões prejudiciais
27 As recorrentes no processo principal apresentaram uma reclamação relativa à adopção do capítulo 5 do código de rede pelo DTE.
28 Por decisão de 17 de Julho de 2000, o DTE indeferiu esta reclamação. Reconheceu que as prioridades em favor da SEP apresentavam inconvenientes para o bom funcionamento do mercado da electricidade. Declarou igualmente que a concorrência efectiva no mercado da produção eléctrica nos Países Baixos é ainda muito limitada, de tal forma que a concorrência praticamente só é exercida pela electricidade produzida no estrangeiro. Recordou, neste contexto, que a capacidade disponível de transporte transfronteiriço é de 3 200 MW e que o aumento desta seria dispendioso. Concluiu que uma reserva para o período relativo aos contratos internacionais da SEP que ainda falta cumprir implica uma séria restrição das possibilidades de importação e, portanto, do comércio da electricidade para outros operadores do mercado.
29 No entanto, o DTE justificou a sua decisão de indeferimento considerando que se tratava de contratos de longa duração em vigor, celebrados pela SEP nos termos da legislação então vigente e em execução de um serviço de interesse económico geral, na acepção do artigo 86.° CE. Além disso, a EW 1998 não continha qualquer disposição susceptível de pôr em causa a validade desses contratos, pelo que estes deveriam, em princípio, ser executados. A interrupção da execução dos contratos existentes traduzir‑se‑ia numa violação inaceitável da segurança jurídica das partes, assim como num prejuízo financeiro importante. Para mais, a execução desses contratos não hipotecava a capacidade de transporte transnacional.
30 As recorrentes no processo principal recorreram da decisão do DTE para o College van Beroep voor het bedrijfsleven. Alegaram que esse acto foi adoptado em violação dos artigos 28.° CE, 81.° CE, 82.° CE e 86.° CE, do princípio da não discriminação consagrado no artigo 7.°, n.° 5, da directiva e do artigo 24.° da EW 1998, bem como dos princípios da não discriminação e da objectividade. Esta decisão viola, igualmente, o interesse no favorecimento do desenvolvimento das trocas comerciais no mercado da electricidade, na acepção do artigo 36.° desta última lei. As referidas recorrentes alegaram, além disso, que o método de atribuição do código de rede devia ser considerado uma «regulamentação técnica» e que, consequentemente, devia ter sido levado ao conhecimento da Comissão, nos termos da Directiva 83/189/CEE do Conselho, de 28 de Março de 1983, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas (JO L 109, p. 8; EE 13 F14 p. 34).
31 Neste contexto, o College van Beroep voor het bedrijfsleven decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) a) O artigo 86.°, n.° 2, CE pode ser invocado para justificar que a uma empresa, a quem anteriormente tinha sido confiada a gestão de um serviço de interesse económico geral e que, no quadro dessa gestão, contraiu determinadas obrigações, seja concedido, uma vez finda a missão específica que lhe tinha sido confiada, um direito especial que lhe permita satisfazer essas obrigações?
b) Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, um regime que prevê a atribuição prioritária durante um período de dez anos (de forma degressiva) de metade a um quarto da capacidade de transporte transnacional de electricidade à empresa em questão é, todavia, inválido pelo facto de
– não ser proporcional ao interesse – público – prosseguido;
– afectar as trocas comerciais de maneira que contraria os interesses da Comunidade?
2) a) Deve o artigo 7.°, n.° 5, da directiva ‘Electricidade’ ser interpretado no sentido de que a proibição de discriminação aí consagrada se limita a proibir ao operador da rede de transporte a introdução de qualquer discriminação no acesso à rede através do estabelecimento de normas técnicas?
Em caso de resposta afirmativa, deve ser qualificado de norma técnica, na acepção da referida disposição, um método de atribuição da capacidade de transporte transnacional de electricidade?
b) Caso o método de atribuição deva ser considerado uma norma técnica, ou caso a aplicação do artigo 7.°, n.° 5, da directiva ‘Electricidade’ não se limite unicamente às normas técnicas, um regime que atribui prioritariamente a capacidade de transporte transnacional à execução de contratos celebrados no âmbito de uma missão pública específica é compatível com a proibição de discriminações imposta por esse artigo?»
