CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
JEAN MISCHO
apresentadas em 26 de Junho de 2003(1)



Processo C‑496/01



Comissão das Comunidades Europeias
contra
República Francesa


«Incumprimento de Estado – Livre prestação de serviços – Liberdade de estabelecimento – Regime dos laboratórios de análises de biologia médica – Condições de concessão de autorizações administrativas de funcionamento – Sede de exploração em território francês»






1.        No presente processo, a Comissão pretende provar que a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbiam por força dos artigos 43.° CE e 49.° CE ao impor aos laboratórios de análises de biologia médica estabelecidos noutros Estados‑Membros a condição de terem a sua sede de exploração em território francês para obterem a autorização de funcionamento necessária e ao excluir todo e qualquer reembolso das despesas por análises de biologia médica efectuadas por um laboratório de análises de biologia médica estabelecido noutro Estado‑Membro.

I – A legislação francesa

A – A regulamentação nacional relativa à saúde pública

2.        O artigo L. 6211‑1 do code de la santé publique estabelece que as análises de biologia médica são exames biológicos que contribuem para o diagnóstico, para o tratamento ou para a prevenção das doenças humanas ou que permitem detectar qualquer outra alteração do estado fisiológico. Os laboratórios só podem exercer as suas actividades sob a responsabilidade dos seus directores ou directores adjuntos.

3.        Por força do artigo L. 6221‑1, os directores de laboratórios e os seus adjuntos devem ser titulares de um dos diplomas de Estado de médico, farmacêutico ou veterinário, estar inscritos na ordem profissional à qual pertencem e ter recebido uma formação especializada. Esta última pode ser comprovada por certificados de estudos especiais, dispensas ou equivalências ou diplomas de estudos especializados em biologia médica. Os estrangeiros podem também ser autorizados a exercer a função de director mediante um processo especial previsto nos artigos L. 4221‑1 e L. 4221‑2 do code de la santé publique.

4.        Nos termos do artigo L. 6122‑1 do code de la santé publique:

«Nenhum laboratório de análises de biologia médica poderá funcionar sem autorização administrativa.

Sem prejuízo das disposições do artigo L. 6122‑1 relativas aos equipamentos materiais pesados, esta autorização será concedida se estiverem preenchidas as condições fixadas pelo presente Livro e pelo decreto previsto no artigo L. 6211‑9 que determina o número e a qualificação do pessoal técnico bem como as normas aplicáveis à instalação e ao equipamento dos laboratórios. Este decreto pode fixar condições especiais aplicáveis aos laboratórios cuja actividade estiver limitada a certos actos que ele determina.

A autorização concedida a estes laboratórios incluirá a menção desta limitação.

[...]

A autorização será retirada quando as condições legais ou regulamentares deixem de estar preenchidas.»

5.        O processo de obtenção da referida autorização é regulado pelos artigos 15.° a 17.° do Decreto 76‑1004 de 4 de Novembro de 1976  (2) , que estabelece as condições de autorização dos laboratórios de análises de biologia médica.

6.        O artigo 15.° do referido decreto dispõe:

«O pedido de autorização previsto no artigo L. 757 (actual artigo L. 6211‑2) do code de la santé publique deve ser apresentado, por carta registada com aviso de recepção, ao prefeito do departamento no qual o laboratório deve ser explorado.

O pedido deve precisar as condições de exploração, indicar a importância da actividade prevista para o primeiro ano e ser acompanhado dos documentos justificativos e, designadamente:

Da descrição e da planta das instalações;

Da lista completa do material;

Da lista dos directores, directores adjuntos e técnicos e dos seus títulos e diplomas;

Dos estatutos sociais, se os houver.

Quando o explorador não for proprietário do material ou dos locais, deve indicar a que título detém o seu uso [...].»

7.        Quando as condições exigidas estejam preenchidas, a autorização de funcionamento é concedida de pleno direito ao requerente. Além disso, está previsto um inquérito no local efectuado por um médico ou por um farmacêutico inspector de saúde pública.

8.        O artigo 24.° do Decreto 76‑1004 define as condições e processos para a revogação ou suspensão da autorização pelo prefeito.

9.        A regulamentação francesa prevê regras precisas para a realização de determinadas análises, como a despistagem dos anticorpos anti‑HIV e a análise imuno‑hematologia.

10.      Além disso, o funcionamento dos laboratórios deve respeitar as regras definidas no guia de boa execução das análises (Guide de bonne exécution des analyses, a seguir «GBEA»). Este guia está anexado ao Decreto de 26 de Novembro de 1999 relativo à boa execução das análises de biologia médica  (3) .

11.      O guia constitui um conjunto de regras técnicas que definem o acto de biologia em todas as suas etapas, isto é, desde a recolha de amostras até à apresentação de resultados válidos.

12.      O GBEA tem carácter regulamentar impondo‑se, consequentemente, aos laboratórios. É portanto aplicável aos biólogos. O desrespeito das suas disposições pode assim conduzir à revogação da autorização de funcionamento.

13.      A regulamentação francesa impõe também obrigações quanto ao relatório dos resultados. Para um determinado número de análises, este deve incluir uma interpretação dos resultados por parte do biólogo de forma a ajudar ao diagnóstico pelo médico que as prescreveu.

14.      O cumprimento da regulamentação francesa relativa à abertura e ao funcionamento destes laboratórios é objecto de controlos pela Administração com vista a garantir a protecção da saúde pública. Existem dois tipos de controlos: as inspecções e os controlos de qualidade das análises.

15.      As inspecções são asseguradas pelos médicos e pelos farmacêuticos inspectores de saúde pública e pela Inspecção‑Geral dos Assuntos Sociais (artigo L. 6213‑1 do code de la santé publique).

16.      Estas inspecções visam essencialmente verificar o respeito pelas condições de funcionamento dos laboratórios: as instalações, o material, o número de directores e de directores adjuntos, a qualificação e o efectivo dos técnicos, a organização do laboratório, a execução das análises e a garantia de qualidade, assim como, de forma geral, o cumprimento do conjunto das disposições legislativas e regulamentares, designadamente o GBEA.

