CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

NIAL FCNNELLY

apresentadas em 27 de Junho de 1996 ( *1 )

1. 

Este reenvio prejudicial suscita a questão da compatibilidade com a liberdade de prestação de serviços consagrada no Tratado CE de determinadas disposições legais alemãs que, nomeadamente, proíbem as empresas de cobrança na Alemanha de proceder à cobrança judicial de dívidas sem a constituição de advogado.

I — Matéria de facto e quadro legal

2.

Nos termos do § 828 do Zivilprozeßordnung (Código de Processo Civil, a seguir «ZPO») de 30 de Janeiro de 1877, na versão de 12 de Setembro de 1950 ( *2 ), os actos judiciais que tenham por objecto a execução coerciva das dívidas (isto é, despachos de penhora c adjudicação) são, na Alemanha, da competência do Amtsgericht (tribunal de comarca). Segundo o § 78 do ZPO, a constituição de «Rechtsanwalt» (advogado) só é obrigatória perante os Landgerichte (tribunais regionais) e cm todos os tribunais superiores. O § 79 do ZPO, que se aplica ao Amtsgericht, refere-se ao «Parteiprozeß» e dispõe que:

«Sempre que não seja exigida a constituição de advogado, as partes podem intervir directamente no processo ou por intermédio de qualquer pessoa com capacidade judiciária, na qualidade de mandatário.»

Os casos cm que «não (é) exigida a constituição de advogado» incluem as acções destinadas a obter «ein Pfändungs-und Überweisungsbeschluß» (despacho de penhora e adjudicação) ao abrigo do § 828 ( *3 ).

3.

A Rechtsberatungsgesetz (lei relativa à actividade de consultadoria jurídica, a seguir«RBerG») de 17 de Dezembro de 1935 ( *4 ) prevê, no seu artigo 1.o, § 1, n.o 1:

«O acompanhamento de assuntos jurídicos de terceiros, incluindo a consultadoria jurídica e a cobrança de dívidas de terceiros ou de dívidas cedidas, tendo em vista a sua cobrança, só pode ser assegurada a título profissional — ... a título oneroso ou gratuito — por pessoas a quem a autoridade competente tenha dado autorização. A autorização é concedida para um ramo de actividade:

...

5.

empresas de cobrança, para a cobrança extrajudicial de dívidas (gabinetes de cobrança),

A actividade só pode ser exercida sob a denominação que corresponde à autorização.»

...

O artigo 1.o, § 1, n.o 2, da RBerG prevê que a autorização só pode ser concedida se o requerente for pessoa de confiança, tiver aptidões pessoais, conhecimentos suficientes da matéria e se a procura não estiver já satisfeita por um número suficiente de profissionais ( *5 ). Por força do artigo 1.o, §3, as actividades profissionais dos advogados, entre outras, não são afectadas por esta lei.

4.

Resulta da aplicação conjugada destas disposições que as empresas podem ser autorizadas a prestar serviços de cobrança extrajudicial de dívidas na Alemanha ( *6 ). A cobrança judicial de dívidas exige, no entanto, a constituição de advogado ( *7 ).

5.

Em 29 de Dezembro de 1992, a Reisebüro Broede (a seguir «Broede»), credora no processo principal, que é uma agência de viagens sem personalidade jurídica estabelecida em Colónia, obteve um título executivo contra o devedor no processo principal, Gerd Sandker (a seguir «devedor»). Em 8 de Maio de 1994, a fim de dar execução ao título, a Broede mandatou a sociedade INC Consulting SARL (a seguir «INC») para efectuar todas as diligências de cobrança necessárias até ao pagamento integral da dívida. A INC é uma sociedade com sede em Verneuil-en-Halatte, França ( *8 ). Segundo o despacho de reenvio, a actividade da INC consiste na cobrança de dívidas e na consultadoria de empresas e, pelo menos neste caso, concedeu plenos poderes à sua gerente, Margarita Ramthun, para proceder, em nome da Broede, à execução e tomar todas as medidas com esta relacionadas. M. Ramthun residia, nessa altura (e ainda reside), em Overath, Alemanha. Na audiência, informou o Tribunal de que, embora a INC só tenha efectuado cobranças na Alemanha para a Broede, já procedeu a cobranças cm França ( *9 )para ura certo número de clientes, tanto franceses como estrangeiros.

6.

Em 6 de Junho de 1994, M. Ramthun requereu ao Amtsgericht Hagen que ordenasse a penhora c a adjudicação dos bens do devedor. O Amtsgericht indeferiu este pedido por despacho de 23 de Agosto de 1994, com o fundamento de que M. Ramthun não tinha a capacidade judiciária exigida, dado que, em direito alemão, é proibido às empresas de cobrança actuar judicialmente, cm nome próprio, como mandatários de outrem. Esta regra, declarou o Amtsgericht, aplica-se igualmente às empresas de cobrança estrangeiras. Em 31 de Agosto de 1994, M. Ramthun recorreu desta decisão para a Nona Secção Cível do Landgericht Dortmund (a seguir «órgão jurisdicional nacional»).

7.