Quanto à segunda questão
32 Com a sua segunda questão, que importa examinar em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a proibição de discriminação prevista no artigo 7.°, n.° 5, da directiva se opõe a que medidas como os pontos 5.6.4 e 5.6.7 do código de rede ou o artigo 13.°, n.° 1, da Overgangswet 2000 (a seguir «medidas em causa») que atribuem prioritariamente à SEP uma parte da capacidade de importação de electricidade a fim de lhe permitir cumprir obrigações que decorrem dos contratos internacionais por si celebrados quando estava encarregue da missão de velar pelo funcionamento fiável e eficaz da distribuição pública de electricidade a custos tão baixos quanto possível e justificados relativamente à colectividade.
33 Importa, antes de mais, declarar que o artigo 7.°, n.° 5, da directiva visa o operador da rede nacional de transporte de electricidade (acórdão de 14 de Abril de 2005, AEM e AEM Torino, C‑128/03 e C‑129/03, ainda não publicado na Colectânea, n.° 56). Embora, aparentemente, o código de rede, aprovado pelo DTE, não seja imputável ao gestor neerlandês da rede de electricidade, TenneT, não deixa de ser verdade que o órgão jurisdicional de reenvio questiona o Tribunal de Justiça sobre o alcance desta disposição.
34 No âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, instituída pelo artigo 234.° CE, compete apenas ao juiz nacional apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. O indeferimento, por este, de uma questão apresentada por um órgão jurisdicional nacional só é possível se for manifesto que a interpretação solicitada do direito comunitário não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio ou quando a questão é geral ou hipotética (v., designadamente, acórdãos de 15 de Dezembro de 1995, Bosman, C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.os 59 a 61; de 27 de Novembro de 1997, Somalfruit e Camar, C‑369/95, Colect., p. I‑6619, n.os 40 e 41, e de 13 de Julho de 2000, Idéal tourisme, C‑36/99, Colect., p. I‑6049, n.° 20).
35 No processo principal, conclui‑se que o operador da rede tomou medidas concretas de recusa de acesso à rede a, pelo menos, uma das recorrentes no processo principal, a Eneco NV, ao abrigo dos pontos 5.6.4 ou 5.6.7 do código de rede. Assim, o órgão jurisdicional de reenvio podia considerar que a interpretação do artigo 7.°, n.° 5, da directiva é necessária para resolver o litígio no processo principal. Há, portanto, que interpretar esta disposição à luz dos referidos pontos 5.6.4 ou 5.6.7.
36 Na medida em que o litígio no processo principal tem por objecto medidas estatais não imputáveis ao operador da rede, há igualmente que referir o artigo 16.° da directiva. Com efeito, resulta desta disposição que embora os Estados‑Membros, para efeitos da organização do acesso à rede, possam escolher entre a fórmula do acesso negociado à rede e a do comprador único, ambas as fórmulas devem ser aplicadas em conformidade com critérios objectivos, transparentes e não discriminatórios (acórdão AEM e AEM Torino, já referido, n.° 57). Consequentemente, este artigo 16.° proíbe os Estados‑Membros de organizarem o acesso à rede de forma discriminatória.
37 O artigo 13.°, n.° 1, da Overgangswet 2000, segundo o qual, para os anos de 2001 e seguintes, o operador da rede atribui à SEP um acesso prioritário à rede de transporte transfronteiriço de electricidade, foi aprovado depois de o recurso na causa principal ter sido interposto. Assim, há que analisar esta disposição à luz do princípio da não discriminação, inscrito no artigo 16.° da directiva.
38 No que se refere ao campo de aplicação do artigo 7.°, n.° 5, da directiva, esta disposição não visa apenas, segundo os recorrentes no processo principal, normas técnicas, antes proibindo medidas como as em causa.
39 Os Governos neerlandês, francês, finlandês e norueguês, assim como a Comissão, sustentam igualmente que o artigo 7.°, n.° 5, da directiva não se aplica apenas às normas técnicas. Consideram, no entanto, que as medidas em causa não constituem discriminações proibidas pela referida disposição.
