Processo C‑237/02


Freiburger Kommunalbauten GmbH Baugesellschaft & Co. KG
contra
Ludger Hofstetter e Ulrike Hofstetter



(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof)

«Directiva 93/13/CEE – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Contrato de construção e entrega de um lugar de estacionamento – Inversão da ordem de cumprimento das obrigações contratuais prevista pelas normas supletivas do direito nacional – Cláusula que obriga o consumidor a pagar o preço antes de o profissional ter cumprido as suas obrigações – Obrigação do profissional de prestar uma garantia»

Conclusões do advogado‑geral L. A. Geelhoed apresentadas em 25 de Setembro de 2003
    
Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 1 de Abril de 2004
    

Sumário do acórdão

Aproximação das legislações – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Directiva 93/13 – Cláusula abusiva na acepção do artigo 3.° – Conceito – Cláusula que obriga o consumidor a pagar a totalidade do preço antes da execução da contrapartida, mas após a constituição de uma garantia bancária – Apreciação do carácter abusivo pelo órgão jurisdicional nacional

(Directiva 93/13 do Conselho, artigo 3.°)

Compete ao órgão jurisdicional nacional determinar se uma cláusula de um contrato de construção que exige a totalidade do preço antes da execução pelo profissional das suas obrigações e que impõe a constituição de uma garantia bancária por este preenche os critérios exigidos para ser qualificada de abusiva na acepção do artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 93/13, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores.

Com efeito, embora o Tribunal de Justiça possa interpretar os critérios gerais utilizados pelo legislador comunitário para definir o conceito de cláusula abusiva tal como consta da Directiva 93/13, não pode, ao invés, pronunciar‑se sobre a aplicação desses critérios gerais a uma cláusula particular que deve ser apreciada em função das circunstâncias próprias do caso.

(cf. n.os 22, 25, disp.)




ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)
1 de Abril de 2004(1)

«Directiva 93/13/CEE – Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores – Contrato de construção e entrega de um lugar de estacionamento – Inversão da ordem de cumprimento das obrigações contratuais prevista pelas normas supletivas do direito nacional – Cláusula que obriga o consumidor a pagar o preço antes de o profissional ter cumprido as suas obrigações – Obrigação do profissional de prestar uma garantia»

No processo C-237/02,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 234.° CE, pelo Bundesgerichtshof (Alemanha), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Freiburger Kommunalbauten GmbH Baugesellschaft & Co. KG

e

Ludger Hofstetter,Ulrike Hofstetter,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),,



composto por: P. Jann (relator), exercendo as funções de presidente da Quinta Secção, C. W. A. Timmermans, A. Rosas, A. La Pergola e S. von Bahr, juízes,

advogado-geral: L. A. Geelhoed,
secretário: R. Grass,

vistas as observações escritas apresentadas:

em representação da Freiburger Kommunalbauten GmbH Baugesellschaft & Co. KG, por U. Jeutter, Rechtsanwalt,

em representação de L. e U. Hofstetter, por D. Fiebelkorn, Rechtsanwältin,

em representação do Governo alemão, por W.-D. Plessing, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por M. França e H. Kreppel, na qualidade de agentes,

visto o relatório do juiz-relator,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 25 de Setembro de 2003,

profere o presente



Acórdão



1
Por despacho de 2 de Maio de 2002, entrado no Tribunal de Justiça em 27 de Junho seguinte, o Bundesgerichtshof submeteu, nos termos do artigo 234.° CE, uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29, a seguir «directiva»).

2
Esta questão foi suscitada num litígio que opõe a Freiburger Kommunalbauten GmbH Baugesellschaft & Co. KG (a seguir «Freiburger Kommunalbauten»), recorrente no processo principal, a L. e U. Hofstetter, recorridos no processo principal, a propósito do pagamento de juros de mora sobre o preço a pagar pela construção e aquisição de um lugar de estacionamento.


Enquadramento jurídico

Directiva

3
Nos termos do artigo 1.°, n.° 1, a directiva tem por objectivo a aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas às cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores.

4
O artigo 3.° da directiva está assim redigido:

«1.     Uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

2.       Considera‑se que uma cláusula não foi objecto de uma negociação individual sempre que a mesma tenha sido redigida previamente e, consequentemente, o consumidor não tenha podido influir no seu conteúdo, em especial no âmbito de um contrato de adesão.

[…]

3.       O anexo contém uma lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas.»

5
De entre as cláusulas mencionadas nesse anexo figuram:

«[as] cláusulas que têm como objectivo ou como efeito:

[…]

b)
Excluir ou limitar de forma inadequada os direitos legais do consumidor em relação ao profissional ou a uma outra parte em caso de não execução total ou parcial ou de execução defeituosa pelo profissional de qualquer das obrigações contratuais […];

[…]

o)
Obrigar o consumidor a cumprir todas as suas obrigações, mesmo que o profissional não tenha cumprido as suas;

[…]»

6
O artigo 4.°, n.° 1, da directiva dispõe:

«Sem prejuízo do artigo 7.°, o carácter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objecto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.»

