CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
PHILIPPE LÉGER
apresentadas em 15 de Janeiro de 2004(1)



Processo C-49/02



Heidelberger Bauchemie Gmbh




[pedido de decisão prejudicialapresentado pelo Bundespatentgericht (Alemanha)]

«Marcas – Primeira Directiva 89/104/CEE – Artigo 2.° – Sinais susceptíveis de constituir uma marca – Duas cores por si sós – Exclusão»






1.        O presente processo respeita, novamente, à questão da capacidade das cores por si sós, ou seja, sem forma nem contornos, de constituírem uma marca, na acepção do artigo 2.° da Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho  (2) . No acórdão de 6 de Maio de 2003, Libertel  (3) , o Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre a questão de saber se uma cor por si só reúne as condições previstas por este artigo. No caso em apreço, o Bundespatentgericht (Tribunal federal em matéria de propriedade industrial) (Alemanha) pergunta se duas cores por si sós, ou seja, duas cores como tais, sem forma nem contornos e sem qualquer arranjo determinado entre elas, são susceptíveis de constituir uma marca, na acepção do referido artigo 2.°

I – Enquadramento jurídico

A – Direito comunitário

2.        A directiva tem como objectivo eliminar as disparidades entre as legislações dos Estados‑Membros susceptíveis de distorcer as condições de concorrência no mercado comum  (4) . Visa aproximar as disposições das legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas que tenham uma incidência mais directa sobre o funcionamento do mercado interno  (5) . Entre estas disposições contam‑se as que definem as condições a que o registo de uma marca está sujeito  (6) e as que determinam a protecção de que usufruem as marcas devidamente registadas  (7) .

3.        O artigo 2.° da directiva define os sinais que são susceptíveis de constituir uma marca. Tem a seguinte redacção:

«Podem constituir marcas todos os sinais susceptíveis de representação gráfica, nomeadamente as palavras, incluindo os nomes de pessoas, desenhos, letras, números, a forma do produto ou da respectiva embalagem, na condição de que tais sinais sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas.»

4.        O artigo 3.° da directiva enumera os fundamentos de recusa e de nulidade que podem ser opostos ao registo de uma marca. Este artigo prevê, no seu n.° 1, alínea b), que será recusado o registo ou ficarão sujeitas a declaração de nulidade, se forem registadas, as marcas desprovidas de carácter distintivo.

5.        O artigo 3.°, n.° 3, da directiva dispõe que não será recusado o registo de uma marca ou este não será declarado nulo nos termos do n.° 1, alínea b), do mesmo artigo se, antes da data do pedido de registo e após o uso que dele foi feito, a marca adquiriu um carácter distintivo.

B – Direito nacional

6.        A Gesetz über den Schutz von Marken und sonstigen Kennzeichnungen  (8) (lei alemã sobre a protecção das marcas e de outros sinais distintivos), de 25 de Outubro de 1994, que transpôs a directiva para o direito alemão e que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1995  (9) , dispõe, no seu § 3, n.° 1, que são susceptíveis de ser registados como marcas «todos os sinais, nomeadamente [...] cores e combinações de cores [...], que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas».

7.        O § 8 da Markengesetz dispõe que será recusado o registo aos sinais susceptíveis de serem protegidos como marcas, na acepção do § 3, que não possam ser objecto de representação gráfica, bem como os que sejam desprovidos de todo e qualquer carácter distintivo quanto aos produtos ou serviços indicados no pedido de registo. Dispõe também que tal não se aplica quando a marca, antes da data da decisão sobre o pedido de registo, se tiver implantado no público a que respeita, na sequência da sua utilização relativa a esses produtos ou serviços.

II – Matéria de facto e processo principal

8.        Em 22 de Março de 1995, a sociedade Heidelberger Bauchemie GmbH  (10) pediu ao Deutsches Patent‑ und Markenamt (serviço alemão das patentes e das marcas) o registo de marca das cores amarela e azul. Da parte do pedido dedicada à reprodução da marca constava um pedaço de papel rectangular, cuja metade superior era de cor azul e a metade inferior de cor amarela. A marca era descrita do seguinte modo:

«A marca apresentada é constituída pelas cores da empresa da requerente, que são utilizadas sob todas as formas imagináveis, em especial nas embalagens e etiquetas.

A descrição precisa das cores é a seguinte:

RAL 5015/HKS 47 – azul

RAL 1016/HKS 3 – amarelo.»

9.        O registo em litígio foi pedido quanto a um grande número de produtos destinados à construção, tais como aditivos, colas, resinas, produtos de desmoldagem, de protecção, de limpeza, de estanquidade, de fecho de juntas, tintas, vernizes, produtos de isolamento térmico, materiais de construção, cimentos, betumes, bem como pistolas de pressão e aparelhos de projecção.

10.      Por decisão de 18 de Setembro de 1996, o Deutsches Patent‑ und Markenamt recusou este pedido, com fundamento em que o sinal em questão não era passível de constituir uma marca. Referiu que cores ou combinações de cores abstractas sem contornos, ou seja, desprovidas de qualquer forma ou aspecto, não constituem sinais susceptíveis de protecção como marca, na acepção do § 3 da Markengesetz.

11.      A Heidelberger Bauchemie invocou seguidamente a decisão «marca de cor amarela/preta» do Bundesgerichtshof, de 10 de Dezembro de 1998  (11) , em que este órgão jurisdicional admitiu que cores e combinações de cores abstractas e sem contornos podiam constituir uma marca.

12.      Por decisão de 2 de Maio de 2000, o Deutsches Patent‑ und Markenamt, admitindo embora que estavam preenchidas as condições exigidas pelo § 3 da Markengesetz, recusou novamente o pedido, com fundamento na inexistência de qualquer carácter distintivo.

13.      A Heidelberger Bauchemie interpôs então recurso desta decisão para o Bundespatentgericht.

III – Pedido de decisão a título prejudicial

14.      Por decisão de 22 de Janeiro de 2002, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 20 de Fevereiro de 2002, o Bundespatentgericht decidiu suspender a instância e apresentar ao Tribunal de Justiça o presente pedido de decisão a título prejudicial.

15.      Segundo a decisão de reenvio, o Bundespatentgericht deparou‑se com a seguinte problemática. Até à adopção da nova lei alemã sobre as marcas, uma cor ou uma combinação de cores abstractas era considerada na sua ordem jurídica nacional inapta para constituir uma marca. As cores só podiam ser protegidas na forma concreta em que fossem utilizadas. Na sequência da adopção da nova lei, a maioria da doutrina admitiu que uma cor ou uma combinação de cores abstracta podia desde então constituir uma marca. É também esta a posição adoptada pelo Bundesgerichtshof.