40 Em contrapartida, segundo a NEA, porque os restantes números do artigo 7.° da directiva se referem a essas normas técnicas, há que concluir que também o seu n.° 5 está limitado às normas técnicas. Como as medidas em causa não são susceptíveis de serem consideradas medidas técnicas, não caem no âmbito de aplicação do artigo 7.°, n.° 5, da directiva.
41 Na interpretação de uma disposição de direito comunitário, há que ter em conta não apenas os seus termos mas também o seu contexto e os objectivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (v., designadamente, acórdãos de 17 de Novembro de 1983, Merck, 292/82, Recueil, p. 3781, n.° 12; de 21 de Fevereiro de 1984, St. Nikolaus Brennerei, 337/82, Recueil, p. 1051, n.° 10, e de 14 de Outubro de 1999, Adidas, C‑223/98, Colect., p. I‑7081, n.° 23).
42 Em primeiro lugar, o artigo 7.°, n.° 5, da directiva está redigido em termos gerais, proibindo «medidas discriminatórias entre os utilizadores ou categorias de utilizadores da rede». A redacção desta disposição não contém, portanto, qualquer indicação que pugne por uma interpretação restritiva limitada às normas técnicas.
43 Em segundo lugar, resulta do contexto do artigo 7.° da directiva que o seu n.° 5 não pode estar limitado às normas técnicas. Com efeito, o n.° 2 deste mesmo artigo já dispõe que as normas técnicas devem ser não discriminatórias. Ora, se a regra de não discriminação que figura no n.° 5 estivesse limitada às normas técnicas, a regra prevista no n.° 2 não teria qualquer utilidade.
44 Em terceiro lugar, relativamente aos objectivos da directiva, o vigésimo quinto considerando desta enuncia, sem prever nenhuma limitação no que toca às normas técnicas, que o operador da rede «deve actuar de forma objectiva, transparente e não discriminatória».
45 À luz do exposto, há que concluir que o artigo 7.°, n.° 5, da directiva não está limitado às normas técnicas, devendo antes ser interpretado no sentido de que se aplica a qualquer discriminação.
46 A mesma conclusão se impõe relativamente ao artigo 16.° da directiva. Com efeito, a regra de não discriminação aí prevista está redigida em termos gerais e tem de ser lida à luz do artigo 3.°, n.° 1, desta mesma directiva, segundo o qual os Estados‑Membros não farão discriminações no que respeita aos direitos ou obrigações das empresas de electricidade.
47 Quanto à questão de saber se as medias em causa constituem uma discriminação contrária à directiva, há que recordar que as disposições desta, que exigem que a actuação do operador da rede e a do Estado na implementação do acesso à rede sejam não discriminatórias, são expressões particulares do princípio geral da igualdade [v. acórdão AEM e AEM Torino, já referido, n.° 58; assim como, por analogia, no que se refere ao artigo 40.°, n.° 3, segundo parágrafo, do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 34.°, n.° 2, segundo parágrafo, CE), acórdão de 5 de Outubro de 1994, Alemanha/Conselho, C‑280/93, Colect., p. I‑4973, n.° 67, e, em matéria de defesa contras as importações objecto de dumping por parte de Estados terceiros, acórdão de 27 de Janeiro de 2005, Europe Chemi‑Com (Deutschland)/Conselho, C‑422/02 P, ainda não publicado na Colectânea, n.° 33].
48 A proibição de discriminação, que faz parte dos princípios fundamentais do direito comunitário, exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente, a menos que uma diferenciação se justifique objectivamente (v., designadamente, acórdão Alemanha/Conselho, já referido, n.° 67).
49 Por força das medidas em causa, foram atribuídos prioritariamente à SEP, em 2000, 1 500 MW dos 3 200 MW disponíveis da capacidade transnacional de transporte de electricidade, o que corresponde a 47% da capacidade disponível. A capacidade máxima reservada prioritariamente à NEA de 2001 até 31 de Março de 2009 é de 750 MW, nos termos do artigo 13.°, n.° 1, da Overgangswet 2000, o que corresponde a 23,4% da capacidade disponível. Como refere a Eneco NV, sem ser contestada, a TenneT indeferiu, ao abrigo das medidas em causa, o seu pedido de capacidade de importação de electricidade, não tendo, por conseguinte, conseguido efectuar o fornecimento de electricidade que se comprometera a fazer aos seus clientes, na sequência da liberalização do mercado. Consequentemente, os concorrentes da SEP sofreram um prejuízo financeiro importante, tanto mais que, como resulta da decisão de reenvio, o jogo da concorrência em matéria de fornecimento de electricidade nos Países Baixos só existe, praticamente, com a electricidade produzida no estrangeiro.