17.      Por outro lado, as inspecções têm como objectivo garantir que foram tomadas medidas correctivas quando os resultados do controlo de qualidade dum laboratório revelam anomalias repetidas ou importantes relativamente à sua utilização médica. O artigo 9.° do Decreto 94‑1049, de 2 de Dezembro de 1994, relativo ao controlo de qualidade das análises de biologia médica  (4) , precisa a este propósito:

«Quando os resultados do controlo de qualidade de um laboratório apresentarem anomalias repetidas ou importantes relativamente à sua utilização médica, a situação deste laboratório será submetida anonimamente à comissão do controlo de qualidade que se pronunciará quanto ao carácter de gravidade dessas anomalias. Quando estas forem consideradas graves, o laboratório é obrigatoriamente referido pelo director‑geral da Agence du médicament ao ministro encarregado da saúde a quem comunicará os resultados, com vista a efectuar um controlo previsto no artigo L. 761‑13 do code de la santé publique que deverá, designadamente, verificar as medidas tomadas pelo laboratório para melhorar a qualidade das análises.»

18.      Quanto aos controlos de qualidade das análises, o artigo L. 6213‑3 do code de la santé publique prevê que sejam executados, segundo as modalidades fixadas por decreto, pela Agence française de sécurité sanitaire des produits de santé.

19.      Estes controlos de qualidade têm por fim garantir a qualidade dos resultados das análises efectuadas por cada laboratório. Tendem, por um lado, a assegurar a fiabilidade e o aperfeiçoamento das análises de biologia médica e, por outro, a permitir a cada laboratório verificar o valor dos seus métodos e o seu bom funcionamento.

B – A regulamentação nacional relativa à segurança social

20.      As condições de remuneração das actividades dos laboratórios são reguladas pela regulamentação relativa à segurança social.

21.      O artigo L. 162‑13 do code de la sécurité sociale dispõe:

«Quanto às análises e exames laboratoriais, o segurado dispõe da liberdade de escolha entre os laboratórios aprovados para cada categoria de análises, seja qual for a qualidade do empresário. As condições de aprovação são fixadas por decreto interministerial.»

22.      O montante total das despesas de análises e exames de laboratório a cargo dos regimes de seguro de doença bem como a participação do segurado são fixados, por força do artigo L. 162‑14 do code de la sécurité sociale, por uma convenção nacional entre, por um lado, a caixa de previdência dos trabalhadores por conta de outrem e pelo menos uma outra caixa de previdência, e, por outro, as associações dos directores de laboratórios reconhecidas como as mais representativas a nível nacional.

23.      Por força do artigo 2.° da convenção nacional de 26 de Julho de 1994, as caixas de previdência não podem derrogar o princípio da livre escolha do laboratório previsto no artigo L. 162‑13 do code de la sécurité sociale. Só podem recusar tomar a cargo as despesas suplementares decorrentes da escolha de um laboratório fora da localidade de residência do segurado ou, na sua falta, da localidade mais próxima.

24.      Salvo comunicação expressa do director de um laboratório de que não pretende ser abrangido pelo regime da convenção em vigor, os laboratórios franceses que respondam às condições da regulamentação relativa à saúde pública são considerados convencionados e as análises aí efectuadas são custeadas com base nas tarifas fixadas pela convenção e na cotação prevista pela nomenclatura dos actos de biologia médica.

25.      Contudo, o artigo L. 332‑2 do code de la sécurité sociale proíbe que sejam concedidas prestações dos seguros de doença e de maternidade aos segurados e às pessoas a seu cargo quando os cuidados são prestados fora de França.

26.      O artigo R. 332‑2 do code de la sécurité sociale estabelece derrogações a este princípio. Não prevê a possibilidade de uma convenção entre as caixas de previdência e laboratórios estrangeiros. Relativamente às prestações médicas no estrangeiro, o artigo R. 332‑2, último parágrafo, do referido código dispõe:

«[...] as caixas de previdência podem, a título excepcional e após parecer favorável do controlo médico, proceder ao reembolso de um montante fixo pelos cuidados prestados fora de França a um beneficiário da segurança social ou a uma pessoa a seu cargo, quando este demonstre que não podia receber em território francês os cuidados adequados ao seu estado».

II – Direito comunitário

27.      O artigo 43.° CE dispõe:

«No âmbito das disposições seguintes, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro. Esta proibição abrangerá igualmente as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado‑Membro estabelecidos no território de outro Estado‑Membro.

A liberdade de estabelecimento compreende tanto o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício, como a constituição e a gestão de empresas e designadamente de sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 48.°, nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento para os seus próprios nacionais, sem prejuízo do disposto no capítulo relativo aos capitais.»

28.      O artigo 46.° CE dispõe:

«1.     As disposições do presente capítulo e as medidas tomadas em sua execução não prejudicam a aplicabilidade das disposições legislativas, regulamentares e administrativas, que prevejam um regime especial para os estrangeiros e sejam justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública.

2.       O Conselho, deliberando nos termos do artigo 251.°, adoptará directivas para a coordenação das citadas disposições.»

29.      O artigo 47.° CE dispõe, nomeadamente:

«[...]

3.       No que diz respeito às profissões médicas, paramédicas e farmacêuticas, a eliminação progressiva das restrições dependerá da coordenação das respectivas condições de exercício nos diversos Estados‑Membros.»

30.      O terceiro parágrafo do artigo 50.° CE é do seguinte teor:

«Sem prejuízo do disposto no capítulo relativo ao direito de estabelecimento, o prestador de serviços pode, para a execução da prestação, exercer, a título temporário, a sua actividade no Estado onde a prestação é realizada, nas mesmas condições que esse Estado impõe aos seus próprios nacionais.»