16.      O Bundespatentgericht entende, todavia, que esta posição se confronta com sérias objecções jurídicas. Na sua opinião, uma marca de cor abstracta permite conceber um número infinito de aspectos. Trata‑se, portanto, de uma opção tomada quanto a marcas a conceber posteriormente, das quais só a cor é definida. É duvidoso, como tal, que uma marca de cor abstracta seja um sinal na acepção deste artigo e que se lhe possa reconhecer uma capacidade distintiva.

17.      Além disso, o registo como marcas de cores abstractas colide, segundo o Bundespatentgericht, com o princípio da precisão, por força do qual um pedido de registo de marca deve permitir determinar claramente qual é o objecto da protecção. É para satisfazer este requisito que o artigo 2.° da directiva exige que o sinal em questão possa ser objecto de uma representação gráfica. Segundo o Bundespatentgericht, este requisito tem também como objectivo permitir apreciar os fundamentos de recusa assentes nos artigos 3.° e 4.° da directiva, bem como o uso correcto da marca, exigido pelo seu artigo 10.° Uma amostra das cores e a sua identificação através de um código internacional não constituem, portanto, uma representação gráfica, na acepção do artigo 2.° da directiva, porque tal marca pode surgir, na realidade, sob uma infinidade de formas diferentes.

18.      Foi à luz destas considerações que o Bundespatentgericht decidiu apresentar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«As cores ou combinações de cores, quando apresentadas de forma abstracta e sem contornos para inscrição no registo de marcas, cujas tonalidades são designadas textualmente com exibição de uma amostra de cor (de um padrão de cor) e descritas com precisão por referência a um sistema de classificação de cores reconhecido, preenchem as exigências do artigo 2.° da [directiva] para serem susceptíveis de constituir uma marca?

Em especial, será tal ‘marca de cor (abstracta)’, para efeitos do referido artigo da directiva,

a)       um sinal,

b)       adequada a distinguir a origem,

c)       susceptível de representação gráfica?’

IV – O acórdão Libertel e a interpretação do artigo 2.° da directiva pelo Tribunal de Justiça

19.      Posteriormente ao despacho de reenvio, o Tribunal de Justiça proferiu o acórdão Libertel, já referido. Neste processo, o litígio no processo principal respeitava ao registo como marca da cor laranja, por si só, para produtos e serviços de telecomunicações. O Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos) apresentou várias questões prejudiciais no sentido de saber se uma cor, por si só, sem delimitação no espaço, é susceptível de apresentar, para determinados produtos e serviços, carácter distintivo na acepção do artigo 3.°, n.os 1, alínea b), da directiva e, em caso afirmativo, em que condições.

20.      O Tribunal de Justiça considerou que o exame destas questões exigia que se determinasse previamente se uma cor por si só pode constituir uma marca nos termos do artigo 2.° da directiva. Referiu que, para este efeito, uma cor por si só deve preencher as três condições seguintes: em primeiro lugar, constituir um sinal, em segundo lugar, ser susceptível de representação gráfica e, em terceiro lugar, ser adequada a distinguir os produtos e serviços de uma empresa dos de outras empresas  (12) .

21.      Quanto à primeira condição, o Tribunal de Justiça referiu que, embora não se possa presumir que uma cor, por si só, seja um sinal, uma vez que, normalmente, constitui uma mera característica das coisas, é, contudo, susceptível de constituir um sinal, relacionada com um produto ou um serviᄃo  (13) .

22.      Relativamente à segunda condição, o Tribunal de Justiça considerou que uma cor, por si só, pode ser objecto de uma representação gráfica por meio da sua designação através de um código de identificação internacionalmente reconhecido e, em certos casos, pela associação de uma amostra dessa cor e de uma descrição verbal da mesma  (14) .

23.      No que respeita à terceira condição, o Tribunal de Justiça considerou que não é de excluir que existam situações em que uma cor por si só possa servir de indicação de origem dos produtos ou serviços de uma empresa  (15) .

24.      O Tribunal de Justiça concluiu que uma cor por si só é susceptível de constituir, nas condições acima referidas, uma marca na acepção do artigo 2.° da directiva  (16) .

25.      Com base nestas considerações, o Tribunal de Justiça procedeu seguidamente ao exame das questões prejudiciais apresentadas pelo Hoge Raad der Nederlanden quanto aos critérios que devem ser tidos em conta pelas autoridades nacionais para apreciar o carácter distintivo de uma cor, por si só, relativamente aos produtos ou aos serviços visados pelo pedido de registo.

26.      Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça considerou que, para apreciar o carácter distintivo que uma cor por si só pode apresentar para certos produtos ou serviços determinados, é preciso ter em conta um interesse geral em não limitar indevidamente a disponibilidade das cores para os restantes operadores que oferecem produtos e serviços do tipo daqueles para os quais o registo é pedido  (17) . Acrescentou que, quanto maior for o número de produtos ou serviços para os quais é pedido o registo da marca, mais o direito exclusivo conferido pela marca pode ser susceptível de apresentar um carácter exorbitante e com isso prejudicar a manutenção de um sistema de concorrência leal  (18) .

27.      Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça indicou que pode reconhecer‑se a uma cor por si só um carácter distintivo na acepção do artigo 3.°, n.os 1, alínea b), e 3, da directiva, sob condição de, na perspectiva da percepção do público relevante, ser apta a identificar o produto ou o serviço visado no pedido de registo. Precisou que a existência de um carácter distintivo antes de qualquer utilização só é de conceber em circunstâncias excepcionais, designadamente, quando o número de produtos ou serviços para os quais é pedida a marca é muito limitado e o mercado relevante muito específico. Porém, tal carácter pode ser adquirido, designadamente, na sequência da utilização da cor por si só, após um processo de familiarização do público em causa  (19) .

28.      Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça referiu que o facto de o registo como marca de uma cor por si só ser pedido para um número significativo ou não de produtos ou de serviços é relevante, juntamente com as restantes circunstâncias do caso concreto, para apreciar tanto o carácter distintivo da cor em causa como a questão de saber se o respectivo registo é contrário ao interesse geral em não restringir indevidamente a disponibilidade das cores para os restantes operadores que oferecem produtos ou serviços do tipo daqueles para os quais é pedido o registo  (20) .

29.      Em quarto lugar, o Tribunal de Justiça precisou que a apreciação do carácter distintivo de uma cor, na acepção do artigo 3.°, n.os 1, alínea b), e 3, da directiva, deve necessariamente ser efectuada in concreto.

30.      O acórdão Libertel, já referido, faz parte de uma série de três decisões em que o Tribunal de Justiça precisou os sinais ou indicações que são susceptíveis de constituir uma marca, na acepção do artigo 2.° da directiva.

31.      No acórdão de 12 de Dezembro de 2002, Sieckmann  (21) , que é o primeiro da série, o litígio respeitava à questão de saber se um odor pode constituir uma marca na acepção do artigo 2.° da directiva  (22) . O Tribunal de Justiça declarou que este artigo não exclui os odores  (23) , mas que os requisitos da representação gráfica não são cumpridos através de uma fórmula química, de uma descrição por palavras escritas, da apresentação de uma amostra ou da conjugação destes elementos  (24) .