50 É pacífico que um acesso prioritário, como o que foi atribuído à SEP, e em seguida à NEA, à rede de transporte transfronteiriço de electricidade ao abrigo de medidas como as em causa constitui um tratamento diferenciado.
51 Contudo, a NEA, apoiada pelos Governos neerlandês e francês, afirma que a sua situação não é comparável à dos outros operadores. Com efeito, os contratos internacionais da SEP foram celebrados num momento em que esta era proprietária da rede de alta tensão e das instalações de interligação. Estes contratos foram celebrados no âmbito do desempenho de uma missão de interesse económico geral, baseada na EW 1989, e cujo objecto era garantir o abastecimento eléctrico nos Países Baixos para revenda a preços razoáveis.
52 Antes da liberalização do mercado da electricidade nos Países Baixos, a SEP era efectivamente a única empresa autorizada a importar electricidade e a ser incumbida da missão de interesse económico geral de assegurar o funcionamento fiável e eficaz da distribuição pública de electricidade a custos tão baixos quanto possível e justificados relativamente à colectividade.
53 No entanto, devido à liberalização do mercado que se seguiu à transposição da directiva, a SEP perdeu o monopólio da importação. Esse mercado de importação foi aberto a outros operadores concorrentes. Simultaneamente, depois da entrada em vigor da EW 1998, a SEP deixou de estar incumbida dessa missão.
54 Há, então, que verificar se o tratamento diferenciado, que consiste no acesso prioritário da SEP, e em seguida da NEA, à rede de transporte transfronteiriço de electricidade ao abrigo das medidas em causa, se justifica à luz da directiva.
55 A NEA e, em substância, os Governos neerlandês e norueguês sustentam que um tratamento diferenciado como o ora em apreço se justifica pelo facto de a SEP estar então obrigada a celebrar esses contratos de longa duração no desempenho da sua missão. Caracterizados por um custo fixo elevado e por um preço por MW relativamente baixo, estes contratos penalizavam fortemente a NEA se esta não pudesse importar as quantidades de electricidade pretendidas, atendendo à falta de capacidade suficiente da rede de transporte transfronteiriço. Este facto justificava a reserva prioritária de uma determinada capacidade da referida rede à NEA.
56 Este argumento não procede.
57 A fim de atenuar determinadas consequências da liberalização, a directiva prevê, no seu artigo 24.°, a possibilidade de aplicação, em certas condições, de um regime transitório. Nos termos desta disposição, os Estados‑Membros podem solicitar derrogações, designadamente aos capítulos IV e VII da directiva, que contêm, respectivamente, os artigos 7.° e 16.°, quando compromissos ou garantias de funcionamento concedidos antes da entrada em vigor dessa directiva sejam susceptíveis de não poderem ser honrados devido às disposições desta.
58 Tendo em atenção esta disposição específica para tratar as situações especiais que resultem do contexto jurídico existente antes da entrada em vigor da directiva, a existência de uma discriminação na acepção dos artigos 7.°, n.° 5, e 16.° desta última deve ser analisada sem que se tomem em consideração essas situações especiais.
59 Nos termos do artigo 24.° da directiva, os pedidos de derrogação devem ser apresentados pelos Estados‑Membros o mais tardar um ano após a entrada em vigor desta. Segundo a mesma disposição, cabe à Comissão tomar essa decisão que, para esse fim, deverá tomar em consideração, nomeadamente, a dimensão e o nível de interligação da rede em causa, assim como a estrutura da indústria da electricidade do Estado em causa. Além disso, antes de tomar uma decisão, a Comissão deve informar os Estados‑Membros desses pedidos, que têm assim a possibilidade de comunicar à Comissão a respectiva posição. Por último, as eventuais derrogações na acepção do referido artigo devem ser limitadas no tempo e ser função do termo dos compromissos ou das garantias em causa.