III – O processo

31.      No seguimento de uma queixa de um laboratório alemão em relação à regulamentação francesa, os serviços da Comissão pediram, por carta de 18 de Março de 1999, informações às autoridades francesas. Estas responderam‑lhe por carta de 21 de Setembro de 1999.

32.      Por notificação de 1 de Fevereiro de 2000, a Comissão referiu ao Governo francês que, em sua opinião, determinadas disposições da regulamentação francesa em matéria de laboratórios de análises de biologia médica colocavam problemas de compatibilidade com o direito de estabelecimento e a livre prestação de serviços previstos nos artigos 43.° CE e 49.° CE.

33.      Não tendo as autoridades francesas respondido a esta carta, a Comissão dirigiu à República Francesa, em 24 de Janeiro de 2001, um parecer fundamentado.

34.      Por carta de 6 de Junho de 2001, as autoridades francesas responderam ao parecer fundamentado rejeitando as acusações da Comissão.

35.      Considerando que a referida resposta não era satisfatória, a Comissão, por requerimento de 17 de Dezembro de 2001, propôs, ao abrigo do artigo 226.° CE, uma acção de incumprimento contra a República Francesa.

36.      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

a)       Declarar que:

ao impor aos laboratórios de análises de biologia médica estabelecidos noutros Estados‑Membros a condição de terem a sua sede de exploração em território francês para obterem a autorização de funcionamento necessária;

ao excluir todo e qualquer reembolso das despesas por análises de biologia médica efectuadas por um laboratório de análises de biologia médica estabelecido noutro Estado‑Membro;

a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.° CE e 49.° CE;

b)       Condenar a República Francesa nas despesas.

37.      A República Francesa conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

julgar a acção totalmente improcedente,

condenar a Comissão nas despesas.

IV – Quanto à primeira acusação, consistente na exigência de sede de exploração em território francês

38.      Como a Comissão sustenta que a República Francesa viola quer o artigo 43.° CE (liberdade de estabelecimento) quer o artigo 49.°CE (livre prestação de serviços), analisemos desde já o problema sob o ângulo do artigo 43.° CE.

A – Quanto à violação do princípio da liberdade de estabelecimento

39.      A Comissão sustenta que a República Francesa impede um laboratório que tem a sede de exploração noutro Estado‑Membro de criar um estabelecimento secundário em França na acepção do artigo 43.°, segundo parágrafo, CE.

40.      Sentimos alguma dificuldade em compreender o que a Comissão quer dizer com isto. A Comissão não parece sustentar e, em qualquer caso, não demonstra que a legislação francesa proíbe um laboratório estrangeiro de criar em França uma sucursal ou uma filial na qual procederia ao conjunto das operações tradicionalmente efectuadas por um laboratório de análises.

41.      Também não demonstra que esta legislação obriga um laboratório estabelecido noutro Estado‑Membro a transferir o conjunto das suas actividades para França de tal forma que o estabelecimento situado em França não seria mais um estabelecimento secundário passando antes a ser a única sede de exploração da sociedade em questão.

42.      Supomos, portanto, que a Comissão tem antes em vista a hipótese em que um laboratório estrangeiro de análises possui ou arrenda, em território francês, um local onde o sangue é colhido para ser em seguida expedido, para análise, para outro Estado‑Membro.

43.      Esta hipótese pode ser encarada de duas formas distintas.

44.      Em primeiro lugar, poder‑se‑ia considerar – em teoria – que a actividade que consiste unicamente na colheita de sangue constituiria em si mesma uma actividade económica. Mas isto implicaria que a «sede de exploração» do «laboratório de recolha de sangue» em questão se situaria, por definição, em França, de tal forma que a acusação acima referida seria inoperante.

45.      Em segundo lugar, importa ter em conta que, se a recolha de sangue não constitui em si mesma uma actividade completa, será então uma fase da actividade mais ampla que é a análise de sangue.

46.      Evidentemente que é este o caso. Mas, como a parte principal desta actividade decorre no estrangeiro, no interesse de um paciente residente em França, impõe‑se concluir que estamos na presença duma prestação de serviços transfronteiriça. Dito de outra forma, a colheita de sangue efectuada em França e a sua análise num país vizinho fazem parte de uma só e mesma prestação de serviços.

47.      O laboratório que se dedica unicamente à colheita de sangue não constitui, por isso, um estabelecimento secundário  (5) do laboratório de análises, mas uma infra‑estrutura destinada a facilitar a este último as suas prestações aproximando‑o dos utilizadores dos seus serviços.

48.      O Tribunal de Justiça admitiu, com efeito, no seu acórdão Gebhard  (6) que, «o carácter temporário da prestação [de serviços] não exclui a possibilidade de o prestador de serviços, na acepção do Tratado, se dotar, no Estado‑Membro de acolhimento, de uma certa infra‑estrutura (incluindo um escritório ou gabinete), na medida em que essa infra‑estrutura seja necessária para os efeitos da realização da prestação em causa».

49.      Consideramos assim que a exigência francesa de uma sede de exploração situada em França não tem por efeito excluir todo um sector económico da aplicação do princípio da liberdade de estabelecimento (artigo 43.° CE), como defende a Comissão, mas que deve ser analisada sob o ângulo do princípio da livre prestação de serviços (artigos 49.° CE e 50.° CE).

B – Quanto à violação do princípio da livre prestação de serviços

1. Argumentação submetida à apreciação do Tribunal de Justiça

50.      A Comissão acusa a República Francesa de privar um laboratório que tem a sua sede de exploração noutro Estado‑Membro da possibilidade de responder aos pedidos de segurados franceses a partir da sua sede de exploração no estrangeiro.

51.      Sem contestar a possibilidade de um Estado‑Membro prever um regime de autorização para as actividades de um laboratório, a Comissão considera que tais regimes devem ter em conta as prescrições e as garantias já satisfeitas pelo Estado‑Membro de estabelecimento. A não ser assim, a situação violaria o princípio da proporcionalidade.

