61998C0384

Conclusões do advogado-geral Saggio apresentadas em 27 de Janeiro de 2000. - D. contra W.. - Pedido de decisão prejudicial: Landesgericht St. Pölten - Áustria. - Sexta Directiva IVA - Isenção das prestações de serviços de assistência efectuadas no âmbito de profissões médicas e paramédicas - Prestação por perito médico junto dos tribunais de parecer em matéria de investigação de paternidade. - Processo C-384/98.

Colectânea da Jurisprudência 2000 página I-06795


Conclusões do Advogado-Geral


1 Com o presente pedido de decisão prejudicial, o Landesgericht St. Pölten (Áustria) pergunta ao Tribunal de Justiça se um exame genético efectuado por um perito médico, designado por uma entidade judicial no quadro de um litígio em matéria de paternidade, está abrangido pelo âmbito de aplicação da isenção prevista no artigo 13._, A, n._ 1, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (1) (a seguir «Sexta Directiva»), e, em caso de resposta afirmativa a esta primeira questão, se o beneficiário da isenção tem a faculdade de a ela renunciar.

Disposições comunitárias e nacionais

2 O artigo 13._, A, n._ 1, da Sexta Directiva enumera as prestações e as actividades de «interesse geral» que os Estados-Membros isentarão, nas condições por eles fixadas, do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA»). De entre elas constam, na alínea c), «As prestações de serviços de assistência efectuadas no âmbito do exercício das actividades médicas e paramédicas, tal como são definidas pelo Estado-Membro em causa.»

3 Na legislação austríaca, o § 6 da Umsatzsteuergesetz (lei relativa ao imposto sobre o volume de negócios, a seguir «UStG») de 1994 (2) prevê, no primeiro parágrafo, que: «Das operações referidas no § 1, primeira e segunda linhas, estão isentas de imposto: ... as operações respeitantes à actividade médica» (n._ 19) e «as operações efectuadas por pequenas empresas, ou seja, empresas que têm o domicílio ou sede na Áustria e cujo volume de negócios não ultrapasse 300 000 ATS...» (n._ 27). Nos termos do § 6, terceiro parágrafo, da mesma lei, «o operador económico cujo volume de negócios está isento por força do § 6, primeiro parágrafo, n._ 27, pode, até que a decisão seja definitiva, renunciar, em declaração escrita dirigida à administração fiscal, à aplicação do § 6, primeiro parágrafo, n._ 27». Convém acrescentar que os honorários de peritos são fixados pelo órgão judicial junto do qual ocorreram ou devem ocorrer as operações de peritagem. Este órgão ordena o pagamento dos honorários a partir do preparo feito por uma das partes e, no caso de insuficiência de tal preparo, a partir de fundos públicos, ou seja, a partir de meios financeiros do Tesouro Federal (Bundesschatz).

Factos, tramitação processual e questões prejudiciais

4 No âmbito de um litígio no qual a recorrente pedia que se averiguasse se era filha natural do recorrido, o juiz em causa, o Bezirksgericht St. Pölten, encomendou à Dr.a Rosenmayr, na qualidade de perita médica, um exame genético-antropológico que permitisse declarar se a recorrente na acção principal poderia ser filha natural do recorrido. Pela sua actividade de perita, a Dr.a Rosenmayr requereu, para além dos honorários (3), o pagamento do IVA correspondente a 14 108,60 ATS, tendo optado pela tributação da sua actividade (4). A Dr.a Rosenmayr afirmava que só o pagamento do IVA em relação aos seus honorários lhe permitia deduzir o IVA que ela teve de pagar na compra dos produtos necessários ao trabalho técnico-genético e na remuneração dos seus colaboradores. Por despacho de 29 de Maio de 1998, o Bezirksgericht pagou à perita a quantia de 84 653 ATS, a qual incluía os honorários e o IVA. Este montante foi pago à interessada com recurso aos fundos públicos. O revisor do Bundesschatz (Tesouro Federal) (5) interpôs recurso desta decisão para o Landesgericht St. Pölten, alegando que a isenção prevista no § 6, primeiro parágrafo, n._ 19, da UStG para as actividades médicas devia aplicar-se também aos honorários dos peritos médicos. Pedia em consequência que o despacho impugnado fosse alterado de modo a excluir o montante do IVA da quantia paga.

