62001C0243

Conclusões do advogado-geral Alber apresentadas em 13 de Março de 2003. - Processo-crime contra Piergiorgio Gambelli e outros. - Pedido de decisão prejudicial: Tribunale di Ascoli Piceno - Itália. - Direito de estabelecimento - Livre prestação de serviços - Colecta num Estado-Membro de apostas sobre acontecimentos desportivos e transmissão, pela Internet, para outro Estado-Membro - Proibição sob pena de sanções penais - Legislação de um Estado-Membro que reserva a certos organismos o direito de recolher apostas. - Processo C-243/01.

Colectânea da Jurisprudência 2003 página 00000


Conclusões do Advogado-Geral


I - Introdução

1 O presente caso foi submetido ao Tribunal de Justiça através de um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale Ascoli Piceno. Tem origem num processo penal contra Piergiorgio Gambelli e mais de 100 outras pessoas (1), nomeadamente com fundamento na violação do artigo 4.º da Lei italiana n.º 401/89, que pune a angariação e a transmissão de apostas reservadas ao Estado ou a empresas concessionárias. As apostas efectuadas em Itália são enviadas a um bookmaker britânico. Por conseguinte, o litígio suscita problemas de compatibilidade entre as disposições nacionais nesta matéria e o direito comunitário no que se refere às liberdades de estabelecimento e de prestação de serviços. O Tribunal de Justiça já se pronunciou no acórdão Zenatti (2) sobre parte das disposições italianas aplicáveis. No caso em apreço está, porém, em causa uma dimensão diferente do problema analisado no acórdão Zenatti, uma vez estamos perante um contexto de direito penal no qual assume particular importância a questão da proporcionalidade das medidas. Além disso, as normas nacionais serão consideradas na perspectiva da liberdade de estabelecimento, ao passo que até agora o Tribunal de Justiça tem abordado a problemática das lotarias (3), dos jogos de fortuna e azar (4) e das apostas desportivas (5) apenas do ponto de vista da livre prestação de serviços. Por último, uma lei de 2000 (6) procedeu, com efeitos a partir de 2001, a um alargamento do âmbito de aplicação das disposições italianas que é, por seu turno, possivelmente problemático do ponto de vista do direito comunitário.

(Os acórdãos Zenatti, Schindler e Läärä, referidos nas notas 3 e 5, serão a seguir repetidamente mencionados. No entanto, a referência à respectiva publicação será feita caso a caso.)

II - Enquadramento jurídico

A - As disposições comunitárias

2 O artigo 43.º CE é do seguinte teor:

«No âmbito das disposições seguintes, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro. Esta proibição abrangerá igualmente as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos no território de outro Estado-Membro.

A liberdade de estabelecimento compreende tanto o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício como a constituição e a gestão de empresas e, designadamente, de sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 48.º, nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento para os seus próprios nacionais, sem prejuízo do disposto no capítulo relativo aos capitais.»

3 O artigo 48.º dispõe o seguinte:

«As sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e que tenham a sua sede social, administração central ou estabelecimento principal na Comunidade são, para efeitos do disposto no presente capítulo, equiparadas às pessoas singulares, nacionais dos Estados-Membros.

Por `sociedade' entendem-se as sociedades de direito civil ou comercial [...].»

4 O artigo 46.º, n.º 1, CE determina:

«As disposições do presente capítulo e as medidas tomadas em sua execução não prejudicam a aplicabilidade das disposições legislativas, regulamentares e administrativas que prevejam um regime especial para os estrangeiros e sejam justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública.»

5 O artigo 49.º, primeiro parágrafo, CE dispõe o seguinte:

«No âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados-Membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.»

Nos termos do artigo 55.º, as disposições dos artigos 45.º a 48.º relativas à liberdade de estabelecimento são também aplicáveis em matéria de livre prestação de serviços.

B - As disposições nacionais

6 Nos termos do artigo 88.º do Testo Unico delle Leggi di Pubblica Sicurezza (texto único das leis relativas à segurança pública, a seguir «TULPS») (7) não pode ser concedida qualquer licença para a recolha de apostas, com excepção das apostas relativas a corridas, regatas, jogos de bola e competições do mesmo tipo, quando a angariação das apostas constitua uma condição necessária para o desenvolvimento útil da competição. A licença para a actividade de exploração de apostas é concedida exclusivamente a concessionários ou a quem um Ministério ou outro organismo, ao qual a lei reserve a faculdade para organizar ou receber apostas, autorize para esse efeito. As apostas podem incidir quer sobre o resultado de acontecimentos desportivos sujeitos ao controlo do comité olímpico nacional italiano (Comitato olimpico nazionale italiano, a seguir «CONI»), quer sobre o resultado de corridas de cavalos organizadas por intermédio da União Nacional para o fomento das raças equestres (Unione Italiana per l'incremento delle razze equine, a seguir «UNIRE»).

7 O artigo 4.º da Lei n.º 401/89 (8) relativa às «Intervenções no sector do jogo e das apostas proibidas destinadas a proteger o desenvolvimento normal das competições desportivas», na redacção dada pelo artigo 37.º, n.º 5, da Lei n.º 388/00, dispõe o seguinte:

1. Quem, sem a devida autorização, participar na organização de lotarias, apostas ou jogos de fortuna e azar reservados por lei ao Estado ou a outro organismo concessionário é punido com pena de prisão de seis meses a três anos. Na mesma pena incorre quem organizar apostas ou jogos de prognose que incidam sobre as actividades desportivas organizadas pelo CONI, por entidades sujeitas ao seu controlo ou pela UNIRE. Quem, de forma ilícita, participar na organização pública de apostas relativas a outras competições entre pessoas ou animais, bem como a outros jogos de perícia, é punido com pena de prisão de três meses a um ano e com uma pena de multa mínima de um milhão ITL.

2. Quem fizer publicidade aos concursos, jogos ou apostas organizados de acordo com as modalidades previstas no n.º 1 sem, no entanto, ser co-autor dos crimes aí previstos é punido com pena de prisão até três meses e com pena de multa entre 100 000 e 1 milhão ITL.

3. Quem participar em concursos, jogos ou apostas organizados nos termos do n.º 1, sem, no entanto, ser co-autor dos crimes aí previstos, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa entre 100 000 e 1 milhão ITL.

4. Os n.os 1 e 2 são igualmente aplicáveis aos jogos de fortuna e azar em que se utilizem as máquinas proibidas pelo artigo 110.º do DR n.º 773, de 18 de Junho de 1931, modificado pela Lei n.º 507, de 20 de Maio de 1965, e, por último, pelo artigo 1.º da Lei n.º 904, de 17 de Dezembro de 1986.

4-bis(9) As sanções previstas neste artigo aplicam-se a quem, sem possuir a concessão, autorização ou licença impostas pelo artigo 88.º do TULPS, desenvolva em Itália qualquer actividade organizada com vista a aceitar ou recolher ou mesmo favorecer a aceitação ou, de qualquer modo, a recolha, mesmo por via telefónica ou telemática, de apostas de qualquer género que sejam aceites em Itália ou no estrangeiro.

4-ter Sem prejuízo dos poderes outorgados ao Ministro das Finanças pelo artigo 11.º do Decreto-lei n.º 557, de 30 de Dezembro de 1933, hoje transformado na Lei n.º 133, de 26 de Fevereiro de 1994, e por aplicação do artigo 3.º, n.º 228, da Lei n.º 549, de 28 de Dezembro de 1995, as sanções previstas no presente artigo são aplicáveis a quem exerça a actividade de recolha ou reserva de bilhetes de lotaria, jogos de prognose ou apostas, por via telefónica ou telemática, sem possuir licença de utilização destes meios para efeitos da referida recolha ou reserva.

III - A matéria de facto e a tramitação processual

8 Segundo o despacho de reenvio, o Ministério Público e o Juiz de Instrução Criminal do Tribunale di Fermo concluíram pela existência de «uma organização, difusa e ramificada de agências italianas» ligada através da Internet ao bookmaker britânico Stanley International Betting de Liverpool e à qual pertencem Gambelli e mais de 100 outras pessoas, com o objectivo de proceder «à angariação, no território do Estado italiano, de apostas que lhe estão reservadas por lei de acordo com modalidades» que se podem resumir do seguinte modo: comunicação do jogador ao responsável da agência das partidas em que pretende apostar com indicação da quantia apostada; envio, pelo referido responsável, via Internet, do pedido de aceitação ao bookmaker inglês com indicação das partidas de futebol nacional e das apostas efectuadas; envio pelo referido bookmaker inglês, através do mesmo sistema informático e imediatamente (literalmente: «em tempo real»), da confirmação da aceitação da aposta; entrega da confirmação ao jogador e pagamento, pelo cliente, da contrapartida devida, paga em seguida ao bookmaker inglês através do respectivo depósito em conta estrangeira. Foi considerado que estas condutas e modalidades de recepção e transmissão de apostas representavam uma violação do regime do monopólio CONI sobre as apostas desportivas e, por conseguinte, do artigo 4.º da Lei n.º 401/89.

9 O Ministério Público do Tribunale di Fermo iniciou uma investigação contra Gambelli e os outros arguidos com fundamento na organização e recepção de apostas proibidas, na acepção do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 401/89. Além disso, o Juiz de Instrução Criminal do Tribunale di Fermo proferiu um despacho de apreensão e ordenou a detenção policial de Garrisi. Foram também efectuadas buscas nas agências, nas residências dos arguidos e nos seus veículos. Foi pedido ao órgão jurisdicional de reenvio o reexame dos despachos de apreensão.

10 A Stanley International Betting Ltd. é uma sociedade de capitais britânica, registada no Reino Unido, que exerce a actividade de bookmaker e está autorizada a exercer esta actividade através de uma licença, na acepção da regulamentação relativa à Betting Gaming and Lotteries, emitida pela cidade de Liverpool, válida para todo o Reino Unido e no estrangeiro. O bookmaker exerce a actividade de organização das apostas, ao abrigo da licença britânica e faz publicidade em revistas e jornais diários e semanários. A sociedade britânica organiza e gere as apostas, determina os acontecimentos e o valor, assume o risco económico, opera igualmente através de angariação telefónica e telemática, paga os impostos a que está sujeita no Reino Unido (o imposto sobre as apostas, o imposto sobre o valor acrescentado, o imposto sobre as sociedades), bem como os impostos e encargos sobre os rendimentos, e distribui os prémios correspondentes. A sociedade está sujeita a uma fiscalização rigorosa não só a nível interno como também por parte de técnicos de contas privados e da administração fiscal.

11 A sociedade britânica opera no mercado italiano através da celebração de contratos tendo por objecto a criação de centros de transmissão de dados com os operadores económicos estabelecidos neste país, contratos esses por força dos quais os ditos operadores económicos se tornam intermediários de apostas desportivas. De acordo com o despacho de reenvio, estes centros «põem à disposição dos utentes a rede telemática ligada ao bookmaker, efectuam as reservas e transmitem-nas a Liverpool». O bookmaker inglês apresenta uma oferta variada de apostas não só sobre acontecimentos desportivos organizados pelo CONI ou por organizações dele dependentes, mas também sobre outros acontecimentos desportivos estrangeiros e internacionais. Os nacionais italianos também têm a possibilidade de efectuar a partir do seu domicílio apostas desportivas que o bookmaker organiza e gere através de vários sistemas como a Internet, o fax, o telefone, etc..

12 Os arguidos estão inscritos no registo comercial italiano como titulares de empresas de exploração de centros de transmissão de dados e foi-lhes concedida pelo Ministro dos Correios e das Telecomunicações a devida autorização para a actividade de transmissão de dados (na acepção da Decisão 467/2000/Cons de 19 de Julho de 2000 e do Decreto Presidencial n.º 318 de 19 de Setembro de 1997).

13 Segundo o órgão jurisdicional nacional, o direito comunitário reconhece à sociedade Stanley o direito de se estabelecer a título principal ou por meio sucursais nos Estados-Membros da CE. Estes estabelecimentos principais ou sucursais conferem aos utentes a possibilidade de transmitirem dados ao bookmaker. O órgão jurisdicional de reenvio alega ainda que as pessoas investigadas não só colaboram com o bookmaker na actividade de angariação de apostas, como também desenvolveram uma actividade económica e um serviço em benefício da empresa estrangeira. O pedido de reexame dirigido ao tribunal nacional suscitava questões prejudiciais de compatibilidade de normas nacionais com o direito comunitário, sendo de salientar o facto de terem sido proferidas em Itália inúmeras decisões judiciais com soluções contrastantes e contraditórias nesta matéria.

14 O órgão jurisdicional de reenvio observa ainda que o artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 401/89 não exclui a punibilidade quando o agente possua a qualidade de empresa comunitária estrangeira (autorizada pela autoridade competente do seu Estado de origem a exercer a actividade de transmissão de dados), pelo que se poderia configurar uma discriminação inaceitável relativamente aos operadores nacionais (munidos das necessárias concessões ou autorizações) que desempenham actividades idênticas de angariação e aceitação de propostas de apostas desportivas por conta do CONI. Isto poderia ser contrário aos princípios da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços transfronteiriços.