Segundo o órgão jurisdicional nacional, no recurso que lhe compete julgar, coloca-se a questão de saber se o artigo 1.o, § 1, da RBerG é aplicável à INC. O órgão jurisdicional nacional afirma que, segundo esta disposição, as actividades como as que a INC exerce a título profissional só podem ser exercidas por pessoas que «sejam titulares de uma autorização concedida pela entidade competente para este fim, pelo que as autorizações para as empresas de cobrança só abrangem, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 1, primeiro parágrafo, segunda frase, ponto 5, da Rechtsberatungsgesetz, a cobrança extrajudicial de dívidas». A «questão decisiva» de direito comunitário identificada pelo órgão jurisdicional nacional é a de saber se esta disposição contém uma discriminação ilícita em razão da nacionalidade ou se constitui uma restrição à livre prestação de serviços consagrada nos artigos 59.o e 60.o do Tratado. Na opinião do órgão jurisdicional nacional, não parece que se deva concluir pela existência de uma discriminação ilícita no presente processo, porque a aplicação da disposição nacional litigiosa às empresas de cobrança estrangeiras «parece justificada por razões preponderantes de interesse geral (protecção dos credores e dos devedores, bem como do interesse geral no funcionamento da justiça), dado que tal interesse geral não é presentemente tomado em conta na regulamentação do Estado da sede (isto é, França) nem pode ser alcançado por normas menos restritivas». Todavia, como órgão jurisdicional de última instância no recurso interposto pela Broede ao abrigo do § 568, n.o 2, do ZPO, o órgão jurisdicional nacional decidiu apresentar ao Tribunal as seguintes questões:

«Uma regulamentação nacional que proíbe a cobrança judicial de dívidas de terceiros por empresas com sede cm outros Estadospor esta actividade, de acordo com o direito nacional, estar reservada a pessoas com autorização administrativa especial, contraria o artigo 59.o do Tratado CE?

Em caso afirmativo: o mesmo é aplicável caso o processo de cobrança esteja sujeito apenas ao direito nacional, por as partes do processo executivo terem ambas sede no território nacional, aqui também tendo sido obtido o título executivo?»

II — Observações submetidas ao Tribunal

8.

A Broede, o devedor, a República Federal da Alemanha (a seguir «Alemanha») e a Comissão apresentaram observações escritas. O devedor, a Alemanha e a Comissão apresentaram observações orais.

III — Análise das questões apresentadas

9.

A primeira questão apresentada pelo órgão jurisdicional nacional diz essencialmente respeito à compatibilidade com o direito comunitário da recusa, na Alemanha, do exercício do mandato judicial, perante os órgãos jurisdicionais alemães, por empresas de cobrança nos processos judiciais necessários para a execução de dívidas em nome dos seus clientes. A segunda questão pressupõe uma resposta afirmativa à primeira e destina-se a saber se essa resposta continua a ser afirmativa, quando as duas partes no processo executivo estão estabelecidas no mesmo Estado-Membro e o título executivo que é objecto do processo foi obtido nesse mesmo Estado.

10.

Em minha opinião, há que analisar, em primeiro lugar, se a estreita ligação manifestamente existente entre M. Ramthun e a Alemanha exclui, para os efeitos da aplicação do direito comunitário, a existência de um verdadeiro elemento interestatal. Em segundo lugar, é necessário analisar se a situação de facto do presente reenvio é regulada pelas disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento ou pelas disposições relativas à livre prestação de serviços. Estas duas questões foram suscitadas expressamente pela Comissão e pela Alemanha. Em terceiro lugar, analisarei os pontos substanciais que as questões referidas suscitam.

A — Aplicabilidade do direito comunitário

11.

Segundo a jurisprudência constante do Tribunal, a aplicação das regras do Tratado relativas à livre circulação de pessoas implica que existe uma ligação suficiente entre as circunstâncias de facto e a disposição de direito comunitário invocada, isto é, um elemento interestatal. Assim, por exemplo, no acórdão Saunders, o Tribunal afirmou, no quadro da livre circulação de trabalhadores, que as disposições relevantes do Tratado «não podem... ser aplicadas a situações puramente internas de um Estado-Membro, ou seja, quando não haja ura elemento de conexão com qualquer das situações previstas pelo direito comunitário» ( *10 ). Esta exigência vale, mutatis mutandis, para as regras do Tratado relativas à livre prestação de serviços, que só podem aplicar-se se os serviços em questão «[tiverem] caracter transfronteiriço» ( *11 ). Como o advogado-geral F. G. Jacobs declarou no processo Alpine Investments, «existe um elemento transfronteiriço quando o prestador e o destinatário dos serviços estão estabelecidos em diferentes Estados-Mcmbros» ( *12 ). Sc, no presente caso, a Brocde é, de facto, como resulta do despacho de reenvio, «representada» ( *13 ) pela INC no processo nacional de cobrança de dívidas, e a INC não intervém a título gratuito, não há qualquer dúvida de que a actividade em causa é a prestação de um serviço «transfronteiriço» na acepção do artigo 59.o do Tratado.

12.

Nas suas observações escritas e orais, a Comissão, apoiada neste ponto pela Alemanha na audiência, exprimiu reservas relativamente à existência de um verdadeiro elemento comunitário no presente processo. A Comissão pergunta se, na realidade, M. Ramthun, cidadã alemã residente na Alemanha, não representaria a Broede como um dos seus próprios clientes, embora agindo aparentemente cm nome da INC. A este respeito, o agente do Governo alemão observou na audiência que, em direito alemão, um gerente de uma sociedade de responsabilidade limitada tem automaticamente poderes para representar a sociedade em tribunal. O agente do Governo alemão afirmou que a INC, ao conceder a M. Ramthun um mandato expresso para a representar, ou agiu com base numa interpretação errónea do direito alemão ou substabeleceu efectivamente em M. Ramthun. Em minha opinião, todavia, não compete ao Tribunal resolver estas dúvidas. Segundo a jurisprudência constante do Tribunal, a repartição das competências nos reenvíos ao abrigo do artigo 177.o impõe-lhc que «[se limite] a deduzir da sua letra c espírito [do Tratado] o significado das normas comunitárias, ficando a aplicação ao caso concreto das normas assim interpretadas reservada ao juiz nacional» ( *14 ). Compete, portanto, ao órgão jurisdicional nacional proceder à especificação da matéria de facto e aplicar a interpretação feita pelo Tribunal das disposições de direito comunitário relevantes. Se o órgão jurisdicional nacional considerasse que M. Ramthun agiu, na realidade, em nome próprio c não cm nome da INC no presente processo, não existiria nenhum elemento interestatal que reconduzisse a situação cm causa ao âmbito de aplicação do Tratado c o órgão jurisdicional nacional teria competência para julgar o recurso interposto fundando-se unicamente no direito alemão. Mas não foi com base nesta hipótese que o órgão jurisdicional nacional reenviou o processo. O Tribunal não deveria duvidar da boa fé das partes quando esta não foi posta em dúvida pelo órgão jurisdicional nacional, salvo em casos absolutamente evidentes. Em minha opinião, o Tribunal deve responder às questões apresentadas pelo órgão jurisdicional nacional, pressupondo que existe um verdadeiro problema de aplicação do direito comunitário.

