Acórdão do Tribunal de 14 de Dezembro de 1995. - Jeroen van Schijndel e Johannes Nicolaas Cornelis van Veen contra Stichting Pensioenfonds voor Fysiotherapeuten. - Pedidos de decisão prejudicial: Hoge Raad - Países Baixos. - Qualificação de um fundo profissional de pensões como empresa - Inscrição obrigatória num regime profissional de pensões - Compatibilidade com as regras da concorrência - Possibilidade de invocar pela primeira vez em recurso de cassação um fundamento de direito comunitário que implica alteração do objecto do litígio e análise da matéria de facto. - Processos apensos C-430/93 e C-431/93.
Colectânea da Jurisprudência 1995 página I-04705
Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória
++++
Direito comunitário ° Efeito directo ° Direitos individuais ° Salvaguarda pelos órgãos jurisdicionais nacionais ° Acções judiciais ° Modalidades processuais nacionais ° Condições de aplicação ° Apreciação oficiosa de uma acusação assente na violação do direito comunitário ° Limites ° Princípio do dispositivo em processo cível
(Tratado CEE, artigos 3. , alínea f), 5. , 85. , 86. , 90. e 177. )
Num processo relativo a direitos e obrigações cíveis de que as partes livremente dispõem, compete ao tribunal nacional aplicar disposições comunitárias vinculativas como os artigos 3. , alínea f), 85. , 86. e 90. do Tratado, mesmo quando a parte que tem interesse na respectiva aplicação as não tenha invocado, caso o direito interno lhe permita essa aplicação.
Efectivamente, compete aos órgãos jurisdicionais nacionais, por aplicação do princípio de cooperação enunciado no artigo 5. do Tratado, garantir a protecção jurídica decorrente para os particulares do efeito directo das disposições do direito comunitário.
Contudo, o direito comunitário não impõe que os órgãos jurisdicionais nacionais suscitem oficiosamente um fundamento assente na violação de disposições comunitárias, quando a análise desse fundamento os obrigue a renunciar ao princípio dispositivo a cujo respeito estão obrigados, saindo dos limites do litígio como foi circunscrito pelas partes e baseando-se em factos e circunstâncias diferentes daqueles em que baseou o seu pedido a parte que tem interesse na aplicação das referidas disposições.
Com efeito, na falta de regulamentação comunitária na matéria, compete à ordem jurídica interna de cada Estado-Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das acções judiciais destinadas a assegurar a protecção dos direitos que decorrem para os particulares do efeito directo do direito comunitário. Todavia, estas modalidades não podem ser menos favoráveis do que as modalidades relativas a acções análogas de natureza interna, nem tornar na prática impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária. Uma norma de direito interno que impeça a aplicação do procedimento previsto no artigo 177. do Tratado não deve ser aplicada.
Cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito comunitário deve ser analisado tendo em conta a posição que essa disposição ocupa no processo, a sua tramitação e as suas especificidades nas diversas instâncias nacionais. Nesta perspectiva, há que tomar em consideração, se for caso disso, os princípios que estão na base do sistema jurídico nacional, como a protecção dos direitos da defesa, o princípio da segurança jurídica e o bom andamento do processo.
A este respeito, o princípio do direito nacional de que a iniciativa processual em processo cível pertence às partes, só podendo o juiz actuar oficiosamente em casos excepcionais em que o interesse público exija a sua intervenção, dá aplicação a concepções partilhadas pela maior parte dos Estados-Membros no que toca às relações entre o Estado e o indivíduo, protege os direitos da defesa e garante o bom andamento do processo, designadamente pondo-o ao abrigo dos atrasos inerentes à apreciação de novos fundamentos.