32.      No acórdão de 27 de Novembro de 2003, Shield Mark  (25) , o Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre a possibilidade de registar marcas sonoras  (26) . Declarou que os sons podem constituir uma marca  (27) . Precisou que a exigência de representação gráfica é satisfeita quando o sinal é representado através de notas escritas numa pauta, acompanhadas da clave que determina o tom, do compasso que estabelece o ritmo e o valor relativo de cada nota, bem como a indicação dos instrumentos que as interpretam. Em contrapartida, as descrições que recorrem à linguagem escrita, incluindo as onomatopeias, a indicação da melodia ou a sucessão nominativa de notas musicais não satisfazem esta exigência  (28) .

33.      Por carta de 8 de Maio de 2003, o Tribunal de Justiça transmitiu o acórdão Libertel, já referido, ao Bundespatentgericht e perguntou a este órgão jurisdicional nacional se mantinha a sua decisão de reenvio prejudicial. Por carta de 15 de Maio de 2003, o Bundespatentgericht respondeu que mantinha as suas questões prejudiciais.

V – Apreciação

34.      Tal como o Bundespatentgericht acertadamente indica no seu despacho de reenvio, a tese segundo a qual duas cores constituem, por si sós, um sinal susceptível de constituir uma marca na acepção do artigo 2.° da directiva não tem qualquer fundamento determinante nos textos relevantes. Assim, embora seja pacífico que a lista dos sinais contida neste artigo não é exaustiva, não deixa de ser verdade que não menciona as cores  (29) .

35.      Seguidamente, no que respeita ao acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio, conhecido como acordo TRIPs, em que a Comunidade e os Estados‑Membros são partes  (30) , não se pode deduzir dos termos «combinações de cores», que constam do artigo 15.°  (31) , que as partes contratantes tenham querido expressamente indicar que duas ou mais cores, por si sós, sem qualquer arranjo determinado, possam constituir uma marca. Com efeito, a palavra «combinação» não tem exactamente o mesmo sentido nas três línguas em que o acordo TRIPs foi redigido e que fazem igualmente fé  (32) . Assim, se em inglês e em espanhol as palavras «combination» e «combinaciones» não se referem a um sistema ou organização particular, pois podem designar simplesmente «two or more things joined or mixed together to form a single unit»  (33) e uma «unión de dos cosas en un mismo sujeto»  (34) , o termo «combinaison» tem, em francês, um sentido mais restrito, uma vez que é definido como «un assemblage d’éléments dans un arrangement déterminé»  (35) .

36.      Em contrapartida, à luz da fundamentação do acórdão Libertel, já referido, e da interpretação muito ampla que o Tribunal de Justiça fez do artigo 2.° da directiva, não parece haver dúvidas de que a análise adoptada neste acórdão, segundo a qual uma cor, por si só, pode constituir uma marca na acepção deste artigo, pode ser transposta para duas cores por si sós.

37.      Assim, no que respeita à primeira condição, relativa à existência de um sinal, a afirmação do Tribunal de Justiça, segundo a qual uma cor por si só, relacionada com um produto ou um serviço e em função do contexto em que seja utilizada, é susceptível de constituir um sinal, pode aplicar‑se a duas cores por si sós. Com efeito, num determinado contexto, em especial quando são objecto de um arranjo determinado, duas cores podem constituir um sinal. De igual modo, em conformidade com o acórdão Libertel, já referido, duas cores, por si sós, podem ser objecto de uma representação gráfica conforme com os requisitos do artigo 2.° da directiva, quando são designadas através de um código de identificação internacionalmente reconhecido. Por fim, no que respeita à terceira condição, relativa à capacidade de ter carácter distintivo, o Tribunal de Justiça indicou, em termos muito gerais, que «as cores por si sós podem ser adequadas» a ter tal carácter.

38.      A jurisprudência atrás referida deveria, portanto, levar a responder às questões colocadas pelo Bundespatentgericht que duas cores, por si sós, cujas tonalidades são designadas com a exibição de uma amostra de cor e descritas com precisão por referência a um sistema de classificação de cores reconhecido, preenchem as condições exigidas para constituir uma marca, nos termos do artigo 2.° da directiva, no sentido em que podem ser consideradas um sinal adequado a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas e susceptível de ser objecto de uma representação gráfica  (36) .

39.      Poderia também deduzir‑se desta jurisprudência que cabe às autoridades alemãs competentes apreciar se as cores azul e amarela, por si sós, podem ser registadas como marca para os produtos indicados no pedido de registo, tendo em conta os critérios seguidos pelo Tribunal de Justiça no acórdão Libertel, já referido. Assim, as autoridades deveriam ter em conta todas as circunstâncias do caso em apreço, nomeadamente a utilização que foi feita das cores, o interesse geral que existe em não limitar indevidamente a disponibilidade das referidas cores para os restantes operadores económicos que oferecem produtos do mesmo tipo e, por fim, o número de produtos para os quais é pedido o registo, sendo este último critério relevante para apreciar tanto o carácter distintivo das cores em questão como o interesse geral em conservá‑las disponíveis.

40.      Não podemos aderir a esta jurisprudência. Embora os fundamentos pelos quais consideramos que duas cores, por si sós, não preenchem as condições estabelecidas no artigo 2.° da directiva coincidam em grande parte com os que expusemos nas conclusões que apresentámos no processo Libertel, já referido, entendemos que as circunstâncias particulares do presente litígio, respeitante a um pedido de registo de duas cores por si sós, e a manutenção pelo Bundespatentgericht do presente pedido de decisão prejudicial, apesar daquele acórdão, justificam que se convide o Tribunal de Justiça a reconsiderar a questão.

41.      Não repetiremos aqui todos os elementos que expusemos nas conclusões que apresentámos no processo Libertel, já referido. Propomos ao Tribunal de Justiça que as tenha em conta, na medida do necessário. Expomos aqui apenas os fundamentos principais pelos quais, na nossa opinião, duas cores, por si sós, não preenchem as condições estabelecidas no artigo 2.° da directiva. Indicamos também a razão pela qual, em nosso entender, a solução oposta é susceptível de contrariar os objectivos da directiva.

A – Condições estabelecidas no artigo 2.° da directiva

42.      Tal como referimos, a Heidelberger Bauchemie pede o registo de marca das cores azul e amarela, tal como são descritas no seu pedido de registo e designadas através da sua referência no código de identificação RAL e sem qualquer arranjo determinado. Tal como o Bundespatentgericht muito claramente expõe, tal pedido deve ser analisado no sentido em que a requerente pede uma protecção das cores em si mesmas, de modo geral e abstracto, sem delimitações em duas ou três dimensões nem qualquer configuração, ou seja, sem se limitar a aspectos, formas, apresentações ou disposições particulares. Nesta hipótese, a requerente quer ter a possibilidade de utilizar estas cores da maneira que quiser para designar os produtos referidos no pedido de registo e gozar de protecção para todas essas utilizações. O objecto da protecção é, portanto, a utilização das duas cores em questão para designar os produtos referidos no pedido de registo, independentemente do arranjo em que essas cores venham a surgir em relação com esses produtos  (37) .

