61996C0099

Conclusões do advogado-geral Léger apresentadas em 8 de Outubro de 1997. - Hans-Hermann Mietz contra Intership Yachting Sneek BV. - Pedido de decisão prejudicial: Bundesgerichtshof - Alemanha. - Convenção de Bruxelas - Noção de medidas provisórias - Construção e fornecimento de um iate a motor. - Processo C-99/96.

Colectânea da Jurisprudência 1999 página I-02277


Conclusões do Advogado-Geral


1 O Bundesgerichtshof coloca ao Tribunal de Justiça uma questão a título prejudicial, ao abrigo do artigo 3._ do protocolo de 3 de Junho de 1971 (1), relativa à interpretação dos artigos 13._, primeiro parágrafo, pontos 1 e 3, 24._, 28._, segundo parágrafo, e 34._, segundo parágrafo, da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (2), alterada pelas convenções de adesão de 1978 (3) e de 1982 (4) (a seguir «convenção» ou «Convenção de Bruxelas»).

Enquadramento jurídico: as disposições pertinentes da Convenção de Bruxelas

2 Recorde-se que a Convenção de Bruxelas estabelece um sistema unificado de determinação das competências judiciárias (título II), acompanhado por um mecanismo simplificado de reconhecimento e execução das decisões que emanem das autoridades judiciais dos Estados contratantes (título III), proferidas no âmbito das matérias abrangidas pela convenção (título I).

3 É sabido que, atribuindo o artigo 2._, primeiro parágrafo, uma competência genérica de princípio aos tribunais do Estado do domicílio do requerido, é só por derrogação a este princípio geral, nos termos taxativamente enumerados das secções 2 a 6 do título II, que o requerido pode, em razão de um vínculo de proximidade entre um litígio e determinado tribunal (secção 2: artigos 5._ a 6._-A), ou deve, em caso de competência exclusiva (secção 5: artigo 16._) ou de extensão de competência (secção 6: artigos 17._ e 18._), ser demandado, eventualmente, perante os tribunais de outro Estado contratante.

4 As disposições contidas nas secções 3 e 4 do título II são inseridas como sistemas de competência independentes do estabelecido pelo artigo 2._ e pelas suas excepções (5). Trata-se de disposições protectoras das partes consideradas débeis, que determinam a competência, respectivamente, em matéria de seguros e de contratos celebrados pelos consumidores.

5 O benefício das disposições protectoras previstas na secção 4 do título II está sujeito à verificação de duas condições cumulativas. Por um lado, quem as invoca deve ser um «consumidor» na acepção do artigo 13._, primeiro parágrafo, ou seja, uma pessoa agindo «para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional». Por outro lado, o contrato celebrado pelo consumidor deve encontrar-se entre os enumerados nos pontos 1 a 3 desta disposição. Prevêem-se as seguintes hipóteses:

«1) quando se trate de venda a prestações de bens móveis corpóreos;

2) quando se trate de empréstimo a prestações ou de outra operação de crédito relacionados com o financiamento da venda de tais bens;

3) relativamente a qualquer outro contrato que tenha por objecto a prestação de serviços ou o fornecimento de bens móveis corpóreos se:

a) a celebração do contrato tiver sido precedida no Estado do domicílio do consumidor de uma proposta que lhe tenha sido especialmente dirigida ou de anúncio publicitário, e

b) o consumidor tiver praticado nesse Estado os actos necessários para a celebração do contrato».

6 Verificando-se estas condições, nos termos do artigo 14._, segundo parágrafo, o consumidor só pode ser demandado perante os tribunais do Estado contratante em cujo território estiver domiciliado.

7 No âmbito da exposição das pertinentes disposições da convenção em matéria de competência, refira-se também o artigo 18._, que permite a extensão da competência resultante da mera comparência do requerido. Este artigo tem a seguinte redacção:

«Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições da presente convenção, é competente o tribunal de um Estado contratante perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 16._»

O princípio é, portanto, o de que a comparência do requerido tem um efeito atributivo de competência: um tribunal em princípio incompetente torna-se competente se o requerido comparecer.

Em contrapartida, esta disposição não se aplica em duas hipóteses. Se o litígio disser respeito a uma matéria estreitamente ligada ao território de um Estado contratante, tal como os direitos reais imobiliários, a competência exclusiva prevista no artigo 16._ impede o funcionamento do artigo 18._ Além disso, a comparência do requerido não comporta efeitos atributivos de competência se o seu objectivo for arguir uma excepção de incompetência do tribunal perante o qual pende o litígio. É esse caso se o requerido comparecer apenas para contestar a competência do juiz perante o qual pende o litígio, sem abordar o mérito. É também esse o caso se o requerido comparecer para contestar quer a competência quer o mérito (6). Nesta última hipótese, a contestação quanto ao mérito deve, porém, ser apresentada a título subsidiário para impedir o funcionamento do artigo 18._ (7).

8 A última disposição do título II susceptível de ter interesse para o caso em apreço é o artigo 24._, que autoriza um tribunal, que não é competente para conhecer do mérito, a tomar «medidas provisórias ou cautelares», no âmbito das matérias abrangidas pela convenção, se o requerente a ele decidir dirigir-se, em vez de ao tribunal de outro Estado contratante, competente quanto ao mérito. Este artigo tem a seguinte redacção:

«As medidas provisórias ou cautelares previstas na lei de um Estado contratante podem ser requeridas às autoridades judiciais desse Estado, mesmo que, por força da presente convenção, um tribunal de outro Estado contratante seja competente para conhecer da questão de fundo.»

9 O título III, relativo ao reconhecimento e à execução das decisões, visa assegurar a «livre circulação das decisões» no mercado comum (8). Em conformidade com este objectivo, os artigos 31._ e seguintes instituem um processo de execução sumária, simplificada relativamente aos processos comuns de exequatur, que visa limitar os requisitos a que pode ser sujeita, num estado contratante, a execução das decisões proferidas noutro Estado contratante.

10 Nesta lógica, a primeira fase do processo não é contraditória (artigo 34._, primeiro parágrafo).

11 Além disso, o princípio é o de que o exequatur é concedido sem que a autoridade requerida possa controlar a competência do tribunal de origem (artigo 28._, terceiro parágrafo) (9).