Legislação nacional

7
À época pertinente dos factos no processo principal, a protecção dos consumidores contra as cláusulas abusivas prevista na directiva estava assegurada em direito alemão na Gesetz zur Regelung des Rechts der Allgemeinen Geschäftsbedingungen (lei das cláusulas contratuais gerais), de 9 de Dezembro de 1976 (BGBl. 1976, I, p. 3317, a seguir «AGBG»). O artigo 9.° desta lei estabelecia:

«1.     As cláusulas contratuais gerais são ineficazes quando, contrariando o imperativo da boa fé, prejudiquem o co‑contratante do proponente de modo desrazoável.

2.       Em caso de dúvida, presume‑se a existência de prejuízo desrazoável quando um preceito:

1.
não é compatível com o espírito da regulamentação legal, de que se afasta, ou

2.
restringe de tal forma os direitos ou obrigações essenciais resultantes da natureza do contrato que coloca em risco a realização do objectivo contratual.»

8
No que toca ao contrato de empreitada, o Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil alemão, a seguir «BGB») prevê, no § 641, n.° 1, uma norma supletiva relativa à exigibilidade do pagamento. De acordo com este preceito, o pagamento é devido na recepção da obra.


Litígio no processo principal

9
Por acto notarial de 5 de Maio de 1998, a Freiburger Kommunalbauten, uma empresa municipal de construção, no âmbito da sua actividade comercial, vendeu a L. e U. Hofstetter, para fins privados, um lugar de estacionamento num parque que devia construir.

10
Nos termos do § 5 do contrato, a totalidade do preço era exigível após constituição de garantia por parte do empreiteiro. No caso de mora no pagamento, o adquirente era obrigado ao pagamento de juros de mora.

11
A garantia foi prestada sob a forma de garantia bancária e entregue a L. e U. Hofstetter em 20 de Maio de 1999. O banco que assumiu a garantia obrigava‑se, renunciando ao benefício de excussão, a garantir os eventuais direitos que L. e U. Hofstetter pudessem invocar, contra a Freiburger Kommunalbauten, à restituição do preço de aquisição que lhe seria pago ou de que poderia dispor.

12
L. e U. Hofstetter recusaram‑se a proceder ao pagamento. Alegaram que a disposição relativa à exigibilidade da totalidade do preço era contrária ao § 9 da AGBG. Só pagaram o preço após terem recebido o lugar de estacionamento, sem defeitos, em 21 de Dezembro de 1999.

13
A Freiburger Kommunalbauten exigiu juros de mora por atraso no pagamento. O Landgericht Freiburg (Alemanha) deferiu o pedido. Em recurso, o Oberlandesgericht Karlsruhe (Alemanha) julgou improcedente o pedido. A Freiburger Kommunalbauten interpôs então recurso de revista para o Bundesgerichtshof.

14
Este último concluiu que o contrato controvertido é abrangido pelo âmbito de aplicação da directiva, como definido no seu artigo 3.°, n.° 2. Considera que, no contexto do direito alemão, o § 5 do contrato controvertido não constitui uma cláusula abusiva. Entende no entanto que, face à diversidade das regulamentações em vigor nos Estados‑Membros, esta apreciação não é isenta de dúvidas. O Bundesgerichtshof decidiu, assim, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«A cláusula contida nas cláusulas contratuais gerais de venda segundo a qual o adquirente de um edifício por construir tem de pagar por ele a totalidade do preço, independentemente dos progressos na obra, se o vendedor lhe prestar previamente uma garantia bancária que cobre os direitos pecuniários do comprador que possam emergir do incumprimento ou do cumprimento defeituoso do contrato, é considerada abusiva na acepção do artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores?»


Quanto à questão prejudicial

15
Todas as observações apresentadas ao Tribunal de Justiça se inscrevem numa ponderação das vantagens e inconvenientes respeitantes à cláusula controvertida no quadro do direito nacional.

16
A Freiburger Kommunalbauten e o Governo alemão alegam que a cláusula controvertida não é abusiva. Os inconvenientes que podem resultar para o consumidor da obrigação de proceder ao pagamento antes da execução do contrato são contrabalançados pela garantia bancária prestada pelo construtor. É certo que esta cláusula inverte a ordem de entrega das prestações, tal como prevista, a título supletivo, no § 641 do BGB. Contudo, na medida em que, para o construtor, reduz a necessidade de recorrer a empréstimos para financiar a obra, o preço desta pode ser diminuído em conformidade. Além disso, a garantia bancária prestada pelo construtor restringe os inconvenientes sofridos pelos adquirentes, uma vez que lhes garante a restituição dos montantes pagos quer em caso de incumprimento do contrato quer em caso de cumprimento defeituoso, mesmo na hipótese de insolvência do construtor.