15 No que respeita ao potencial perigo para a ordem pública que derivava do livre exercício das actividades conexas com as apostas, o órgão jurisdicional de reenvio considera com base no acórdão 1680/2000 da Corte di Cassazione, que estas exigências podem ser adequadamente salvaguardadas caso o operador seja uma empresa já sujeita a um controlo no seu país de origem que garanta a correcção do seu modo de operar.

16 Quanto ao risco de ulterior incitação à despesa, o órgão jurisdicional nacional observou que se assistia em Itália a um aumento progressivo das possibilidades de jogo e de aposta. No entanto, o «fenómeno» das apostas com operadores estrangeiros tinha um carácter «marginal» se comparado com o mercado nacional do jogo. «Maior perplexidade» derivava ainda da «análise da problemática das receitas para o erário decorrentes dos jogos nacionais autorizados». O aditamento dos n.os 4-bis e 4-ter ao artigo 4.º da Lei n.º 401/89 alargou a punição às actividades de angariação de apostas relativas a acontecimentos desportivos internacionais ou acontecimentos mundanos ou de outro género desprovidos de qualquer interesse fiscal para o Estado.

17 Resultava da leitura dos trabalhos parlamentares relativos à alteração do orçamento para 2001 que as restrições mais recentes são impostas prioritariamente pela exigência de proteger a categoria dos «Totoricervitori» desportivos, categoria empresarial privada, não se vislumbrando uma preocupação de ordem pública susceptível de justificar uma limitação de direito comunitário ou constitucional.

18 A admissibilidade da actividade de angariação e transmissão de apostas sobre acontecimentos desportivos estrangeiros, que se podia deduzir da redacção originária do artigo 4.º, «determinou», nas palavras do órgão jurisdicional de reenvio, o «desenvolvimento de uma rede de operadores que investiram capitais e meios no sector». Estes operadores vêem, de imprevisto, ser posta em causa, na sequência da notificação da legislação, a regularidade e licitude da sua situação. Era evidente a contradição entre o artigo 4.º e a protecção dos princípios comunitários do direito de estabelecimento e da livre circulação dos serviços em matéria de iniciativa económica privada relativamente a actividades não sujeitas a tributação fiscal por parte do Estado italiano, designadamente apostas sobre acontecimentos desportivos estrangeiros ou sobre acontecimentos não desportivos.

19 O órgão jurisdicional nacional interroga-se também por duas outras ordens de razões. Por um lado, considera ter de se questionar sobre o respeito do princípio da proporcionalidade, «entre o rigor extremo da proibição (repressão penal)» escolhida pelo legislador nacional e a «importância do interesse interno protegido» que «sacrifica as liberdades atribuídas aos particulares pelo Tratado CE». Por outro lado, o tribunal entende dever interrogar-se sobre a importância da aparente discrepância entre uma regulamentação interna que limita rigorosamente as actividades de aceitação de apostas desportivas por parte das empresas comunitárias estrangeiras e uma política em sentido oposto, de forte expansão do jogo e das apostas, que o Estado italiano prossegue a nível nacional com o objectivo de recolher fundos para o erário.

20 Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio submete ao Tribunal de Justiça a seguinte questão para decisão a título prejudicial:

É compatível com os artigos 43.º CE e segs. e 49.º CE e segs., relativos à liberdade de estabelecimento e à liberdade de prestação de serviços transfronteiriços, com os consequentes efeitos a nível do ordenamento jurídico interno, uma regulamentação nacional como a regulamentação italiana constante do artigo 4.º, n.os 1, 4-bis e 4-ter, da Lei n.º 401 de 13 de Dezembro de 1989 (na versão resultante do artigo 37.º, n.º 5, da Lei n.º 388 de 23 de Dezembro de 2000), que estabelece a proibição, penalmente punida, de actividades, independentemente de quem as exerça e do local onde se realizem, de angariação, aceitação, reserva e transmissão de propostas de aposta, em especial, relativamente a acontecimentos desportivos, quando não estejam preenchidos os requisitos de concessão ou de autorização impostos pelo direito interno?

IV - As observações dos participantes

21 Os arguidos Gambelli e os restantes, bem como Garrisi, que é membro do conselho de administração da empresa Stanley em Itália, defendem que o presente litígio diverge de forma substancial dos casos previamente decididos pelo Tribunal de Justiça, nomeadamente do acórdão Zenatti. Ao invés, os governos nacionais que intervieram no processo e a Comissão sustentam unanimemente que a solução decorre da jurisprudência já proferida pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos Schindler, Läärä e, em particular, no acórdão Zenatti.

A - Gambelli

22 Gambelli frisa que a actividade de organização de apostas gerida pelo CONI e pela UNIRE apresenta uma estrutura tipicamente monopolista. Uma empresa como a sociedade estrangeira Stanley proporciona aos seus parceiros negociais uma garantia de qualidade e de confiança. A empresa que actua por intermédio de centros dotados de uma organização própria, é titular de um certificado e possui uma autorização, está sujeita a fiscalização e exerce a sua actividade de harmonia com as regras britânicas e o direito comunitário, acompanhando a evolução tecnológica e sem infringir o sistema italiano.

23 As preocupações das autoridades italianas em proteger os jogadores perante o risco de fraudes são infundadas. Inversamente, não é legítimo considerar que a legislação nacional dos últimos anos, ao permitir um número em constante crescimento de jogos de fortuna e azar (Lotto, Totocalcio, Totip, scommesse ippiche, Totogol, Corsa tris, Totosei, Superenalotto, Bingo, Totobingol, Giratta e vinci, etc.) pretende limitar as possibilidades de jogo com o intuito de prevenir efeitos nocivos a nível individual e social e impedir o aumento das despesas ou de prosseguir o objectivo de salvaguardar a segurança e ordem públicas.

24 A sanção penal constitui, segundo Gambelli, em princípio, a última ratio à qual só se deve recorrer quando outros meios e instrumentos não assegurem uma protecção adequada dos bens jurídicos a tutelar. A previsão de uma pena de prisão para a simples angariação de apostas viola de forma manifesta o princípio da proporcionalidade.

25 No que diz respeito à liberdade de estabelecimento, Gambelli afirma que os centros de transmissão de dados são agências ou sucursais não autónomas dotadas de um vínculo contratual com a Stanley. Um Estado-Membro não pode proibir a um nacional de outro Estado-Membro estas modalidades de estabelecimento. Ao exigir uma autorização no quadro de um sistema de concessão, o legislador italiano confunde a actividade dos centros de transmissão de dados com a programação e a organização das apostas, que é realizada no estrangeiro. Por outro lado, as sociedades de capitais são liminarmente excluídas do sistema de concessão.

26 Quanto à livre prestação de serviços, Gambelli refere que as informações transmitidas pela Stanley aos centros sobre o valor dos jogos, o calendário dos acontecimentos, as confirmações da recepção e tudo o que se refere à confirmação, à identificação e à aceitação das apostas organizadas e geridas no estrangeiro, assim como a transmissão pelos centros dos valores das apostas e das quantias recebidas, constituem prestações de serviços transfronteiriços, na acepção das liberdades fundamentais do Tratado. A legislação italiana descura este princípio comunitário ao proibir os cidadãos italianos de se dirigirem a uma sociedade estrangeira com o intuito de escolher os jogos ou as combinações mais interessantes ou de reservar as apostas por telefone ou por via telemática. Esta legislação viola igualmente o princípio comunitário da protecção da confiança, na medida em que defrauda a confiança legítima dos titulares dos centros de transmissão de dados quanto à legalidade das suas condutas, em todo o caso no que se refere aos acontecimentos internacionais que constituem objecto das apostas.

27 De seguida, Gambelli procede, com base nos acórdãos Schindler, Läärä e Zenatti, ao apuramento de razões susceptíveis de justificar a restrição das liberdades fundamentais. O objectivo político dos Estados-Membros em regulamentar as actividades de jogo não constitui impreterivelmente uma razão imperativa de interesse geral, uma vez que a medida restritiva deve ser expressão de uma política coerente do Estado-Membro destinada a restringir ou a proibir estas actividades. Além disso, a medida restritiva não pode, directa ou indirectamente, visar ou criar uma discriminação face aos nacionais ou as empresas de outros Estados-Membros. A medida deve ainda ser sempre proporcional.

28 No entanto, o Estado italiano estimula e favorece indubitavelmente a política fiscal. O sistema de monopólio reservado ao CONI e às agências de apostas hípicas não satisfaz razões imperativas de interesse geral. O facto de a legislação italiana recusar às medidas legislativas de outros Estados-Membros todo e qualquer reconhecimento - no presente caso, o sistema inglês, considerado restritivo e geralmente reconhecido - produz um efeito discriminatório e violava os princípios fundamentais relativos ao estabelecimento do mercado comum.

29 Além das dúvidas manifestadas pelo órgão jurisdicional de reenvio no que respeita à proporcionalidade da pena e à contradição entre o quadro jurídico restritivo em matéria de apostas no exterior da Itália e o incentivo do jogo a nível nacional, o caso suscita, no entender de Gambelli, questões sobre as quais o Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou, designadamente a da compatibilidade das normas penais italianas em matéria de apostas com o direito comunitário. A Legge Finanziaria de 2000, que o Tribunal de Justiça ainda não teve oportunidade de examinar, tornou a legislação italiana substancialmente mais restritiva mesmo no que se refere a acontecimentos internacionais, destituídos de qualquer interesse fiscal para o Estado italiano. O Tribunal de Justiça também ainda não se pronunciou quer sobre a compatibilidade da legislação com a liberdade de estabelecimento, quer sobre a questão da discriminação dos nacionais italianos que são impedidos de jogar ou apostar com operadores estrangeiros através da Internet.

30 A respeito dos eventuais riscos de ordem pública, Gambelli entende ser possível identificar outras formas adequadas e eficazes de controlar os proponentes estrangeiros, com vista a assegurar uma abertura progressiva e natural do mercado europeu. Atendendo à evolução técnica, às alterações legislativas e aos objectivos da Comunidade no sector das comunicações e do comércio via Internet, Gambelli defende ser indispensável uma nova apreciação do Tribunal de Justiça nesta matéria.

31 Gambelli sugere a seguinte resposta à questão prejudicial:

1) A legislação da República Italiana, tal como consta do artigo 88.º do DR n.º 773, de 18 de Junho de 1931 (teste unico leggi di pubblica sicurezza), alterado por diversas vezes, e o artigo 4.º da Lei n.º 401, de 13 de Dezembro de 1989, várias vezes modificado (por último, pelo artigo 37.º, n.os 4 e 5, da Lei n.º 388, de 23 de Dezembro de 2000) é incompatível com os artigos 43.º e segs. do Tratado e ou com os artigos 49.º e segs. do Tratado, em matéria de liberdade de estabelecimento e de livre prestação de serviços; discrimina de forma negativa os operadores comunitários; viola os princípios da proporcionalidade, do reconhecimento mútuo, da segurança e da confiança; viola as directivas comunitárias em matéria de livre oferta de serviços através da Internet e de serviços de telecomunicações; lesa o princípio da cooperação leal e a obrigação que decorre do artigo 10.º do Tratado; é contrária ao interesse geral; não se justifica por razões de segurança pública e ordem pública; não pode prosseguir objectivos fiscais; restringe a liberdade dos cidadãos e das empresas da Comunidade e discrimina os nacionais italianos.

2) A título subsidiário, uma legislação nacional como a legislação em questão é incompatível com os artigos 43.º e segs. do Tratado ou 49.º e segs. do Tratado, e com os princípios consagrados nas directivas comunitárias, na medida as autoridades ou tribunais nacionais insistam na sua aplicação ou não seja aplicada em conformidade com os princípios, as directivas e as referidas medidas do direito comunitário.

B - Garrisi

32 Garrisi pertence ao conselho de administração da Stanley e é responsável pelas actividades do grupo no sector das apostas desportivas. Acrescenta ao alegado por Gambelli que a alteração legislativa italiana do ano de 2000 tinha vedado definitivamente aos operadores dos outros Estados-Membros a prestação de serviços de angariação e aceitação de apostas desportivas no mercado italiano.

33 Garrisi afirma que as condições de participação no concurso para a atribuição pelo CONI de mais de 1000 novas concessões para a organização de apostas relativas a acontecimentos desportivos não hípicos só podiam ser satisfeitas em concreto pelas agências de apostas hípicas que já integravam o sistema da UNIRE ou do CONI, visto que só podiam ser atribuídas concessões às pessoas singulares ou às sociedades de pessoas que demonstrassem obrigatoriamente possuir uma série de estruturas e já dispusessem de estabelecimentos no território italiano. Além disso, os escritórios italianos de apostas hípicas já tinham recebido anteriormente e no período subsequente um largo número de concessões respeitantes a apostas sobre acontecimentos desportivos hípicos e não hípicos, sem a necessidade de participarem nos concursos públicos. Desta forma tinham obtido concessões definitivas respeitantes a novas apostas, sem que os outros operadores da Comunidade tivessem tido a possibilidade de obter este «estatuto» atribuído aos escritórios de apostas hípicas que eram concessionários da UNIRE.