43.     É à luz destes elementos que entendemos que as condições previstas no artigo 2.° da directiva não estão preenchidas. Começamos pela condição de ser adequado a ter um carácter distintivo, que constitui a função essencial da marca.

1. Ser adequado a ter um carácter distintivo

44.      Quando o pedido de registo respeita a duas cores, por si sós, viu‑se já que visa obter direitos exclusivos sobre essas cores, independentemente dos arranjos em que possam surgir, em relação com os produtos ou serviços previstos nesse pedido. Consequentemente, a apreciação da sua capacidade de ter um carácter distintivo, na acepção do artigo 2.° da directiva, deve, logicamente, levar a responder à questão de saber se estas duas cores são adequadas para distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outra empresa, independentemente dos arranjos em que surjam em relação com esses produtos ou serviços.

45.      Entendemos que a resposta a tal questão deve ser negativa. Com efeito, as possibilidades de arranjo de duas cores, juntas, em relação com um produto ou um serviço são praticamente ilimitadas. Assim, o beneficiário de uma marca que fosse constituída pelas cores azul e amarela, por si sós, poderia utilizá‑las na superfície exterior dos produtos em causa ou da sua embalagem, alternando faixas de azul e de amarelo, ou com figuras geométricas tais como círculos azuis sobre fundo amarelo, etc. Ora, a impressão de conjunto produzida por essas cores e, por conseguinte, a sua capacidade de ter um carácter distintivo serão muito diferentes consoante o arranjo escolhido pelo beneficiário e a proporção em que cada uma destas cores é utilizada relativamente à outra.

46.      Com efeito, tal como o Tribunal de Justiça observou no acórdão Libertel, já referido, embora as cores sejam adequadas a veicular determinadas associações de ideias e a suscitar sentimentos, em contrapartida, pela sua natureza, são pouco aptas para comunicar informações precisas. São‑no tanto menos quanto é certo que são habitual e amplamente utilizadas na publicidade e na comercialização de produtos e serviços pelo seu poder de atracção, independentemente de toda e qualquer mensagem precisa  (38) . É, portanto, apenas no âmbito de certos arranjos determinados que duas cores, juntas, são susceptíveis de ter um carácter distintivo.

47.      Ora, admitir que duas cores, por si sós, são adequadas a ter um carácter distintivo por poderem preencher esta condição, mas apenas no âmbito de certos arranjos determinados, equivale, na nossa opinião, a ignorar o próprio objecto do pedido de registo, que visa obter direitos exclusivos sobre todas as apresentações possíveis em que tais cores possam surgir. No caso de uma marca nominativa, tal equivaleria a admitir que várias letras podem ter um carácter distintivo e que cada uma delas pode ser objecto de direitos exclusivos porque quando essas letras formam uma determinada palavra, as mesmas são adequadas a ter um carácter distintivo.

48.      Contrariamente ao que a Heidelberger Bauchemie sustenta e à posição adoptada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Libertel, já referido  (39) , também não nos parece que uma ou várias cores, por si sós, possam adquirir um carácter distintivo através da sua utilização. Tal como a Heidelberger Bauchemie indicou, com muita honestidade, nas suas observações escritas  (40) e na audiência, as empresas que querem habituar o público às cores «da casa» e utilizar essas cores para identificar os seus produtos evitarão recorrer a apresentações que já não permitem distinguir uma origem e, na prática, tais cores são sempre utilizadas no âmbito de uma certa configuração. Foi esta também a análise adoptada pelo Tribunal de Primeira Instância nos acórdãos, já referidos, Viking‑Umwelttechnik/IHMI (justaposição de verde e cinzento)  (41) e Andreas Stihl/IHMI (combinação de laranja e cinzento)  (42) , em que considerou que uma repartição assistemática das cores nos produtos em causa pode levar a numerosos arranjos diferentes que não permitem ao consumidor apreender e memorizar uma combinação especial, que ele possa utilizar para reiterar uma experiência de compra de modo imediato e certo.

49.      Esta apreciação pode generalizar‑se. Na nossa opinião, um processo de familiarização só pode levar a conferir um carácter distintivo a uma ou várias cores no caso de estas terem sido utilizadas em relação com o mesmo produto ou o mesmo serviço em condições idênticas ou suficientemente semelhantes. De igual modo, este processo só pode resultar quanto a produtos ou serviços pertencentes a categorias diferentes se as condições em que as cores surgem em relação com todos os produtos e serviços em causa tiverem um número suficiente de pontos comuns para permitir aos consumidores atribuir a todos a mesma origem. Por outras palavras, não nos parece que a familiarização dos consumidores com as cores «da casa» de uma empresa permita presumir que esses mesmos consumidores poderiam reconhecer os produtos ou serviços dessa empresa independentemente dos arranjos em que essas cores sejam depois utilizadas em relação com tais produtos ou serviços.

50.     É, portanto, à luz destes elementos que consideramos que duas cores por si sós não devem ser consideradas como adequadas a ter um carácter distintivo, na acepção do artigo 2.° da directiva. A sua capacidade de preencher a segunda condição, relativa à representação gráfica, parece ainda mais contestável.

2. Representação gráfica

51.      Resulta da jurisprudência que a representação gráfica exigida pelo artigo 2.° da directiva deve permitir ao sinal ser representado visualmente, sobretudo através de figuras, linhas ou caracteres, de modo a poder ser identificado com exactidão, devendo tal representação ser clara, precisa, completa por si própria, facilmente acessível, inteligível, duradoura e objectiva  (43) .

52.      Resulta também da jurisprudência acima referida que esta exigência responde, nomeadamente, aos dois objectivos seguintes. O primeiro é permitir às autoridades competentes proceder ao exame prévio dos pedidos de registo bem como à publicação e à manutenção de um registo adequado e preciso das marcas. O segundo objectivo, que depende, em grande parte, da correcta realização do primeiro, é permitir aos operadores económicos poderem tomar conhecimento dos registos efectuados ou dos pedidos de registo formulados pelos seus concorrentes actuais ou potenciais e beneficiar, assim, de informações pertinentes sobre os direitos de terceiros  (44) . A este respeito, o sistema do direito das marcas contribui para a segurança jurídica  (45) .