5 Neste contexto, o Landesgericht St. Pölten decidiu submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

«1) Deve interpretar-se o artigo 13._, A, n._ 1, alínea c), da Sexta Directiva do Conselho relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios (77/388/CEE) no sentido de que a isenção aí estabelecida também abrange os serviços médicos prestados por um médico na sua qualidade de perito judicial a pedido dum tribunal, em especial os exames genético-antropológicos realizados no âmbito dum processo de investigação de paternidade?

2) No caso de resposta afirmativa à primeira questão, a referida disposição da Directiva opõe-se à aplicação duma disposição do direito interno que permite (também) aos médicos, sob determinadas condições, renunciarem validamente a essa isenção?»

Quanto à admissibilidade

6 O Governo austríaco invoca, a título prévio, a natureza jurisdicional do órgão que está na origem do reenvio prejudicial. A este propósito, declara que, nos termos da legislação austríaca, a decisão no sentido de pagar os honorários de um perito judicial integra, em princípio, a decisão final da acção principal (no caso vertente, a acção de investigação de paternidade). A liquidação dos honorários deve assim obrigatoriamente preceder a decisão final, a qual se pronuncia tanto sobre o mérito da causa como sobre o pagamento das despesas e, em especial, das relativas a eventuais exames de peritagem. Daí decorre que, no presente caso, não há qualquer dúvida de que o órgão de reenvio pode ser considerado «jurisdicional» na acepção do artigo 177._ do Tratado CE (actual artigo 234._ CE) e de que o pedido do Landesgericht St. Pölten é, por conseguinte, admissível.

Quanto à primeira questão

7 Com a primeira questão, o juiz a quo pretende saber se a isenção prevista para as prestações médicas efectuadas no âmbito do exercício das actividades médicas e paramédicas, constante do artigo 13._, A, n._ 1, alínea c), da Sexta Directiva, inclui também as prestações efectuadas por um médico na sua qualidade de perito designado pelo órgão judicial, como, por exemplo, as que consistem em exames genéticos destinados a investigar a paternidade.

Argumentos das partes

8 Todos os governos intervenientes propuseram uma resposta afirmativa à primeira questão. O Governo austríaco observa que a prestação médica que esteve na origem do litígio na acção principal é de natureza diferente da das prestações médicas habituais, por dois motivos: por um lado, a perita efectuou a sua prestação a pedido do tribunal e não no âmbito de uma relação contratual, como é normalmente o caso; por outro lado, as operações que efectuou limitaram-se a determinar um dado técnico puro e simples, sem qualquer ligação com cuidados ou tratamentos médicos. Quanto ao primeiro aspecto, o Governo austríaco declara igualmente que o facto de a perita agir ao abrigo de uma missão que lhe foi cometida pela entidade judicial em nada altera a substância das suas prestações, não havendo assim justificação para que os exames periciais sejam qualificados de modo diferente do das prestações médicas habituais e para que lhes seja aplicado um regime fiscal distinto e menos favorável. No que respeita ao segundo aspecto, ou seja a ausência de ligação funcional entre os exames periciais e o tratamento de uma patologia, o Governo austríaco sustenta que a directiva deveria ser interpretada no sentido de os exames encomendados aos peritos pelos tribunais (por exemplo, os exames laboratoriais) e necessários para a solução do litígio deverem também ser considerados prestações médicas para efeitos da aplicação da isenção do IVA (6). O facto de essas prestações não estarem ligadas a tratamentos médicos não tem qualquer relevância nesse contexto específico.