B — As disposições relevantes do Tratado

13.

A Comissão, apoiada de novo pela Alemanha na audiência, exprime igualmente algumas dúvidas sobre se as questões suscitadas pelo despacho de reenvio dizem respeito, na realidade, às disposições do Tratado que regulam a liberdade de estabelecimento e não às relativas à livre prestação de serviços, como supõe o órgão jurisdicional nacional. A Comissão, referindo-se em especial ao acórdão Van Binsbergen ( *15 ), sustenta que, se as actividades de M. Ramthun na Alemanha por conta da INC constituem, na realidade, uma presença permanente desta empresa na Alemanha, as autoridades nacionais competentes poderiam aplicar essas disposições à INC, para evitar que o artigo 59.o fosse utilizado para escapar à aplicação das regras profissionais justificadas pelo interesse geral.

14.

Segundo a jurisprudência constante do Tribunal, com vista «a fornecer ao órgão jurisdicional que lhe apresentou a questão prejudicial uma resposta útil, o Tribunal pode ser levado a tomar em consideração normas de direito comunitário, às quais o tribunal nacional não tenha feito referência no enunciado da sua questão. Em contrapartida, é ao órgão jurisdicional nacional que incumbe decidir se a norma comunitária, tal como foi interpretada pelo Tribunal, ao abrigo do artigo 177.o, se aplica ou não ao caso submetido à sua apreciação» ( *16 ). As circunstâncias do processo principal levaram a Comissão e a Alemanha a sugerir que o aparente estabelecimento francês da INC não seria mais do que um meio de esta se subtrair às exigências da RBerG. O agente da Comissão declarou na audiência que a Comissão deixava à «apreciação do Tribunal» decidir se estas dúvidas eram fundadas. Essa decisão só pode ser tomada com base em conclusões de facto adequadas, que competem exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional, e, portanto, o Tribunal só pode fornecer os critérios de interpretação ao órgão jurisdicional nacional ( *17 ).

15.

As disposições dos capítulos do Tratado relativos ao direito de estabelecimento e aos serviços «excluem-se mutuamente» e o segundo apenas é aplicável se as disposições relativas ao direito de estabelecimento não se aplicarem, ou seja, os artigos 59.o e 60.o são subsidiários em relação às disposições que regulam o direito de estabelecimento ( *18 ). Se o órgão jurisdicional nacional concluísse que a INC utilizava a residência particular de M. Ramthun na Alemanha a fim «de participar, de modo estável e contínuo, na vida económica de um Estado-Membro diferente do seu Estado de origem e dela tirar benefício», incluiria assim as circunstâncias do caso na noção «muito ampla» de estabelecimento no sentido do Tratado ( *19 ). A única informação de que o Tribunal dispõe é que, em seis ocasiões, entre 2 de Fevereiro e 8 de Maio de 1994, a INC procedeu a acções de cobrança na Alemanha em nome da Broede e que, segundo M. Ramthun, tem outros clientes estrangeiros, alguns dos quais alemães. Compete ao órgão jurisdicional nacional determinar se esta prestação de serviços efectuada pela INC na Alemanha é suficientemente intermitente para ter caracter temporário. O órgão jurisdicional nacional, no entanto, deve aplicar os critérios estabelecidos pelo Tribunal. Deveria ter em conta, em especial, a declaração do Tribunal no acórdão Gebhard, segundo a qual «... o carácter temporário das actividades... deve ser apreciado não apenas cm função da duração da prestação, mas também em função da sua frequência, periodicidade ou continuidade» ( *20 ).

16.

É evidente, portanto, que o carácter temporário de uma prestação de serviços ao abrigo do artigo 59.o do Tratado «não exclui a possibilidade de o prestador de serviços, na acepção do Tratado, se dotar, no Estado-Membro de acolhimento, de uma certa infra-estrutura (incluindo um escritório ou gabinete), na medida em que essa infra-estrutura seja necessária para os efeitos da realização da prestação em causa» ( *21 ). M. Ramthun comunicou ao Tribunal que a maioria dos clientes da INC são franceses e que a sociedade tem um escritório em França. Não penso que os elementos contidos no despacho de reenvio sugiram que seja necessário analisar o caso sob um ângulo que não seja o do artigo 59.o

17.

A questão essencial é saber se uma proibição como a prevista pelo direito alemão constitui uma restrição injustificada à livre prestação de serviços de cobrança de dívidas.

C — A livre prestação de serviços de cobrança transfronteiriços

1) As restrições relevantes

18.

Há poucas dúvidas, como admitem no presente processo tanto o órgão jurisdicional nacional como a Alemanha, de que o artigo 1.o, § 1, da RBerG constitui, à primeira vista, uma restrição à livre prestação de serviços contrária ao artigo 59.o do Tratado. O Tribunal declarou reiteradamente que «o artigo 59.o do Tratado exige não só a eliminação de qualquer discriminação contra o prestador de serviços estabelecido num outro Estado-Membro em razão da sua nacionalidade, mas também a supressão de qualquer restrição, ainda que indistintamente aplicada a prestadores nacionais e de outros Estados-Membros, quando esta seja susceptível de impedir, entravar ou tornar menos atractivas as actividades do prestador estabelecido noutro Estado-Membro, onde preste legalmente serviços análogos» ( *22 ). No presente processo, resulta claramente, cm especial, das observações apresentadas na audiência pela Alemanha, que a RBerG contém efectivamente duas restrições distintas à liberdade das empresas de cobrança de prestarem serviços a título profissional na Alemanha: a primeira é a necessidade de obter uma autorização das autoridades regionais competentes para exercer actividades de cobrança extrajudicial de dívidas; a segunda consiste na proibição de intentar uma acção judicial para cobrança de uma dívida sem constituir advogado ( *23 ). O facto, não contestado, de estas restrições não serem discriminatórias, não é, no entanto, decisivo.