52.      A Comissão entende que não há justificação para a exigência de que a sede de exploração seja em França. Na medida em que esta é discriminatória, o artigo 46.°, n.° 1, CE, conjugado com o artigo 55.° CE, quanto à livre prestação de serviços, não permite a exclusão de todo um sector económico como o em causa da aplicação dos princípios do direito de estabelecimento e da livre prestação de serviços  (7) . Caso fosse vista como uma restrição não discriminatória, seria necessário, segundo a Comissão, rejeitar todas as razões justificativas invocadas pelas autoridades francesas.

53.      Quanto à qualidade dos serviços médicos, a Comissão salienta, por um lado, que a qualidade dos serviços médicos está garantida pelas várias directivas de coordenação e de reconhecimento relativamente à qualificação dos médicos, dos farmacêuticos ou dos veterinários. Por outro lado, as condições de acesso e de exercício relativas às qualificações especializadas podem decorrer directamente da aplicação dos artigos 43.° CE e 49.° CE, assim como dos sistemas gerais de reconhecimento profissional dos diplomas. As diferentes directivas relativas ao «reconhecimento mútuo» tornam uma parte dos controlos mais fáceis de efectuar, o que prova que a necessidade dos controlos não é motivo suficiente para justificar a exigência relativa à localização da sede de exploração.

54.      Quanto aos controlos, a Comissão sublinha que a exigência de um estabelecimento estável só pode justificar‑se em casos excepcionais, se as autoridades demonstrarem que a sua missão de controlo não pode ser exercida de outra forma. O que não é o caso no processo em causa. A condição da localização da sede de exploração em território francês não será indispensável se o laboratório estrangeiro em questão puder obter a autorização administrativa de funcionamento sob condição de permitir que todos os controlos necessários para o cumprimento da missão das autoridades francesas sejam efectuados nesses locais. Os objectivos do controlo poderão ser atingidos através de medidas de organização apropriadas, incluindo uma autorização de duração limitada.

55.      Por outro lado, para que as análises efectuadas fora de França possam ser avaliadas segundo os padrões franceses, os laboratórios estabelecidos noutro Estado‑Membro poderiam, no momento do pedido de autorização, aderir voluntariamente aos padrões franceses.

56.      A Comissão precisa detalhadamente que as disposições da Directiva 98/79/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Outubro de 1998, relativa aos dispositivos médicos de diagnóstico in vitro  (8) , representam um elemento de apreciação útil e que podem ser utilizadas como referências de exemplo de medidas proporcionais relativamente ao fim em vista.

57.      A Comissão acusa a República Francesa de não ter explicado como e porquê o seu sistema assegura um nível mais elevado de controlo de qualidade e por que é que controlos «cegos» não são possíveis em amostras provenientes de laboratórios estabelecidos noutros Estados‑Membros.

58.      A Comissão explica e justifica que a eficácia das sanções contra os laboratórios e a manutenção da capacidade de tratamento também podem ser assegurados por medidas menos restritivas do que a condição de ter uma sede de exploração em território francês. Faz notar, a propósito da manutenção da capacidade de tratamento no território nacional, que a República Francesa não demonstrou, de acordo com o acórdão Kohll  (9) , que um serviço médico equilibrado e acessível a todos não pode ser garantido de outra forma.

59.      A República Francesa reconhece que a condição da sede de exploração em território francês pode ser considerada como um entrave, mas que se justifica por uma razão imperiosa de interesse geral, a saber, o objectivo de protecção da saúde pública, e que é proporcional ao objectivo pretendido.

60.      A República Francesa regista a ausência de regras de harmonização quanto ao funcionamento dos laboratórios de análises de biologia médica. Assim, cabe aos Estados‑Membros decidir qual o nível com que pretendem assegurar a protecção da saúde e da vida das pessoas.

61.      Sustenta que as directivas relativas ao reconhecimento mútuo dos diplomas dos médicos, dos farmacêuticos e dos veterinários apenas incidem sobre um só aspecto das regras impostas aos laboratórios de análises de biologia médica em França.

62.      A República Francesa refere que não pode julgar os níveis do controlo nos outros Estados‑Membros. Cabe à Comissão demonstrar que os critérios de qualidade e as modalidades do controlo são equivalentes aos critérios e aos controlos em vigor em França. Salienta também que não é possível comparar o regime dos dispositivos médicos de diagnóstico in vitro, tal como é definido pela Directiva 98/79, e a situação dos laboratórios de análises de biologia médica.

63.      Quanto ao respeito da proporcionalidade, a República Francesa reconhece que a sua regulamentação impede todas as prestações de serviços de um laboratório de outro Estado‑Membro. Contudo, salienta que, de acordo com os acórdãos de 4 de Dezembro de 1986  (10) e de 9 de Março de 2000  (11) , as condições de exigência de um estabelecimento permanente em território francês estão preenchidas. A Comissão não demonstrou como a missão de controlo das autoridades francesas pode ser efectuada de forma mais proporcional neste domínio de actividade, na ausência de harmonização comunitária ou de acordos bilaterais. É impossível efectuar controlos com os seus inspectores nos laboratórios estrangeiros. Os outros Estados‑Membros não podem efectuar estes controlos em vez das autoridades francesas e estas não podem a priori considerar equivalentes os controlos efectuados noutros Estados‑Membros.

64.      A República Francesa descreve pormenorizadamente o alcance e as modalidades dos controlos efectuados pelas suas autoridades e refere que estes controlos estão estritamente relacionados com as condições de exercício impostas pela regulamentação francesa no intuito de proteger a saúde pública. Para certas análises foram impostos métodos específicos e uma interpretação dos resultados. Se as análises forem feitas noutro Estado‑Membro, há um risco mais elevado de interpretação falsa dos resultados, o que constitui um risco real para a saúde dos pacientes.

2. Apreciação

65.      Não pode pôr‑se em causa que a disposição controvertida impede todo e qualquer laboratório estrangeiro de prestar os seus serviços em França, o que, aliás, não é contestado pelo Governo francês.

66.     É também evidente que não foi adoptada pelas instituições da Comunidade nenhuma directiva com vista a coordenar as condições de estabelecimento e de funcionamento dos laboratórios de biologia médica.