60 O Reino dos Países Baixos podia ter invocado o artigo 24.° da directiva para solicitar, em tempo útil, uma derrogação temporária aos artigos 7.°, n.° 5, e 16.° desta em favor da SEP, sob a forma de um pedido para poder atribuir prioritariamente a essa empresa uma parte da capacidade de transporte transfronteiriço de electricidade. No entanto não o fez, uma vez que só terminado o prazo fixado é que apresentou um único pedido com o objectivo de ser compensada por uma parte das perdas financeiras que a SEP sofreu devido à execução dos contratos internacionais celebrados no quadro da sua missão de serviço público anterior [v. Decisão 1999/796/CE da Comissão, de 8 de Julho de 1999, relativa ao pedido de regime transitório apresentado pelos Países Baixos em conformidade com o artigo 24.° da Directiva 96/92/CE do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade (JO L 319, p. 34, n.° 44)]. O Reino dos Países Baixos não solicitou, portanto, autorização no que toca às medidas em causa e a Comissão não pôde autorizar a medida pretendida por esse Estado devido à sua notificação intempestiva.
61 Ora, o procedimento, os critérios e os limites previstos no artigo 24.° da directiva ficariam vazios de sentido se se admitisse que um Estado‑Membro pode, unilateralmente e sem respeitar o referido procedimento, tratar diferenciadamente importadores de electricidade devido a considerações susceptíveis, precisamente, de justificar, ao abrigo do artigo 24.° da directiva, uma derrogação aos artigos 7.°, n.° 5, e 16.° deste diploma.
62 Com efeito, por um lado, uma interpretação diferente poderia comprometer, desrespeitando o objectivo da directiva, a passagem de um mercado da electricidade monopolístico e fechado para um mercado aberto e concorrencial. Por efeito das medidas em causa, o acesso de novos operadores ao mercado é seriamente posto em causa, ou mesmo impedido, e a posição do antigo monopolista neerlandês podia ser protegida da concorrência dos outros operadores para além das possibilidades que o legislador comunitário previu na directiva para conciliar a realização do mercado da electricidade com a salvaguarda dos compromissos assumidos ao abrigo da legislação anterior.
63 Por outro lado, o sistema de derrogação previsto no artigo 24.° da directiva serve, designadamente, para assegurar a igualdade de tratamento dos antigos monopolistas nacionais que se encontram numa situação semelhante à da NEA. Esta igualdade de tratamento poderia ficar comprometida se se admitisse que os Estados‑Membros, fora do procedimento e das condições previstas no artigo 24.° da directiva, pudessem beneficiar o respectivo antigo monopolista de modo a garantir a execução dos contratos de longa duração celebrados por este antes da liberalização do mercado da electricidade. Isto seria contrário ao objectivo da directiva, referido no décimo segundo considerando desta, segundo o qual, «independentemente do modo de organização do mercado em vigor, o acesso à rede deve ser aberto nos termos da presente directiva e conduzir a resultados económicos equivalentes nos Estados‑Membros e, por conseguinte, a um nível directamente comparável de abertura dos mercados e a um grau directamente comparável de acesso aos mercados da electricidade».
64 Contudo, o Governo neerlandês alega que as disposições dos artigos 3.°, n.° 3, e 17.°, n.° 5, da directiva, que autorizam o operador da rede, em determinadas circunstâncias, a recusar o acesso a esta, demonstram que o facto de se reservar uma determinada capacidade do transporte transfronteiriço de electricidade não entra necessariamente em conflito com o princípio da não discriminação. O Governo finlandês desenvolve um raciocínio semelhante, referindo‑se aos artigos 8.°, n.° 2, e 17.°, n.° 5, da directiva, assim como o Governo norueguês e a Comissão, que se referem igualmente a esta última disposição e ao artigo 3.°, n.° 3, da mesma directiva.
65 O artigo 3.°, n.° 3, da directiva permite aos Estados‑Membros derrogar, em certas condições, os artigos 5.°, 6.°, 17.°, 18.° e 21.° da directiva. Não visa nem o artigo 7.° nem o artigo 16.° desse diploma. Assim, não pode ser invocado para justificar uma derrogação aos seus artigos 7.°, n.° 5, e 16.°
66 Quanto ao artigo 17.°, n.° 5, da directiva, aí se enuncia que o operador da rede pode recusar o acesso a esta se não dispuser da capacidade necessária, devendo essa recusa ser devidamente fundamentada e justificada. No entanto, atendendo às considerações expostas nos n.os 56 a 63 do presente acórdão, não se pode considerar justificado um acesso prioritário fundado na existência de contratos celebrados antes da entrada em vigor da directiva e atribuído fora do procedimento previsto no artigo 24.° da directiva.