19.

No acórdão Säger, por exemplo, o Tribunal declarou que a legislação de um Estado-Membro que sujeita a prestação de certos serviços, «por uma empresa estabelecida noutro Estado-Membro, à concessão de uma autorização administrativa que dependa da posse de determinadas qualificações profissionais» constitui uma restrição à livre prestação de serviços, na acepção do artigo 59.o do Tratado ( *24 ). O acórdão Säger dizia precisamente respeito a uma situação em que, por força do mesmo artigo da RBerG, a prestação a título profissional de certos serviços rotineiros de fiscalização de patentes estava reservada a advogados e a agentes de propriedade industrial. Em minila opinião, as restrições em causa no presente processo caem sob a alçada da proibição do artigo 59.o Todavia, dado que se aplicam da mesma maneira às empresas de cobrança alemãs e estrangeiras, há que analisar se podem, ainda assim, ser justificadas.

2) A justificação

20.

Na audiência, todos concordaram que o órgão jurisdicional nacional formulou mal a primeira questão, na parte em que se refere à necessidade de obter uma autorização administrativa especial para a prestação de serviços de cobrança judicial; trata-se, evidentemente, da obrigação imposta pela RBerG às pessoas que desejem prestar serviços extrajudiciais, ao passo que a prestação de serviços judiciais está inteiramente reservada aos advogados, e que as empresas como a INC não poderiam obter autorização para esse efeito. A prestação destes serviços profissionais de cobrança judicial não é permitida nem pelo ZPO nem pela RBerG, e a questão de saber se as autoridades alemãs competentes podiam legitimamente exigir de empresas como a INC a obtenção de uma autorização para a prestação de serviços de cobrança extrajudicial, portanto, não se põe ( *25 ). Em minha opinião, a única questão de direito comunitário que, de facto, se coloca, é saber se a proibição, na Alemanha, da prestação de serviços de cobrança judicial de dívidas, por pessoas que não sejam advogados, é susceptível de ser justificada «por uma razão imperiosa de interesse geral» ( *26 ).

a) Observações apresentadas ao Tribunal

21.

A Broede afirma, nas suas observações escritas, que um Estado-Membro não pode, sem privar de efeito útil as disposições do Tratado relativas à liberdade de prestação de serviços, subordinar a realização de uma prestação de serviços no seu território, por uma empresa estabelecida noutro Estado-Membro, à observância de todas as condições exigidas às empresas estabelecidas nesse Estado. Sustenta que nem as exigências imperativas de protecção dos consumidores nem o bom funcionamento da justiça justificam as restrições contidas no artigo 1.o, § 1, da RBerG. A Broede sustenta que esses objectivos poderiam também ser alcançados por medidas menos restritivas. Tratando-se do interesse do credor, a Broede sustenta que, em vez de impor ao prestador de serviços estrangeiro a obtenção de uma autorização, as autoridades alemãs competentes deveriam aceitar um certificado de honorabilidade ou de solvibilidade emitido pelas autoridades competentes do Estado-Membro em que o prestador de serviços está estabelecido. Sustenta, em segundo lugar, que o bom funcionamento da justiça no Estado-Membro de acolhimento poderia ser assegurado se as autoridades desse Estado-Membro se contentassem cm exigir que a empresa estrangeira prestadora de serviços de cobrança aí elegesse domicílio para a correspondência jurídica oficial.

22.

A Comissão também é de opinião que a legislação nacional comporta uma restrição injustificada à livre prestação de serviços. A Comissão sustenta que, nas circunstâncias do presente caso, as restrições devem ser objectivamente necessárias para garantir o respeito das regras profissionais e proteger os destinatários dos serviços, sem ir além do que é estritamente indispensável. Segundo a Comissão, trata-se de uma questão de direito comunitário e o Tribunal não deveria sentir-se vinculado por opiniões expressas pelo órgão jurisdicional nacional.

23.

Segundo a Comissão, dado que, cm direito alemão, por força do § 79 do ZPO, o pedido de penhora pode ser feito sem a assistência de um advogado, e que os credores podem, portanto, apresentar eles próprios os pedidos ou por intermédio de consultores não profissionais por si mandatados, recorrendo, se necessário, aos serviços da Secretaria do tribunal, não há qualquer justificação para proibir empresas de cobrança experientes de agirem por conta dos credores. A Comissão sustenta, além disso, que o interesse da boa administração da justiça não justifica a proibição, porque, se os funcionários encarregados da administração da justiça devem tratar dos pedidos de assistência de credores que podem ser totalmente ignorantes em relação à legislação e aos procedimentos jurídicos adequados, esses funcionários estarão em posição de tratar mais facilmente dos pedidos de empresas de cobrança. Na opinião da Comissão, uma proibição geral como a da RBerG é desproporcionada em relação ao objectivo pretendido.

24.

Questionada pelo Tribunal na audiência sobre a razão por que as empresas francesas prestadoras de serviços de cobrança de dívidas na Alemanha deveriam ter essa possibilidade, enquanto as empresas alemãs concorrentes seriam forçadas a constituir advogado, a Comissão invocou a contradição pretensamente subjacente em direito alemão, segundo a qual não apenas os advogados mas qualquer pessoa que intervenha a título não profissional podem representar o credor. Segundo a Comissão, a verdadeira finalidade da legislação nacional era a salvaguarda do monopólio dos advogados; o facto de os advogados estarem submetidos a obrigações éticas e deverem respeito aos tribunais junto dos quais exercem, não pode significar que a protecção do consumidor ou do interesse da justiça exija absolutamente a exclusão da prestação de serviços de cobrança judicial por empresas de cobrança de dívidas não alemãs. A Comissão reconheceu que, na falta de harmonização comunitária, haveria que admitir uma discriminação em detrimento das empresas alemãs de cobrança, devido à não aplicação da proibição constante da RBerG ao fornecimento ocasional, na Alemanha, de serviços deste tipo por empresas autorizadas para este efeito noutro Estado-Membro, mas que isto não justificava que se criassem entraves à liberdade de prestação de serviços por empresas de cobrança estrangeiras.