67.      Ora, decorre do artigo 47.°, n.° 3, CE, que «no que diz respeito às profissões médicas, paramédicas e farmacêuticas, a eliminação progressiva das restrições dependerá da coordenação das respectivas condições de exercício nos diversos Estados‑Membros».

68.      Por força do artigo 55.° CE, esta disposição é também aplicável em matéria de prestação de serviços.

69.      Em nossa opinião, os laboratórios de análises médicas incluem‑se no domínio das profissões paramédicas.

70.      Nas nossas conclusões de 13 de Dezembro de 2001, no processo Gräbner  (12) , sustentámos que os sectores supramencionados estavam também sujeitos a uma condição não prevista para nenhum outro domínio de actividade profissional. Para os outros sectores, a proibição das restrições à livre prestação de serviços no interior da Comunidade, definida no artigo 49.° CE, deve ser considerada uma «obrigação de resultado preciso, cuja execução deve ser facilitada mas não condicionada pela execução de um programa de medidas progressivas. Portanto, os imperativos do artigo 59.° do Tratado [que passou, após alteração, a artigo 49.° CE] passaram a ser de aplicação directa e incondicional a partir do termo do [...] período [transitório]»  (13) .

71.      No entanto, no vosso acórdão Gräbner, não haveis prestado qualquer atenção a este argumento.

72.      Haveis com efeito declarado  (14) : «importa sublinhar liminarmente que resulta de jurisprudência constante que, na falta de harmonização de uma actividade profissional, os Estados‑Membros continuam, em princípio, a ser competentes para definir o exercício dessa actividade, mas devem exercer as suas competências neste domínio, respeitando as liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado (v., nomeadamente, acórdãos de 3 de Outubro de 2000, Corsten, C‑58/98, Colect., p. I‑7919, n.° 31, e de 1 de Fevereiro de 2001, Mac Quen e o., C‑108/96, Colect., p. I‑837, n.° 24)». Haveis acrescentado: «para responder à primeira questão, há, portanto, que determinar em primeiro lugar se, numa situação como a do processo principal, o exercício da actividade de Heilpraktiker, na acepção da legislação alemã, está regulado por uma medida de harmonização adoptada a nível comunitário e, se assim não for, examinar em segundo lugar se os artigos 52.° e 59.° do Tratado, pertinentes no caso vertente no processo principal, se opõem a que um Estado‑Membro reserve aos titulares de um diploma de médico o exercício dessa actividade»  (15) .

73.      Decorre deste raciocínio que, segundo a vossa interpretação, mesmo nos domínios médico, paramédico e veterinário, as directivas visam unicamente facilitar a livre prestação de serviços. Portanto, uma vez terminado o período transitório, a livre circulação dos médicos teria sido a regra, mesmo sem a adopção das directivas pertinentes. Não pensamos que tenha sido essa a ideia dos autores do Tratado mas não insistiremos mais nesse ponto.

74.      Tomamos assim como base da nossa análise a jurisprudência constante que haveis desenvolvido a propósito do conjunto dos sectores de actividade e que haveis também aplicado ao sector paramédico nos vossos acórdãos Mac Quen e o.  (16) e Gräbner  (17) .

75.      Decorre desta jurisprudência que devem ser consideradas como restrições à livre prestação de serviços todas as medidas que proíbem, perturbam ou tornam menos atractivo o exercício destas liberdades.

76.      Tais medidas só podem justificar‑se se preencherem quatro condições: aplicarem‑se de modo não discriminatório, justificarem‑se por razões imperativas de interesse geral, serem adequadas para garantir a realização do objectivo que prosseguem e não ultrapassarem o necessário para atingir esse objectivo  (18) .

77.     É indubitável que uma legislação que determine que não pode ser concedida uma autorização de exploração a um laboratório de análises a não ser que tenha uma sede de exploração em França constitui uma restrição ao exercício da livre prestação de serviços. Importa, então, analisar se uma tal legislação pode ser justificada em virtude das quatro condições desenvolvidas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

78.      A este respeito há que verificar que, embora a disposição em causa não faça nenhuma referência à nacionalidade das sociedades ou das pessoas que pretendem efectuar uma prestação de serviço em França, é no entanto certo que os laboratórios estabelecidos noutro Estado‑Membro estão impedidos, por esse simples motivo, de prestar serviços em França. Forçoso é então concluir que se trata de uma discriminação indirecta.

79.      Deverá daqui concluir‑se que, dado que a primeira das quatro condições desenvolvidas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça não está preenchida, a restrição em causa é necessariamente incompatível com o direito comunitário?

80.      Não é assim. Importa, com efeito, recordar que a protecção da saúde pública consta dos motivos que, por força do artigo 46.°, n.° 1, CE, podem justificar restrições à liberdade de estabelecimento decorrentes de um regime especial para os cidadãos estrangeiros. A protecção da saúde pública é, assim, em princípio, susceptível de justificar igualmente medidas que constituam uma discriminação indirecta ou medidas indistintamente aplicáveis  (19) . As disposições deste número são aplicáveis à prestação de serviços por força do artigo 55.° CE.

81.     É certo que a opção de um Estado‑Membro de reservar aos laboratórios que tenham uma sede de exploração em França o direito de efectuar análises de biologia médica às pessoas que residem neste país pode ser considerada um meio adequado para atingir o objectivo de protecção da saúde pública. Permite, com efeito, não só garantir a qualificação dos dirigentes e do pessoal destes laboratórios mas também controlar, através de inspecções periódicas, se o desenrolar das análises está permanentemente em conformidade com as regras determinadas pelo Estado‑Membro em causa.

82.      Todavia, falta ainda analisar se a medida em causa não ultrapassa o necessário para atingir o objectivo prosseguido.

83.      A este respeito, deve recordar‑se que o facto de eventualmente outros Estados‑Membros imporem regras menos rígidas do que as aplicáveis em França não significa, por si só, que estas últimas sejam desproporcionadas e, portanto, incompatíveis com o direito comunitário  (20) .