34 Quanto à possível justificação atribuída às restrições das liberdades fundamentais do Tratado, Garrisi, referindo a este respeito os acórdãos SETTG (10), Bond van Adverteerders (11) e Gouda (12), invoca o princípio, confirmado pela jurisprudência mais recente, segundo o qual objectivos de natureza económica não constituem razões de interesse geral adequadas a justificar uma restrição às liberdades fundamentais.

35 Tal como resulta de um estudo de uma sociedade de consultoria independente de Londres denominada NERA, actualizado em 2001 e intitulado «Alargamento da indústria de apostas italiana», o Estado italiano prossegue com determinação absoluta uma política fortemente expansiva com o objectivo de aumentar as receitas públicas. Além de não reduzir efectivamente as oportunidades de jogo, o Estado italiano pretende, ao invés, alargá-las. As fortes restrições às liberdades fundamentais de prestação de serviços e de estabelecimento introduzidas pela legislação italiana não tinham sido adoptadas por motivos de política social, mas sim por motivos de ordem fiscal.

36 Garrisi acusa a legislação italiana de não ter verificado se o prestador de serviços se encontra submetido no seu Estado de origem a regras e restrições equivalentes que visem a protecção dos mesmos interesses, ou seja, a protecção da ordem pública e da moral pública, e se justifiquem quer por motivos de prevenção quer de repressão penal. Os operadores que pretendam entrar no mercado italiano ficam desta forma sujeitos a encargos, controlos e sanções duplos, o que constitui uma discriminação grave que beneficiava os operadores nacionais. Por este motivo, a regulamentação em causa viola o princípio do reconhecimento mútuo.

37 Garrisi sustenta que a alteração legislativa do ano 2000 também viola a segurança jurídica e o princípio da confiança legítima daqueles que, à semelhança dos arguidos na acção principal, exerciam em Itália, à data da entrada em vigor da Lei n.º 388/00, a actividade de intermediários de apostas sobre acontecimentos desportivos não incluídos nas apostas reservadas ao CONI ou à UNIRE. Além disso, violava também a Directiva 1999/42/CE (13).

38 A legislação italiana apresenta ainda incompatibilidades com as Directivas 90/388/CEE (14), 97/13/CE (15) e 97/66/CE (16), e opõe-se, por conseguinte, não só às liberdades fundamentais de prestação de serviços e de estabelecimento, como também à liberdade de prestação de serviços de telecomunicações.

39 Garrisi propõe que à questão prejudicial seja respondido da seguinte forma:

A legislação italiana em matéria de apostas desportivas é incompatível com os artigos 43.º CE e segs. e 49.º CE e segs.:

A) Constitui uma discriminação positiva, prejudicando os operadores comunitários não nacionais e/ou, não obstante ser indistintamente aplicável em abstracto, impõe obstáculos de facto ou de direito que impedem ou tornam excessivamente difícil a prestação de serviços, de forma directa ou por intermédio de um estabelecimento, por parte de operadores de outros Estados-Membros; e/ou viola os princípios da proporcionalidade, do reconhecimento mútuo e da não oposição às restantes políticas internas e ou lesa os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima.

B) É contrária à Directiva 1999/42 em matéria de reconhecimento de diplomas.

C) É contrária às directivas relativas à liberdade de oferta da prestação liberalizada de serviços de telecomunicações, com excepção da telefonia vocal.

A título subsidiário, a legislação italiana no domínio das apostas desportivas é incompatível com os artigos 43.º e segs. do Tratado e 49.º e segs. do Tratado e ou com as disposições da Directiva 1999/42 e ou com as disposições da Directiva 90/388, da Directiva 97/13 e da Directiva 97/66, na medida em que não seja aplicada pelas autoridades e pelos tribunais nacionais em conformidade com os princípios da não discriminação, da proporcionalidade, do reconhecimento mútuo, da harmonia com as restantes políticas nacionais, da segurança jurídica e da protecção da confiança.

C - O Governo italiano

40 Partindo dos princípios definidos no acórdão Zenatti, o Governo italiano sustenta que a lei italiana é compatível com as disposições comunitárias sobre a livre prestação de serviços e a liberdade de estabelecimento. O acórdão Zenatti tinha por objecto disposições relativas a uma autorização administrativa para o exercício da actividade de angariação e gestão de apostas em Itália (artigo 88.º do DR n.º 773, de 18 de Junho de 1933), versando o presente caso sobre a punição pelo direito penal da actividade de angariação e gestão de apostas. As duas regulamentações prosseguem o mesmo objectivo, designadamente o de proibir a actividade fora dos casos expressamente permitidos por lei.

41 O Governo italiano relembra que no seu acórdão n.º 1680 de 28 de Abril de 2000, o Tribunal de Cassação italiano (Corte di Cassazione) apreciou a regulamentação aí em causa à luz dos princípios estabelecidos no acórdão Zenatti e concluiu pela legalidade da mesma, na medida em que visa reduzir as oportunidades de jogo e proteger a ordem pública.

D - O Governo belga

42 O Governo belga recorda que, nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a actividade dos centros deve ser considerada uma actividade de natureza económica, na acepção do Tratado. Não obstante, defende que um mercado comum de jogos de fortuna e azar pode incitar os consumidores à despesa, com os efeitos nocivos daí advenientes para a sociedade, e remete, a este respeito, em particular para os n.os 60 e 61 do acórdão Schindler. O Governo belga observa que a regulamentação legal não é abrangida pela proibição do artigo 49.º CE caso preencha as quatro condições susceptíveis de justificar uma restrição à livre prestação de serviços fixadas nos acórdãos Kraus (17) e Gebhard (18). A tentativa de reprimir o jogo e os seus efeitos prejudiciais pode ser considerada um objectivo de interesse geral, na acepção dos acórdãos Schindler, Läärä e Zenatti. A invocação deste objectivo também não é excluída pelo facto de o jogo não ser totalmente proibido. Além do mais, a regulamentação italiana não é discriminatória. Só aos operadores, italianos ou estrangeiros, titulares de uma autorização do Ministério das Finanças é lícito explorar jogos de fortuna e azar. A regulamentação italiana é ainda proporcional. Mesmo que se concluísse que constitui um entrave à liberdade de estabelecimento, é justificada pelas mesmas razões invocadas a respeito da restrição à liberdade de prestação de serviços.

E - O Governo grego

43 O Governo grego estabelece um paralelismo entre a regulamentação italiana controvertida e a regulamentação grega correspondente, considerando que ambas são compatíveis com o direito comunitário. A liberalização da actividade dos jogos de fortuna e azar implicaria, segundo o Governo grego, novos riscos para o interesse geral, sendo por este motivo legítimo sujeitar a exploração dos jogos de fortuna e azar e, em particular, das apostas desportivas a um monopólio estatal.

F - O Governo espanhol

44 O Governo espanhol também considera que, à luz da jurisprudência, a legislação italiana é justificada por razões de interesse geral. Quer a concessão de direitos especiais ou exclusivos ao abrigo de um sistema rigoroso de autorizações ou de concessões quer a proibição de explorar sucursais de organizadores estrangeiros eram conformes ao direito comunitário se a sua adopção se destinasse a travar as oportunidades de jogo. Era necessário controlar as possibilidades de jogo com vista a evitar os riscos que lhe estão associados. Um Estado-Membro dispõe de poder discricionário quanto ao modo como organiza as lotarias e os jogos de fortuna e azar, e utiliza os lucros daí resultantes.

G - O Governo luxemburguês

45 Na perspectiva do Governo luxemburguês, embora a regulamentação italiana controvertida constitua um entrave às liberdades de prestação de serviços e de estabelecimento, é, porém, justificada desde que preencha os quatro critérios que foram desenvolvidos pela jurisprudência para a justificação das restrições. A legislação italiana era justificada desde que, antes de mais, tivesse sido adoptada com o único objectivo de canalizar as possibilidades de jogo.

H - O Governo português

46 O Governo português chama a atenção para o facto de serem observáveis em todos os Estados-Membros práticas que se opõem ao quadro jurídico vigente de restrição dos jogos de fortuna e azar, designadamente a venda de bilhetes de lotarias estrangeiras ou a angariação de apostas relativas a acontecimentos hípicos. Estas práticas inscreviam-se numa estratégia de liberalização e de privatização do mercado de jogos a dinheiro que tinha sido expressamente rejeitada na Cimeira de Edimburgo no ano de 1992. A importância do caso em apreço residia no facto de se dever manter em Itália, tal como noutros Estados-Membros, a organização de lotarias sob o domínio de um monopólio público, com o intuito de garantir aos Estados-Membros uma importante fonte de receitas que substituía outros impostos e se destinava a financiar a política social, cultural e desportiva de todos os Estados-Membros e a transmitir aos cidadãos da União um nível considerável de bem-estar.

47 O Governo português refere que o princípio da subsidiariedade, que obstou até ao presente a uma harmonização comunitária nesta matéria, devia constituir o fio condutor da interpretação do direito comunitário. No âmbito da apreciação da proporcionalidade das medidas nacionais restritivas dos jogos de fortuna e azar, competia ao legislador interno definir os objectivos e os bens jurídicos que tencionava proteger. Era-lhe também permitido eleger os meios que considerasse adequados desde que não fossem discriminatórios. O Governo português também sustenta as suas observações nos acórdãos Schindler, Läärä e Zenatti.

48 Do ponto de vista do Governo português, o enquadramento legal permissivo dos jogos de fortuna e azar pode provocar graves problemas de ordem social com a ruína de patrimónios individuais ou familiares. O jogo traz geralmente associado o risco de fraude e outras práticas criminais como, por exemplo, o branqueamento de dinheiro. O seu carácter improdutivo não permite invocar a liberdade empresarial e a livre concorrência. Dado que não existe produção, as liberdades estabelecidas em benefício da Comunidade não são pertinentes nesta matéria.

49 O Governo português invoca a jurisprudência do Tribunal de Justiça (19) para demonstrar que as razões imperativas de interesse geral resultam sempre de uma apreciação concreta. O Governo português remete para as suas observações escritas no processo Anomar e o. (20), nas quais afirmou que o conceito de ordem pública abrange valores morais, éticos e políticos e que estes dependiam de um sistema nacional que não podia ser apreciado quer a nível supranacional quer de uma forma uniforme.

50 Segundo o Governo português, resulta do n.º 30 do acórdão Zenatti que a legislação italiana era adequada a combater os riscos de fraude e as consequências sociais nefastas dos jogos de fortuna e azar, só os permitindo na medida em que podem ter um carácter de utilidade para o desenvolvimento de acontecimentos desportivos.

51 O Governo português observa ainda que uma concorrência ilimitada no mercado dos jogos de fortuna e azar acarreta uma deslocação das receitas dos países mais pobres para os mais ricos. Os apostadores iriam jogar no local onde esperavam obter lucros mais elevados, passando assim o jogo dos Estados mais pequenos a co-financiar o orçamento social, cultural e desportivo dos grandes Estados, o que provocaria uma quebra das receitas dos Estados mais pequenos e os levaria a aumentar os impostos. Por outro lado, a divisão do mercado do jogo de lotarias e dos jogos de apostas dos Estados por três ou quatro grandes operadores a nível europeu produziria mudanças estruturais que provocariam a extinção de postos de trabalho e maiores disparidades sociais.

52 O Governo português defende que a legislação italiana, como a legislação portuguesa, é compatível com o princípio da proporcionalidade, pelo facto de ser necessária para proteger os interesses gerais. A única alternativa consistiria em proibir totalmente ou liberalizar a actividade de jogo. As razões subjacentes ao acórdão Zenatti mantêm-se válidas. Por conseguinte, a restrição à liberdade de estabelecimento de uma empresa britânica não é desproporcionada. O fim do monopólio estatal de jogo teria graves consequências sociais e efeitos nocivos de natureza individual e social.

I - O Governo finlandês

53 Invocando os acórdãos Schindler, Läärä e Zenatti, o Governo finlandês sustenta que a proibição acompanhada de uma sanção penal protege um monopólio que obsta ao estabelecimento ou à oferta de serviços em Itália por parte de organizadores de outros Estados-Membros e que é compatível com o direito comunitário caso preencha determinadas condições. O Tribunal de Justiça deixa aos Estados-Membros uma grande discricionariedade. Isto é válido em sede de livre circulação de mercadorias, de livre prestação de serviços e de liberdade de estabelecimento. A legislação controvertida é justificada se não for discriminatória e se for ainda indistintamente aplicável a operadores nacionais e estrangeiros.

54 Segundo o Governo finlandês, é irrelevante, na perspectiva do direito comunitário, o facto de existir uma sanção penal e de se tratar da angariação de apostas nas quais o Estado italiano não tem qualquer interesse fiscal, para um operador autorizado noutro Estado-Membro. Nos termos do n.º 36 do acórdão Läärä, a proporcionalidade de uma medida só deve ser apreciada à luz dos objectivos prosseguidos pelas autoridades nacionais e pelo nível de protecção que as mesmas pretendem garantir, matéria que é da competência do órgão jurisdicional nacional.