12 Só a título excepcional é que tal controlo é feito, nomeadamente quando estejam em causa certas regras de competência. É assim que, por força do artigo 34._, segundo parágrafo, «O requerimento só pode ser indeferido por qualquer dos motivos previstos nos artigos 27._ e 28._»

Em especial, em aplicação do artigo 28._, primeiro parágrafo, o exequatur não pode ser concedido às decisões proferidas em desrespeito das disposições relativas à competência em matéria de seguros (secção 3: artigos 7._ a 12._-A), ou em matéria de contratos celebrados pelos consumidores (secção 4: artigos 13._ a 15._), ou ainda das regras de competência exclusiva do artigo 16._ (secção 5).

No âmbito desta apreciação das competências referidas no artigo 28._, primeiro parágrafo, «a autoridade requerida estará vinculada às decisões sobre a matéria de facto com base nas quais o tribunal do Estado de origem tiver fundamentado a sua competência» (artigo 28._, segundo parágrafo).

13 Enfim, nos termos do artigo 34._, terceiro parágrafo, «as decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito».

Enquadramento factual e processual

14 O litígio no processo principal respeita à execução de um contrato celebrado entre a Intership Yachting Sneek BV, credora, sociedade de direito neerlandês, com sede em Sneek (Países Baixos), e H.-H. Mietz, devedor, residente em Lüchow (Alemanha), onde explora uma empresa de construção e um estabelecimento de materiais de construção.

15 As partes acordaram em que o devedor se obrigava a comprar um barco Intership modelo 1150 G. Tinha sido estabelecido que o barco seria objecto de modificações substanciais (10) antes da sua entrega final. O montante total da transacção, de 250 000 DM, era pagável em cinco prestações sucessivas, todas devidas antes da dita entrega (11). Este acordo foi estabelecido entre as partes num documento escrito, denominado «contrato de compra e venda», assinado em Sneek (Países Baixos).

16 Não tendo o devedor pago certas prestações, a credora obteve do presidente do Arrondissementsrechtbank de Leeuwarden, órgão jurisdicional neerlandês competente em matéria de medidas provisórias e cautelares, na sequência de um processo contraditório, de «kort geding» (12), uma decisão provisoriamente executória, de 12 de Maio de 1993, que ordenava o pagamento de uma parte dos seus créditos (ou seja, uma soma que representava cerca de dois terços do montante total devido).

17 Tendo o exequatur desta decisão sido concedido na Alemanha pelo Landgericht de Lüneburg, o devedor interpôs recurso no Oberlandesgericht.

18 Para apoiar o seu recurso, contestou, pela primeira vez (13), a competência do tribunal de origem, neerlandês, que teria decidido em desrespeito das disposições protectoras dos consumidores, previstas pelos artigos 13._ e 14._ da convenção, que atribuem competência aos tribunais, alemães, do seu domicílio. Como tal, o tribunal do exequatur, constatando, no momento do controlo da competência do tribunal de origem, a violação destas disposições, não podia, nos termos do artigo 34._, segundo parágrafo, que remete para o artigo 28._, primeiro parágrafo, conceder o exequatur requerido na Alemanha.

19 Para beneficiar das disposições previstas na secção 4 do título II, H.-H. Mietz invoca as duas seguintes séries de argumentos.

Por um lado, o barco encomendado destinar-se-ia apenas a uso estritamente privado, pelo que estaria demonstrada a sua qualidade de «consumidor», na acepção do artigo 13._, primeiro parágrafo.

Por outro lado, a versão escrita em Sneek (Países Baixos) do acordo celebrado teria sido uma mera formalidade, tendo o contrato sido celebrado oralmente, na Alemanha, antes da sua assinatura nos Países Baixos (14). Com efeito, teria sido por ocasião de uma visita ao stand da credora na Bootsmesse (feira da navegação de recreio) de Düsseldorf (Alemanha) que o devedor teria manifestado o seu desejo de comprar o barco exposto; não podendo este ser comprado, teria sido acordado entre as partes que seria fabricado um barco do mesmo modelo para o devedor, com as modificações que este lhe pretendesse introduzir.

Esta segunda série de argumentos parece tender demonstrar que o contrato em litígio é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3, da convenção.

20 O Oberlandesgericht negou provimento ao recurso e, consequentemente, recusou-se a não conceder o exequatur à decisão neerlandesa por desrespeito das regras de competência protectoras dos consumidores previstas na secção 4 do título II.

21 H.-H. Mietz interpôs recurso no Bundesgerichtshof.

As questões prejudiciais

22 Este órgão jurisdicional pormenoriza no seu despacho de reenvio o objecto e o conteúdo das suas interrogações, fonte das questões prejudiciais que apresenta ao Tribunal de Justiça. Trata-se de saber se existe um motivo que justifique a recusa de concessão do exequatur à decisão do órgão jurisdicional neerlandês de origem.

23 As duas primeiras questões exploram a tese sugerida pelo devedor, no sentido de determinar se a situação que lhe é submetido é susceptível de beneficiar de uma protecção especial, ou por o acordo em litígio constituir uma «venda a prestações de bens móveis corpóreos» celebrada por um consumidor (artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 1), ou por se tratar de um «contrato que tenha por objecto a prestação de serviços ou o fornecimento de bens móveis corpóreos» celebrado por um consumidor (artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3).

24 No âmbito do exame do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3, o órgão jurisdicional de reenvio suscita a questão de saber se pode ter em conta elementos, fornecidos pelo devedor, que não constam da decisão proferida pelo órgão jurisdicional de origem. Trata-se dos elementos de facto apresentados perante o Oberlandesgericht, no sentido de demonstrar que se verificam as condições exigidas nos termos das alíneas a) e b) desta disposição (correspondentes, no caso em apreço, ao facto de o contrato ter sido celebrado oralmente aquando da Bootsmesse de Düsseldorf). O Bundesgerichtshof observa que, em conformidade com o artigo 28._, segundo parágrafo, aquando da apreciação da competência do tribunal do Estado de origem à luz das disposições da secção 4 do título II, o tribunal do Estado requerido «estará vinculado às decisões sobre a matéria de facto com base nas quais o tribunal do Estado de origem tiver fundamentado a sua competência». Na medida em que o tribunal neerlandês não fundamentou a sua competência em qualquer matéria de facto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre a questão de saber se a redacção do artigo 28._, segundo parágrafo, o impede de ter em conta esses novos elementos.

Estas considerações estão na origem da terceira questão (15).