53.      Ao contrário do que o Tribunal de Justiça declarou no acórdão Libertel, já referido, não consideramos que a designação de uma cor através de um código de identificação reconhecido internacionalmente nem, por maioria de razão, tal designação de duas cores possam permitir atingir os objectivos acima enunciados. Com efeito, a realização destes objectivos implica que as autoridades competentes e os outros operadores económicos possam apreciar se uma marca constituída por duas cores por si sós é idêntica ou apresenta risco de confusão com outro sinal que designe produtos ou serviços idênticos ou semelhantes.

54.      Resulta, assim, do artigo 4.° da directiva que as autoridades competentes devem recusar o registo de um sinal se este for idêntico a uma marca anterior e se os produtos ou serviços a que o sinal e a marca digam respeito forem também idênticos. O mesmo artigo dispõe também que essas autoridades devem recusar o registo de um sinal se, devido à sua identidade ou semelhança com uma marca anterior e devido à identidade ou semelhança dos produtos ou serviços em causa a que as duas marcas se destinam, existir, no espírito do público, um risco de confusão.

55.      Paralelamente, o artigo 5.° da directiva prevê que o titular da marca fica habilitado a proibir que um terceiro, sem o seu consentimento, utilize na vida comercial, por um lado, um sinal idêntico a uma marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada. Por outro lado, pode também proibir a utilização de um sinal relativamente ao qual, devido à sua identidade ou semelhança com a marca e devido à identidade ou semelhança dos produtos ou serviços em causa, exista, no espírito do público, um risco de confusão.

56.      Ora, a apreciação dos conceitos de «identidade» e de «risco de confusão» implica necessariamente que se conheça com precisão o sinal e a marca em causa, tais como podem ser vistos pelo público em questão. Esta análise resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa aos critérios com base nos quais estes conceitos devem ser apreciados, devendo tais critérios ser idênticos no âmbito dos artigos 4.° e 5.° da directiva  (46) .

57.      Assim, no acórdão LTJ Diffusion, já referido, o Tribunal de Justiça precisou que o conceito de «identidade» implica que os dois elementos comparados sejam em todos os aspectos os mesmos  (47) . Inferiu daí que existe uma identidade entre o sinal e a marca em causa quando o primeiro, sem alterar nem acrescentar, reproduz todos os elementos que constituem a segunda  (48) . Acrescentou, todavia, que a percepção de uma identidade entre o sinal e a marca em causa deve ser apreciada globalmente na perspectiva de um consumidor médio que é suposto estar normalmente informado e razoavelmente atento e avisado e que se deve considerar o sinal na sua totalidade  (49) .

58.      De igual modo, segundo a jurisprudência, o risco de confusão no espírito do público deve ser apreciado globalmente, atentos todos os factores relevantes do caso  (50) . Esta apreciação global deve ter em conta, nomeadamente, a semelhança visual, fonética e conceptual das marcas em causa e basear‑se na apreciação de conjunto produzida por essas marcas, atendendo, em especial, aos elementos distintivos e dominantes das mesmas  (51) . Por fim, esta apreciação deve ser efectuada em função da percepção da marca que o consumidor médio tem dos produtos ou serviços em causa  (52) .

59.      Daqui decorre que a representação gráfica da marca deve permitir às autoridades competentes e aos outros operadores económicos comparar as impressões de conjunto produzidas pelo sinal e pela marca em causa, tendo em conta os seus elementos distintivos e dominantes. Ora, há que constatar que as autoridades competentes teriam a maior dificuldade em proceder a tal comparação se a marca fosse constituída por duas cores por si sós. Com efeito, tal marca pode apresentar‑se, na realidade, sob aspectos muito diferentes. É indiscutível que, consoante o arranjo em que as cores surjam e, em especial, a proporção de cada cor relativamente à outra, a impressão de conjunto produzida pela marca, tal como os seus elementos distintivos e dominantes, pode ser muito diferente.

60.      Consequentemente, perante um pedido de registo de duas cores por si sós, as autoridades competentes muito dificilmente poderiam apreciar, a partir dos critérios definidos na jurisprudência já referida, se tal marca apresenta um risco de identidade ou confusão com uma marca já registada para produtos ou serviços idênticos ou semelhantes, e que é composta por essas cores ou por uma delas, ou por tonalidades delas próximas. De igual modo, se fosse registada uma marca constituída por duas cores por si sós, as autoridades competentes não poderiam determinar se, em aplicação destes critérios, o pedido de registo de um sinal composto por uma ou mais das cores em questão, ou por tonalidades delas próximas, se depara com um dos fundamentos de recusa previstos no artigo 4.° da directiva. Ora, deve recordar‑se que, no acórdão Libertel, já referido, o Tribunal de Justiça sublinhou que o sistema da directiva, que assenta num controlo prévio ao registo e não num controlo a posteriori, implica que a análise do pedido de registo não se limita a um controlo minimalista, sendo, pelo contrário, de carácter rigoroso e completo a fim de evitar que sejam registadas marcas indevidamente  (53) .

61.      Pelas mesmas razões, um operador económico, perante uma marca constituída por duas cores por si sós, não poderia determinar com certeza quais os seus direitos relativamente a essas cores e às tonalidades delas próximas quanto a produtos ou serviços idênticos ou semelhantes àqueles para os quais a marca foi registada. Poderia, assim, considerar, tal como o Governo neerlandês  (54) , que tinha o direito de utilizar essas cores no âmbito de um sinal figurativo porque uma marca composta por duas cores por si sós é de tal modo geral e pouco específica que não existe semelhança ou risco de confusão entre ela e o sinal. Inversamente, poderia pensar, tal como o Governo do Reino Unido  (55) , que o titular de uma marca constituída por duas cores por si sós está protegido contra a utilização na vida comercial dessas cores ou de tonalidades delas próximas, independentemente da forma pela qual tais cores sejam utilizadas. Tal incerteza demonstra que não seria respeitado o imperativo da segurança jurídica, que constitui um dos objectivos subjacentes à condição da capacidade do sinal de ser objecto de uma representação gráfica.

62.      A designação de duas cores, por si sós, através de um código de identificação internacionalmente reconhecido não pode, portanto, ser considerada uma representação gráfica, na acepção do artigo 2.° da directiva.

3. Existência de um sinal

63.      Foi no acórdão Libertel, já referido, que o Tribunal de Justiça considerou, pela primeira vez, a existência de um sinal como condição autónoma da capacidade de constituir uma marca, na acepção do artigo 2.° da directiva. Todavia, não definiu o conceito de «sinal». Em sentido comum, um sinal é uma coisa que se apreende e que permite concluir pela existência ou pela verdade de outra coisa, à qual está associada. Um sinal é, portanto, uma coisa que se apreende e que pode ser identificada como tal.

64.     É também a interpretação do conceito de «sinal» que o Tribunal de Justiça parece ter adoptado no acórdão Libertel, já referido, quando indica que não se pode presumir que uma cor por si só constitua um sinal porque, normalmente, a cor constitui uma mera característica das coisas. A cor só pode, portanto, constituir um sinal num determinado contexto  (56) .