J - O Governo sueco

55 Na opinião do Governo sueco, o Tribunal de Justiça deve seguir o caminho indicado nos acórdãos Schindler, Läärä e Zenatti. É certo que a regulamentação italiana constitui um entrave à livre prestação de serviços, embora não seja discriminatória ou distintamente aplicável. O facto de as medidas servirem interesses fiscais não é problemático do ponto de vista do direito comunitário desde que sejam proporcionais e não discriminatórias, o que cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar. O Governo sueco sustenta que os interesses protegidos pela legislação italiana não podem ser substituídos pelos controlos a que as agências de apostas se encontravam submetidas no país de origem. A nova legislação italiana permite impedir que uma sociedade que não obtivesse uma autorização em Itália contornasse esta regulamentação. Resulta dos acórdãos Läärä (n.º 36) e Zenatti (n.º 34) que a circunstância de um Estado-Membro ter escolhido um sistema de protecção diferente do adoptado por outro Estado-Membro não tem qualquer influência sobre a apreciação da necessidade e da proporcionalidade das disposições adoptadas na matéria, as quais devem ser apreciadas apenas face aos objectivos prosseguidos e face ao nível de protecção que pretendem garantir. As restrições à liberdade de estabelecimento são igualmente justificadas.

K - A Comissão

56 Do ponto de vista da Comissão, o acórdão Zenatti contém a solução do processo em apreço. A alteração legislativa do ano 2000 limita-se a completar a proibição previamente existente sem introduzir novos tipos legais de crime. A Directiva 2000/31/CE, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico, no mercado interno («Directiva sobre o comércio electrónico») (21), não é aplicável a apostas. No que diz respeito ao alargamento da oferta de apostas que não servem qualquer interesse fiscal do Estado italiano, a Comissão conclui que estão em causa apostas sobre jogos de futebol nacionais e não, como no processo Zenatti, jogos estrangeiros. No entanto, esta diferença não legitima uma apreciação distinta dos objectivos que a regulamentação visa proteger. Com base no n.º 33 do acórdão Zenatti, a Comissão acrescenta que o nível de protecção prosseguido por um Estado-Membro se inclui no seu poder de apreciação. Por conseguinte, pode optar entre proibir a actividade, total ou parcialmente, ou submete-la apenas a determinadas restrições.

57 A Comissão refere, a respeito da liberdade de estabelecimento que as agências geridas por Gambelli são formalmente independentes e não mantêm qualquer relação de subsidiariedade com a Stanley. Por este motivo, a questão deve continuar a ser abordada na perspectiva da livre de prestação de serviços, até porque, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (22), a liberdade do destinatário do serviço inclui a faculdade se deslocar ao Estado-Membro onde o serviço é prestado ou de recorrer através de meios electrónicos a um prestador de serviços de outro Estado-Membro. Mesmo que as disposições sobre a liberdade de estabelecimento sejam aplicáveis, a legislação italiana justifica-se pelas mesmas razões que foram invocadas a respeito da livre prestação de serviços.

58 A Comissão propõe a seguinte resposta à questão prejudicial:

a) As disposições do Tratado CE relativas à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços não se opõem a uma legislação nacional como a legislação italiana, que reserva a determinadas entidades o direito de angariarem apostas sobre acontecimentos desportivos, inclusive por via electrónica, desde que esta legislação seja justificada por objectivos de política social que visem limitar os efeitos nefastos destas actividades e as restrições adoptadas com essa finalidade sejam proporcionais ao objectivo prosseguido.

b) Compete ao juiz nacional apurar se a legislação nacional, à luz destas condições de aplicação, prossegue os objectivos susceptíveis de a justificar e se as restrições que impõe não são desproporcionadas face a tais objectivos.

V - Apreciação

59 Embora os Governos nacionais que intervieram no processo e a Comissão defendam que a solução do caso em apreço decorre dos acórdãos Schindler, Läärä e Zenatti, o órgão jurisdicional de reenvio e os arguidos na acção principal têm dúvidas profundas quanto à compatibilidade da legislação nacional com o direito comunitário. Na jurisprudência italiana também parece existir uma grande insegurança acerca da interpretação correcta do direito comunitário nesta matéria, com as consequências fatais que daí decorrem para a segurança jurídica, o que afecta gravemente a liberdade económica dos sujeitos jurídicos. Enquanto em determinado local determinada prática comercial é considerada lícita, noutro local a mesma prática é objecto de procedimento criminal e sancionada com uma pena que pode atingir a privação da liberdade.

60 O acórdão Zenatti, do qual era suposto decorrer a solução do caso em apreço, também não é susceptível de esclarecer completamente o ordenamento jurídico nacional, até porque houve desistência do pedido na acção principal, posterior ao acórdão do Tribunal de Justiça. É, em qualquer caso, de importância fundamental que o Tribunal de Justiça, embora considerando a sua jurisprudência assente, esclareça esta matéria atendendo às particularidades do presente caso. O Tribunal deve, por conseguinte, indicar claramente a solução a adoptar quer pelo tribunal de reenvio quer por todos os outros tribunais nacionais confrontados com a mesma questão.

61 O caso vertente ultrapassa em diversos aspectos a problemática discutida no acórdão Zenatti. Assim, o Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou até agora em matéria de jogos de fortuna e azar transfronteiriços na perspectiva da liberdade de estabelecimento. Apenas as conclusões dos advogados-gerais Gulmann (23), La Pergola (24) e Fennelly (25) nos processos Schindler, Läärä e Zenatti, bem como do acórdão Zenatti (26), decorrem algumas indicações sobre a aplicação das disposições relativas à liberdade de estabelecimento. A aplicação das regras sobre a liberdade de estabelecimento no domínio dos jogos de fortuna e azar transfronteiriços está dependente da configuração do caso concreto. Há que analisar este ponto no caso presente.

O Tribunal de Justiça também ainda não se pronunciou sobre a dimensão penal. O facto de uma proibição ser acompanhada de uma sanção penal não pode ser dissociado da admissibilidade, em princípio, ou da índole, potencialmente contrária, da disposição ao direito comunitário. Importa assim esclarecer, antes de mais, a questão fundamental da admissibilidade das proibições nacionais do ponto de vista do direito comunitário. A esta, seguir-se-á a questão autónoma da proporcionalidade da norma sancionatória.

Por último, será igualmente necessário proceder a uma apreciação autónoma do alargamento do âmbito de aplicação das disposições nacionais. Ainda que o Tribunal de Justiça considere em abstracto que certas restrições das liberdades fundamentais são compatíveis com o direito comunitário, este facto não permite de todo concluir que certas restrições contrárias ao espírito destas liberdades sejam justificáveis.

62 Porém, antes do exame em concreto das questões suscitadas, devem ser recapituladas as principais conclusões decorrentes dos acórdãos Schindler, Läärä e Zenatti, com utilidade para a subsequente apreciação do presente litígio.

A - Os acórdãos Schindler, Läärä e Zenatti

1. O acórdão Schindler

63 À data dos factos controvertidos no processo Schindler, existia no mercado de jogos de fortuna e azar do Reino Unido uma proibição total das lotarias. Eram proibidas todas as actividades de organização e de exploração, bem como a publicidade sobre a participação em lotarias. Este facto não é posto em causa pela circunstância de lotarias de menores dimensões poderem vir a ser autorizadas sob determinadas condições materiais e regionais muito restritas e, ainda menos, pelo facto de ter sido posteriormente autorizada por lei uma lotaria nacional de grandes dimensões. Estes dados eram irrelevantes para o processo Schindler, partindo assim o Tribunal de Justiça da existência de uma proibição total das lotarias no mercado em causa.

64 Os irmãos Schindler, que pretendiam importar, através dos correios, grandes quantidades de material publicitário da «Süddeutsche Klassenlotterie» no Reino Unido a partir dos Países-Baixos, foram impedidos pela alfândega britânica. O Tribunal de Justiça considerou que a proibição de importar o material se mantinha, tendo afirmado no n.º 62 do acórdão o seguinte a este respeito:

«Quando um Estado-Membro proíbe no seu território a organização de grandes lotarias e, mais especialmente, a publicidade e a difusão dos bilhetes desse tipo de lotarias, a proibição de importar materiais destinados a permitir aos cidadãos desse Estado-Membro a participação em tais lotarias organizadas num outro Estado-Membro não deve ser considerada como uma medida que restrinja, injustificadamente, a livre prestação de serviços. Com efeito, uma tal proibição de importação é um elemento necessário à protecção que esse Estado-Membro pretende assegurar no seu território em matéria de lotarias.»

65 Nos n.os 33 e 35 do acórdão, o Tribunal de Justiça concluíra, em primeiro lugar, pelo carácter económico das lotarias e qualificou em seguida, no n.º 37, a actividade como de prestação de serviços. No entanto, a legislação britânica sobre as lotarias, apesar de ser indistintamente aplicável (n.os 43 e 47), constituía um entrave à livre prestação de serviços (n.º 45). Tendo em conta as diversas razões invocadas para justificar esta restrição (n.º 57), o Tribunal de Justiça baseou-se «na natureza muito especial das lotarias» (n.º 59) para concluir que essas razões são susceptíveis de justificar restrições que vão até proibição das lotarias.

66 Os interessados invocaram por diversas vezes nesta matéria as afirmações proferidas pelo Tribunal de Justiça nos n.os 60 e 61 do acórdão Schindler e o próprio Tribunal de Justiça lhes fez referência na sua jurisprudência (27). Por este motivo, devem ser aqui citadas literalmente:

«Com efeito, não é possível abstrair, antes de mais, das considerações de ordem moral, religiosa ou cultural que envolvem as lotarias e os outros jogos a dinheiro em todos os Estados-Membros. De um modo geral, estes tendem a limitar, até mesmo a proibir, a prática de jogos a dinheiro e a evitar que sejam uma fonte de lucro individual. Importa, de seguida, realçar que, atendendo à importância das somas que permitem recolher e aos ganhos que podem proporcionar aos jogadores, sobretudo quando são organizadas em grande escala, as lotarias comportam riscos elevados de delito e de fraude. Constituem, além disso, uma incitação à despesa que pode ter consequências individuais e sociais nefastas. Finalmente, sem que este motivo possa, em si, ser considerado uma justificação objectiva, não é indiferente salientar que as lotarias podem participar, significativamente, no financiamento de actividades sem fins lucrativos ou de interesse geral, tais como as obras sociais, de beneficência, o desporto ou a cultura.

Estas particularidades justificam que as autoridades nacionais disponham de um poder de apreciação suficiente para determinar as exigências que a protecção dos jogadores comporta e, mais geralmente, atendendo a particularidades sócio-culturais de cada Estado-Membro, a protecção da ordem social, tanto no que se refere às modalidades de organização das lotarias e ao volume das suas apostas, como à afectação dos lucros que originarem. Nessas condições, compete-lhes apreciar não apenas se basta restringir as actividades das lotarias, mas também se é necessário proibi-las, desde que essas restrições não sejam discriminatórias.»

2. O acórdão Läärä

67 O acórdão Läärä tinha por objecto uma constelação de factos diferente sob diversos pontos de vista. Estava em causa uma regulamentação finlandesa sobre jogos de fortuna e azar com máquinas de jogo, reservados a uma empresa em regime de monopólio, que eram igualmente considerados jogos de perícia. O Tribunal de Justiça decidiu igualmente este caso com base nas disposições relativas à livre prestação de serviços e não nas disposições sobre a livre circulação de mercadorias, não obstante estar em causa a importação de máquinas de jogo, pelo que era concebível uma apreciação à luz da livre circulação de mercadorias (28).

68 O Governo finlandês tinha alegado razões semelhantes às invocadas no acórdão Schindler para justificar a regulamentação nacional. Relativamente a estes motivos a considerar no seu conjunto (n.º 33), o Tribunal de Justiça referiu expressamente o problema de a actividade em causa não ser inteiramente proibida, mas ser considerada permitida em determinadas circunstâncias (n.º 34). Por este motivo, o Tribunal de Justiça reconheceu às autoridades nacionais uma grande margem de apreciação, o que formulou no n.º 35 do acórdão Läärä nos seguintes termos:

«Todavia, a determinação do alcance da protecção que um Estado-Membro pretende garantir no seu território em matéria de lotarias e outros jogos a dinheiro faz parte do poder de apreciação reconhecido pelo Tribunal de Justiça às autoridades nacionais [...]. Cabe-lhes, com efeito, apreciar se, no contexto do objectivo prosseguido, é necessário proibir total ou parcialmente actividades desta natureza ou apenas restringi-las e prever para o efeito modalidades de fiscalização mais ou menos estritas.»

O Tribunal de Justiça prosseguiu nos n.os 36 e 37 da seguinte forma:

«Nestas condições, a mera circunstância de um Estado-Membro ter escolhido um sistema de protecção diferente do adoptado por um outro Estado-Membro não pode ter qualquer incidência sobre a apreciação da necessidade e da proporcionalidade das disposições tomadas na matéria. Estas devem apenas ser apreciadas à luz dos objectivos prosseguidos pelas autoridades nacionais do Estado-Membro interessado e do nível de protecção que as mesmas pretendem garantir.