9 Na mesma ordem de ideias, e sempre em relação com a primeira questão, o Governo neerlandês sustenta que as actividades médicas requeridas por um órgão jurisdicional deveriam ter o mesmo tratamento do que as prestações de cuidados médicos e, portanto, beneficiar também elas da isenção do IVA. A razão reside no facto de a noção de cuidados médicos abranger todas as operações efectuadas no âmbito do exercício da profissão médica (ou paramédica), incluindo assim os exames periciais, uma vez que a actividade exercida por um médico na qualidade de perito designado pela entidade judicial reveste também, tal como a que consiste na administração de cuidados médicos, um interesse geral e merece pois um tratamento fiscal mais favorável e, também, porque a actividade de perito judicial não pode ser qualificada de modo diverso da de perito designado pelas partes, pela única razão de ter origem na decisão de um juiz e não de um contrato. Este governo sublinha, por fim, que excluir a actividade de perito judicial do âmbito de aplicação da isenção relativa às prestações médicas, prevista no artigo 13._ da Sexta Directiva, afectaria a livre concorrência, isto é, o objectivo prosseguido pela aproximação de legislações em matéria de IVA.

10 O Governo do Reino Unido examina a primeira questão em dois aspectos. Antes do mais, pergunta se as investigações de paternidade estão abrangidas pela noção de «prestações de serviços de assistência», sendo da opinião de que esta noção deve cobrir qualquer intervenção que requeira competências médicas. E isto porque o artigo 13._ da Sexta Directiva define de modo muito lato as actividades exercidas no âmbito da profissão médica. Partindo desta premissa, afirma que tal noção cobre não só os cuidados prestados aos doentes, mas também todas as actividades nos sectores que não se encontram estritamente ligados à protecção ou à recuperação da saúde, como a preparação de relatórios sobre o estado geral da saúde dos doentes, o controlo dos nascimentos, a esterilização ou a cirurgia plástica. O elemento comum destas actividades estaria no facto de todas elas pressuporem conhecimentos e competências médicas especiais. O Governo do Reino Unido acrescenta ainda que a referência à finalidade das prestações para identificar as que não estão abrangidas pela isenção constitui um critério ambíguo com uma gestão de difícil aplicação (7). Uma pessoa pode ser sujeita ao mesmo exame de sangue tanto se o objectivo for o de detectar uma doença, como o de averiguar a paternidade, podendo a prestação médica ser idêntica em ambos os casos e diferente o regime fiscal aplicável.

Este governo sustenta também que, se é verdade que as isenções previstas na Sexta Directiva devem ser interpretadas de modo restritivo, uma vez que consagram excepções à aplicação generalizada do IVA, é igualmente verdade que essas excepções não podem ser interpretadas de maneira a limitar o seu alcance, a menos, obviamente, que o texto forneça uma indicação nesse sentido.

Também alega, em apoio da tese da aplicação generalizada da isenção, que qualquer outra interpretação seria igualmente incompatível com a necessidade de aplicar de modo correcto e simples as isenções fiscais. Esta exigência consta da parte introdutória do n._ 1 do artigo 13._, A, da directiva, onde se afirma expressamente que os Estados-Membros isentarão «nas condições por elas fixadas com o fim de assegurar a aplicação correcta e simples das isenções...». Com efeito, não seria compatível com o objectivo de simplicidade que os médicos fossem obrigados a aplicar um regime de IVA diferente consoante as actividades que são chamados a desempenhar no exercício da sua profissão.

Quanto ao segundo ponto examinado pelo Governo do Reino Unido, ou seja, a importância que deve ser atribuída ao facto de a missão de efectuar exames médico-legais ser confiada por uma autoridade pública, este governo sustenta que a isenção cobre todas as actividades médicas, independentemente da forma que assumam, e que, dado que a qualidade pública ou privada daquele que encomenda o exame não tem qualquer incidência sobre a natureza da actividade, essa qualidade não pode constituir um critério para identificar as excepções à aplicação generalizada da isenção.

11 Contrariamente aos Estados-Membros intervenientes, a Comissão sustenta que a primeira questão deve merecer uma resposta negativa. Chega a essa conclusão partindo da ideia de que a isenção controvertida diz exclusivamente respeito às prestações médicas que consistem na administração de cuidados médicos. Esta categoria não inclui os exames exclusivamente destinados a investigar a paternidade, o que implica que a isenção do IVA não se pode aplicar a essa actividade.