25.

A Alemanha sustenta, através de argumentos análogos aos avançados pelo devedor, que as restrições contidas na RBerG são justificadas por razões imperiosas de protecção dos devedores e dos credores e pelo interesse geral da boa administração da justiça. A Alemanha refere-se, em especial, ao acórdão Säger, no qual o Tribunal reconheceu expressamente a validade da legislação nacional destinada a proteger os destinatários de serviços dos prejuízos que poderiam sofrer por causa de conselhos jurídicos dados por pessoas não qualificadas ( *27 ). Segundo a Alemanha, a complexidade dos procedimentos necessários para a execução judicial das dívidas, a diversidade dos meios de execução disponíveis e os seus efeitos, por vezes muito diferentes, tanto para os credores como para os devedores, e a necessidade de assegurar o monopólio do Estado relativamente à utilização de meios de coacção, justificam as restrições.

26.

O § 79 do ZPO não é incompatível com esta política. Não diz respeito à prestação de consultadoria jurídica a terceiros, mas simplesmente ao processo civil. No interesse das partes que podem não ter meios financeiros para constituir advogado, o § 79 permite que, em certos processos perante tribunais inferiores, as partes possam representar-se a si mesmas, porque, nessas circunstâncias, apenas está em jogo o interesse das partes, e não o de terceiros. No sentido de apoiar as partes que não tenham meios ou que desejem evitar custos, o ZPO autoriza-as igualmente a recorrer à assistência de membros da sua família ou de amigos que, graças à sua experiência anterior ou por qualquer outra razão, podem estar melhor habilitados para representar. Segundo a Alemanha, esta possibilidade apenas devia ser encarada como uma extensão do direito da parte de se representar a si mesma e, portanto, não é comparável com a representação a título profissional por um terceiro, que é regulada pela RBerG. Os casos em que uma parte se representa a si mesma são excepcionais, o que, como alega a Alemanha, é conforme aos objectivos gerais da RBerG e do ZPO ( *28 ), de que os representantes das partes em processos judiciais sejam, sempre que possível, advogados.

b) Análise

27.

Segundo a jurisprudência constante do Tribunal, «as medidas nacionais susceptíveis de afectar ou de tornar menos atraente o exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado devem preencher quatro condições: aplicarem-se de modo não discriminatório, justificarem-se por razões imperativas de interesse geral, serem adequadas para garantir a realização do objectivo que prosseguem e não ultrapassarem o que é necessário para atingir esse objectivo» ( *29 ).

28.

No acórdão Reyners, o Tribunal confirmou que o exercício de uma profissão como a de advogado continua a ser regulado pela legislação dos diferentes Estados-Mcmbros ( *30 ). A jurisprudência do Tribunal reconhece que, «na falta de regras comunitárias específicas na matéria, cada Estado-Membro tem a liberdade de regular o exercício da profissão de advogado no seu território» ( *31 ). O Tribunal reconheceu igualmente «as particularidades da profissão de advogado» ( *32 ). Isto resulta essencialmente do facto de os advogados estarem sujeitos a obrigações não só em relação aos seus próprios clientes mas também cm relação à administração da justiça do Estado em que estão estabelecidos e, no caso de uma prestação de serviços transfronteiriça, do Estado-Membro de acolhimento. Esta última obrigação reflecte-se na directiva de 1977, nos termos da qual um advogado que exerça temporariamente actividades noutro Estado-Membro «... respeitará as regras profissionais do Estado-Membro de acolhimento, sem prejuízo das obrigações a que esteja sujeito no Estado-Membro de proveniência» ( *33 ). A este respeito, o Tribunal declarou no acórdão Säger, a propósito de serviços de consultadoria jurídica, que o interesse geral da protecção dos destinatários desses serviços «contra o eventual prejuízo resultante de consultadoria jurídica prestada por pessoas sem as qualificações profissionais ou morais necessárias... justifica uma restrição à livre prestação de serviços» ( *34 ).

29.

No interesse dos destinatários de serviços jurídicos, dos terceiros afectados pela prestação desses serviços e da integridade dos sistemas jurídicos nacionais, não tenho dúvidas de que os Estados-Mcmbros podem, cm princípio, limitar, de modo não discriminatorio, o direito de representar outrem a título profissional perante os seus tribunais, a pessoas que tenham qualificações profissionais e morais adequadas. Assim, a questão que se põe no presente caso é saber se o monopólio reservado aos advogados constitui um meio adequado para realizar a política nacional legítima, que consiste em proteger os devedores e os credores envolvidos em processos de cobrança, e a integridade do próprio sistema jurídico nacional, e, em especial, se este objectivo não poderia ser atingido por meios menos restritivos.

30.