O facto de os jogos em causa não serem totalmente proibidos não basta, contrariamente ao que sustentam os recorrentes no processo principal, para demonstrar que a legislação nacional não visa realmente alcançar os objectivos de interesse geral que pretende prosseguir e que devem ser considerados no seu conjunto. Com efeito, uma autorização limitada destes jogos num quadro exclusivo, que tem a vantagem de canalizar o desejo de jogar e a exploração dos jogos num circuito controlado, de evitar os riscos de tal exploração com fins fraudulentos e criminais e de utilizar os benefícios daí resultantes para fins de utilidade pública, também se insere na prossecução de tais objectivos.»

69 Quanto ao monopólio de exploração do jogo autorizado, o Tribunal de Justiça afirmou no n.º 39 do acórdão Läärä o seguinte:

«Quanto à questão de saber se, para alcançar estes objectivos, seria preferível, em vez de conceder um direito exclusivo de exploração ao organismo público autorizado, adoptar uma regulamentação impondo aos operadores interessados as exigências necessárias, a mesma faz parte do poder de apreciação dos Estados-Membros, desde que, todavia, a escolha feita não seja desproporcionada em relação à finalidade prosseguida.»

O Tribunal de Justiça decidiu a seguir no n.º 42 que não se afigurava que a legislação fosse desproporcionada «à luz dos objectivos que a mesma prossegue».

3. O acórdão Zenatti

70 O processo Zenatti é, de facto, o que mais se assemelha ao presente litígio. Aquele tinha por objecto a primeira proibição de recepção de apostas desportivas em Itália que constava do artigo 88.º do Decreto Real n.º 773 que também é relevante para o caso vertente. O reenvio prejudicial no processo Zenatti teve origem num litígio de natureza administrativa onde estava em causa a autorização da actividade de um intermediário italiano de uma sociedade sediada no Reino Unido que era especializada na recepção de apostas sobre acontecimentos desportivos. A legislação italiana, à semelhança da finlandesa no processo Läärä, estabelecia uma proibição sob reserva de autorização a favor de uma estrutura monopolista de exploração de apostas desportivas.

71 As apostas desportivas não dependem da sorte como as lotarias; a perícia e, sobretudo, os conhecimentos do jogador têm uma influência potencial sobre as suas hipóteses de vencer. Por este motivo, é discutida na doutrina a classificação das apostas como um jogo de perícia, por um lado, ou como um jogo de fortuna e azar, por outro. O facto de os acontecimentos dependerem, em larga medida, da sorte, nomeadamente quando se aposta em blocos inteiros de jogos, milita a favor da sua qualificação como jogo de fortuna e azar. Para efeitos da análise do presente processo, a qualificação pode ficar em suspenso, uma vez que o Tribunal de Justiça, ao apreciar a legislação nacional no processo Läärä, que incidia sobre jogos de perícia, recorreu ao mesmo método de apreciação utilizado no processo Schindler, no qual estava em causa uma lotaria e, por conseguinte, inequivocamente um jogo de fortuna e azar.

72 Relativamente a esta questão, o Tribunal de Justiça afirmou no n.º 18 do acórdão Zenatti o seguinte:

«No presente processo [...] as apostas nas competições desportivas, embora não podendo ser consideradas jogos de puro azar, oferecem, como estes, em contrapartida do preço das apostas, a esperança de um ganho monetário. Tendo em conta a importância das quantias que permitem colectar e dos ganhos que podem proporcionar aos jogadores, tais apostas comportam idênticos riscos de delito e de fraude e podem ter as mesmas consequências individuais e sociais nefastas.»

73 Contudo, o Tribunal de Justiça salientou a existência de diferenças fundamentais entre os processos Zenatti e Schindler, que consistiam, por um lado, no facto de no processo Zenatti só estar em causa uma proibição relativa e não uma proibição absoluta e, por outro lado, na circunstância de a liberdade de estabelecimento poder ter implicações neste último (n.os 21 e 22 do acórdão Zenatti).

74 Não obstante a subsidiariedade da livre prestação de serviços em relação à liberdade de estabelecimento (29) imposta pelo Tratado, o Tribunal de Justiça não considerou oportuno apreciar a liberdade de estabelecimento, uma vez que a questão submetida pelo órgão jurisdicional se limitava expressamente à livre prestação de serviços (n.º 23). No que respeita à proibição, o facto de não existir proibição total, ou seja, não aplicável a todos (n.º 32), o Tribunal de Justiça afirmou no n.º 33 o seguinte:

«A determinação do alcance da protecção que um Estado-Membro entende garantir no seu território em matéria de lotarias e outros jogos a dinheiro faz no entanto parte do poder de apreciação reconhecido pelo Tribunal de Justiça às autoridades nacionais no n.º 61 do acórdão Schindler. A estas compete, com efeito, apreciar se, no contexto da finalidade prosseguida, é necessário proibir total ou parcialmente as actividades desta natureza ou se basta restringi-las e prever, para este efeito, modalidades de controlo mais ou menos estritas.»

75 No quadro da análise da justificação das regulamentações nacionais consideradas restritivas da livre prestação de serviços, sendo que grande parte dos argumentos apresentados pelo Governo italiano correspondiam aos objectivos prosseguidos pela regulamentação controvertida no processo Schindler (n.º 30), o Tribunal de Justiça afirmou ainda nos n.os 34 a 37 do acórdão Zenatti o seguinte:

«Nestas condições, a simples circunstância de um Estado-Membro ter escolhido um sistema de protecção diferente do adoptado por outro Estado-Membro não pode ter incidência sobre a apreciação da necessidade e da proporcionalidade das disposições adoptadas na matéria. Estas devem ser apreciadas apenas face aos objectivos prosseguidos pelas autoridades nacionais do Estado-Membro interessado e face ao nível de protecção que pretendem garantir.

Como o Tribunal de Justiça afirmou no n.º 37 do acórdão [...] Läärä e o. [...], o facto de as apostas em causa não serem totalmente proibidas não basta para demonstrar que a legislação nacional não visa realmente alcançar os objectivos de interesse geral que pretende prosseguir e que devem ser considerados no seu conjunto. Com efeito, uma autorização limitada dos jogos a dinheiro no quadro de direitos especiais ou exclusivos conferidos ou concedidos a determinados organismos, que tem a vantagem de canalizar a vontade de jogar e a exploração dos jogos para um circuito controlado, de evitar os riscos de tal exploração com fins fraudulentos e criminais e de utilizar os benefícios daí resultantes para fins de utilidade pública, também se insere na prossecução de tais objectivos.

Como, no entanto, realçou o advogado-geral no n.º 32 das suas conclusões, uma tal limitação só é admissível se, antes do mais, corresponder efectivamente à vontade de reduzir verdadeiramente as ocasiões de jogo e se o financiamento de actividades sociais através de uma imposição sobre as receitas provenientes dos jogos autorizados constituir apenas uma consequência benéfica acessória, e não a justificação real, da política restritiva adoptada. Com efeito, como o Tribunal de Justiça realçou no n.º 60 do acórdão Schindler, embora não seja indiferente que as lotarias e outros jogos a dinheiro possam participar significativamente no financiamento de actividades sem fins lucrativos ou de interesse geral, tal motivo não pode, em si mesmo, ser considerado uma justificação objectiva das restrições à livre prestação de serviços.

Compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a legislação nacional, face às suas modalidades concretas de aplicação, corresponde verdadeiramente aos objectivos susceptíveis de a justificar e se as restrições que impõe se não mostram desproporcionadas face a tais objectivos.»

B - A liberdade de estabelecimento

76 Há que examinar agora se e em que medida os princípios enunciados nestes três acórdãos são aplicáveis ao caso presente. Uma vez que o órgão jurisdicional nacional colocou expressamente uma questão relativa à aplicação da liberdade de estabelecimento e aos seus efeitos sobre a legislação nacional controvertida, e em virtude de, segundo a hierarquia das normas do Tratado, a liberdade de estabelecimento prevalecer sobre a livre prestação de serviços (30), há que apreciar, a título liminar, a compatibilidade da legislação nacional com a liberdade de estabelecimento.

1. Os pressupostos do estabelecimento

77 Resulta das observações apresentadas pelos interessados, que não foram postas em causa, que os centros onde foram efectuadas buscas e apreensões no âmbito do processo principal possuem um vínculo contratual com a Stanley e que, deste modo, a Stanley implantou uma rede completa de oferta e recepção de apostas desportivas no território italiano, factos estes que obrigam a verificar se, desta forma, a Stanley se estabeleceu em Itália.

78 Nos termos do acórdão Factortame (31), o estabelecimento envolve «a prossecução efectiva de uma actividade económica, através de uma instalação estável noutro Estado-Membro, por um período indefinido». Segundo o artigo 43.º CE e no âmbito das disposições que se lhe seguem, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro. O artigo 48.º determina que as sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e que tenham a sua sede social, administração central ou estabelecimento principal na Comunidade são, para efeitos do disposto no capítulo sobre a liberdade de estabelecimento, equiparadas às pessoas singulares, nacionais dos Estados-Membros.

79 A Stanley é uma sociedade de capitais de direito britânico e, enquanto pessoa colectiva que prossegue fins lucrativos, é um potencial sujeito jurídico da liberdade de estabelecimento segundo o artigo 48.º, segundo parágrafo, CE. De harmonia com o artigo 43.º, primeiro parágrafo, segundo período, CE, são proibidas as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos no território de outro Estado-Membro.

80 De acordo com a definição ampla dada pelo Tribunal de Justiça ao âmbito de aplicação da liberdade de estabelecimento no processo 205/84 (32), uma empresa (33) que mantém uma presença permanente noutro Estado-Membro está sujeita às normas do Tratado sobre o direito de estabelecimento «ainda que essa presença não assuma a forma de uma sucursal ou de uma agência mas se exerça por meio de um simples escritório, gerido pelo próprio pessoal da empresa ou de uma pessoa independente, mas mandatada para agir permanentemente em nome dela, como o faria uma agência.»

81 Enquanto estabelecimento dito secundário de uma empresa pode sem dúvida ser considerado uma unidade sem autonomia que actua por contra da empresa principal. Na medida em que seja considerada um estabelecimento na acepção do Tratado, pode invocar as liberdades que lhe estão conexas.

82 É necessário determinar se estamos perante um estabelecimento na acepção do Tratado, uma vez que, de harmonia com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, uma empresa cuja actividade é regulada pela liberdade estabelecimento não pode invocar a liberdade de prestação de serviços (34).

83 O recurso a uma ou a outra das liberdades pode, em determinadas circunstâncias, determinar condições diferentes também para o exercício de uma actividade económica no mercado do país de destino, enquanto que as eventuais condições especiais de acesso impostas pelo Estado de estabelecimento não podem ser exigidas desta forma a um prestador de serviços, ainda que sejam reconhecidos os controlos já efectuados no Estado de origem e sejam prestadas garantias. Um prestador de serviços de outro Estado-Membro só é, em regra, obrigado a preencher as condições de autorização do Estado de origem, sendo unicamente admissíveis as restrições à livre prestação de serviços que preencham as quatro condições de justificação referidas infra, no n.º 91.

84 Na delimitação entre o exercício da liberdade de estabelecimento e de prestação de serviços há que atender sempre às circunstâncias de cada caso, face à inexistência de uma definição das liberdades que contemple todas as modalidades de exercício da actividade económica transfronteiriça. Com base na definição de estabelecimento adoptada pelo Tribunal de Justiça que foi referida no n.º 78, deve tratar-se de uma instalação estável por um período indeterminado.

2. Os centros de transmissão de dados enquanto estabelecimentos da empresa Stanley

85 É bastante provável que os centros de transmissão de dados constituam instalações estáveis. A questão de saber se representam ou não a Stanley de forma permanente (35) no mercado italiano depende dos contratos celebrados entre a Stanley e os centros. É, porém, duvidoso que os centros participem de forma permanente na exploração da actividade da sociedade principal ou que actuem permanentemente como agências desta, uma vez que se limitam a transmitir informações relativas a negócios que são organizados no Reino Unido. Decorre das observações dos participantes que o servidor para as ofertas, a recepção e a liquidação das apostas se situa em Liverpool e que os centros apenas exercem uma actividade de intermediação. Na execução deste género de serviços acessórios não autónomos, só é de admitir a presença de uma empresa no território de outro Estado caso a entidade dependa da empresa tal «como [...] uma agência» (36). Às actividades de pura intermediação ou aos meros serviços de recepção deveria assim acrescer uma relação de exclusividade ou, no mínimo, um vínculo preponderante com o organizador.

86 Quando, porém, a actividade de intermediação no interesse do organizador das apostas é apenas uma de entre outras, é difícil aceitar a existência de um mandato permanente para agir por conta da empresa como uma agência, devido ao facto de o intermediário, num caso com esta configuração, ressalvadas as estipulações contratuais, poder, de livre vontade, pôr termo à colaboração, não existindo portanto um vínculo de dependência da sociedade principal. Parece decorrer dos autos que os centros de transmissão de dados oferecem serviços de natureza muito diversa no sector da transmissão de dados, sendo a actividade de intermediação para a Stanley uma delas.