A Comissão observa, de seguida, que as actividades exercidas pelo médico encarregado de um exame médico-legal não são diferentes das dos peritos de outras disciplinas (contabilistas, engenheiros ou psicólogos), as quais não estão seguramente isentas de IVA. Noutras palavras, a ratio que justifica submeter estas últimas actividades ao IVA não pode deixar de ser válida para aplicar o IVA à actividade de peritagem médica.

Quanto à apreciação do alcance da isenção, não pode ser esquecido, no entender da Comissão, o facto de a Sexta Directiva se inspirar no princípio da sujeição generalizada ao IVA de todas as entregas de bens e prestações de serviços efectuadas a título oneroso (8). A circunstância de a actividade do médico, enquanto perito designado pelo juiz, corresponder a um interesse geral, à semelhança da prestação de cuidados médicos, não pode levar a aplicar a isenção à actividade de peritagem, não sendo idêntico o interesse geral presente nos dois casos, dado que, no primeiro, está ligado aos argumentos das partes num diferendo e, no segundo, à protecção da saúde das pessoas.

Por fim, a Comissão sublinha que as isenções previstas na directiva constituem excepções ao princípio geral por ela consagrado no artigo 2._, só podendo pois ser interpretadas de modo restritivo.

Quanto ao mérito

12 Para responder à questão em apreço, convém averiguar em primeiro lugar se os exames genéticos cabem na noção de «prestações de serviços de assistência efectuadas no âmbito do exercício das actividades médicas e paramédicas», constante do artigo 13._, A, n._ 1, alínea c), da Sexta Directiva. Só em caso de resposta afirmativa a esta pergunta é que se poderá ver se esta isenção deve aplicar-se também quando o perito, como no caso vertente, efectuou a sua prestação profissional ao abrigo de uma missão cometida pela entidade judicial.

13 Quanto ao primeiro aspecto, ou seja, a inclusão dos exames genéticos na noção de prestação de serviços de assistência constante da Sexta Directiva, recordo que esta última contém, no artigo 13._, uma «lista comum de isenções, a fim de que os recursos próprios sejam cobrados de modo uniforme em todos os Estados-Membros» (9). A isenção agora em causa faz parte das que se destinam a tornar menos onerosas certas actividades de interesse geral (10). Trata-se de actividades específicas, destinadas a prosseguir fins socialmente úteis (serviços postais, educação da infância, ensino escolar, assistência social, etc.), de actividades exercidas por organismos com objectivos de natureza política, sindical ou religiosa, bem como de prestações efectuadas por médicos ou paramédicos, como os mecânicos dentistas (11).

14 O Tribunal de Justiça teve a oportunidade de se debruçar, por várias vezes, sobre a isenção em causa. Posteriormente aos acórdãos Stichting (12), afirmou repetidamente, de modo geral, que «os termos utilizados para designar as isenções visadas no artigo 13._ da Sexta Directiva devem ser interpretados restritivamente dado que constituem derrogações ao princípio geral de acordo com o qual o imposto sobre o volume de negócios é cobrado sobre qualquer prestação de serviços efectuada a título oneroso por um sujeito passivo»; por outro lado, esclareceu que não pode ser dado um alcance extensivo às isenções na falta de «elementos interpretativos» que permitam ir para além da letra das disposições que os prevêem (13).