25 O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que, se as respostas a estas três primeiras questões devessem levar ao afastamento da aplicação do artigo 28._, primeiro parágrafo, não pode proceder ao controlo da competência do tribunal de origem e não pode, consequentemente, opor-se ao exequatur da decisão em litígio. Deverá, portanto, negar provimento ao recurso (16).

26 Razão da sua quarta questão, para a qual só é pedida uma resposta no caso de o artigo 28._, primeiro parágrafo, ser aplicável. Neste caso, se o exequatur não podia, em princípio, ser concedido devido ao desrespeito pelo tribunal de origem das normas da secção 4 do título II, o órgão jurisdicional de reenvio propõe que a questão do exequatur seja abordada noutra perspectiva, a saber, a do artigo 24._ da convenção. Pergunta então se uma medida proferida no termo de um processo de «kort geding» é uma medida «provisória ou cautelar», na acepção do artigo 24._ Se assim for, o Bundesgerichtshof considera que «os artigos 13._ e 14._ da Convenção de Bruxelas não obstam, à partida, ao reconhecimento» (17).

27 O teor das quatro questões apresentadas ao Tribunal de Justiça é o seguinte:

«1) Verifica-se uma compra e venda de coisa móvel com pagamento a prestações, na acepção do primeiro parágrafo, ponto 1, do artigo 13._ da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (a seguir `Convenção de Bruxelas'), se, num documento apresentado por uma das partes como `contrato de compra e venda', uma das partes assume a obrigação de produzir uma embarcação de recreio motorizada de certo tipo com determinadas alterações e entregá-la à outra parte, tendo esta que pagar em contrapartida 250 000 DM em cinco prestações?

Caso a resposta à primeira questão seja negativa:

2) O contrato referido na primeira questão constitui um contrato que tem por objecto o fornecimento de bens móveis na acepção do primeiro parágrafo, ponto 3, do artigo 13._ da Convenção de Bruxelas?

3) Deverão, nos termos do segundo parágrafo do artigo 34._, em conjugação com o segundo parágrafo do artigo 28._, da Convenção de Bruxelas, ser tomados em consideração novos factos alegados pelo devedor para fundamentar a afirmação de que o juiz do Estado de origem desrespeitou o preceituado na secção 4 do título II da referida convenção?

Caso seja dada resposta afirmativa à primeira ou à segunda e à terceira questão:

4) Conta-se entre as medidas provisórias referidas no artigo 24._ da convenção de Bruxelas a possibilidade, prevista nos artigos 289._ a 297._ do Código de Processo Civil neerlandês, de obter uma decisão de condenação no pagamento da contraprestação contratual através de um pedido de medidas provisórias urgentes em processo sumário?»

Resposta às questões

Tomada de posição sobre a sugestão de abordar previamente o artigo 18._ da convenção

28 Recordei que, no sistema da convenção, o artigo 18._ prevê a extensão voluntária, ou tácita, da competência. Baseando-se nesta disposição, a Comissão alegou, a título liminar (18), que as questões prejudiciais não teriam objecto se o devedor tivesse comparecido sem qualquer reserva perante o tribunal de origem. O Governo do Reino Unido avançou, substancialmente, a mesma hipótese (19).

29 Parece-me, todavia, que há uma série de argumentos que obstam a que o Tribunal de Justiça adopte a tese sugerida.

30 Em primeiro lugar, os elementos de que o Tribunal dispõe, no caso em apreço, são insuficientes, na minha opinião, para permitir formar uma opinião sobre a aplicabilidade do artigo 18._

Esta disposição só permite a extensão da competência se a comparência do requerido visar apenas contestar o mérito da causa (20). Ora, não tendo as partes intervindo no processo perante o Tribunal de Justiça, não há qualquer certeza a este respeito. Com efeito, da leitura do despacho de reenvio só se podem retirar vagas suposições. Da afirmação do Bundesgerichtshof segundo a qual o devedor só contestou a competência do tribunal de origem na fase do recurso do exequatur (21), poder-se-ia deduzir, a contrario, que o devedor não contestou a competência do órgão jurisdicional neerlandês no decurso do processo que perante este correu, tendo-se limitado a apresentar uma defesa quanto ao mérito. É de admitir, porém, que a defesa quanto ao mérito apresentada pelo devedor perante o presidente do Arrondissementsrechtbank de Leeuwarden tenha sido meramente subsidiária de uma excepção de incompetência. Nesse caso, em aplicação da jurisprudência Elefanten Schuh, já referida, a sua comparência não poderia implicar a extensão da competência.

31 Haveria uma dificuldade de outro tipo a ultrapassar se se pretendesse aplicar o artigo 18._ ao caso em apreço: esta disposição permite a extensão da competência em prejuízo das regras de competência protectoras dos consumidores previstas na secção 4 do título II? Se o contrato em litígio devesse ser considerado como um dos previstos no artigo 13._, conviria, sem dúvida, resolver previamente esta questão.

Um argumento textual advoga a favor da aplicabilidade do artigo 18._ em tal hipótese: a única limitação resultante do texto desta disposição é a existência de uma competência exclusiva nos termos do artigo 16._ Em contrapartida, o artigo 18._ parece permitir às partes a extensão da competência de um tribunal de um Estado em prejuízo de todas as outras regras de competência. Nomeadamente, da leitura do artigo 18._ parece decorrer que nada impede que, por efeito deste acordo tácito, seja conferida competência em matéria de contratos celebrados pelos consumidores a um órgão jurisdicional que não o designado pelo artigo 14._, segundo parágrafo (22).

A jurisprudência do Tribunal de Justiça pode também ser interpretada em sentido favorável a esta tese. Com efeito, o Tribunal de Justiça não hesitou em fazer funcionar o efeito da extensão quando a competência que esta afastava resultava de uma cláusula atributiva de competência, nos termos do artigo 17._: «... o artigo 18._ da convenção é aplicável, mesmo que as partes tenham convencionalmente designado um tribunal competente na acepção do artigo 17._» (23). Admitindo o Tribunal de Justiça que a vontade do devedor no decurso da instância pode derrogar a anterior vontade das partes, a sua comparência deve igualmente permitir derrogar as normas da convenção que lhe sejam favoráveis. O devedor é livre, de certo modo, de não beneficiar da protecção que nesses termos lhe é conferida.