65.      Porém, o Tribunal de Justiça continuou, indicando que uma cor, por si só, relacionada com um produto ou um serviço, pode constituir um sinal  (57) . Esta conclusão não corresponde ao que antecede. Se, tal como é também a nossa opinião, a cor só pode constituir um sinal num determinado contexto, já não se trata de uma cor por si só, ou seja, da cor como entidade abstracta, uma vez que esta última nunca existe na realidade. O sinal é a cor utilizada no âmbito desse contexto particular, ou seja, revestindo um produto ou a embalagem de um produto, ou surgindo no âmbito de uma forma ou de um contorno bem determinados. É este contexto muito particular que permite à cor tornar‑se um sinal. Como esta possibilidade de se tornar um sinal depende deste contexto, uma cor, por si só, pode permitir constituir diferentes sinais para designar certos produtos ou serviços.

66.      Igual análise se impõe, por maioria de razão, relativamente a um pedido de registo de duas cores por si sós. Com efeito, duas cores podem permitir constituir um número considerável, ou mesmo ilimitado, de sinais, em relação com produtos ou serviços. Tal como já referimos atrás, é esse mesmo o objectivo prosseguido pelo requerente da tal marca, que pretende, deste modo, manter a possibilidade de utilizar como entender as cores em questão para designar os seus produtos ou serviços. Daqui decorre que, em tal hipótese, o requerente não apresenta a registo um sinal, mas sim os elementos a partir dos quais poderá constituir posteriormente todos os sinais que quiser.

67.      Ora, tal como o Bundespatentgericht acertadamente afirma, a economia da directiva faz recair sobre o requerente uma obrigação de precisão quanto ao sinal que utilizará ou utilizou efectivamente, sendo esta obrigação a contrapartida dos direitos exclusivos que o registo desse sinal lhe conferirá. É por estes motivos que consideramos que duas cores, por si sós, não constituem um sinal, na acepção do artigo 2.° da directiva.

68.      Por fim, parece‑nos que acrescentar as cores, por si sós, à lista dos sinais susceptíveis de constituir uma marca, contida no artigo 2.° da directiva, não se harmoniza com os objectivos da directiva.

B – Objectivos da directiva

69.      Tal como resulta dos seus primeiro, sétimo, nono e décimo considerandos, o objecto da directiva consiste em submeter às mesmas condições, em todos os Estados‑Membros, a aquisição do direito sobre a marca e a protecção dos direitos que esta confere ao seu titular. É também pacífico que esta harmonização visa eliminar as disparidades existentes entre as legislações dos Estados‑Membros relativas às marcas que possam entravar a livre circulação dos produtos e a livre prestação de serviços. A directiva visa, assim, favorecer a livre concorrência no mercado comum.

70.      A realização destes objectivos implica, por conseguinte, que o registo de uma marca, bem como a protecção que este registo confere ao seu titular, seja submetido às mesmas condições em todos os Estados‑Membros. Como já se viu atrás, o Tribunal de Justiça precisou, a este respeito, quais são os critérios com base nos quais os conceitos de «identidade» e de «risco de confusão» devem ser apreciados, tanto no âmbito do artigo 4.°, que respeita aos fundamentos de recusa do registo, como no do artigo 5.°, que determina os direitos conferidos pela marca.

71.      Ora, como já referimos também, as autoridades nacionais teriam a maior dificuldade em aplicar estes critérios perante uma marca constituída por duas cores por si sós, tendo em conta o facto de estas cores não representarem o sinal utilizado ou a ser utilizado na realidade pelo requerente para designar os seus produtos ou serviços, mas sim um número considerável, ou mesmo ilimitado, de sinais possíveis. Poderiam, portanto, considerar, tal como o Governo neerlandês, que uma marca constituída por duas cores, por si sós, é de tal modo abstracta que não apresenta risco de confusão com marcas figurativas que utilizem as mesmas cores ou tonalidades próximas das mesmas no âmbito de uma configuração bem determinada. Assim, poderiam entender, por exemplo, que uma marca constituída pelas cores azul e amarela por si sós não seria idêntica e não apresentaria risco de confusão com um sinal que consistisse num círculo amarelo no meio de um quadrado azul, distinguindo‑se tal sinal dessa marca através das suas formas muito específicas, a saber, um círculo sobre um quadrado. A existência de marcas figurativas compostas pelas cores em causa não obstaria, portanto, a um pedido de registo como marca das referidas cores por si sós. Além disso, o beneficiário de tal marca não poderia opor‑se à utilização das mesmas cores ou de tonalidades delas próximas pelos seus concorrentes, no âmbito de marcas figurativas muito específicas. O registo de marcas constituídas por duas cores, por si sós, seria, assim, admitido com tanto maior facilidade quanto tais marcas fossem consideradas marcas «fracas».

72.      Inversamente, as autoridades competentes de outros Estados‑Membros poderiam considerar que o registo como marcas de cores por si sós é susceptível de conferir aos seus titulares direitos exclusivos sobre essas cores bem como sobre tonalidades delas próximas, independentemente do aspecto ou arranjo em que tais cores possam surgir em relação com os produtos ou serviços em questão. Nestas condições, o registo anterior de marcas figurativas compostas por uma ou ambas as cores em causa poderia ser considerado um obstáculo a um pedido de registo como marca dessas duas cores por si sós, ou de tonalidades delas próximas. De igual modo, o registo de tal marca poderia permitir ao seu titular opor‑se a qualquer utilização, por qualquer forma, das referidas cores na vida comercial, em relação com os produtos ou serviços visados pelo pedido de registo.

73.      Admitir que duas cores, por si sós, pudessem ser registadas como marca poderia, portanto, suscitar divergências consideráveis entre as autoridades nacionais competentes relativamente às condições em que tais marcas podem ser registadas e protegidas. Estas divergências seriam também susceptíveis de comprometer a livre concorrência num determinado mercado. Com efeito, um operador económico que designasse os seus produtos ou serviços com uma marca figurativa composta por uma ou várias cores poderia ser impedido de oferecer os seus produtos ou serviços sob a mesma marca noutro Estado‑Membro, em que o registo como marca das cores por si sós fosse interpretado no sentido de conferir direitos exclusivos sobre qualquer utilização dessas cores em relação com produtos ou serviços idênticos ou semelhantes aos visados pelo registo. De qualquer modo, a mera incerteza quanto aos direitos que o registo como marca das cores, por si sós, confere ao seu titular num determinado Estado poderia levar esse operador a não oferecer os seus produtos ou serviços nesse Estado para não correr o risco de ser objecto de uma acção judicial.