Além disso, nestes dois acórdãos, o Tribunal de Justiça examinou precisamente a isenção prevista no artigo 13._, A, n._ 1, alínea c), em causa no presente processo, tendo-lhe definido o conteúdo e alcance. No acórdão Comissão/Itália (14), afirmou que a isenção das prestações de serviços de assistência deve ser entendida no sentido de só abranger os «casos em que esses serviços são prestados `a pessoas', restrição que exclui, sem qualquer ambiguidade, a assistência prestada aos animais do âmbito de aplicação do artigo 13._, parte A, n._ 1, alínea c)». No acórdão Comissão/Reino Unido, o Tribunal de Justiça afirmou também que resulta da colocação desta disposição «imediatamente a seguir à das prestações hospitalares» [alínea b)], «bem como do seu contexto, que se trata de prestações efectuadas fora de organismos hospitalares e no quadro de uma relação de confiança entre o paciente e o prestador de serviços» (15). Nestas circunstâncias, o Tribunal de Justiça afirmou que a isenção das prestações médicas da alínea c) não cobre, à parte os pequenos fornecimentos estritamente necessários no momento da prestação dos serviços, a entrega de medicamentos e outros bens, material e economicamente dissociável da prestação do serviço, como óculos de correcção prescritos pelo médico ou por outras pessoas autorizadas (16).

15 Resulta antes de mais da jurisprudência referida que é possível limitar a isenção respeitante às prestações de assistência aos serviços fornecidos por médicos, à excepção das entregas de medicamentos ou outros produtos (a menos que se trate de entregas indissociáveis da prestação). Assim sendo, a resposta à primeira questão requer que se determine se, como sustenta a Comissão, é preciso isentar também as prestações médicas que não estão ligadas à prevenção, ao diagnóstico ou ao tratamento de uma patologia. Estão incluídos nesta categoria os exames genéticos unicamente destinados a investigar a paternidade, aos quais faz expressamente referência à primeira questão do juiz austríaco.

16 A redacção da disposição deixa entender que a isenção não abrange esta última categoria de prestações. À excepção da versão italiana que fala de modo geral de «prestações médicas», todas as outras versões, apesar de utilizarem expressões diferentes, referem-se apenas de maneira bastante explícita às prestações respeitantes à saúde das pessoas. A versão alemã, que fala de «Heilbehandlungen» (17) (tratamentos terapêuticos), e a versão francesa, que utiliza a expressão «prestations de soins à la personne», recorrem expressamente ao conceito de assistência médica à pessoa. Encontram-se expressões de sentido análogo nas versões inglesa, dinamarquesa, neerlandesa, grega, finlandesa, sueca (18), espanhola e portuguesa (19). A versão italiana é diferente de todas as outras, pois utiliza uma formulação genérica («prestazioni mediche»), a qual, precisamente pelo facto de ser genérica, não obsta a uma interpretação restritiva da isenção (20).

Se, por outro lado, tivermos em conta a ratio da isenção do IVA em relação às prestações médicas, a referência aos cuidados da pessoa constante da disposição em causa denota claramente que essa isenção encontra justificação na necessidade de reduzir os custos médicos e de favorecer o acesso à protecção da saúde. Se outro fosse o raciocínio, ou dito de modo diverso, se se considerasse a isenção aplicável a qualquer actividade profissional exercida por médicos, alargar-se-ia o âmbito de aplicação da disposição em benefício de actividades sem ligação com a saúde das pessoas e dar-se-ia sem razão o mesmo tratamento a situações e interesses muito diferentes. Como observa justamente o Governo do Reino Unido, o interesse de assegurar a protecção da saúde das pessoas é uma coisa, o de assegurar a assistência técnica dada por médicos a um órgão jurisdicional no âmbito de um processo específico é outra. Olhando melhor, esta última actividade não difere dos pareceres técnicos dados por profissionais que actuam em domínios que não são os domínios médicos, como os engenheiros, contabilistas e psicólogos, sendo pois injustificável que se aplique a isenção à actividade de peritos médicos e não à actividade análoga de outros profissionais. Acresce que as isenções constituem excepções à regra da aplicação generalizada do imposto e devem, portanto, ser interpretadas de modo restritivo.

Por outro lado, diga-se que a jurisprudência do Tribunal de Justiça fornece uma indicação precisa em favor de uma interpretação restritiva da isenção. No acórdão, já referido, Comissão/Reino Unido, no qual foi examinado o alcance da isenção prevista no artigo 13._, A, n._ 1, alínea c), o Tribunal de Justiça afirmou (21) que as prestações isentas são as que são efectuadas «no quadro de uma relação de confiança entre o paciente e o prestador de serviços», dando assim a entender que outras prestações profissionais reservadas aos médicos, como os exames médico-legais, não estão abrangidas pela isenção, na medida em que ocorrem fora da dita relação e não implicam a prestação de cuidados às pessoas.