Pode, porém, encontrar-se outro argumento textual contra esta tese. As regras de competência em matéria de seguros ou de contratos celebrados pelos consumidores são expressamente excluídas do âmbito da vontade das partes pelo artigo 17._, quarto parágrafo (24). Nestas matérias, a atribuição de competência não pode, em princípio, funcionar (25). As partes são, de certo modo, obrigadas a beneficiar das normas protectoras previstas a seu favor, sem as poder derrogar por uma manifestação de vontade. É certo que tal restrição não consta do artigo 18._ Porém, pode-se considerar que esta simples constatação não basta para demonstrar que, não podendo as partes afastar tais normas protectoras através de uma atribuição de competência no momento da celebração do contrato, a sua mera comparência implica de facto a perda do benefício da protecção prevista nesses termos. Parece-me, todavia, que, ao admitir as extensões convencionais de competência «posteriores ao nascimento do litígio», o artigo 15._, ponto 1, abrange não só as cláusulas atributivas do artigo 17._, mas também a extensão tácita do artigo 18._

32 As considerações acima expostas quanto a esta última questão não pretendem resolver o problema levantado, mas simplesmente expô-lo. A seguir-se a via sugerida pela Comissão e pelo Governo do Reino Unido, tratar-se-ia de resolver previamente a questão de saber se a mera comparência do requerido permite afastar as normas protectoras da convenção previstas a seu favor. Chega-se assim ao último aspecto desta reflexão sobre a aplicabilidade do artigo 18._ ao caso em apreço.

33 Viu-se duas das dificuldades levantadas por esta questão: por um lado, o raciocínio a desenvolver poderia, na falta de matéria de facto disponível, revestir um carácter hipotético ou académico; por outro lado, haveria que demonstrar previamente que a comparência voluntária permite a derrogação da regra de competência prevista no artigo 14._, segundo parágrafo.

34 Mas, sobretudo, recorde-se que se está, no caso em apreço, na fase do processo de exequatur. Ora, viu-se a importância conferida no sistema da convenção ao facto de o tribunal do exequatur não poder, em princípio, proceder a um controlo da competência do tribunal de origem (26). As únicas excepções susceptíveis de ter interesse no caso em apreço respeitam às hipóteses de competência previstas nas secções 3, 4 e 5 do título II.

35 Como tal, o órgão jurisdicional de reenvio só pode verificar a competência do órgão jurisdicional neerlandês de origem no que respeita às disposições previstas nessas secções, com exclusão de qualquer outra. Assim, pode, conforme é pedido pelo devedor, certificar-se de que as regras de competência em matéria de protecção dos consumidores não foram violadas. Em contrapartida, o sistema de exequatur estabelecido não lhe permite verificar se o tribunal de origem aplicou correctamente as regras de competência previstas pelo artigo 18._ Ainda que o tribunal neerlandês se tenha declarado competente, em aplicação desta disposição, devido à comparência do requerido, o tribunal do exequatur não seria, por isso, autorizado a proceder ao controlo da correcta aplicação desta disposição. Ora, parece-me que seria esse o caso se se admitisse que o tribunal do exequatur abordasse a questão da aplicabilidade do artigo 18._ pelo tribunal de origem. Ao fazê-lo, o tribunal do exequatur procederia a uma análise que só poderia ser vista como, de certo modo, um controlo da competência do tribunal de origem à luz do artigo 18._ Teria, com efeito, que decidir os dois tipos de problemas que mencionei. A comparência do devedor visou realmente apenas contestar a acção quanto ao mérito, sem arguir a incompetência? Em caso afirmativo, o artigo 18._ permite que a vontade das partes prevaleça sobre as normas protectoras da convenção? Ainda que o tribunal do exequatur considerasse dever responder pela afirmativa a estas duas questões, teria precisado, para chegar a tal conclusão, de analisar previamente a correcta aplicação desta disposição pelo tribunal de origem.

36 Uma vez que a convenção só permite o controlo da competência do tribunal de origem pelo tribunal do exequatur à luz das normas da convenção em certas hipóteses específicas, e não se encontrando a competência prevista nos termos do artigo 18._ entre essas hipóteses, parece-me que o Tribunal de Justiça não pode sugerir ao órgão jurisdicional de reenvio que não controle o respeito dos artigos 13._ a 15._, fazendo prevalecer o artigo 18._

37 Proponho, consequentemente, ao Tribunal de Justiça que responda às questões do órgão jurisdicional de reenvio sem se dedicar previamente ao estudo da aplicação do artigo 18._ ao caso em apreço.

Quanto às questões relativas às normas protectoras dos consumidores

38 As três primeiras questões tendem a verificar se as normas protectoras dos consumidores (secção 4 do título II) terão sido desrespeitadas pelo órgão jurisdicional neerlandês de origem, caso em que o órgão jurisdicional de reenvio não pode conceder o exequatur requerido.

39 Não tenho qualquer dúvida quanto à aplicação ratione personae destas disposições ao caso em apreço.

40 O artigo 13._, primeiro parágrafo, da convenção define «consumidor» como aquele que actua «para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional» (27).

41 O Tribunal de Justiça deduz daí que «... só os contratos celebrados com o objectivo de satisfazer as próprias necessidades do consumo privado de um indivíduo ficam sob a alçada das disposições que protegem o consumidor enquanto parte considerada economicamente mais débil» (28).

42 Assim é, sem dúvida, no caso em apreço. O devedor agiu não na qualidade de profissional, mas de particular. A prevista compra do barco em litígio visava efectivamente satisfazer as suas próprias necessidades de consumo privado. Em especial, era completamente alheia à actividade profissional comercial do devedor, que explora uma empresa de construção e um estabelecimento de materiais de construção.

43 A hesitação formulada pelo órgão jurisdicional de reenvio em qualificar o devedor como «consumidor», na acepção do artigo 13._, primeiro parágrafo, devido à importância do montante da transacção (29), parece-me infundada. Com efeito, «... a fim de determinar a qualidade de consumidor de uma pessoa... há que atender à posição dessa pessoa num contrato determinado, em conjugação com a natureza e finalidade deste, e não à situação subjectiva dessa mesma pessoa» (30). A qualificação como consumidor não se restringe, portanto, às pessoas economicamente débeis ou desfavorecidas.

44 Não havendo quaisquer dúvidas quanto à qualidade de consumidor de H.-H. Mietz, como parte na transacção em litígio, há que averiguar se esta transacção é abrangida pelo âmbito de aplicação material da secção 4 do título II, uma vez que estas disposições «... se aplicam ao consumidor... que esteja vinculado por um dos contratos enumerados no artigo 13._...» (31).