Como o advogado-geral F. G. Jacobs afirmou nas suas conclusões no processo Säger, «a necessária justificação dependerá da natureza dos serviços e da restrição» ( *35 ). O advogado-geral apresentou a RBerG como tendo um duplo objectivo, isto é, «proteger os consumidores contra eventuais prejuízos resultantes da prestação de consultadoria jurídica por pessoas sem as necessárias qualificações» e «proteger os advogados contra a concorrência desleal de pessoas sem as necessárias qualificações e não sujeitas às limitações de uma profissão regulamentada» ( *36 ). No presente processo, em que está em causa a capacidade de pleitear de pessoas que não sejam advogados, a necessidade de salvaguardar o bom funcionamento da justiça deveria igualmente ser acrescentada à preocupação manifestada pelo advogado-geral F. G. Jacobs, quando afirma que «o público deve ser protegido contra os leigos sem as necessárias qualificações que se fazem passar por advogados, tal como deve ser protegido contra os charlatães que se intitulam médicos» ( *37 ). Quando estão em jogo interesses fundamentais, sou de opinião de que convém ser muito prudente antes de contestar o carácter proporcionado de disposições nacionais indistintamente aplicáveis com base no artigo 59.o do Tratado. No presente caso, diferentemente do processo Säger, não está em causa a prestação de serviços quase jurídicos essencialmente rotineiros de «natureza simples» ( *38 ). Além disso, contrariamente ao que se passava no processo Säger, os serviços em causa são frequentemente prestados «ao consumidor em geral, desprovido de conhecimentos» ( *39 ), dado que nada permite supor que os credores comerciantes tenham conhecimentos de direito nem que todos os clientes de empresas de cobrança sejam pessoas cujos créditos resultaram de transacções comerciais.

31.

Estou convencido de que a proibição de as empresas de cobrança procederem à execução judicial de dívidas em nome dos seus clientes constitui uma medida justificada, adequada e proporcionada, motivada por razões imperiosas de interesse geral que visam proteger tanto os credores como os devedores e assegurar o bom funcionamento do próprio sistema jurídico. A Broede e a Comissão centram essencialmente as suas

alegações, a respeito do carácter desproporcionado da proibição da RBerG, no interesse dos credores e no sistema jurídico. Segundo a Broede, por exemplo, as medidas que asseguram a protecção dos interesses financeiros dos credores, na hipótese de a empresa de cobrança obter o pagamento do devedor antes de pagar ao credor, seriam suficientes. Este argumento não me parece convincente. Essa medida teria por efeito, no máximo, proteger os credores das empresas de cobrança pouco escrupulosas do ponto de vista financeiro. Não daria qualquer protecção contra as consequências potencialmente graves, tanto para os devedores como para os credores, nem contra a perturbação do sistema jurídico, que resultariam da incompetência ou da inexperiência dessas empresas de cobrança em matéria de prestação de serviços de cobrança judicial.

32.

Penso que a Alemanha tem razão ao afirmar que se pode estabelecer uma distinção entre, por um lado, a comparência pessoal de uma parte no processo judicial e, por extensão, a representação pessoal mas a título não profissional desse particular por outro particular e, por outro lado, a representação em justiça desses particulares por terceiros que agem a título profissional. De facto, em certos Estados-Mcmbros, os particulares podem representar-se a si mesmos cm todos os casos, qualquer que seja o nível do órgão jurisdicional em causa ( *40 ). A prestação incontrolada de serviços jurídicos por pessoas não qualificadas é outra questão. Os riscos que comporta para a boa administração da justiça são bem conhecidos. As vítimas potenciais deste tipo de pessoas, que agem sem controlo, não são só os seus clientes, mas as outras partes, os tribunais e o público. O potencial ónus que a prossecução de acções em justiça (ou a defesa nessas acções) por partes sem meios financeiros faz pesar sobre o bom funcionamento da justiça é um ónus que numerosos Estados, se não todos, estão dispostos a aceitar, pelo menos até certo ponto ( *41 ). Admitindo, embora se deva dizer que o Tribunal não tem provas a este respeito, que a França autoriza as empresas de cobrança de dívidas a apresentar, por exemplo, pedidos com vista à obtenção de despachos de penhora perante os órgãos jurisdicionais franceses competentes, sem a assistência de um advogado, não penso que o artigo 59.o do Tratado imponha ao ordenamento jurídico alemão facilitar às empresas de cobrança estabelecidas cm França a prática, a título profissional, de actos judiciais perante os órgãos jurisdicionais alemães. Para o sistema jurídico de um país como a Alemanha, disponibilizar ocasionalmente os serviços (e o tempo) dos seus funcionários a particulares que pedem a intervenção judicial, é uma coisa, mas, em minha opinião, outra coisa é pedir a esses funcionários que controlem as actividades das empresas de cobrança que agem a título profissional, de maneira não só a assegurar que não prestem maus serviços aos seus clientes mas também a impedi-los de induzir em erro os tribunais perante os quais apresentam pedidos de penhora, tendo em conta as implicações que podem ter, especialmente para os devedores, as decisões executórias obtidas com base em falsas alegações.

33.

Em minha opinião, esta conclusão é confirmada pela jurisprudência constante do Tribunal. No processo Van Binsbergen, que dizia respeito à prestação, a título profissional, de serviços jurídicos por um não advogado (o Sr. Kortmann) perante os órgãos jurisdicionais de segurança social neerlandeses, a representação por «advocaat» (advogado) não era obrigatória. As circunstâncias deste processo eram, portanto, fundamentalmente diferentes das do presente caso, em que apenas os advogados são autorizados a representar, a título profissional, os clientes na Alemanha. A seguinte declaração do Tribunal no acórdão Van Binsbergen reveste, em minha opinião, grande alcance:

«Tendo em consideração a natureza especial das prestações de serviços, não se podem todavia considerar incompatíveis com o Tratado as condições específicas, impostas ao prestador, motivadas pela aplicação de regras profissionais justificadas pelo interesse geral — nomeadamente as regras relativas à organização, qualificação, deontologia, controlo e responsabilidade — que devem ser cumpridas por qualquer pessoa estabelecida no Estado onde a prestação é realizada, na medida em que o prestador escapasse à aplicação de tais regras devido ao facto de residir num outro Estado-Membro.»

Podendo as actividades de consultadoria, como as do Sr. Kortmann, ser exercidas livremente nos Países Baixos, o Tribunal declarou que «a condição de residência nesse Estado constitui uma restrição incompatível com os artigos 59.o e 60.o do Tratado, quando o bom funcionamento da justiça pode ser realizado através de medidas menos proibitivas, tais como a escolha de um domicílio».

34.