Não creio poder-se chegar a conclusão diferente, considerando que a interpretação restritiva da isenção, por estar essencialmente centrada na função de cuidados da prestação médica, exige que, de modo casuístico, a natureza da prestação seja determinada para efeitos da aplicação do IVA. É verdade que, tratando-se do domínio fiscal, a existência de critérios claros e objectivos para a aplicação ou não do imposto deve ser tomada em consideração e é igualmente verdade que esta exigência encontra confirmação na parte introdutória do artigo 13._, A, n._ 1, a qual sublinha a necessidade de uma «aplicação correcta e simples das isenções». Contudo, não nos parece que a interpretação restritiva da isenção traga dificuldades efectivas, desde que se considere que os cuidados às pessoas constituem um critério para distinguir as prestações médicas isentas das outras prestações igualmente fornecidas por médicos no exercício da sua profissão. Em todo o caso, esta alegada dificuldade não poderia levar a estender a isenção para além dos limites em que o legislador comunitário a quis colocar; recorde-se que o princípio geral subjacente à Sexta Directiva é o da aplicação generalizada do IVA e que este princípio deve ser respeitado, sempre que os interessados não provarem a existência de razões especiais justificativas de uma interpretação lata da isenção. A disposição que a consagra, repita-se, tem uma natureza excepcional e, portanto, na falta de indícios explícitos em sentido contrário, deve ser interpretada de modo restritivo.

No que diz respeito à parte da primeira questão que se refere especificamente à qualidade de perito judicial do profissional que efectua a prestação médica, o que deveria implicar a aplicação da isenção, dado estar excluído que os exames genéticos de investigação de paternidade, expressamente mencionados, estejam abrangidos pela categoria de cuidados às pessoas, torna-se desnecessário tomar posição sobre a eventual relevância da natureza pública do órgão que confia a missão de peritagem para efeitos do âmbito de aplicação da isenção. Em todo o caso, considero que esse elemento não pode ter qualquer influência para a avaliação do alcance da isenção; com efeito, só a natureza e o objectivo da prestação são decisivos, como já foi dito.

17 Em resumo, considero que a isenção prevista no artigo 13._, A, n._ 1, alínea c), da Sexta Directiva deve ser interpretada no sentido de que a isenção do IVA aí consagrada não abrange as prestações médicas, que consistem em exames genéticos, fornecidas por um médico na sua qualidade de perito encarregado pelo órgão jurisdicional dos exames necessários à investigação da paternidade.

Quanto à segunda questão

18 Recordo que, com a segunda questão, o juiz austríaco pretende saber se o artigo 13._, A, n._ 1, alínea c), da Sexta Directiva se opõe à aplicação duma disposição do direito interno que permite aos médicos renunciarem à isenção prevista nesta disposição.

Antes de mais, diga-se que, tendo a primeira questão merecido uma resposta negativa, só tomo posição quanto à segunda a título subsidiário, ou seja só para o caso de o Tribunal de Justiça vier a dar uma resposta afirmativa a essa questão.

Argumentos das partes

19 O Governo austríaco sustenta que a segunda questão não tem objecto e é pois inadmissível, dado que uma norma nacional, ou seja a circular ministerial de 9 de Janeiro de 1998, havia previsto a isenção de IVA para os exames periciais genéticos, incluindo os destinados à investigação de paternidade (22), o que implica que actualmente não há possibilidade de opção entre a isenção e a tributação. Este governo salienta igualmente que a faculdade de opção também não está prevista nos textos comunitários relevantes, afirmação partilhada pelos Governos neerlandês e britânico, bem como pela Comissão.