87 Face a estas circunstâncias, inclino-me para admitir que os centros de transmissão de dados não constituem estabelecimentos secundários da empresa Stanley, exercendo, ao invés, uma actividade de prestação de serviços. No entanto, a decisão definitiva será tomada a nível nacional, devendo ter-se em conta como é que as entidades nacionais consideram os centros no âmbito do processo de investigação pendente.

88 Admitindo por hipótese que, devido à intensidade do seu vínculo à empresa britânica, os centros deviam, todavia, ser considerados estabelecimentos da Stanley, coloca-se a questão de saber em que medida é que a sua actividade no território italiano pode ser limitada pelo legislador nacional.

3. A restrição da actividade

89 O Tribunal de Justiça já declarou (37) que uma actividade no sector dos jogos de fortuna e azar constitui, em princípio, uma actividade de natureza económica abrangida pelo âmbito de aplicação do Tratado.

90 A título liminar, há ainda que considerar que as restrições em causa não constituem regimes especiais justificados por razões de ordem pública ou segurança pública, na acepção do artigo 46.º, n.º 1. No acórdão Zenatti, o Tribunal de Justiça fez referência ao artigo 46.º CE que é igualmente aplicável no âmbito das disposições sobre a livre prestação de serviços, por força do artigo 55.º CE. No entanto, não retirou daqui quaisquer ilações para a apreciação das disposições litigiosas, tendo, ao invés, passado directamente à apreciação das razões imperativas de interesse geral. Por conseguinte, em conformidade com o procedimento adoptado pelo Tribunal de Justiça, há que partir do princípio de que as disposições nacionais não são justificadas ao abrigo do artigo 46.º CE.

91 Infere-se ainda da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no âmbito da liberdade de estabelecimento, o acesso a uma actividade económica e o seu exercício devem preencher, em princípio, as condições impostas no Estado-Membro de acolhimento numa determinada área (38). Todavia, «as medidas nacionais», ou seja, as razões imperativas não abrangidas pela norma excepcional do artigo 46.º, n.º 1, «susceptíveis de afectar ou tornar menos atraente o exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado devem preencher quatro condições: aplicarem-se de modo não discriminatório, justificarem-se por razões imperativas de interesse geral, serem adequadas para garantir a realização do objectivo que prosseguem e não ultrapassarem o que é necessário para atingir esse objectivo» (39). Além disso, existe a obrigação de tomar em conta a eventual equivalência dos conhecimentos adquiridos (40) e das garantias (41) já prestadas no Estado de origem. O facto de um Estado-Membro instituir um sistema de concessões no sector dos jogos de fortuna e azar não pode ser contestado a priori. Contudo, o operador económico estrangeiro deve poder concorrer, em igualdade com os nacionais (42), à atribuição da concessão e o próprio sistema de concessões deve satisfazer as quatro condições impostas a uma regulamentação nacional que restrinja o exercício de uma actividade económica.

a) Discriminação

92 Em primeira linha, há que verificar se o regime nacional é formalmente discriminatório ou se produz efeitos discriminatórios.

93 Foi alegado no Tribunal de Justiça que a legislação italiana que regula as apostas desportivas apresenta «estrutura monopolista». Isto deve ser entendido no sentido de que apresenta traços monopolistas mas não institui um monopólio em sentido estrito. Os efeitos discriminatórios de um monopólio podem ser considerados sob dois pontos de vista. Por um lado, é legítimo sustentar que um monopólio não produz efeitos discriminatórios, na acepção do artigo 43.º, segundo parágrafo, CE, uma vez que tanto os agentes económicos nacionais como os estrangeiros são excluídos em igualdade de condições do exercício de determinada actividade. Mas, por outro lado, também é defendida a existência de discriminação com base na nacionalidade quando os operadores económicos estrangeiros são liminarmente excluídos do exercício de uma actividade no respectivo Estado-Membro. É, porém, questionável se estas considerações são válidas para uma «estrutura monopolista».

94 Há que partir do princípio de que os outros operadores económicos podem, em todo o caso, vir potencialmente a integrar a «estrutura monopolista» caso concorram à atribuição da concessão. Portanto, tudo depende das condições estabelecidas para a sua atribuição. Ainda que nas condições do concurso para atribuição de uma concessão não se prevejam quaisquer condições directamente discriminatórias com base na nacionalidade, determinados requisitos como, por exemplo, a exigência de já dispor de um estabelecimento comercial no território italiano, podem dar origem a um tratamento preferencial dos nacionais e, deste modo, à discriminação dos operadores económicos estrangeiros, verificando-se neste caso uma discriminação indirecta, igualmente proibida pelo direito comunitário.

95 Existem elementos para afirmar que as condições estabelecidas para a atribuição de uma concessão que tem por objecto a actividade de recepção de apostas desportivas em Itália são formalmente discriminatórias. Nomeadamente a já referida condição, denunciada no presente processo, que obriga o potencial concessionário a já dispor de um estabelecimento comercial no território italiano, dá origem a uma discriminação, e isto sobretudo quando não podia, em caso algum, ter sido anteriormente exercida uma actividade neste sector, no estabelecimento comercial respectivo, uma vez que era ilegal organizar e exercer a actividade sem dispor de concessão.

96 O facto de determinadas estruturas societárias serem liminarmente excluídas da atribuição da concessão também tem repercussões discriminatórias. A Comissão já tinha denunciado esta situação por ser considerada contrária ao direito comunitário e, segundo o seu comunicado de imprensa de 17 de Outubro de 2002, intentou uma acção por incumprimento do Tratado contra a República Italiana, tendo-lhe dirigido um parecer fundamentado. No comunicado de imprensa é afirmado expressamente o seguinte:

«A Comissão Europeia decidiu solicitar formalmente à Itália que respeite o direito comunitário na atribuição de concessões para a organização de apostas desportivas. Actualmente, as sociedades de capitais cotadas nos mercados regulamentados da União Europeia estão excluídos da possibilidade de obter este tipo de concessões, exclusão essa que a Comissão não considera necessária para combater a fraude e a criminalidade. Além disso, a Itália renovou, sem abrir concurso, cerca de 300 concessões para a organização de apostas hípicas. Quando é atribuída uma concessão pública importante sem que o procedimento seja acessível a todos os potenciais proponentes europeus (de harmonia com o Tratado CE e as directivas em matéria de contratos públicos), as empresas europeias são privadas da possibilidade de apresentarem uma proposta. Além disso, as autoridades que atribuem a concessão e, neste caso específico, também os apostadores, correm o risco de que o serviço proposto seja de menor qualidade do que a eventualmente assegurada por um proponente ilicitamente excluído [...].»

97 Na medida em que o procedimento em questão seja considerado discriminatório na acepção do artigo 43.º, segundo parágrafo, CE, deve entender-se que constitui per se um entrave à liberdade de estabelecimento proibido pelo direito comunitário, no sentido do Tratado. Nestes termos, a proibição suplementar dos entraves ao estabelecimento pelo direito penal era, por maioria de razão, contrária ao direito comunitário.

b) As razões imperativas de interesse geral - Objectivos, adequação da medida e proporcionalidade

98 Se, ao invés, as condições não forem consideradas discriminatórias existe, em todo o caso, uma restrição que só é justificada na medida em que preencha as quatro condições restritas, acabadas de referir no n.º 92, que foram enunciadas pelo Tribunal de Justiça. O Tribunal já reconheceu que a protecção dos consumidores e a protecção da ordem social constituem razões imperativas de interesse geral adequadas a justificar uma pluralidade de regimes no sector dos jogos de fortuna e azar (43). Uma vez que estão, sem dúvida, em causa objectivos legítimos, nomeadamente o de obstar a que os concessionários se envolvam em práticas criminais ou fraudulentas, há, porém, que verificar se a exclusão pura e simples de sociedades de capitais é de todo adequada a garantir este objectivo.

99 Com o objectivo de avaliar a integridade de uma sociedade de capitais podem ser efectuados controlos que consistam, por exemplo, na obtenção de informações acerca da integridade dos representantes da sociedade e dos accionistas principais. A exclusão absoluta do acesso afigura-se, em qualquer caso, desproporcionada. Se a exclusão total já é, porém, contrária ao direito comunitário, por maioria de razão o será a sua protecção penal.

100 No âmbito dos processos de atribuição de concessões deviam ainda ser tidos em conta os controlos previamente efectuados e as garantias já prestadas noutro Estado-Membro (44). Neste contexto, há que referir o facto de Garrisi ter alegado que as actividades no sector das lotarias eram igualmente reguladas pela Directiva 1999/42 (45). Segundo o artigo 1.º desta Directiva, os Estados-Membros são obrigados a adoptar determinadas medidas em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços. A directiva aplica-se às actividades enumeradas no anexo A, referindo o n.º 3, da Lista VI, da Primeira Parte, nomeadamente as seguintes:

«ex Classe 84 Serviços recreativos

843 Serviços recreativos não classificados noutra parte:

- actividades desportivas (campos de desporto, organização de reuniões desportivas, etc), com excepção das actividades dos monitores de desportos

- actividades de jogos (cavalariças para cavalos de corrida, campos de jogos, campos de corridas, etc.)

- outras actividades recreativas (circos, parques de atracção, outros divertimentos, etc.).»

101 É certo que esta norma não contém qualquer referência expressa a «bookmakers» e a «escritórios de apostas», ao contrário do que era defendido por Garrisi. As actividades que mais se assemelham a estas não se incluem na classe «ex 859» da nomenclatura ISIC, mencionada por Garrisi, mas na referida classe 843.

102 A opinião de Garrisi era defensável caso o referido grupo fosse interpretado em sentido amplo. No entanto, no quarto considerando da directiva é afirmado o seguinte:

«Considerando que as principais disposições das referidas directivas deverão ser substituídas em harmonia com as conclusões do Conselho Europeu de Edimburgo, de 11 e 12 de Dezembro de 1992, referentes à subsidiariedade, à simplificação da legislação comunitária e particularmente à revisão pela Comissão das directivas relativamente antigas no domínio das qualificações profissionais [...].»

No anexo 2 à parte 3 das referidas conclusões do Conselho Europeu declara-se, porém, expressamente o seguinte:

«Desta forma, decidiu [alude-se à Comissão] não propor [...] a regulamentação dos jogos de fortuna e azar.» (46)

103 Não é improvável que esta renúncia, que foi várias vezes invocada no presente processo, afecte a interpretação da Directiva de 1999, relativa ao reconhecimento dos diplomas. Em todo o caso, seja por intermédio do mecanismo criado pela Directiva 1999/42 ou directamente com base no direito primário, os Estados-Membros têm o dever de atender aos «conhecimentos e habilitações» (47) adquiridos noutros Estados-Membros, ou aos «controlos e garantias» (48) das qualificações profissionais, das autorizações bem como os controlos aí efectuados.

104 Conclui-se assim a título provisório que, a existir um estabelecimento, o que compete ao tribunal nacional julgar, a proibição de exercer a actividade imposta pelas disposições penais italianas aos organizadores de apostas desportivas devidamente autorizados noutros Estados-Membros viola o princípio da liberdade de estabelecimento, na acepção do Tratado CE.

C - A liberdade de prestação de serviços

105 Caso, por meras razões de facto, os centros de transmissão de dados não devam ser considerados estabelecimentos da Stanley, elas colaboram, em todo o caso, na prestação dos serviços oferecidos por esta empresa. Admitindo que a empresa não mantém no território italiano nenhuma forma de representação que possa ser considerada um estabelecimento, a actividade comercial exercida pela Stanley corresponde a uma prestação clássica de serviços por correspondência. O prestador e o destinatário do serviço encontram-se estabelecidos em dois Estados-Membros diferentes e apenas o serviço tem um carácter transfronteiriço.

1. O entrave à livre prestação de serviços e a sua justificação

106 O Tribunal de Justiça já reconheceu que o facto de oferecer a possibilidade de participar, mediante remuneração, num jogo de fortuna e azar, actividade, que em seu entender, inclui, as apostas desportivas, constitui uma prestação de serviços, facto que não deve ser posto em causa para efeitos do caso presente (49). É natural que o Tribunal de Justiça tenha ainda admitido que as disposições que impedem os operadores dos outros Estados-Membros de procederem à recepção de apostas no território italiano, constituem um entrave à livre prestação de serviços (50).

107 Só são admissíveis as restrições à livre prestação de serviços quando expressamente permitidas pelo Tratado CE, sendo neste caso até possíveis regras discriminatórias, ou, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, quando justificadas por razões imperativas de interesse geral (51). No processo Zenatti, como foi referido no n.º 90, embora o Tribunal de Justiça tenha referido os artigos 45.º, 46.º e 55.º CE, que admitem as restrições que estejam ligadas, mesmo ocasionalmente, ao exercício da autoridade pública ou sejam justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, não as apreciou no caso concreto, tendo procedido directamente à verificação das razões imperativas de interesse geral. Poderia concluir-se daqui que, no entendimento do Tribunal de Justiça, a actividade das apostas, independentemente da forma como é regulamentada pelo Estado, não está nem ligada ao exercício da autoridade pública nem cria para a ordem, a segurança ou a saúde públicas um risco susceptível de justificar a sua regulamentação.