Quanto à primeira questão: artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 1

45 Poderá então a transacção em litígio corresponder a uma «venda a prestações de bens móveis corpóreos» na acepção do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 1? Todos os intervenientes no presente processo responderam pela negativa a esta primeira questão. Proponho ao Tribunal de Justiça que os acompanhe na sua análise.

46 O contrato em litígio foi qualificado como «contrato de empreitada» (32) pelo presidente do Arrondissementsrechtbank de Leeuwarden, à luz do direito neerlandês, podendo tratar-se de um «contrato misto de empreitada e compra e venda» (33) em direito alemão (34). Por seu lado, as partes adoptaram a qualificação de «contrato de compra e venda». O órgão jurisdicional de reenvio formula também uma opinião, considerando que só se verifica uma venda a prestações de bens móveis corpóreos na acepção do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 1, quando a transferência de propriedade respeita a produtos já acabados, ou disponíveis em stock, para uso geral (35).

47 A este respeito, o Tribunal de Justiça sublinhou que a necessidade de «... suprimir os entraves às relações jurídicas e à solução dos litígios na ordem das relações intracomunitárias em matéria de venda a prestações de bens móveis corpóreos» leva a «considerar esta última noção como autónoma e, portanto, comum a todos os Estados-Membros» (36).

48 Assim sendo, nem a qualificação escolhida pelas partes no caso em apreço nem as soluções adoptadas pelos diferentes sistemas jurídicos nacionais podem prevalecer.

49 Na falta de definição no texto da convenção (37), o Tribunal de Justiça considera «... que a venda a prestações de bens móveis corpóreos é definida como sendo uma transacção na qual o preço é pago em diversas prestações ou que está ligada a um contrato de financiamento» (38).

50 A operação através da qual a credora se obrigou a transferir para o devedor a propriedade de um bem em construção, mediante pagamento de cinco prestações sucessivas, poderia corresponder à definição proposta pelo Tribunal de Justiça, se não fosse por um elemento que me parece decisivo no caso em apreço, mas que não havia que abordar no acórdão Bertrand, já referido.

51 É que as prestações sucessivas são, no caso em apreço, todas anteriores à entrega do bem, objecto da transacção.

52 Ora, o Tribunal de Justiça observou no seu acórdão Bertrand, já referido, que «uma interpretação restritiva do segundo parágrafo do artigo 14._, conforme aos objectivos prosseguidos pela secção 4, leva a que se reserve o privilégio jurisdicional... apenas aos compradores que tenham necessidade de protecção, estando a sua posição económica caracterizada pela sua fraqueza face aos vendedores...» (39). Dentro deste espírito, está efectivamente em situação de fraqueza o comprador a quem o vendedor concede crédito. Mas não é decerto esse o caso do comprador que é devedor da totalidade do preço anteriormente à entrega do bem, ainda que esta obrigação de pagamento esteja escalonada em várias prestações. Tal comprador não pode, com efeito, ser considerado como tendo sido «... levado a comprar através do mecanismo de pagamento a prestações, visto que o pagamento numa só vez teria sido, para ele, a causa de dificuldades económicas» (40). Na realidade, numa situação como a do caso em apreço, o comprador não necessita de qualquer protecção particular.

53 Entendo, portanto, que a transacção em litígio não pode ser considerada como uma venda «a prestações» de bens móveis corpóreos na acepção do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 1, da convenção, na falta de «prestações posteriores à entrega» (41).

54 Portanto, o exequatur da decisão neerlandesa não pode ser recusado por desrespeito das regras de competência aplicáveis a este tipo de contrato.

Quanto às terceira e segunda questões: artigos 28._, segundo parágrafo, e 13._, primeiro parágrafo, ponto 3

55 Não sendo abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 1, da convenção, poderá o contrato em litígio ser, ainda assim, considerado abrangido pelo artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3? É este o objecto da segunda questão.

56 Antes de abordar este aspecto, parece-me necessário proceder ao exame da terceira questão. Com efeito, para determinar se o contrato em litígio é abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3, e, em especial, se se verificam, no caso em apreço, as condições previstas nas alíneas a) e b) desta disposição, há que verificar se o tribunal do Estado requerido pode fundamentar a sua apreciação em elementos fornecidos pelo devedor, que não foram mencionados pelo tribunal do Estado de origem na sua decisão. Assim, se a resposta à terceira questão for negativa, a segunda não carece de resposta.

57 Recorde-se que, nos termos do artigo 28._, segundo parágrafo, da convenção, «Na apreciação das competências referidas no parágrafo anterior, a autoridade requerida estará vinculada às decisões sobre a matéria de facto com base nas quais o tribunal do Estado de origem tiver fundamentado a sua competência».

58 Segundo o relatório Jenard, esta disposição «... tende a evitar o recurso a expedientes dilatórios nos casos em que, excepcionalmente, a competência do juiz do Estado de origem possa ser verificada» (42).

59 Ora, parece-me que se não se admite que o tribunal do exequatur se possa afastar da matéria de facto apreciada pelo tribunal de origem, também não se poderá admitir que acolha favoravelmente novos elementos de facto que não tinham sido apresentados perante o tribunal de origem. A justificação é idêntica em ambos os casos: trata-se de evitar quaisquer manobras dilatórias. Tal objectivo poderia ser comprometido se o tribunal do Estado requerido devesse ter em conta novas afirmações do devedor, susceptíveis de permitir constatar a incompetência do tribunal de origem, no sentido de impedir o exequatur requerido, apesar de o devedor poder ter invocado esses argumento no processo inicial. Se a apresentação de nova matéria de facto perante o tribunal do exequatur fosse admitida, permitir-se-ia a qualquer devedor que pretendesse perturbar o decurso rápido do processo previsto pela convenção só invocar certos argumentos essenciais na fase do exequatur, para obstar à execução da decisão.

60 Observe-se, além disso, que, embora o Tribunal de Justiça nunca tenha tido, até à data, que se pronunciar sobre tal hipótese à luz do artigo 28._, segundo parágrafo, a sua jurisprudência relativa ao artigo 34._, terceiro parágrafo, fornece indicações interessantes que podem ser transpostas, por analogia, para o caso em apreço.