O Governo do Reino Unido alega que as isenções previstas na directiva são obrigatórias em todos os Estados-Membros e que apenas disposições comunitárias específicas, inexistentes no caso em apreço, poderiam autorizar derrogações e, mais precisamente, permitir a renúncia à isenção referida no artigo 13._, A, n._ 1, alínea c). Este governo acrescenta que, no presente processo, o facto de se permitir aos Estados-Membros escolherem (ou permitir aos interessados optarem) de aplicar ou não a tributação é incompatível com a finalidade da Sexta Directiva, dado que esta tem, entre outros objectivos, o de evitar que os consumidores estejam sujeitos ao IVA em relação a serviços isentos.

Quanto à admissibilidade

20 A questão prévia da inadmissibilidade suscitada pelo Governo austríaco, com base na falta de objecto da questão, não tem fundamento. Com efeito, sabemos que cabe ao juiz a quo apreciar o alcance das disposições nacionais a aplicar e avaliar, à luz das especificidades de cada processo, a necessidade de ser feito um pedido prejudicial para que possa proferir a sua sentença. Daí decorre não se poder afirmar que certas questões prejudiciais ficam sem objecto pelo simples facto de uma disposição nacional ser substituída por outra (23).

Quanto ao mérito

21 No que diz respeito ao mérito da questão, entendo que as isenções do artigo 13._, A, têm um carácter vinculativo, no sentido de que os Estados-Membros são obrigados a consagrá-las na respectiva ordem jurídica. A redacção da disposição corrobora esta interpretação. Na parte inicial, prevê que: «... os Estados-Membros isentarão, nas condições por eles fixados com o fim de assegurar a aplicação correcta e simples das isenções a seguir enunciadas e de evitar qualquer possível fraude, evasão e abuso...». Se atendermos de seguida à finalidade da disposição, encontramos uma outra confirmação desta interpretação. Com efeito, é manifesto que, se se reconhecer a cada Estado-Membro a faculdade de introduzir de modo totalmente autónomo derrogações às isenções, a contribuição de cada Estado-Membro para os recursos comunitários poderia, por esse facto, ficar injustificadamente desequilibrada. Nessa perspectiva, é significativo que o décimo primeiro considerando da Sexta Directiva precise que «é conveniente estabelecer uma lista comum de isenções, a fim de que os recursos próprios sejam cobrados de modo uniforme em todos os Estados-Membros». As isenções em causa não podem assim ser objecto de derrogações, a menos que o legislador comunitário preveja expressamente essa possibilidade.

22 Convém pois responder à segunda questão no sentido de que o carácter vinculativo das isenções se opõe à aplicação duma disposição do direito interno que permite aos médicos, sob determinadas condições, renunciarem à isenção prevista na disposição em causa.

Conclusões

23 Tendo em conta o que precede, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões colocadas pelo Landesgericht St. Pölten:

«1) O artigo 13._, A, n._ 1, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que a isenção aí consagrada não abrange os exames genéticos efectuados por um médico na sua qualidade de perito designado por uma entidade judicial no âmbito de um processo de investigação de paternidade.

2) A isenção prevista na referida disposição opõe-se à aplicação duma disposição do direito interno que permite aos médicos, sob determinadas condições, renunciarem à isenção prevista na disposição referida em 1).»

(1) - JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54.

(2) - BGBl. n._ 633.

(3) - O montante dos honorários dos peritos encontra-se regulado na legislação austríaca pelo disposto na Gebührenanspruchsgesetz de 1975.

(4) - A Dr.a Rosenmayr afirmou que, se, na circular de 9 de Janeiro de 1998, o Ministério Federal das Finanças havia defendido que, em princípio, toda a actividade de pareceres médicos deve considerar-se abrangida pelo § 6, primeiro parágrafo, n._ 19, da UStG de 1994, isso não significa que os peritos médicos não possam optar voluntariamente pelo pagamento do IVA e pela possibilidade conexa de deduzir os impostos pagos a montante. Para tanto, invoca o disposto no § 6, primeiro parágrafo, n._ 27, e terceiro parágrafo da UStG de 1994.

(5) - Os revisores têm competência para interpor recurso dos despachos de liquidação de honorários proferidos pelos tribunais.