84.      Efectivamente, a simples circunstância de um Estado‑Membro ter escolhido um sistema de protecção diferente do adoptado por outro Estado‑Membro não pode ter incidência sobre a apreciação da necessidade e da proporcionalidade das disposições adoptadas na matéria  (21) .

85.      A Comissão, apesar de reconhecer o direito dos Estados‑Membros de preverem um regime de autorização para as actividades dos laboratórios, considera no entanto que a exigência de uma sede de exploração situada em território francês não é indispensável para atingir o objectivo pretendido.

86.      Por seu lado, o Governo francês salienta que o Tribunal de Justiça já admitiu que um Estado‑Membro pode impor uma obrigação de estabelecimento no caso de as suas autoridades só puderem executar de forma eficaz a sua missão de controlo se a empresa dispuser, no referido Estado‑Membro, de um estabelecimento permanente. Refere‑se a este propósito, em primeiro lugar, ao acórdão Comissão/Alemanha  (22) , relativo ao domínio dos seguros.

87.      No entanto, decorre deste acórdão que o Tribunal de Justiça tomou uma posição diferente daquela que refere a demandada.

88.      O Tribunal de Justiça declarou, com efeito, que «se a exigência de uma autorização constitui uma restrição à livre prestação dos serviços, a exigência de um estabelecimento permanente é, de facto, a própria negação dessa liberdade. Tem como consequência retirar qualquer efeito útil ao artigo 59.° do Tratado cujo objecto é, precisamente, eliminar as restrições à livre prestação de serviços por parte de pessoas não estabelecidas no Estado em cujo território a prestação deva ser fornecida [...]. Para que uma tal exigência seja aceite, importa verificar se constitui uma condição indispensável para atingir o objectivo procurado» (n.° 52).

89.      Seguidamente, o Tribunal de Justiça precisou que cabe às autoridades demonstrar «que, mesmo no quadro de um regime de autorização, essas autoridades não poderiam executar a sua missão de controlo, de modo eficaz, sem que a empresa disponha no referido Estado‑Membro, de um estabelecimento permanente, com todos os documentos necessários» (n.° 54, in fine). Considerou no entanto, que esta demonstração não fora feita no que diz respeito aos balanços, contas e documentos de escrituração comercial, incluindo as condições de seguro e os programas de actividade. Cópias destes documentos podiam, com efeito, ser remetidas a partir do Estado do estabelecimento e devidamente certificadas pelas autoridades deste Estado‑Membro. O Tribunal de Justiça conclui que «no quadro de um regime de autorização, é possível submeter a empresa a tais condições de controlo no acto de autorização e assegurar o seu respeito, se for caso disso, mediante a revogação desse acto» (n.° 55).

90.      Em apoio deste ponto de vista, o Governo francês refere também o acórdão Comissão/Bélgica  (23) . No entanto, não vemos de que forma pode este acórdão sustentar a sua tese uma vez que nele o Tribunal de Justiça decidiu que, ao sujeitar as empresas de vigilância e as empresas de segurança à obrigação de terem uma sede operacional na Bélgica, este Estado‑Membro não cumpriu as suas obrigações, nomeadamente as previstas no artigo 59.° do Tratado.

91.      Dito isto, gostaríamos de voltar uma vez mais ao acórdão Comissão/Alemanha proferido em matéria de seguros, a que nos acabámos de referir, uma vez que encerra outros ensinamentos transponíveis para o presente processo.

92.      Como já salientámos, a Comissão admite que a República Francesa possa também aplicar o seu regime de autorização aos laboratórios de análises estrangeiros e estamos inteiramente de acordo com ela a este respeito.

93.      Ora, no acórdão Comissão/Alemanha, já referido, estava igualmente em causa um regime deste tipo, dito de «autorização», e as considerações que o Tribunal de Justiça lhe consagrou são pertinentes para o caso em apreço.

94.      O Tribunal de Justiça referiu desde logo que «nestas circunstâncias, não se poderia rejeitar o argumento do Governo alemão segundo o qual só a exigência de uma autorização pode garantir, de maneira eficaz, o controlo que, [...], se justifica por razões relativas à protecção dos consumidores enquanto tomadores de seguros e segurados. Considerando que um sistema como o proposto no projecto da segunda directiva, que confia a administração do regime de autorização ao Estado‑Membro do estabelecimento em colaboração estreita com o Estado destinatário, não pode ser instaurado senão por via legislativa, importa igualmente admitir que, no estado actual do direito comunitário, compete ao Estado destinatário conceder e retirar essa autorização» (n.° 46).

95.      O Tribunal de Justiça acrescentou que «importa, todavia, sublinhar que a autorização deve ser concedida a pedido de qualquer empresa estabelecida num outro Estado‑Membro que preencha as condições previstas pela legislação do Estado destinatário, que tais condições não podem cumular‑se com as condições legais equivalentes já preenchidas no Estado do estabelecimento e que a autoridade de controlo do Estado destinatário deve tomar em consideração os controlos e verificações já efectuados no Estado‑Membro do estabelecimento» (n.° 47).

96.      Se um regime de autorização se justifica em matérias de seguros, por maioria de razão se deve justificar no que diz respeito aos laboratórios de análise, cujo eventual mau funcionamento pode ter consequências negativas para a saúde das pessoas visadas. Mas um tal regime deve também satisfazer as condições acima recordadas.

97.      Consequentemente, propomos que o Tribunal de Justiça considere procedente a primeira acusação da Comissão e que declare que os artigos 49.° CE e 50.° CE se opõem a que as prestações de serviços efectuadas por laboratórios de análise médica estabelecidos noutros Estados‑Membros estejam subordinadas à existência de uma sede de exploração no país de acolhimento, mas que tais prestações podem, todavia, estar sujeitas a um regime de autorização.