67 No que se refere ao artigo 8.°, n.° 2, da directiva, aí se prevê:
«Sem prejuízo do fornecimento de electricidade com base em obrigações contratuais, incluindo as decorrentes das condições do concurso, a mobilização das instalações de produção e a utilização das interligações far‑se‑ão com base em critérios que podem ser aprovados pelo Estado‑Membro em causa e que deverão ser objectivos, publicados e aplicados de forma não discriminatória, a fim de assegurar o bom funcionamento do mercado interno da electricidade. Tais critérios tomarão em consideração a prioridade económica da electricidade proveniente das instalações de produção disponíveis ou das transferências através de interligações e os condicionalismos técnicos da rede.»
68 Esta disposição não limita, directa ou indirectamente, o alcance do princípio da não discriminação previsto nos artigos 7.°, n.° 5, e 16.° da directiva. Deste modo, não pode ser utilmente invocada.
69 Neste contexto, também não se pode invocar utilmente o último considerando da directiva, referido pela Comissão, e segundo o qual a directiva constitui apenas uma fase posterior da liberalização do mercado da electricidade e não impedirá que se mantenham alguns obstáculos ao comércio da electricidade entre os Estados‑Membros. Com efeito, formulado de forma muito genérica, este considerando não pode justificar derrogações aos artigos 7.°, n.° 5, e 16.° da directiva.
70 O mesmo se passa relativamente ao quinto considerando da directiva, invocado pela NEA, nos termos do qual o mercado interno da electricidade deve ser criado progressivamente. O carácter progressivo da liberalização decorre do facto de o mercado só dever ser aberto aos grandes consumidores em 2000, em seguida aos consumidores médios em 2002, e, por último, à totalidade dos consumidores em 2004. Este carácter progressivo decorre, além do mais, das disposições transitórias e derrogatórias do artigo 24.° da directiva. Contudo, este quinto considerando não pode justificar derrogações aos artigos 7.°, n.° 5, e 16.° da directiva.
71 Destas considerações infere‑se que a concessão a um operador de um acesso prioritário a uma parte da capacidade de transporte transfronteiriço de electricidade conferida devido a compromissos assumidos antes da entrada em vigor da directiva, mas sem que o procedimento previsto no artigo 24.° da directiva tenha sido respeitado, deve ser considerada discriminatória na acepção dos artigos 7.°, n.° 5, e 16.° desta última e, consequentemente, contrária a esses artigos.
72 A NEA e o Governo finlandês observam, contudo, que um operador como a NEA terá o direito de executar os contratos internacionais da SEP ao abrigo dos princípios da protecção da confiança legítima e da segurança jurídica.
73 É certo que o princípio da protecção da confiança legítima se inscreve entre os princípios fundamentais da Comunidade (v., designadamente, acórdãos de 14 de Outubro de 1999, Atlanta/Comunidade Europeia, C‑104/97 P, Colect., p. I‑6983, n.° 52, e de 15 de Julho de 2004, Di Lenardo e Dilexport, C‑37/02 e C‑38/02, Colect., p. I‑6945, n.° 70).
74 Segundo jurisprudência constante, a possibilidade de invocar o princípio da protecção da confiança legítima é reconhecida a qualquer operador económico em cuja esfera uma instituição tenha feito surgir esperanças fundadas. Todavia, quando um operador económico prudente e avisado puder prever a adopção de uma medida comunitária susceptível de afectar os seus interesses, não pode, quando essa medida for tomada, invocar o benefício desse princípio (v., designadamente, acórdãos, já referidos, Atlanta/Comunidade Europeia, n.° 52, assim como Di Lenardo e Dilexport, n.° 70).