No presente processo, a RBerG, segundo a interpretação dos tribunais alemães, não impõe a residência na Alemanha das empresas de cobrança de dívidas, exigindo simplesmente que estas assegurem os serviços de um advogado quando intentem acções judiciais de cobrança de dívidas em representação dos seus clientes ( *42 ). Estes advogados, como a Alemanha admitiu expressamente na audiência, não têm de ser advogados alemães. Uma empresa como a INC poderia, por exemplo, escolher um advogado francês que se deslocaria à Alemanha para intentar a acção em nome dessa sociedade. Penso que é oportuno recordar, a este respeito, que, no acórdão Comissão/Alemanha ( *43 ), o Tribunal declarou, nomeadamente, que, ao impor ao advogado não alemão que presta serviços na Alemanha a obrigação de actuar concertadamente com um advogado estabelecido no território alemão, mesmo quando o direito alemão não exige o patrocínio obrigatório por advogado, a Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 59.o e 60.o do Tratado e da directiva de 1977. Assim, a Comissão engana-se ao afirmar que a exigência da RBerG tem por efeito compartimentar o mercado alemão em benefício exclusivo dos advogados. Os advogados de outros Estados-Membros podem ser escolhidos por empresas de cobrança nacionais ou estrangeiras sempre que entendam que seja necessário recorrer à justiça alemã em representação dos seus clientes credores. Portanto, não é proibido às empresas de cobrança não alemãs prestar serviços de cobrança global a clientes cujos devedores residem na Alemanha.

35.

Na medida em que a RBerG tende a reservar aos advogados da Comunidade o monopólio da representação jurídica a título profissional na Alemanha, penso que, no estado actual do direito comunitário, a sua manutenção 6 justificada pelo interesse geral. Os advogados são profissionais qualificados que exercem uma função independente e devem, como o Tribunal tem repetidamente salientado, prosseguir tanto os interesses dos seus clientes como os da boa administração da justiça, o que implica que estão sujeitos a regras deontológicas estritas ( *44 ). E a aplicação destes deveres profissionais aos advogados que confere a necessária garantia de integridade e de competência aos consumidores finais dos serviços jurídicos (no presente caso, os credores), aos devedores e à justiça. A proibição da RBerG é, portanto, adequada e necessária para assegurar a protecção desses interesses.

36.

Não penso que a legislação alemã não seja adequada simplesmente porque outro Estado-Membro — neste caso, a República Francesa — não faz a mesma opção legislativa. Como o Tribunal declarou no acórdão Alpine Investments, a propósito da legislação de um Estado-Membro destinada a proteger a boa reputação de um sector financeiro nacional, «o facto de um Estado-Membro impor regras menos rígidas que as impostas por outro Estado-Membro não significa que estas últimas sejam desproporcionadas c, portanto, incompatíveis com o direito comunitario» ( *45 ).

37.

Em consequência, não penso que as disposições de direito alemão em causa no presente processo, na medida cm que reservam aos advogados a prestação de serviços de cobrança judicial, sejam incompatíveis com o artigo 59.o do Tratado. Assim, a segunda questão fica destituída de objecto.

Conclusão

38.

Proponho ao Tribunal que responda às questões que lhe foram apresentadas pelo Landgericht Dortmund, nos seguintes termos:

«O artigo 59.o do Tratado CE não se opõe a uma regulamentação nacional que proíbe uma empresa estabelecida noutro Estado-Membro de proceder à cobrança judicial de dívidas alheias, pelo facto de esta actividade ser reservada aos advogados nos termos dessa regulamentação nacional.»


( *1 ) Língua original: inglês.

( *2 ) BGBl., p. 455.

( *3 ) O tipo de decisão cm causa parece corresponder a uma «attachment order» dos tribunais da Common Law ou a uma «saisie-arret» nalgumas ordens jurídicas romano-germânicas. Para simplificar, passarei a referi-la como «despacho de penhora».

( *4 ) RGBl., p. 1478.

( *5 ) Esta última condição só sc aplica a profissionais que não sejam nacionais da Comunidade ou de Estados do EEE.

( *6 ) O agente do Governo alemão explicou na audiência que a expressão «a título profissional» significava normalmente um serviço prestado repetidamente, mas que, segundo a jurisprudência do Bundesgerichtshof, o simples facto de se aceitar honorários bastava para atribuir carácter profissional à prestação de um serviço.

( *7 ) Na audiência, o agente do Governo alemão precisou ao Tribunal que a cobrança judicial de dívidas pelas empresas de cobrança era «absolutamente proibida» na Alemanha. Fez referencia, cm especial, ao § 3 do Bundesrechtsanwaltsordnung (estatuto dos advogados, a seguir «BRAO»), segundo o qual os advogados serão os consultores profissionais independentes que representam as pessoas cm todos os assuntos jurídicos, cm particular cm acções judiciais.

( *8 ) A INC está registada no tribunal de commerce de Senlis, França, sob o número 391100021 (93B185).

( *9 ) Segundo as informações prestadas ao Tribunal, não existe cm França regulamentação legal específica sobre as actividades das empresas de cobrança.

( *10 ) Acórdão de 28 de Março de 1979 (175/78, Recueil, p. 1129, n.o 11).

( *11 ) V. o acórdão de 26 de Abri! de 1988, Bond van Adverteerders c o. (352/85, Colect., p. 2085, n.o 13).

( *12 ) Acórdão de 10 de Maio de 1995 (C-384/93, Colcct., p. I-1141, n.o 27 das conclusões).

( *13 ) O original alemão emprega os termos «vertreten durch».

( *14 ) V., por exemplo, o acórdão de 27 dc Março de 1963, Da Costa c o. (28/62, 29/62 c 30/62, Colect. 1962-1964, p. 233).

( *15 ) Acórdão de 3 de Dezembro de 1974 (33/74, Colect., p. 543).

( *16 ) Acórdão de 20 de Março de 1986, Tissier (35/85, Colect., p. 1207, n.o 9).