108 Mas é sobretudo a ideia de que a segurança pública e a ordem pública são susceptíveis de justificar uma regulamentação restritiva que reserva ao Estado um vasto poder de organização no sector dos jogos de fortuna e azar que não parece ser incorrecta. Entre as razões subjacentes à legislação vigente em Itália, bem como às legislações análogas de quase todos os Estados-Membros (52), é mencionada a prevenção de delitos (53). A protecção penal conferida às disposições que conferem a direcção dos jogos de fortuna e azar ao Estado quer em Itália quer noutros Estados-Membros indica que o legislador teve em conta a perigosidade dos jogos de fortuna e azar. Não obstante, nem o Tribunal de Justiça considerou que as disposições italianas já apreciadas no acórdão Zenatti eram justificadas por razões de segurança e ordem públicas, nem tal foi seriamente defendido no presente processo.

109 Seguindo o exemplo do Tribunal de Justiça (54), proceder-se-á directamente à análise da justificação das disposições nacionais indistintamente aplicáveis, ou seja, não discriminatórias, que restringem a livre prestação de serviços. Trata-se assim de saber se existem razões imperativas de interesse geral que sejam adequadas a justificar as medidas nacionais. Nos casos submetidos até hoje ao Tribunal de Justiça foram sempre invocados vários argumentos para justificar as respectivas regulamentações nacionais.

110 Estes argumentos foram resumidos pelo Tribunal de Justiça no n.º 57 do acórdão Schindler da seguinte forma: «prevenir os delitos e garantir que os participantes nos jogos a dinheiro fossem tratados de forma honesta; evitar estimular a procura no sector dos jogos a dinheiro, cujos excessos têm consequências sociais nefastas; providenciar para que as lotarias não fossem organizadas tendo em vista um lucro pessoal e comercial mas apenas fins de beneficência, desportivos ou culturais.»

111 Nos termos do n.º 32 do acórdão Läärä, a regulamentação aí controvertida correspondia à preocupação «de limitar a exploração da paixão dos seres humanos pelo jogo, de evitar os riscos de delito e de fraude resultantes de tais actividades e de só autorizar as mesmas a fim de recolher fundos destinados a obras de beneficência ou ao apoio de causas desinteressadas.»

112 Relativamente à regulamentação inicial, que também constitui objecto do presente processo, o Tribunal de Justiça afirmou que, segundo o despacho de reenvio e as observações do Governo italiano, a legislação italiana prosseguia objectivos análogos aos da legislação britânica em matéria de lotarias. «A legislação italiana visa, com efeito, impedir que esses jogos sejam uma fonte de lucro individual, evitar os riscos de delito e de fraude e as consequências individuais e sociais nefastas resultantes do incitamento à despesa que constituem, só os permitindo na medida em que podem ter um carácter de utilidade social para o desenvolvimento útil de uma competição desportiva.» (55)

113 No presente processo não foram apresentados argumentos novos ou diferentes. O Tribunal de Justiça não procedeu, até agora, a uma análise diferenciada de cada uma das razões. Pelo contrário, considerou-as expressamente no seu conjunto (56). Essas razões prendem-se, assim, com a «protecção dos destinatários do serviço e, mais geralmente, dos consumidores, e ainda com a protecção da ordem social» (57), objectivos que podem ser considerados como razões imperativas de interesse geral.

114 No acórdão Schindler (n.º 61) estas razões foram consideradas adequadas a justificar a proibição total das lotarias. Relativamente a uma legislação como a que estava em causa no acórdão Zenatti que, com efeito, não proibia totalmente as operações em causa, o Tribunal de Justiça reconheceu aos Estados-Membros o poder para decidir se pretendem proibir total ou parcialmente as actividades desta natureza ou apenas restringi-las, podendo prever, para este efeito, determinadas modalidades de controlo (n.º 33 do acórdão Zenatti). Nos termos do n.º 34, cabia ainda aos Estados-Membros definir os objectivos e o nível de protecção nesta matéria.

115 A autorização limitada da actividade com o objectivo de «canalizar a vontade de jogar e a exploração dos jogos para um circuito controlado, de prevenir os riscos de tal exploração com fins fraudulentos e criminais e de utilizar os benefícios daí resultantes para fins de utilidade pública» também se insere na prossecução dos objectivos de interesse geral. No entanto, o Tribunal de Justiça considerou que «uma tal limitação só é admissível se, antes do mais, corresponder efectivamente à vontade de reduzir verdadeiramente as ocasiões de jogo e se o financiamento de actividades sociais através de uma imposição sobre as receitas provenientes dos jogos autorizados constituir apenas uma consequência benéfica acessória [...]» (58).

116 Assim, na linha do Tribunal de Justiça, há que submeter os objectivos prosseguidos e os meios empregues para este efeito a uma apreciação mais detalhada, embora até hoje o Tribunal tenha deixado esta tarefa aos tribunais nacionais (59) que tiveram, nesta matéria, como já foi referido, dificuldades manifestas.

2. Carácter adequado dos meios para alcançar os objectivos prosseguidos

117 Os objectivos prosseguidos podem ser divididos em diferentes grupos. Por um lado, trata-se dos riscos associados ao operador, tal como fraudes ou delitos. Por outro lado, trata-se de proteger os jogadores de si próprios. Faz parte deste grupo a preocupação em conter as possibilidades de jogo a fim de prevenir as apostas excessivas, a paixão pelo jogo ou mesmo o vício do jogo, bem como os seus efeitos patrimoniais e sociais nefastos. Os receados efeitos negativos para a sociedade podem ser subsumidos neste objectivo, visto que devem ser combatidos através de uma limitação das possibilidades de jogo. Finalmente, será considerado o aspecto económico, não despiciendo, da recolha de quantias consideráveis para o erário ou, em todo o caso, para fins de utilidade pública.

a) Os riscos associados ao operador

118 Os riscos potenciais associados ao operador podem ser prevenidos através de um controlo das autorizações e, eventualmente, da supervisão da actividade. Um procedimento de autorização não levanta, em si, qualquer objecção. Contudo, no âmbito da livre prestação de serviços, tal procedimento torna-se problemático se for utilizado na prática para excluir do exercício da actividade os organizadores autorizados noutros Estados-Membros que respeitem as regras aí vigentes. É possível afirmar que o jogo de fortuna e azar é regulado por lei em quase todos os Estados-Membros (60) e que as razões invocadas a favor da sua regulamentação são bastante análogas (61). Assim, o facto de um operador de outro Estado-Membro satisfazer as condições vigentes nesse Estado deveria ser suficiente para as autoridades nacionais do Estado-Membro onde o serviço é prestado, que deviam considerar que a integridade do operador estava suficientemente garantida.

b) A contenção da paixão pelo jogo

119 No que diz respeito aos receados riscos inerentes à diversificação e ao alargamento da oferta de jogo, há que analisar se são objecto de uma política coerente do Estado-Membro, sobretudo porque não está em causa uma proibição absoluta, mas uma proibição com reserva de autorização. Conquanto exista uma proibição total num determinado sector dos jogos de fortuna e azar, o efeito restritivo sobre esta oferta é manifesto. Quando, porém, o jogo de fortuna e azar, no nosso caso, portanto, as apostas desportivas, é permitido, ainda que com claras limitações legais, há que examinar mais detalhadamente a alegada intenção de efeito restritivo. De facto, tal como o Tribunal de Justiça afirmou no n.º 35 do acórdão Zenatti, uma autorização limitada não basta para demonstrar que a legislação nacional não visa realmente alcançar os objectivos de interesse geral. Tão-pouco pode a regulamentação, por si só, comprovar que os pretensos objectivos são prosseguidos, visto que, segundo o Tribunal de Justiça (n.º 36 do acórdão Zenatti), a regulamentação só é admissível «se, antes do mais, corresponder efectivamente à vontade de reduzir verdadeiramente as ocasiões de jogo.»

120 Para saber se esse é o caso há que proceder a uma apreciação global que tenha em conta a actuação e o comportamento dos organizadores do jogo no Estado-Membro, o que é dificultado pelo facto de, no acórdão Zenatti, o Tribunal de Justiça ter confiado essa apreciação aos órgãos jurisdicionais nacionais. No entanto, se os factos conhecidos forem suficientes para que o Tribunal de Justiça se pronuncie, nada impede que este o faça.

121 No presente processo foi afirmado que os concessionários que organizam as apostas desportivas recorrem a uma publicidade agressiva. Um comportamento desta natureza visa despertar e incentivar a vontade de jogar. Mas isto não é tudo. O Estado italiano criou ainda, por via legislativa, meios que permitem alargar de forma considerável a oferta de jogos de fortuna e azar no mercado italiano (62). Além disso, é pacífico que o Estado italiano procurou ainda facilitar a angariação de apostas, tendo já sido referido o alargamento das infra-estruturas através da atribuição de 1000 novas concessões.

122 Face ao exposto, não é possível concluir pela existência de uma política coerente de restrição da oferta de jogos de fortuna e azar. Por conseguinte, os objectivos alegados, mas que (já) não são efectivamente, prosseguidos também não são adequados a justificar o entrave à livre prestação de serviços por parte de proponentes devidamente autorizados e estabelecidos noutros Estados-Membros.

123 No que diz respeito à alteração legislativa do ano 2000 pela Legge finanziaria, que alargou o âmbito de aplicação das disposições jurídicas já apreciadas pelo Tribunal de Justiça e que vigoraram até essa data, bem como às circunstâncias concomitantes à sua adopção, há que referir que, de acordo com os trabalhos preparatórios citados nas observações escritas, a alteração legislativa também visava, pelo menos, proteger os concessionários nacionais. Estão nitidamente em causa motivos proteccionistas que não são susceptíveis de justificar a alteração legislativa e que lançam simultaneamente dúvidas sobre toda a legislação. Além disso, na medida em que se deva considerar que a regulamentação originária deixou de ser justificada pelos objectivos possivelmente prosseguidos à data da sua adopção, uma vez que se assistiu a uma alteração das circunstâncias jurídicas e factuais, não podia, em caso algum, ter sido aprovado um agravamento deste género.

c) A importância das receitas para o Estado

124 O facto de a regulamentação ter sido inserida numa Legge finanziaria demonstra que o interesse económico do Estados-Membro nos jogos de fortuna e azar foi determinante.

125 É certo que o Tribunal de Justiça afirmou no n.º 60 do acórdão Schindler que «não é indiferente», sem que este motivo possa, em si, ser considerado uma justificação, o facto de «que as lotarias podem participar, significativamente, no financiamento de actividades sem fins lucrativos ou de interesse geral, tais como as obras sociais, de beneficiência, o desporto ou a cultura.» Sendo possível deduzir desta afirmação que motivos de natureza económica, em todo o caso, entre outros, constituem razões de interesse geral, o Tribunal de Justiça, prosseguindo, de forma coerente, a sua jurisprudência constante no sentido da inadequação de razões de natureza económica para justificar medidas restritivas (63), clarificou este género de especulações no acórdão Zenatti e afirmou no seu n.º 36 que «o financiamento de actividades sociais através de uma imposição sobre as receitas provenientes dos jogos autorizados» pode apenas constituir «uma consequência benéfica acessória, e não a justificação real, da política restritiva adoptada».

126 Assim, as repercussões financeiras positivas do jogo de fortuna e azar sobre o orçamento do Estado não podem ser consideradas razões imperativas de interesse geral susceptíveis de justificar a exclusão de organizadores de outros Estados-Membros do mercado dos jogos de fortuna e azar. Não obstante, não pode ser ignorada a enorme importância das consequências económicas positivas dos jogos de fortuna e azar para as receitas públicas dos Estados-Membros, o que decorre de forma mais ou menos evidente das suas observações. O Governo português foi aquele que se pronunciou de forma mais evidente, ao descrever os receados efeitos quase dramáticos que uma liberalização dos jogos de fortuna e azar a nível comunitário acarretaria para os Estados-Membros mais pequenos. Tais receios não podem certamente ser excluídos.

127 No entanto, decorre claramente das observações dos Estados-Membros que estes temem especialmente as consequências económicas de uma alteração no sector dos jogos de fortuna e azar, aludindo esporadicamente aos eventuais efeitos perigosos dos jogos de fortuna e azar em relação aos jogadores e ao seu contexto social. Por este motivo, estes receios também não podem ser considerados interesses dos consumidores no sentido de razões imperativas de interesse geral.

128 Se, por ocasião de uma relativa abertura dos mercados nacionais dos jogos de fortuna e azar, se viesse a confirmar a receada perturbação nas receitas públicas, haveria que lutar contra ela através, se necessário, de outros meios adequados. Considerações de ordem puramente económica não podem, porém, conduzir a uma proibição total da livre prestação de serviços por operadores autorizados noutros Estados-Membros.

129 Pelos fundamentos invocados e face ao circunstancialismo existente, não é possível considerar que a restrição à livre prestação de serviços é justificada por razões imperativas de interesse geral.