98.      Isto significa, portanto, que os laboratórios situados noutros Estados‑Membros não podem reivindicar o direito de exercer as suas actividades relativamente às pessoas residentes em França com base no simples facto de que cumprem as condições em vigor no seu país de estabelecimento.

99.      Por seu lado, as autoridades francesas devem verificar se os interesses que o regime de autorização francês visa salvaguardar não o estão já por força das regras às quais o prestador está sujeito no Estado‑Membro em que se encontra estabelecido  (24) . Cabe ao laboratório que pretende obter a autorização fornecer todos os elementos de prova pertinentes.

100.    No entanto, relativamente aos controlos no local, não partilhamos do optimismo da Comissão, que considera que bastaria que os próprios laboratórios estrangeiros dessem o seu acordo aos controlos efectuados pelos inspectores franceses para que tais controlos fossem possíveis. Duvidamos, com efeito, que os governos dos países de estabelecimento aceitem tais intrusões no seu território e duvidamos mesmo que os inspectores franceses estejam em condições de efectuar tais «deslocações ao local».

101.    Além disso não pensamos que seja possível exigir do Governo francês que abra negociações com os Estados vizinhos para autorizarem estes controlos ou para os efectuarem através das autoridades competentes locais, segundo os critérios franceses.

102.    Competia, com efeito, à Comissão propor uma directiva de harmonização que teria permitido, entre outros aspectos, estabelecer o princípio do controlo apenas pelas autoridades do país do estabelecimento principal («home control») como já foi feito no sector dos seguros e no sector bancário. Seria injusto exigir aos Estados‑Membros que efectuassem negociações com os seus vizinhos e que pusessem em vigor sistemas bilaterais de reconhecimento simplesmente porque, 45 anos após a entrada em vigor do Tratado CEE, ainda não foi adoptada nenhuma directiva de harmonização.

103.    A solução para este problema dos controlos parece‑nos dever consistir em os laboratórios estrangeiros provarem às autoridades francesas que os controlos a que estão sujeitos não são menos rigorosos do que os em vigor em França.

104.    Cabe também a estes laboratórios fazer com que os relatórios das análises possam ser entendidos pelos médicos franceses. Isto é válido especialmente para a interpretação dos resultados apresentados pelo biólogo que é, em certos casos, exigida pela regulamentação francesa como elemento auxiliar de diagnóstico do médico prescritor.

105.    Com base nos elementos que precedem, concluímos, no que respeita ao primeiro fundamento, que a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 49.° CE e 50.° CE, ao impor aos laboratórios de análises de biologia médica estabelecidos noutros Estados‑Membros a condição de terem a sua sede de exploração em território francês para serem admitidos no regime de autorização francês.

V – Quanto à segunda acusação, consistente na recusa de reembolso das despesas de análises de biologia médica efectuadas noutro Estado‑Membro

A – Argumentação submetida à apreciação do Tribunal de Justiça

106.    A Comissão acusa a República Francesa de excluir de facto o reembolso das despesas de análises médicas efectuadas num laboratório estabelecido noutro Estado‑Membro. Uma tal exclusão decorre indirectamente do artigo R. 332‑2 do code de la sécurité sociale, uma vez que não existem análises que os laboratórios franceses não possam efectuar. Para a Comissão, isto constitui um entrave e uma discriminação.

107.    A Comissão contesta a argumentação da República Francesa de que as regras de segurança social não têm efeitos restritivos que afectem o direito de estabelecimento ou a livre prestação de serviços porque a obtenção da autorização é condição necessária para que os directores de laboratórios possam ser convencionados, mas um laboratório que tenha obtido autorização para funcionar não tem forçosamente de ter celebrado uma convenção com a segurança social. A Comissão considera que um laboratório estrangeiro que pretenda fornecer serviços em França na prática só o pode fazer se respeitar a convenção nacional de 26 de Julho de 1994.

108.    Com base no n.° 41 do acórdão Kohll, já referido, a Comissão sustenta que o risco de ameaça grave ao equilíbrio financeiro do regime de segurança social é a única razão justificativa de uma restrição aos princípios da livre circulação de serviços, mas que não está demonstrado que o reembolso das análises de biologia médica efectuadas noutro Estado‑Membro, segundo as tarifas da segurança social francesa, tenha uma incidência significativa no financiamento do sistema de segurança social. Neste contexto, a Comissão recorda, nomeadamente, que as caixas de previdência podem recusar assumir as despesas suplementares resultantes da escolha de um laboratório diferente do da área de residência do segurado. Se este princípio também fosse aplicado aos laboratórios estabelecidos no estrangeiro, esta medida seria, segundo a Comissão, em qualquer caso menos restritiva que a regulamentação actual.

109.    A República Francesa replica, quanto ao mérito, que a conclusão a que chegou o Tribunal de Justiça no acórdão Kohll, já referido, se baseia no facto de as condições de acesso e de exercício dos médicos e dos dentistas terem sido objecto de diversas directivas de coordenação e de harmonização. Vê na ausência de harmonização quanto aos laboratórios de análises de biologia médica a diferença decisiva relativamente ao processo Kohll.

110.    Em resposta, a Comissão salienta que, se a falta de harmonização pode, por razões de protecção da saúde pública, justificar um sistema de autorização, a exclusão de qualquer possibilidade de concessão dessa autorização, no que diz respeito às análises dos laboratórios, com base no critério do seu estabelecimento fora do território francês, é desproporcionada porque ultrapassa preocupações relativas à protecção da saúde.

111.    Considerando que, com esta argumentação, a Comissão não rejeita totalmente o sistema posto em prática pela regulamentação francesa, a República Francesa pede ao Tribunal de Justiça, a título subsidiário, que fixe os critérios que permitam definir as hipóteses de reembolso sem autorização prévia de certas análises efectuadas por um laboratório. A este respeito, poderia ser necessário efectuar uma distinção entre, por um lado, as análises «automatizadas», isto é, as que são realizadas de forma estandardizada por aparelhos e para as quais não existem normas francesas específicas e, por outro, as análises mais técnicas que implicam conhecimentos especiais. O Governo francês propõe‑se reembolsar, com base nas tarifas convencionadas francesas, as análises «automatizadas». Quanto às análises mais técnicas, seria sempre conveniente ligar o seu reembolso ao cumprimento das normas de qualidade francesas.