74.      Além disso, a quase impossibilidade de aplicar os critérios desenvolvidos pela jurisprudência para apreciar os conceitos de «identidade» e de «risco de confusão» relativamente a um sinal que fosse constituído por duas cores por si sós é também susceptível de gerar aplicações muito divergentes, por parte das autoridades nacionais competentes, dos critérios desenvolvidos no acórdão Libertel, já referido. Em especial, a tomada em consideração do imperativo de disponibilidade poderia levar a aplicações muito diferentes consoante as autoridades nacionais considerassem ou não que o registo como marca de duas cores por si sós impedia os outros operadores económicos de utilizar essas mesmas cores ou tonalidades delas próximas sob qualquer forma.

75.      Por fim, ao contrário do que sustenta a Comissão e a Heidelberger Bauchemie, não consideramos que as incertezas jurídicas que geraria o registo como marca das cores por si sós poderiam ser solucionadas pela jurisprudência num sentido que respeitasse plenamente os objectivos da directiva. Viu‑se já, com efeito, que a questão de saber de que modo devem ser apreciados os conceitos de «identidade» e de «risco de confusão» com uma marca composta por duas cores por si sós pode dar origem a duas concepções diferentes do alcance dos direitos conferidos por tal marca: pode tratar‑se de uma marca «fraca», ou de uma marca que confere direitos exclusivos quanto a qualquer utilização das cores em causa e de tonalidades delas próximas em relação com produtos idênticos ou semelhantes aos visados no pedido de registo.

76.      Na nossa opinião, qualquer destas soluções alternativas é contestável à luz do sistema e dos objectivos da directiva.

77.      No que respeita à tese segundo a qual marcas compostas por duas cores por si sós são marcas «fracas», a mesma não corresponde à intenção do legislador que não quis favorecer o desenvolvimento de tais marcas na directiva. Pretendeu, pelo contrário, limitar o número de marcas registadas e conferir a estas marcas o mesmo nível elevado de protecção em todos os Estados‑Membros  (58) . Além disso, esta tese retiraria ao registo deste tipo de marca uma grande parte do seu interesse para os operadores económicos.

78.      No que respeita à tese inversa, segundo a qual o registo como marca de duas cores por si sós atribuiria ao seu beneficiário direitos exclusivos sobre essas cores, independentemente dos arranjos em que tais cores possam surgir em relação com os produtos ou serviços em causa, leva a conferir ao titular da marca uma protecção mais ampla do que o sinal que utilizou ou utilizará na realidade. Ora, esta consequência é contrária ao sistema do direito da marca. Com efeito, este sistema apresenta o paradoxo de conferir a um operador económico em particular direitos exclusivos com prazo ilimitado sobre sinais utilizados para a comercialização de produtos e de serviços, no sentido de favorecer a concorrência num determinado mercado. A jurisprudência inferiu, com toda a lógica, deste paradoxo que os direitos exclusivos só podem ser conferidos na medida exacta em que os sinais em questão desempenham efectivamente a sua função de indicação da origem  (59) .

79.      Acresce que o registo como marca de duas cores por si sós colocaria em questão o efeito útil das disposições dos artigos 10.° e 12.° da directiva, relativos às obrigações do titular de tal marca. É sabido, com efeito, que, em aplicação dos artigos 10.° e 12.° da directiva, o titular da marca deve dar‑lhe um uso sério, sob pena de caducidade. Segundo o artigo 10.°, n.° 2, constitui uso sério da marca o seu uso por modo que difira em elementos que não alterem o carácter distintivo da marca na forma sob a qual foi registada. Daqui decorre que a aplicação destas disposições implica necessariamente que o registo como marca de duas cores só seja admitido se estas forem objecto de um arranjo determinado. Se a marca for constituída pelas cores por si sós, poderia então bastar qualquer uso destas cores para designar os produtos ou serviços em causa para constituir um uso sério da marca e manter, assim, por prazo ilimitado, direitos exclusivos sobre essas cores.

80.     À luz de todos estes elementos, entendemos que o registo como marca de duas cores por si sós deve ser objecto não de uma apreciação restritiva casuística, no âmbito do artigo 3.° da directiva, mas sim de uma impossibilidade de princípio, com fundamento no seu artigo 2.° É por esta razão que propomos ao Tribunal de Justiça que reveja a posição adoptada no acórdão Libertel, já referido, e que responda ao Bundespatentgericht que as cores ou combinações de cores, quando apresentadas num pedido de registo de forma abstracta e sem contornos, cujas tonalidades sejam designadas textualmente com exibição de uma amostra de cor e descritas com precisão por referência a um sistema de classificação de cores reconhecido, não preenchem as exigências do artigo 2.° da directiva.

VI – Conclusão

81.     À luz das considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões apresentadas pelo Bundespatentgericht:

82.     «As cores ou combinações de cores, quando apresentadas num pedido de registo de forma abstracta e sem contornos, cujas tonalidades sejam designadas textualmente com exibição de uma amostra de cor e descritas com precisão por referência a um sistema de classificação de cores reconhecido, não preenchem as exigências para constituir uma marca, na acepção do artigo 2.° da Primeira Directiva 89/104/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas, uma vez que não constituem um sinal susceptível de representação gráfica, adequado a distinguir os produtos e os serviços de uma empresa dos de outras empresas.»


1
Língua original: francês.


2
Directiva de 21 de Dezembro de 1988 que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1, a seguir «directiva»).


3
C‑104/01, Colect., p. I‑3793.


4
Primeiro considerando.


5
Terceiro considerando.


6
Sétimo considerando.


7
Nono considerando.


8
A seguir «Markengesetz».


9
BGBl. 1994 I, p. 3082.


10
A seguir «Heidelberger Bauchemie».


11
GRUR 1999, p. 491.


12
Acórdão Libertel, já referido (n.os 23 a 42).


13
Ibidem (n.° 27).


14
Ibidem (n.os 31 a 37).


15
Ibidem (n.os 40 e 41).


16
Ibidem (n.° 42).


17
Ibidem (n.° 55).


18
Ibidem (n.° 56).


19
Ibidem (n.os 66 e 67).


20
Ibidem (n.° 71).


21
C‑273/00, Colect., p. I‑11737 (n.os 46 a 55).


22
O litígio no processo principal respeitava à recusa pelo Deutsches Patent‑ und Markenamt de registar como marca a substância química pura cinamato de metilo (éster metílico de ácido cinâmico) cuja fórmula química é C 6 H 5‑CH = CHCOOCH 3. O requerente tinha também apresentado um recipiente com uma amostra do odor em causa e precisado que este é habitualmente descrito como «balsâmico‑frutado com ligeiras notas de canela».


23
N.° 44.


24
N.° 73.


25
C‑283/01, Colect., p. I‑0000.


26
O litígio no processo principal respeitava à validade de catorze marcas sonoras registadas pelo Bureau Benelux des marques, onze das quais tinham por objecto os primeiros compassos do estudo para piano «Für Elise» de L. van Beethoven e as outras três o canto do galo.