61 No acórdão Van Dalfsen e o. (43), perante «... a questão de saber se o tribunal de recurso pode tomar em consideração, numa decisão relativa a um pedido de suspensão da instância nos termos do artigo 38._, primeiro parágrafo, da convenção, fundamentos de que o juiz estrangeiro não tinha conhecimento no momento de proferir a sua decisão, porque a parte que interpôs o recurso não os invocou perante ele...» (44), o Tribunal de Justiça considerou que, em virtude da proibição da revisão de mérito, prevista no artigo 34._, terceiro parágrafo, um tribunal de recurso só pode tomar em consideração, na sua decisão relativa a um pedido de suspensão da instância ao abrigo do artigo 38._, «... os fundamentos que a parte que interpôs o recurso não pôde invocar perante o tribunal do Estado de origem» (45).

62 Entendo que, tal como um tribunal de recurso só pode tomar em consideração, na sua decisão relativa a um pedido de suspensão da instância ao abrigo do artigo 38._, «os fundamentos que a parte que interpôs o recurso não pôde invocar perante o tribunal do Estado de origem», também o tribunal do exequatur só pode tomar em consideração, na sua decisão relativa ao exequatur, os fundamentos que não podiam ser invocados perante o tribunal de origem.

Não é assim, manifestamente, no caso em apreço: H.-H. Mietz podia perfeitamente invocar perante o órgão jurisdicional neerlandês de origem os elementos de facto que invocou no processo no Estado requerido.

63 Consequentemente, parece-me que os elementos avançados pelo devedor perante os órgãos jurisdicionais deste Estado, no sentido de demonstrar que o contrato em litígio se encontra entre os previstos pelo artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3, na medida em que consistia num contrato que tinha por objecto a prestação de serviços ou o fornecimento de bens móveis corpóreos, celebrado na sequência de publicidade feita no Estado do domicílio do consumidor (a Bootsmesse de Düsseldorf), tendo o consumidor praticado nesse Estado os actos necessários para a celebração deste contrato (contrato celebrado oralmente durante a Bootsmesse), não podem ser admitidos pelo tribunal do exequatur, uma vez que podiam ter sido apresentados perante o tribunal de origem.

64 Tendo em conta a solução que sugiro para a terceira questão, a segunda não carece de resposta. Com efeito, não podendo o tribunal do exequatur tomar em consideração os elementos de facto invocados para sustentar a aplicação do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3, não pode proceder ao controlo da competência do tribunal de origem à luz desta disposição.

65 É, portanto, a título meramente subsidiário que dedico as seguintes considerações à segunda questão apresentada ao Tribunal de Justiça.

66 A este respeito, se não fosse a impossibilidade do órgão jurisdicional alemão, no caso em apreço, tomar em consideração os elementos de facto apresentados pelo devedor, esta questão deveria ter, na minha opinião, uma resposta positiva.

67 Com efeito, viu-se, por um lado, que o contrato em litígio foi celebrado por um consumidor na acepção do artigo 13._

68 Por outro lado, sendo o objecto do contrato, segundo os elementos apresentados pelo órgão jurisdicional de reenvio, o fornecimento de um barco no qual seria introduzido um certo número de modificações substanciais, a condição que exige, nos termos do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3, que este contrato «tenha por objecto a prestação de serviços ou o fornecimento de bens móveis corpóreos» parece verificar-se no caso em apreço.

69 O artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3, pressupõe, enfim, a verificação de duas condições cumulativas (46), destinadas a assegurar a existência de elementos de conexão entre o contrato e o país do domicílio do consumidor (47).

70 A primeira destas condições exige que a celebração do contrato tenha sido precedida de «uma proposta especialmente dirigida [ao consumidor] ou de anúncio publicitário» nesse Estado. O relatório dos professores M. Giuliano e P. Lagarde sobre a Convenção de Roma (48), para o qual remete o relatório Schlosser (49), precisa que se pode tratar de qualquer forma de publicidade feita no Estado onde o consumidor tenha o seu domicílio, ou de uma proposta que lhe é especialmente dirigida (50). No caso em apreço, a exposição num stand de uma feira de navegação de recreio, em Düsseldorf, é decerto uma forma de publicidade no Estado onde o consumidor tem o seu domicílio (51). Caberia, de qualquer modo, ao tribunal perante o qual pende o processo verificar a realidade deste elemento de facto.

71 A segunda condição exige que o consumidor tenha praticado «os actos necessários para a celebração do contrato» no Estado do seu domicílio. O relatório Giuliano e Lagarde, já referido, precisa que esta expressão permite evitar discussões relativas ao local da celebração do contrato, e visa qualquer acto escrito (ou qualquer conduta) que exprima a vontade do consumidor de dar seguimento à proposta que lhe foi especialmente dirigida ou à publicidade (52). Também aqui, se ficasse demonstrado, como pretende H.-H. Mietz, que este manifestou a sua intenção de comprar o barco objecto do contrato aquando da Bootsmesse de Düsseldorf, esta condição estaria preenchida. O tribunal do exequatur deveria, de qualquer modo, verificá-la.

Quanto à qualificação de uma medida adoptada no termo de um processo de «kort geding» como «provisória ou cautelar» na acepção do artigo 24._ da convenção

72 A quarta questão, através da qual o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre a qualificação, à luz do artigo 24._ da convenção, de uma medida adoptada no termo de um processo de «kort geding», não deve ser respondida pelo Tribunal de Justiça, se este seguir a minha argumentação. Com efeito, esta questão só é apresentada para o caso de o Tribunal de Justiça entender que o contrato em litígio deve ser considerado como um dos previstos pelo artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 1, ou pelo artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3.

73 Note-se, além disso, que, ao interrogar o Tribunal de Justiça sobre esta disposição, o órgão jurisdicional de reenvio parece dispor-se a um controlo da competência do tribunal de origem, o que lhe é vedado pelo artigo 28._, terceiro parágrafo. Com efeito, recorde-se que o tribunal do exequatur só pode verificar se o tribunal de origem aplicou correctamente as regras da convenção quando estejam em causa as secções 3, 4 e 5 do título II. Para além destes casos, é proibido qualquer controlo. Assim sendo, se se devesse concluir, após o exame das duas primeiras questões, que o tribunal de origem desrespeitou realmente disposições protectoras dos consumidores, o tribunal do exequatur não podia, em caso algum, conceder o exequatur à decisão em litígio. Não poderia proceder a uma busca exaustiva de outros fundamentos de competência susceptíveis de justificar a competência do tribunal de origem, para «compensar», de algum modo, a sua incompetência à luz das normas protectoras. Mesmo que se devesse responder afirmativamente à quarta questão, tal não permitiria ao tribunal do exequatur justificar a competência do tribunal de origem com base no artigo 24._ e não do artigo 13._ da convenção a fim de evitar recusar o exequatur por desrespeito das disposições protectoras dos consumidores.