B – Apreciação

112.    Esta última sugestão mostra que a questão das normas francesas mais rigorosas não reveste toda a amplitude que as primeiras observações do governo puderam crer.

113.    Demonstra também que o convencionamento não coloca de facto um problema. Os próprios laboratórios franceses não estão todos expressamente convencionados. Com efeito, a Comissão referiu, sem ser contradita, que, salvo notificação expressa do director de um laboratório de que não pretende colocar‑se sob o regime da convenção, os laboratórios franceses que respondam às condições francesas da regulamentação relativa à saúde pública são considerados como convencionados e as análises aí efectuadas são pagas com base nas tarifas fixadas pela convenção. Bastará então que as caixas de previdência tratem da mesma forma as facturas provenientes dos laboratórios estrangeiros. Têm, bem entendido, o direito de recusar as despesas suplementares resultantes da escolha de um laboratório diferente dos da área de residência do beneficiário.

114.    Quanto à apreciação da segunda acusação, basta verificar que o não reembolso pelas caixas de previdência francesas das facturas de um laboratório estabelecido noutro Estado‑Membro, constitui uma restrição que só se justificaria se as quatro condições já referidas estivessem preenchidas.

115.    A este respeito, deve aplicar‑se o mesmo raciocínio seguido no âmbito da primeira acusação formulada pela Comissão. Assim, a restrição só pode ser justificada se o laboratório em causa não tiver obtido uma autorização, tal como defendemos na análise desta acusação.

116.    Como, actualmente, uma tal autorização não pode, em nenhuma circunstância, ser obtida, há que dar provimento ao segundo fundamento da Comissão.

117.    Acrescentemos que, no dia em que o sistema de autorização francês for aberto aos laboratórios estabelecidos noutros Estados‑Membros, daí não resultará uma ameaça grave para o equilíbrio financeiro da segurança social francesa. As prestações destes laboratórios só serão, com efeito, reembolsadas dentro dos limites previstos pela referida convenção.

118.    Por outro lado, o argumento baseado num aumento do número das análises também não é muito convincente, uma vez que as análises são prescritas por médicos franceses que, de qualquer forma, se devem limitar a prescrever aquelas que são estritamente necessárias.

119.    Podemos, por isto, concluir, no que respeita à segunda acusação, que a República Francesa não cumpriu as obrigações decorrentes dos artigos 49.° CE e 50.° CE, ao excluir qualquer reembolso das despesas devidas por análises de biologia médica efectuadas por um laboratório estabelecido noutro Estado‑Membro.

VI – Conclusão

120.    Consequentemente, propomos que o Tribunal de Justiça:

«1)
Declare que a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 49.° CE e 50.° CE,

ao impor aos laboratórios de análises médicas estabelecidos noutros Estados‑Membros a condição de terem a sua sede de exploração em território francês para poderem ser abrangidos pelo regime de autorização francês e

ao excluir todo e qualquer reembolso das despesas por análises de biologia médica efectuadas por um laboratório estabelecido noutro Estado‑Membro;

2)
Condene a República Francesa nas despesas.»


1
Língua original: francês.


2
JORF de 6 de Novembro de 1976, p. 6449.


3
JORF de 11 de Novembro de 1999, p. 18441.


4
JORF de 8 de Dezembro de 1994, p. 17382.


5
Contrariamente ao exemplo do segundo gabinete de um advogado: acórdão de 12 de Julho de 1984, Klopp (107/83, Recueil, p. 2971).


6
Acórdão de 30 de Novembro de 1995 (C‑55/94, Colect., p. I‑4165, n.° 27), o sublinhado é meu.


7
Acórdão de 28 de Abril de 1998, Kohll (C‑158/96, Colect., p. I‑1931).


8
JO L 331, p. 1.


9
Já referido na nota 7, n.° 51.


10
Acórdão Comissão/Alemanha (205/84, Colect., p. I‑3755, n.° 52).


11
Acórdão Comissão/Bélgica (C‑355/98, Colect., p. I‑1221, n.° 27).


12
Acórdão de 11 de Julho de 2002 (C‑294/00, Colect., p. I‑6515, n.os 29 e 30).


13
Acórdão de 17 de Dezembro de 1981, Webb (279/80, Recueil, p. 3305, n.° 13).


14
Já referido na nota 12, n.° 26.


15
.Ibidem, n.° 27.


16
Acórdão já referido.


17
Já referido na nota 12.


18
V., acórdãos Gräbner, já referido na nota 12, n.° 39; Gebhard, já referido na nota 6, n.° 3; de 4 de Julho de 2000, Haim (C‑424/97, Colect., p. I‑5123, n.° 57); e Mac Quen e o., já referido na nota 16, n.° 26.


19
V., por exemplo, n.° 28 do acórdão Mac Quen e o., já referido.


20
V. acórdãos Gräbner, já referido na nota 12, n.° 46; de 12 de Dezembro de 1996, Reisebüro Broede (C‑3/95, Colect., p. I‑6511, n.° 42); Mac Quen e o., já referido na nota 16, n.° 33; e de 19 de Fevereiro de 2002, Wouters e o. (C‑309/99, Colect., p. I‑1577, n.° 108).


21
Acórdãos Gräbner, já referido na nota 12, n.° 47; Mac Quen e o., já referido na nota 16, n.° 34; e de 21 de Outubro de 1999, Zenatti (C‑67/98, Colect., p. I‑7289, n.° 34).


22
Já referido na nota 10, n.° 55.


23
Já referido na nota 11.


24
V., nomeadamente, acórdão de 23 de Novembro de 1999, Arblade e o. (C‑369/96 e C‑376/96, Colect., p. I‑8453, n.° 34, assim como os acórdãos aí referidos).