3. Os jogos de fortuna e azar e os meios electrónicos

130 A alteração legislativa do ano 2000, com a qual, supostamente, apenas se pretendia assegurar as proibições já existentes, deve, no mínimo, ser também analisada no contexto dos desenvolvimentos tecnológicos. É inteiramente pacífico que estes desenvolvimentos tornam cada vez mais difícil fiscalizar o cumprimento de regulamentações legais. Mesmo sem a intervenção de um intermediário, quem pretenda jogar pode reservar a sua aposta por telefone, fax ou através da Internet no proponente europeu da sua escolha. Estas facilidades, que tornaram desnecessária uma mudança territorial para que se possa participar num jogo de fortuna e azar estrangeiro, conduzem a diferentes tipos de reacções no plano legislativo. No Reino Unido foi, por exemplo, adoptado o Lotteries Act 1993, não relevante para o acórdão Schindler, mas nele referido, que criou uma lotaria nacional com o intuito de permitir no território britânico uma oferta análoga à dos operadores estrangeiros. Noutros Estados-Membros como, por exemplo, em Itália ou mesmo na Alemanha (64), assistiu-se sobretudo a um agravamento da legislação penal.

4. Consequências

131 A valoração destas sanções penais depende, porém, da legalidade das restrições e proibições que lhe estão subjacentes, sendo decisivos para a apreciação segundo o direito comunitário os objectivos prosseguidos. Se, tal como no caso em apreço, os objectivos postulados pela legislação controvertida são postos em causa pelo comportamento incoerente das autoridades nacionais ou se não puderem ser considerados exigências imperativas de interesse geral, uma regulamentação penal que agrave estas medidas terá de ser qualificada como desproporcionada.

132 Face ao exposto, há que concluir que uma regulamentação nacional como a regulamentação italiana controvertida, que proíbe, sob pena de sanções penais, as actividades, independentemente de quem as exerça e do local onde se realizem, de angariação, aceitação de reservas e transmissão de apostas sobre acontecimentos desportivos, viola a livre prestação de serviços, na acepção dos artigos 49.º CE e segs.

133 Para ser completo, há ainda que fazer, por fim, referência ao facto de os arguidos terem alegado que a regulamentação penal italiana viola o direito comunitário secundário em matéria de comércio electrónico e as directivas citadas no n.º 38. A este respeito, basta referir, antes de mais, a Directiva 2000/31 (65) sobre o comércio electrónico, cujo artigo 1.º, n.º 1, alínea d), terceiro travessão, afirma que a directiva não é aplicável a «jogos de fortuna e azar em que é feita uma aposta em dinheiro em jogos de fortuna, incluindo lotarias e apostas». Além disso, no que diz respeito à Directiva 96/19, que altera a Directiva 90/388 no que diz respeito à introdução da plena concorrência nos mercados de telecomunicações, à Directiva 97/13, relativa a um quadro comum para autorizações gerais e licenças individuais no domínio dos serviços de telecomunicações e à Directiva 97/66, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das telecomunicações, há que constatar que não adoptam qualquer posição explícita ou implícita sobre o problema da organização dos jogos de fortuna e azar. Por conseguinte, não é possível afirmar que o direito comunitário derivado regule esta matéria. Caso se conclua no sentido da inexistência de uma regulamentação comunitária específica, é aplicável o direito primário, à luz do qual, de resto, o direito derivado também deve ser interpretado.

VI - Conclusão

134 Em conclusão das considerações precedentes proponho a seguinte resposta à questão prejudicial:

O artigo 49.º CE e segs., relativos à livre prestação de serviços, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional como regulamentação a italiana constante do artigo 4.º, n.os 1, 4-bis e 4-ter, da Lei n.º 401 de 13 de Dezembro de 1989 (na versão resultante do artigo 37.º, n.º 5, da Lei n.º 388 de 23 de Dezembro de 2000), que estabelece a proibição, punida pelo direito penal, de actividades, independentemente de quem as executa e do local onde se realizem, de angariação, aceitação, reserva e transmissão de apostas, em especial, sobre acontecimentos desportivos, quando estas actividades sejam desenvolvidas por um organizador de apostas, em colaboração com ele ou para ele, estabelecido noutro Estado-Membro, e que essas actividades sejam por ele exercidas de forma regular e em conformidade com a legislação vigente nesse país.

(1) - Segundo o despacho de reenvio são 137 pessoas, segundo o requerimento de Gambelli, 140. Face a esta incongruência será utilizada a expressão «Gambelli e mais de 100 outras pessoas» ou «Gambelli e os outros arguidos».

(2) - Acórdão de 21 de Outubro de 1999, Zenatti (C-67/98, Colect., p. I-7289).

(3) - Acórdão de 24 de Março de 1994, Schindler (C-275/92, Colect., p. I-1039).

(4) - Acórdão de 21 de Setembro de 1999, Läärä (C-124/97, Colect., p. I-6067).

(5) - Acórdão Zenatti (já referido, nota 3).

(6) - V. Lei n.º 388/2000 de 23 de Dezembro de 2000, Legge Finanziaria; Supplemento ordinario n.º 302 do GURI de 29.12.2000 (a seguir «Lei n.º 388/2000»).

(7) - DR n.º 773 de 16 de Junho de 1931, GURI n.º 146, de 26.6.1931, na versão da Lei n.º 388 de 23 de Dezembro de 2000, Legge Finananziaria (Supplemento ordinario n.º 302 do GURI de 29 de Dezembro de 2000).

(8) - Lei de 13 de Setembro de 1989 (GURI n.º 294 de 18 de Dezembro de 1989, a seguir «Lei n.º 401/89»).

(9) - Os n.os 4-bis e 4-ter foram introduzidos pela Lei n.º 388 de 23 de Dezembro de 2000 como os n.os 4-bis e 4-ter da Lei n.º 401/89, tendo assim, segundo o despacho de reenvio, alargado o tipo legal de crime a todas as pessoas que organizem ilicitamente em Itália apostas de qualquer natureza.

(10) - Acórdão de 5 de Julho de 1997 (C-398/95, Colect., p. I-3091, n.º 23).

(11) - Acórdão de 26 de Abril de 1988 (352/85, Colect., p. I-2085, n.os 32 a 34).

(12) - Acórdão de 25 de Julho de 1991 (C-288/89, Colect., p. I-4007, n.º 11).

(13) - Refere-se à directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Junho de 1999, que cria um mecanismo de reconhecimento dos diplomas para as actividades profissionais abrangidas pelas directivas de liberalização e de medidas transitórias, completando o sistema geral de reconhecimento dos diplomas (JO L 201 de 31 de Julho de 1999, p. 77).

(14) - Directiva da Comissão, de 28 de Junho de 1990, relativa à concorrência nos mercados de serviços de telecomunicações (JO L 192 de 24 de Julho de 1990, p. 10), na versão da Directiva 96/19/CE da Comissão, de 13 de Março de 1996, que altera a Directiva 90/388/CEE no que diz respeito à introdução da plena concorrência nos mercados das telecomunicações (JO L 74 de 22 de Março de 1996, p. 13).

(15) - Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de Abril de 1997, relativa a um quadro comum para autorizações gerais e licenças individuais no domínio dos serviços de telecomunicações (JO L 117 de 7 de Maio de 1997, p. 15).

(16) - Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Dezembro de 1997, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das telecomunicações (JO L 24 de 30 de Janeiro de 1998, p. 1).

(17) - Acórdão de 31 de Março de 1993 (C-19/92, Colect., p. I-1663).

(18) - Acórdão de 30 de Novembro de 1995 (C-55/94, Colect., p. I-4165, n.º 39, sexto travessão). Quanto a cada uma das quatro condições v. infra, n.º 92.

(19) - V. acórdãos Schindler (já referido, nota 4), Läärä (já referido, nota 5) e Zenatti (já referido, nota 3), bem como acórdãos de 20 de Fevereiro de 1979, Cassis de Dijon (C-120/78, Colect., p. I-649, n.º 8), de 25 de Julho de 1991, Säger (C-76/90, Colect., p. I-4221) e Gouda (já referido, nota 13).

(20) - V. acórdão C-6/01, n.º 90.

(21) - Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 8 de Junho de 2000 (JO L 178 de 17 de Julho de 2000, p. 1).

(22) - V. acórdão de 31 de Janeiro de 1994, Luisi e Carbone (286/82 e 26/83, Recueil, p. 377, n.º 10).

(23) - Conclusões do advogado-geral C. Gulmann, apresentadas em 16 de Dezembro de 1993 no processo Schindler (C-275/92, Colect., p. I-1042, n.os 42 e segs.).

(24) - Conclusões do advogado-geral A. La Pergola, apresentadas em 4 de Março de 1999 no processo Läärä (C-124/97, Colect., p. I-6069, n.º 26).

(25) - Conclusões do advogado-geral N. Fennelly, apresentadas em 20 de Maio de 1999 no processo Zenatti (C-67/98, Colect., p. I-7291, n.os 21 e 22).

(26) - V. os n.os 22 e 23 do acórdão (já referido, nota 3).

(27) - V. acórdão Läärä (já referido, nota 5, n.os 13 e segs.) e acórdão Zenatti (já referido, nota 3, n.º 33).

(28) - V. os n.os 24, 25 e 26 e 35 do acórdão Läärä (já referido, nota 5).

(29) - V. artigo 50.º CE, bem como acórdão Gebhard (já referido, nota 19, n.º 22).

(30) - V. artigo 50.º CE, acórdão Gebhard (já referido, nota 19, n.º 22) e acórdão de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha (205/84, Colect., p. 3755, n.º 21, última frase).

(31) - Acórdão de 25 de Julho de 1991 (C-221/89, Colect., p. I-3095, n.º 20).

(32) - Acórdão Comissão/Alemanha (já referido, nota 31, n.º 21).

(33) - Tratava-se, neste caso, de uma empresa seguradora.

(34) - V. acórdão Comissão/Alemanha (já referido, nota 31, n.º 21); v. igualmente acórdão Gebhard (já referido, nota 19, n.º 20), onde se declara que os capítulos relativos à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços se excluem mutuamente.

(35) - V. o requisito imposto no processo 205/84 (já referido, nota 31, n.º 21).

(36) - V. acórdão 205/84 (já referido, nota 31, n.º 21).

(37) - Acórdão Schindler (já referido, nota 4, n.º 33 e segs.).

(38) - Acórdão Gebhard (já referido, nota 19, n.º 39).

(39) - V. n.º 39, sexto travessão, do acórdão Gebhard (já referido, nota 19).

(40) - Acórdão Gebhard (já referido, nota 19, n.º 39, quarto travessão).

(41) - Acórdão 205/84 (já referido, nota 31, n.º 47).

(42) - V. a proibição de discriminação que decorre do artigo 43.º, segundo parágrafo, CE.

(43) - Acórdão Schindler (já referido, nota 4, n.º 58).

(44) - Acórdão 205/84 (já referido, nota 31, n.º 47).

(45) - Directiva 1999/42/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Junho de 1999, que cria um mecanismo de reconhecimento dos diplomas para as actividades profissionais abrangidas pelas directivas de liberalização e de medidas transitórias, completando o sistema geral de reconhecimento dos diplomas (citada na nota 14).

(46) - V. Boletim das Comunidades Europeias 1992, n.º 12, p. 18.

(47) - Acórdão de 7 de Maio de 1991, Vlassopoulou (C-340/89, Colect., p. I-2357).

(48) - Acórdão 205/84 (já referido, nota 31, n.º 47).

(49) - Acórdão Zenatti (já referido, nota 3, n.º 24 e segs.).

(50) - Acórdão Zenatti (já referido, nota 3, n.º 27).

(51) - Acórdão Zenatti (já referido, nota 3, n.º 28).

(52) - V. considerações do advogado-geral C. Gulmann nas conclusões apresentadas no processo Schindler (já referido, nota 24, n.º 1 e segs.).

(53) - V. acórdãos Schindler (já referido, nota 4, n.º 57), Läärä (já referido, nota 5, n.º 32) e Zenatti (já referido, nota 3, n.º 30).

(54) - Acórdão Zenatti (já referido, nota 3, n.º 29).

(55) - V. acórdão Zenatti (já referido, nota 3, n.º 30).

(56) - V. acórdão Schindler (já referido, nota 4, n.º 58) e acórdão Zenatti (já referido, nota 3, n.º 31).

(57) - V. acórdão Zenatti (já referido, nota 3, n.º 31).

(58) - V. acórdão Zenatti (já referido, nota 3, n.os 35 e 36; itálico do autor).

(59) - V. acórdão Zenatti (já referido, nota 3, n.º 37).

(60) - V. considerações gerais do advogado-geral C. Gulmann nas conclusões apresentadas no processo Schindler (já referido, nota 24), com base num relatório da Comissão, n.º 1 e segs).

(61) - O que se infere das observações dos Estados-Membros nos processos Schindler, Läärä, Zenatti, assim como no presente processo.

(62) - V. observações de Gambelli a este respeito, acima reproduzidas no n.º 23.

(63) - Acórdão de 24 de Janeiro de 2002, Portugaia Construções Ld.a (C-164/99, Colect., p. I-787, n.º 26).

(64) - V. Sexta Lei de Reforma do Direito Penal de 26.1.1998, BGBl. I, p. 164, que alargou o âmbito de aplicação do crime de organização não autorizada de lotarias ou jogos.

(65) - Já referida, n.º 56.