17
L. e U. Hofstetter sustentam que a cláusula controvertida é abusiva e cabe na categoria das cláusulas previstas no n.° 1, alíneas b) e o), do anexo da directiva. Há violação do princípio de base, reconhecido em todos os regimes de direito civil, segundo o qual as prestações recíprocas devem ser realizadas simultaneamente e a «igualdade de armas» entre as partes contraentes é quebrada em prejuízo do consumidor, cuja posição é significativamente enfraquecida, nomeadamente na eventualidade de litígio quanto à existência de vícios de construção. Acrescentam que esta cláusula é imprevista, não é clara e foi imposta por um construtor em situação de monopólio.

18
Após análise aprofundada do direito alemão, a Comissão das Comunidades Europeias chegou à conclusão de que a cláusula controvertida acarreta, em todo o caso, um prejuízo para o consumidor. A questão de saber se se trata de um desequilíbrio significativo e injustificado na acepção do artigo 3.°, n.° 1, da directiva é uma questão à qual compete ao órgão jurisdicional nacional dar resposta.

19
A este propósito, importa declarar que, referindo‑se aos conceitos de boa fé e de desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes, o artigo 3.°, n.° 1, da directiva enuncia de forma meramente abstracta os elementos que conferem um carácter abusivo a uma cláusula contratual que não foi objecto de uma negociação individual (v., neste sentido, acórdão de 7 de Maio de 2002, Comissão/Suécia, C‑478/99, Colect., p. I‑4147, n.° 17).

20
O anexo para o qual remete o artigo 3.°, n.° 3, da directiva apenas contém uma lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser declaradas abusivas. Uma cláusula que nela figure não deve ser necessariamente considerada abusiva e, inversamente, uma cláusula que aí não figure pode, todavia, ser declarada abusiva (acórdão Comissão/Suécia, já referido, n.° 20).

21
Quanto à questão de saber se uma cláusula contratual particular apresenta ou não carácter abusivo, o artigo 4.° da directiva indica que a resposta deve ser dada em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objecto do contrato e mediante a consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração. É de observar que, neste contexto, devem igualmente ser avaliadas as consequências que a referida cláusula pode ter no âmbito do direito aplicável ao contrato, o que implica um exame do sistema jurídico nacional.

22
Por conseguinte, como assinalou o advogado‑geral no n.° 25 das suas conclusões, o Tribunal de Justiça pode, no âmbito da competência de interpretação do direito comunitário que lhe é atribuída pelo artigo 234.° CE, interpretar os critérios gerais utilizados pelo legislador comunitário para definir o conceito de cláusula abusiva. Ao invés, não se pode pronunciar sobre a aplicação desses critérios gerais a uma cláusula particular que deve ser apreciada em função das circunstâncias próprias do caso.

23
É verdade que, no acórdão de 27 de Junho de 2000, Océano Grupo Editorial e Salvat Editores (C‑240/98 a C‑244/98, Colect., p. I‑4941, n.os 21 a 24), o Tribunal de Justiça declarou que uma cláusula previamente redigida por um profissional, que tem por objectivo atribuir competência, para todos os litígios decorrentes do contrato, ao órgão jurisdicional do foro onde está situada a sede do profissional, preenche todos os critérios para poder ser qualificada de abusiva à luz da directiva. Contudo, esta apreciação foi feita relativamente a uma cláusula em benefício exclusivo do profissional e sem contrapartida para o consumidor, pondo em causa, independentemente do tipo de contrato, a eficácia da protecção judicial dos direitos reconhecidos ao consumidor pela directiva. Era, portanto, possível verificar o carácter abusivo desta cláusula sem ter de examinar todas as circunstâncias próprias da celebração do contrato nem apreciar os benefícios e inconvenientes ligados a esta cláusula no direito nacional aplicável ao contrato.

24
Tal como resulta das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, não é esse o caso da cláusula que é objecto do litígio no processo principal.

25
Assim, deve responder‑se à questão submetida no sentido de que compete ao órgão jurisdicional nacional determinar se uma cláusula contratual como a que é objecto do litígio no processo principal preenche os critérios exigidos para ser qualificada de abusiva na acepção do artigo 3.°, n.° 1, da directiva.


Quanto às despesas

26
As despesas efectuadas pelo Governo alemão e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado pelo órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

pronunciando‑se sobre as questões submetidas pelo Bundesgerichtshof, por despacho de 2 de Maio de 2002, declara:

Compete ao órgão jurisdicional nacional determinar se uma cláusula contratual como a que é objecto do litígio no processo principal preenche os critérios exigidos para ser qualificada de abusiva na acepção do artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores.

Jann

Timmermans

Rosas

La Pergola

von Bahr

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 1 de Abril de 2004.

O secretário

O presidente

R. Grass

V. Skouris


1
Língua do processo: alemão.