75 No caso em apreço, as instituições comunitárias não tomaram qualquer medida nem adoptaram nenhum comportamento que permitisse prever a manutenção da situação legislativa em vigor em 1989 e em 1990, ao abrigo da qual os contratos internacionais da SEP foram celebrados.
76 Em especial, embora o Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 23 de Outubro de 1997, Comissão/Países Baixos (C‑157/94, Colect., p. I‑5699), tenha rejeitado o pedido da Comissão em que esta solicitava que o Tribunal declarasse, ao abrigo do direito anterior à entrada em vigor da directiva, que a legislação neerlandesa, na verdade a EW 1989, violou o artigo 37.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 31.° CE) ao conceder à SEP direitos exclusivos de importação de electricidade, não garantiu minimamente um statu quo legislativo a nível comunitário.
77 Além disso, a directiva apenas representa a segunda etapa de um processo anunciado conducente à liberalização do mercado da electricidade, tendo a primeira etapa sido marcada pela Directiva 90/547/CEE do Conselho, de 29 de Outubro de 1990, relativa ao trânsito de electricidade nas grandes redes (JO L 313, p. 30). De acordo com o primeiro considerando desta última directiva, o Conselho Europeu, nas suas reuniões sucessivas, concluiu pela necessidade de realizar um mercado interno único no sector da energia. Para mais, na sua comunicação sobre o crescimento das trocas intracomunitárias de electricidade: um elemento fundamental na realização do mercado interno da energia, de 29 de Setembro de 1989 [COM(89) 336 final], que acompanha o projecto da Directiva 90/547, a Comissão considerava a possibilidade de as redes de transporte de electricidade reservadas aos monopólios nacionais ou regionais serem colocadas à disposição de terceiros e considerava necessária a supressão dos monopólios de importação ou de exportação (v. n.os 2 e 52 da referida comunicação).
78 Por conseguinte, não se pode afirmar que as instituições comunitárias deram azo a esperanças fundadas por parte da SEP quanto à manutenção de um monopólio de importação de electricidade nos Países Baixos ou ao benefício de um direito preferencial de utilização da rede de transporte transfronteiriço de electricidade até ao termo dos contratos internacionais celebrados.
79 É verdade que os poderes públicos neerlandeses adoptaram um quadro legislativo nacional em que a SEP celebrou contratos internacionais a fim de poder cumprir a sua missão de interesse económico geral de assegurar o funcionamento fiável e eficaz da distribuição de electricidade a custos tão baixos quanto possível e justificados relativamente à colectividade. No entanto, um Estado‑Membro não pode vincular a Comunidade de tal modo que esta deixe de poder empreender ou prosseguir a liberalização do mercado da electricidade.
80 No que se refere ao princípio da segurança jurídica, este exige, em especial, que uma regulamentação que impõe encargos desfavoráveis aos particulares seja clara e precisa e a sua aplicação previsível para os particulares (v., neste sentido, acórdãos de 15 de Dezembro de 1987, Irlanda/Comissão, 325/85, Colect., p. 5041; de 13 de Fevereiro de 1996, Van Es Douane Agenten, C‑143/93, Colect., p. I‑431, n.° 27, e de 15 de Fevereiro de 1996, Duff e o., C‑63/93, Colect., p. I‑569, n.° 20).
81 Como foi já declarado pelo Tribunal de Justiça, não se pode depositar a confiança na ausência total de alteração legislativa, mas apenas pôr em causa as modalidades de aplicação de tal alteração (v., no que se refere a uma alteração legislativa que suprimiu o direito de deduzir o imposto sobre o valor acrescentado para determinadas despesas relativas ao arrendamento de imóveis, acórdão de 29 de Abril de 2004, Gemeente Leusden e Holin Groep, C‑487/01 e C‑7/02, Colect., p. I‑5368, n.° 81). Do mesmo modo, o princípio da segurança jurídica não exige a inexistência de alteração legislativa, antes exigindo que o legislador tome em consideração as situações especiais dos operadores económicos e preveja, eventualmente, adaptações à aplicação das novas regras jurídicas.