(6) - A atitude das autoridades austríacas sobre esta questão tem vindo a evoluir. Com efeito, uma circular do Ministério Federal das Finanças, de 9 de Janeiro de 1998, excluiu precisamente os exames periciais genéticos das actividades médicas isentas de IVA, mas posteriormente uma segunda circular veio alterar a anterior e declarou que esta actividade específica também estava incluída nas isentas, nos termos do § 6, primeiro parágrafo, n._ 19, da UStG.

(7) - O Governo do Reino Unido também salientou, durante a fase oral, que, se o legislador comunitário tivesse efectivamente pretendido delimitar as actividades isentas em razão da finalidade, tê-lo-ia expressamente previsto. A directiva optou por uma solução deste tipo para as actividades referidas no artigo 13._, A, n._ 1, alíneas k) e p), da Sexta Directiva e, mais concretamente, para a colocação de pessoal à disposição por instituições religiosas ou filosóficas para fins de assistência social ou de segurança social, de protecção da infância, de educação e de assistência espiritual.

(8) - V. artigo 2._, n._ 1, da directiva.

(9) - Décimo primeiro considerando da Sexta Directiva. O teor deste considerando deixa entender que se quer evitar que o âmbito de aplicação das isenções varie de Estado-Membro para Estado-Membro.

(10) - Com efeito, o artigo 13._, A, refere-se a «Isenções em benefício de certas actividades de interesse geral.»

(11) - Também estão isentas as entregas de órgãos, sangue e leite humanos [artigo 13._, A, n._ 1, alínea d)].

(12) - Acórdão de 15 de Junho de 1989 (348/87, Colect., p. 1737, n._ 13). V. também o acórdão de 5 de Junho de 1997, SDC (C-2/95, Colect., p. I-3017, n.os 20 e 21).

(13) - V. o acórdão de 11 de Julho de 1985, Comissão/Alemanha (107/84, Recueil, p. 2655, n._ 20).

(14) - Acórdão de 24 de Maio de 1988 (122/87, Colect., p. 2685, n._ 9).

(15) - Acórdão de 23 de Fevereiro de 1988, Comissão/Reino Unido (353/85, Colect., p. 817, n._ 33).

(16) - Acórdão Comissão/Reino Unido, já referido, n.os 33, 34 e 35.

(17) - Mais concretamente «Heilbehandlungen im Bereich der Humanmedizin» (tratamentos terapêuticos no domínio da medicina humana).

(18) - A versão inglesa tem a seguinte redacção: «the provision of medical care in the exercice of the medical and paramedical professions as defined by the Member State concerned». A versão dinamarquesa emprega a expressão «behandling af personer», a versão neerlandesa, «gezondheidskundige verzorging van de mens», a versão grega, «iatrikis perithalpsios», a versão finlandesa, «lääketieteellisen hoidon antaminen henkilölle» e a versão sueca, «Sjukvårdande behandling».

(19) - Respectivamente, «asistencia a personas fisicas» e «prestações de serviços de assistência».

(20) - Acórdãos de 13 de Julho de 1989, Henriksen (173/88, Colect., p. 2763, n.os 10 e 11) e SDC, já referido (n._ 22). Neste último acórdão, esta abordagem foi seguida na interpretação do artigo 13._, B, alínea d), n._ 3, da Sexta Directiva que prevê a isenção de IVA para diferentes operações bancárias. De modo mais genérico, no acórdão de 7 de Dezembro de 1995, Rockfon (C-449/93, p. I-4291, n._ 28), o Tribunal de Justiça, recordando o acórdão de 27 de Outubro de 1977, Bouchereau (30/77, Colect., p. 715, n._ 14), afirma que, em caso de divergência entre diferentes versões linguísticas, «a disposição em causa deve ser interpretada em função da economia geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento».

(21) - V. n._ 33.

(22) - Esta circular teria anulado uma circular anterior de 4 de Dezembro de 1996, a qual havia excluído os exames genéticos das actividades isentas.

(23) - Acórdão de 30 de Abril de 1996, CIA Security International (C-194/94, Colect., p. I-2201, n._ 20).