( *17 ) V, por exemplo, o acórdão de 23 de Novembro de 1989, Parfümerie-Fabrik 4711 (C-150/88, Colect., p. 3891, n.o 12).

( *18 ) V, por exemplo, o acórdão de 30 de Novembro de 1995, Gebhard (C-55/94, Colect., p. I-4165, n.os 20 e 23).

( *19 ) V. acórdão Gebhard, n.o 25.

( *20 ) Acórdão Gcbhard, n.o 27; ver também a análise pormenorizada da questão nas conclusões do advogado-geral P. Léger, cm especial pontos 32 a 38.

( *21 ) Ibidem.

( *22 ) V., por exemplo, o acórdão de 28 de Março de 1996, Guiot (C-272/94, Colect., p. I-1905).

( *23 ) A Alemanha referiu na audiência que o advogado não tem necessariamente de ser um «Rechtsanwalt», podendo ser um advogado habilitado noutro Estado-Membro, que exerça a sua actividade na Alemanha, cm conformidade com a Directiva 77/249/CEE do Conselho, de 22 de Março de 1977, tendente a facilitar p exercício efectivo da livre prestação de serviços pelos advogados (JO L 78, p. 17; EE 06 F1 p. 224, a seguir «directiva de 1977»),

( *24 ) Acórdão de 25 de Julho de 1991 (C-76/90, Colect., p. I-4221, n.o 14).

( *25 ) Não dou assim qualquer opinião sobre a questão de saber se, por exemplo, a aplicação, a uma empresa de cobrança de dívidas estabelecida noutro Estado-Membro, dos critérios enunciados no artigo 1.o, § 1, n.o 2, da RBerG, scria justificada.

( *26 ) V. o acórdão Alpine Investments, já referido na nota 11, n.o 44.

( *27 ) Embora não o refira expressamente, a Alemanha tinha provavelmente cm vista, cm especial, o n.o 16 do acórdão. V., além disso, o n.o 28, infra.

( *28 ) A Alemanha refere o § 157 do ZPO, segundo o qual (n.o 1) as pessoas que representam outrem a título profissional não podem pleitear oralmente; e nos termos do qual (n.o 2) os tribunais podem recusar às partes, seus representantes ou consultores, que não sejam advogados, o direito de pleitear, quando não são capazes de o fazer de modo satisfatório.

( *29 ) V. o acórdão Gebhard, n.o 37.

( *30 ) Acórdão de 21 de Junho de 1974 (2/74, Colect., p. 325, n.o 48). Está actualmente cm discussão, a nível político na Comunidade, uma proposta de directiva destinada a regular o direito de estabelecimento dos advogados; v. COM(94)572 final de 21 de Dezembro de 1994.

( *31 ) Acórdão de 12 de Julho de 1984, Klopp (107/83, Recueil, p. 2971, n.o17).

( *32 ) Ibidem, n.o 20.

( *33 ) Já referida na nota 22, artigo 4.o, n.o 2.

( *34 ) V. n.o 16 c 17 do acórdão.

( *35 ) V. n.o 28 das conclusões.

( *36 ) Ibidem, n.o 31

( *37 ) Ibidem, n.o 32.

( *38 ) V. o n.o 18 do acórdão.

( *39 ) V. as conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs, n.o 35.

( *40 ) No Reino Unido c na Irlanda, por exemplo, as pessoas singulares podem representar-se a si mesmas até às mais altas instâncias judiciais, isto é, a House of Lords c a Supreme Court, respectivamente. Na Irlanda, este direito tem estatuto constitucional, como direito fundamental não enumerado garantido pelo artigo 40.o, terceiro parágrafo, da Constituição; v., por exemplo, a sentença do juiz Kenny, Macauley/Minister for Posts and Telegraphs (1966) IR, p. 345. Uma pessoa colectiva deve sempre, pelo menos na versão da Common Law aplicável cm Inglaterra c no Pafs dc Gales, na Irlanda c na Irlanda do Norte, ser representada por um advogado; v. (pelo menos para a Irlanda) o acórdão Battle/Irish Art Promotion Centre Ltd (1968) IR, p. 252. Todavia, as pessoas singulares não podem, nos processos ordinários perante esses órgãos jurisdicionais ou, até à data, por força do artigo 40.o, terceiro parágrafo, da Constituição irlandesa, designar outras pessoas singulares para agirem cm seu nome, a título profissional ou não; v., por exemplo, o acórdão de 5 de Maio de 1992, do juiz Budd da Irish High Court, P.M. L. B./P. H.J.

( *41 ) Há que referir que o artigo 6.o, n.o3, alínea c), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem só reconhece expressamente o direito de um indivíduo «defender-se a si pròprio» quando lhe é dirigida uma acusação cm materia penal.

( *42 ) Na audiência, o Governo alemão evoca, designadamente, um acórdão do Bundesgerichtshof de 7 de Novembro de 1995, no qual a relação entre o §3 da BRAO e o § 1 da RBerG foi interpretada, por referencia ao artigo 12.o da Constituição alemã relativo à liberdade de profissão («Berufsfreiheit»), no sentido de que as empresas de cobrança estão expressamente autorizadas a constituir advogado num processo judicial de cobrança de dívidas, se tiverem sido inicialmente mandatadas para este efeito pelo credor. Assim, o acesso aos tribunais não é proibido às empresas de cobrança, mas apenas a comparência pessoal a título profissional.

( *43 ) Acórdão de 25 de Fevereiro de 1988 (427/85, Colect., p. 1123).

( *44 ) V., por todos, o acórdão de 19 de Janeiro de 1988, Gullung (292/86, Colcct., p. 111).

( *45 ) V. o n.o 51 do acórdão. Concordamos com o advokado-geral E. G. Jacobs, quando afirma que «se assim não fosse, os Estados-Mcmbros, na falta de normas de harmonização, teriam de adaptar a respectiva legislação à do Estado-Membro que impusesse as exigências mais flexíveis» (n.o 90 das conclusões).