27
N.° 35.


28
N.° 59.


29
No acórdão Libertel, já referido (n.° 25), o Tribunal de Justiça considerou que a declaração feita conjuntamente pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão das Comunidades Europeias, que consta da acta do Conselho quando da adopção da directiva, nos termos da qual «são da opinião que o artigo 2.° não exclui a possibilidade [...] de registar como marca uma combinação de cores ou uma única cor [...] desde que elas sejam adequadas a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas», não podia ser tomada em consideração na interpretação deste artigo.


30
Este acordo consta, como anexo, do acordo que institui a Organização Mundial do Comércio, de 15 de Abril de 1994, assinado pelos representantes da Comunidade e dos Estados‑Membros. Foi aprovado em nome da Comunidade Europeia, em relação às matérias da sua competência, pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994 (JO L 336, pp. 1 e 214), e entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1995.


31
O artigo 15.°, n.° 1, define os tipos de sinais que devem poder beneficiar de protecção como marcas nos termos seguintes: «Qualquer sinal, ou qualquer combinação de sinais, susceptível de distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas poderá constituir uma marca. Esses sinais, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, letras, numerais, elementos figurativos e combinações de cores, bem como qualquer combinação desses sinais, serão elegíveis para registo enquanto marcas. No caso de os sinais não serem intrinsecamente susceptíveis de distinguir os produtos ou serviços em questão, os membros podem subordinar a elegibilidade para efeitos de registo à presença de um carácter distintivo adquirido através da utilização. Os membros podem exigir como condição do registo que os sinais sejam perceptíveis visualmente.»


32
Trata‑se do espanhol, do francês e do inglês.


33
Oxford Advanced Learner’s Dictionary, ed. 2000.


34
RAE, Vigesima Edición 1984.


35
Le Nouveau Petit Robert, ed. 1993, e Le Grand Robert de la langue française, sob a direcção de Alain Rey, ed. 2001.


36
Foi a posição que o Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias adoptou nos seus acórdãos de 25 de Setembro de 2002, Viking‑Umwelttechnik/IHMI (justaposição de verde e de cinzento) (T‑316/00, Colect., p. II‑3715), e de 9 de Julho de 2003, Andreas Stihl/IHMI (combinação de laranja e de cinzento) (T‑234/01, Colect., p. II‑0000), nos quais declarou que as cores ou as combinações de cores, como tais, são susceptíveis de constituir marcas comunitárias, na acepção do artigo 4.° do Regulamento (CE) n.° 40/94 do Conselho, de 20 de Dezembro de 1993, sobre a marca comunitária (JO 1994, L 11, p. 1), tal como foi alterado, cujos termos retomam os do artigo 2.° da directiva. Recorde‑se, porém, que a questão de saber se uma ou várias cores, por si sós, são susceptíveis de constituir uma marca não foi discutida perante o Tribunal de Primeira Instância em nenhum dos processos já referidos.


37
Tal pedido é, portanto, diferente dos pedidos de registo de marcas que comportam cores aplicadas a um produto no âmbito de um arranjo determinado, como era o caso nos processos que o Tribunal de Primeira Instância foi chamado a apreciar e que respeitavam a pastilhas para máquinas de lavar roupa ou de lavar louça [v., nomeadamente, acórdãos de 19 de Setembro de 2001, Henkel/IHMI (pastilha rectangular vermelha e branca) (T‑335/99, Colect., p. II‑2581) e Henkel/IHMI (imagem de um detergente) (T‑30/00, Colect., p. II‑2663). Tratava‑se, nestes processos, de marcas tridimensionais ou figurativas que se apresentavam sob a forma ou representação em perspectiva de uma pastilha com duas camadas de cores diferentes]. Pelo contrário, o pedido no processo principal pode comparar‑se ao dos processos que deram origem aos acórdãos já referidos, Viking‑Umwelttechnik/IHMI (justaposição de verde e de cinzento) e Andreas Stihl/IHMI (combinação de laranja e de cinzento), em que as recorrentes tinham pedido ao Instituto de Harmonização do Mercado Interno (marcas, desenhos e modelos) (IHMI) o registo como marca comunitária de duas cores, verde e cinzento, quanto a uma, e laranja e cinzento, quanto à outra, sem arranjo determinado entre as ditas cores.


38
N.° 40.


39
N.° 67.


40
Página 7.


41
N.° 34.


42
N.° 37.


43
Acórdãos, já referidos, Sieckmann (n.os 46 a 55), Libertel (n.os 28 e 29) e Shield Mark (n.° 51).


44
Acórdão Sieckmann, já referido (n.os 48 a 51).


45
Ibidem (n.° 37).


46
V., neste sentido, o acórdão de 20 de Março de 2003, LTJ Diffusion (C‑291/00, Colect., p. I‑2799, n.° 43).


47
N.° 50.


48
N.° 51.


49
N.° 52.


50
Acórdãos de 11 de Novembro de 1997, Sabel (C‑251/95, Colect., p. I‑6191, n.° 22); de 29 de Setembro de 1998, Canon (C‑39/97, Colect., p. I‑5507, n.° 16); de 22 de Junho de 1999, Lloyd Schuhfabrik Meyer (C‑342/97, Colect., p. I‑3819, n.° 18); e de 22 de Junho de 2000, Marca Mode (C‑425/98, Colect., p. I‑4861, n.° 40).


51
Acórdãos, já referidos, Sabel (n.° 23) e Lloyd Schuhfabrik Meyer (n.° 25).


52
Idem.


53
N.° 59.


54
Observações escritas (n.° 35).


55
Observações escritas (n.° 33).


56
N.° 27.


57
Idem.


58
Oitavo e décimo considerandos.


59
V., nomeadamente, acórdãos de 12 de Novembro de 2002, Arsenal Football Club (C‑206/01, Colect., p. I‑10273, n.° 51), e LTJ Diffusion, já referido (n.° 48). Neste sentido, há também que referir a interpretação que o Tribunal de Justiça fez do artigo 30.° CE, segundo a qual as derrogações autorizadas por este artigo ao princípio da livre circulação de mercadorias para assegurar a protecção da propriedade industrial e comercial só se justificam na medida em que visem assegurar a protecção dos direitos que constituem o objecto específico deste tipo de propriedade (v., nomeadamente, os acórdãos de 22 de Junho de 1976, Terrapin, 119/75, Colect., p. 419, n.° 5, e de 23 de Abril de 2002, Boehringer Ingelheim e o., C‑143/00, Colect., p. I‑3759, n.° 28). V., também, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à interpretação do artigo 7.° da directiva, relativo ao esgotamento dos direitos conferidos pela marca (nomeadamente o acórdão de 11 de Julho de 1996, Bristol‑Myers Squibb e o., C‑427/93, C‑429/93 e C‑436/93, Colect., p. I‑3457, n.os 41 e 42).