74 Recorde-se mais uma vez (53), finalmente, a dificuldade da questão assim suscitada, que o presente processo convida o Tribunal de Justiça a abordar pela terceira vez (54).

75 Permitindo-me remeter para as conclusões que apresentei no processo Van Uden, já referido, quanto a este aspecto, saliento, como então fiz, que a grande diversidade de medidas susceptíveis de ser adoptadas no termo de um processo de «kort geding» não permite, na minha opinião, responder em termos absolutos e abstractos à questão da sua qualificação à luz do artigo 24._ da convenção (55). Ao passo que no processo Van Uden, já referido, me parecia dispor de elementos suficientes relativos ao desenvolvimento e ao objecto do processo perante o tribunal neerlandês para me pronunciar, a título subsidiário, sobre a questão colocada e não dispondo, no caso em apreço, de tais elementos, parece-me arriscado pronunciar-me, mesmo a título subsidiário.

Conclusão

76 À luz das considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões submetidas pelo Bundesgerichtshof:

«1) A noção de `venda a prestações de bens móveis corpóreos', na acepção do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 1, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, não pode ser entendida no sentido de abranger uma transacção que tem por objecto o fornecimento de um bem a uma pessoa que age para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional, quando o preço, pagável em fracções escalonadas, é inteiramente devido antes da entrega definitiva desse bem ao consumidor que o adquire.

2) No sistema da convenção, os artigos 34._, segundo parágrafo, e 28._, segundo parágrafo, devem ser interpretados no sentido de que obstam a que o tribunal do Estado requerido possa tomar em consideração, no âmbito do exercício da manutenção excepcional do seu poder de controlo da competência do órgão jurisdicional de origem, nos termos da secção 4 do título II, elementos de facto para além daqueles que o órgão jurisdicional de origem tomou em consideração ou poderia ter tomado em consideração se a parte que os invoca não se tivesse abstido de os invocar perante este.»

A título subsidiário,

«3) A noção de `contrato que tenha por objecto a prestação de serviços ou o fornecimento de bens móveis corpóreos', na acepção do artigo 13._, primeiro parágrafo, ponto 3, deve ser interpretada no sentido de abranger a hipótese de um contrato que visa o fornecimento de um barco a motor, quando este contrato reúna as duas condições cumulativas respeitantes ao seu elemento de conexão com o domicílio do consumidor, previstas nas alíneas a) e b).

4) O sistema estabelecido pela convenção e, em especial, o artigo 34._, segundo parágrafo, ao remeter para o artigo 28._, terceiro parágrafo, não permite ao tribunal do Estado requerido proceder a um controlo da competência do tribunal do Estado de origem ao abrigo do artigo 24._ da convenção.»

(1) - Protocolo relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1975, L 204, p. 28).

(2) - JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186.

(3) - Convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte à convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, bem como ao protocolo relativo à sua interpretação pelo Tribunal de Justiça (JO L 304, p. 1, e texto modificado da convenção de 27 de Setembro de 1968, já referida, p. 77).

(4) - Convenção de 25 de Outubro de 1982, relativa à adesão da República Helénica à convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, bem como ao protocolo relativo à sua interpretação pelo Tribunal de Justiça, com as adaptações que lhes foram introduzidas pela convenção relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 388, p. 1; EE 01 F3 p. 234).

(5) - Tal decorre dos artigos 7._ e 13._, primeiro parágrafo, da convenção, segundo os quais a competência em matéria de seguros ou de contratos celebrados pelos consumidores é determinada apenas pelas secções 3 e 4, «sem prejuízo do disposto no artigo 4._ e no ponto 5 do artigo 5._»

(6) - Acórdão de 24 de Junho de 1981, Elefanten Schuh (150/80, Recueil, p. 1671, n._ 17).

(7) - Acórdãos de 22 de Outubro de 1981, Rohr (27/81, Recueil, p. 2431, n._ 8); de 31 de Março de 1982, W. (25/81, Recueil, p. 1189, n._ 13), e de 14 de Julho de 1983, Gerling (201/82, Recueil, p. 2503, n._ 21).

(8) - Acórdão de 4 de Fevereiro de 1988, Hoffmann (145/86, Colect., p. 645, n._ 10).

(9) - Esta falta de controlo justifica-se pela existência de normas estritas de competência e pela confiança depositada no tribunal do Estado de origem, que deve ser extensiva à aplicação feita por esse tribunal das regras da convenção [relatório sobre a convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1979, C 59, p. 1), dito «relatório Jenard», p. 46].

(10) - Trata-se, segundo os elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio, das seguintes modificações: «dois motores Solé-Mazda 72 CVS, com duas quilhas, gradeamento em aço inoxidável, capota com vidro esfumado, aquecimento a diesel Volvo 4 000 kW, exaustor acima da cozinha, escadas de rampa em caracol, cabina de refeições à proa modificada para ter quatro lugares, cozinha com ladrilhos brancos» (parte II, primeiro parágrafo, do despacho de reenvio).

(11) - Estas cinco prestações repartiam-se do seguinte modo: 15% no momento da assinatura do contrato, 20% no momento do início da construção, 30% no momento da instalação do motor, 15% no início dos trabalhos de carpintaria e 20% aquando da viagem experimental.

(12) - Este processo é previsto pelos artigos 289._ a 297._ do código de processo civil neerlandês.

(13) - Esta precisão deduz-se, em especial, da parte II, terceiro parágrafo, do despacho de reenvio. O Bundesgerichtshof quer, decerto, indicar assim que esta excepção de incompetência não tinha sido arguida perante o tribunal de origem. Recorde-se, com efeito, que, uma vez que o processo em primeira instância perante o tribunal a quem foi presente o litígio no Estado requerido não era contraditório (artigo 34._, primeiro parágrafo), o devedor não poderia ter invocado esta argumentação perante o Landgericht de Lüneburg.

(14) - Em direito alemão, segundo os elementos constantes do despacho de reenvio, a passagem a escrito de um contrato parece ser uma mera formalidade.