82 A este propósito, importa sublinhar que a directiva contém disposições que permitem que sejam tomadas em consideração as situações especiais dos operadores económicos, como a SEP, no contexto da liberalização do mercado da electricidade. Designadamente, no seu artigo 24.°, a directiva oferecia aos Estados‑Membros a possibilidade de solicitarem uma derrogação aos artigos 7.°, n.° 5, e 16.°, no que se refere aos compromissos ou às garantias de funcionamento concedidos antes da entrada em vigor da directiva. Ora, o Reino dos Países Baixos não recorreu a esta possibilidade (v. Decisão 1999/796, n.° 44).
83 A Comissão invoca a inexistência, na directiva, de uma obrigação de resolução de contratos, como os contratos internacionais da SEP. Contudo, esta situação não permite que se violem as regras da directiva pelo facto de essa violação ser necessária para honrar esses contratos. Para mais, a resolução destes seria apenas uma consequência indirecta e eventual dessa directiva. Para mais, esta não impede um operador como a SEP (que se tornou NEA a partir de 2001) de vender, fora dos Países Baixos, a electricidade que se comprometera a comprar nos seus contratos internacionais.
84 A NEA invoca, além disso, o Regulamento (CE) n.° 1228/2003 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho de 2003, relativo às condições de acesso à rede para o comércio transfronteiriço de electricidade (JO L 176, p. 1), designadamente, o ponto 2, constante do título «Caso dos contratos a longo prazo» do anexo desse regulamento, segundo o qual «[o]s contratos a longo prazo existentes não terão direito de preferência aquando da sua renovação». Segundo a NEA, decorre desta disposição que os contratos celebrados antes da entrada em vigor do referido regulamento devem poder ser honrados.
85 Este argumento não altera a apreciação que aqui foi feita. Com efeito, esta disposição, que não estava em vigor no momento dos factos que estão na origem do litígio principal, é perfeitamente coerente com a interpretação dos artigos 7.°, n.° 5, e 16.° da directiva, feita nos n.os 56 a 63 do presente acórdão, e não pode, portanto, pô‑la em causa. Essa interpretação confirma apenas, no presente caso, que eventuais derrogações aos referidos artigos concedidas ao abrigo do artigo 24.° da directiva não podem exceder a dos compromissos assumidos em contratos celebrados antes da entrada em vigor dessa directiva.
86 Estas considerações não prejudicam a resposta à questão de saber se e em que medida uma empresa como a NEA pode, com base no direito nacional, pretender obter uma indemnização pelo prejuízo que, eventualmente, lhe foi causado pela opção feita pelas autoridades neerlandesas de não solicitarem uma derrogação ao abrigo do artigo 24.° da directiva, no que respeita às medidas em causa.
87 Resulta das considerações que precedem que circunstâncias como as que foram apresentadas pelas partes e pelos interessados que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça não permitem que se invoquem utilmente os princípios de protecção da confiança legítima e da segurança jurídica.
88 Assim, deve responder‑se à segunda questão que:
– os artigos 7.°, n.° 5, e 16.° da directiva não visam apenas as normas técnicas, antes devendo ser interpretados no sentido de que se aplicam a qualquer discriminação;
– os referidos artigos opõem‑se a medidas nacionais que atribuam a uma empresa uma capacidade prioritária de transporte transfronteiriço de electricidade, independentemente de essas medidas emanarem do gestor de rede, do controlador da gestão da rede ou do legislador, quando não tenham sido autorizadas no âmbito do procedimento previsto no artigo 24.° da directiva.
Quanto à primeira questão
89 Por meio da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 86.°, n.° 2, CE deve ser interpretado no sentido de justificar medidas como as em causa no processo principal.
90 Tendo em conta a resposta dada à segunda questão, não há que responder à primeira.
Quanto às despesas
91 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:
1) Os artigos 7.°, n.° 5, e 16.° da Directiva 96/92/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Dezembro de 1996, que estabelece regras comuns para o mercado interno da electricidade, não visam apenas as normas técnicas, antes devendo ser interpretados no sentido de que se aplicam a qualquer discriminação.
2) Os referidos artigos opõem‑se a medidas nacionais que atribuam a uma empresa uma capacidade prioritária de transporte transfronteiriço de electricidade, independentemente de essas medidas emanarem do gestor de rede, do controlador da rede ou do legislador, quando não tenham sido autorizadas no âmbito do procedimento previsto no artigo 24.° da Directiva 96/92.
Assinaturas
* Língua do processo: neerlandês.