(15) - O Bundesgerichtshof sublinha (parte III, ponto 3, terceiro parágrafo, do despacho de reenvio) que: «uma vez que os novos factos não foram contestados no processo de reconhecimento, poderão, de acordo com o n._ 3 do § 138 do Código de Processo Civil) alemão ter de ser considerados provados, o que terá como consequência ser o tribunal do Estado de origem considerado incompetente. Mas, ainda que fosse necessária nova produção de prova a esse respeito, esta secção, como tribunal de recurso em matéria de direito, não o poderia fazer. Teria nesse caso, através de uma decisão que pusesse termo à instância, que anular a decisão do Oberlandesgericht e devolver-lhe o processo para reabertura da produção de prova».

(16) - Parte III, ponto 3, primeiro parágrafo, do despacho de reenvio.

(17) - Ibidem, parte III, ponto 3, segundo parágrafo.

(18) - Parte IV, primeiro parágrafo, das suas observações.

(19) - V. n._ 10 das suas observações.

(20) - V. n._ 7 das presentes conclusões.

(21) - Parte II, terceiro parágrafo, do despacho de reenvio.

(22) - V., neste sentido, Gaudemet-Tallon, H.: Les conventions de Bruxelles et de Lugano, L.G.D.J., 1996, n._ 145; Gothot, P. e Holleaux, D.: La convention de Bruxelles du 27.9.1968, Jupiter, 1985, n._ 193, e relatório Jenard «os nicos casos... em que a extensão tácita de competência não será aceite são aqueles em que num outro Estado existe uma competência exclusiva por força do artigo 16._» (p. 156, sublinhado meu).

(23) - V. acórdãos Elefanten Schuh, já referido, n._ 11, e de 7 de Março de 1985, Sommer Exploitation (48/84, Recueil, p. 787, n._ 26).

(24) - Esta disposição tem o seguinte teor: «Os pactos atributivos de jurisdição... não produzirão efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 12._ e 15._...».

(25) - O artigo 15._, pontos 1 e 2, só prevê duas hipóteses nas quais tais cláusulas serão lícitas: trata-se, em primeiro lugar, de cláusulas posteriores ao nascimento do litígio, porque o consumidor sabe, então, ao que se obriga, e, em segundo lugar, de cláusulas que permitem ao consumidor recorrer a tribunais que não os competentes nos termos da secção 4 da convenção. Porém, o artigo 15._, ponto 3, permite às partes domiciliadas ou com residência habitual no mesmo Estado contratante, no momento da celebração do contrato, atribuir competência aos tribunais desse Estado, desde que a lei deste não o proíba.

(26) - V. n._ 11 das presentes conclusões.

(27) - É também a definição adoptada no artigo 5._ da convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais aberta a assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980 (JO L 266, p. 1; EE 01 F3, p. 36, a seguir «Convenção de Roma»), e no artigo 2._ da Directiva 91/13/CEE do Conselho, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados pelos consumidores (JO L 95, p. 29).

(28) - V., em último lugar, o acórdão de 3 de Julho de 1997, Benincasa (C-269/95, Colect., p. I-3767, n._ 17).

(29) - Parte III, quarto parágrafo, do despacho de reenvio: «Contudo, podia desde logo ser discutível se alguém que compra um objecto para a ocupação dos seus tempos livres por 250 000 DM necessita da protecção especial da competência do tribunal do domicílio do consumidor.»

(30) - Acórdão Benincasa, já referido, n._ 16.

(31) - Acórdão de 19 de Janeiro de 1993, Shearson Lehman Hutton (C-89/91, Colect., p. I-139, n._ 22).

(32) - Também chamado «contrato de empresa» ou «contrato de indústria».

(33) - Ou seja, incluindo tanto o fornecimento de mão-de-obra como de materiais.

(34) - Parte III, quinto parágrafo, do despacho de reenvio.

(35) - Ibidem, parte III, sexto parágrafo.

(36) - Acórdão de 21 de Junho de 1978, Bertrand (150/77, Colect., p. 487, n._ 14; o sublinhado é meu).

(37) - O relatório Jenard, já referido, limita-se, também, a constatar que a secção 4 do título II «[se] refere à venda de bens móveis corpóreos cujo preço se liquide em vários pagamentos, ou à venda de bens desse tipo ligada a um contrato de financiamento (Abzahlungsgeschäfte)», p. 152. O relatório sobre a convenção de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte à convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, bem como ao protocolo relativo à sua interpretação pelo Tribunal de Justiça (JO 1979, C 59, p. 118), dito «relatório Schlosser», não é mais esclarecedor, mas remete para o artigo 5._ da Convenção de Roma, já referida (p. 184).

(38) - V. acórdão Bertrand, já referido, n._ 20.

(39) - N._ 21.

(40) - Conclusões do advogado-geral F. Capotorti no processo Bertrand, já referido (Colect., p. 494, n._ 3).

(41) - Gothot, P., e Holleaux, D., op. cit., ponto 135, n._ 2; o itálico é meu.

(42) - P. 163.

(43) - V. acórdão de 4 de Outubro de 1991 (C-183/90, Colect., p. I-4743, n._ 34).

(44) - N._ 34.

(45) - N._ 37 e dispositivo.

(46) - Relatório Schlosser, n._ 158.

(47) - Ibidem.

(48) - Relatório relativo à convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (JO 1980, C 282, p. 1), dito «relatório Giuliano e Lagarde».

(49) - N._ 158, in fine.

(50) - Pp. 23 e 24.

(51) - O relatório Giuliano e Lagarde refere-se assim às «... situações em que o próprio consumidor se dirigiu ao stand de uma empresa estrangeira numa feira ou exposição organizada no país do consumidor...» (p. 24).

(52) - P. 24.

(53) - V. as conclusões que apresentei em 10 de Junho de 1997 no processo Van Uden (C-391/95, ainda pendente, n.os 101 e segs.).

(54) - No acórdão W., já referido, o órgão jurisdicional de reenvio apresentava ao Tribunal de Justiça exactamente a mesma questão, mas este não teve que se pronunciar sobre esse aspecto. O processo Van Uden, já referido, ainda pendente, suscita uma questão nos mesmos termos.

(55) - É decerto devido a esta variedade de hipóteses que, no caso em apreço, a Comissão adoptou quanto a esta questão uma posição diametralmente oposta da defendida no processo Van Uden, já referido.