Nos processos apensos C-430/93 e C-431/93,
que têm por objecto pedidos dirigidos ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177. do Tratado CEE, pelo Hoge Raad der Nederlanden, destinados a obter, nos litígios pendentes neste órgão jurisdicional entre
Jeroen van Schijndel
e
Stichting Pensioenfonds voor Fysiotherapeuten,
e entre
Johannes Nicolaas Cornelis van Veen
e
Stichting Pensioenfonds voor Fysiotherapeuten,
uma decisão a título prejudicial, por um lado, sobre a interpretação do direito comunitário relativamente à competência do tribunal nacional para apreciar oficiosamente a compatibilidade de uma norma de direito nacional com os artigos 3. , alínea f), 5. , 85. , 86. e/ou 90. do Tratado CEE e, por outro, sobre a interpretação dessas disposições,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, C. N. Kakouris, D. A. O. Edward, J.-P. Puissochet e G. Hirsch, presidentes de secção, G. F. Mancini, F. A. Schockweiler, J. C. Moitinho de Almeida (relator), P. J. G. Kapteyn, C. Gulmann, J. L. Murray, P. Jann e H. Ragnemalm, juízes,
advogado-geral: F. G. Jacobs,
secretário: R. Grass, secretário, e H. A. Ruehl, administrador principal,
vistas as observações escritas apresentadas:
° em representação dos recorrentes nos processos principais, por I. G. F. Cath, advogado no foro de Haia,
° em representação do recorrido nos processos principais, por P. A. Wackie Eysten, advogado no foro de Haia, e E. H. Pijnacker Hordijk, advogado no foro de Amesterdão,
° em representação do Governo neerlandês, por J. G. Lammers, consultor jurídico substituto no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,
° em representação do Governo alemão, por E. Roeder, Ministerialrat no Ministério Federal da Economia, e B. Kloke, Regierungsrat no mesmo ministério, na qualidade de agentes,
° em representação do Governo francês, por C. Chavance, secretário dos Negócios Estrangeiros na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e C. de Salins, subdirectora na mesma direcção, na qualidade de agentes,
° em representação do Governo do Reino Unido, por J. D. Colahan, do Treasury Solicitor' s Department, na qualidade de agente, e P. Duffy, barrister,
° em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por M. C. Timmermans, director-geral adjunto, B. J. Drijber e B. Smulders, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,
visto o relatório para audiência,
ouvidas as alegações dos recorrentes nos processos principais, representados por I. G. F. Cath, do recorrido no processo principal, representado por P. A. Wackie Eysten e E. H. Pijnacker Hordijk, do Governo neerlandês, representado por J. W. de Zwaan, consultor jurídico adjunto no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo alemão, representado por G. Thiele, Assessor no Ministério Federal da Economia, na qualidade de agente, do Governo grego, representado por V. Kontolaimos, consultor jurídico adjunto no Conselho Jurídico do Estado, na qualidade de agente, do Governo espanhol, representado por A. Navarro González, director-geral da coordenação jurídica e institucional comunitária, e R. Silva de Lapuerta e G. Calvo Díaz, abogadas del Estado, do Serviço Jurídico do Estado, na qualidade de agentes, do Governo francês, representado por C. Chavance e H. Renié, secretário dos Negócios Estrangeiros na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo irlandês, representado por J. O' Reilly, SC, e J. Payne, barrister-at-law, do Governo do Reino Unido, representado por J. D. Colahan e P. Duffy, e da Comissão, representada por M. C. Timmermans e B. J. Drijber, na audiência de 4 de Abril de 1995,
ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 15 de Junho de 1995,
profere o presente
Acórdão
1 Por acórdãos de 22 de Outubro de 1993, entrados na Secretaria do Tribunal de Justiça em 28 do mesmo mês, o Hoge Raad der Nederlanden submeteu, nos termos do artigo 177. do Tratado CEE, seis questões prejudiciais relativas, por um lado, à interpretação do direito comunitário no que diz respeito à competência do tribunal nacional para apreciar oficiosamente a compatibilidade de uma norma jurídica nacional com os artigos 3. , alínea f), 5. , 85. , 86. e/ou 90. do Tratado CEE e, por outro, à interpretação dessas disposições.
2 Estas questões foram suscitadas no âmbito de dois litígios em que são partes, por um lado, Van Schijndel (C-430/93) e Van Veen (C-431/93) e, por outro, o Stichting Pensioenfonds voor Fysiotherapeuten (Fundo de Pensões dos Fisioterapeutas, a seguir "Fundo").
3 Por despacho de 2 de Dezembro de 1993, os dois processos foram apensos para efeitos das fases escrita e oral e do acórdão.
4 Nos termos do artigo 2. , n. 1, da Wet betreffende verplichte deelneming in een beroepspensioenregeling (lei neerlandesa relativa à inscrição obrigatória num regime profissional de pensões, a seguir "WVD"), o ministro dos Assuntos Sociais tem competência para, a pedido de uma ou várias organizações profissionais que entender suficientemente representativas dos trabalhadores do ramo profissional em causa, impor a obrigação de inscrição num regime profissional de pensões constituído pelos membros da profissão relativamente a todas ou a várias categorias determinadas desses membros. Nos termos do artigo 2. , n. 4, da mesma lei, a inscrição implica, para as pessoas abrangidas, a obrigação de observar as disposições adoptadas a seu respeito pelos ou nos termos dos estatutos e dos regulamentos do fundo de pensões.
5 Em 1978, os fisioterapeutas constituíram o Fundo. Nos termos do artigo 2. , n. 1, do regulamento de pensão por este aprovado, é inscrito no Fundo "qualquer fisioterapeuta que trabalhe nessa qualidade nos Países Baixos e não tenha ainda atingido a idade da reforma". Determinadas categorias de fisioterapeutas estão excluídas. Assim se passa, designadamente, em relação aos que "trabalhem exclusivamente por conta de outrem, sendo-lhes, por essa razão, aplicável o regime constante da Algemene Burgerlijke Pensioenwet (regime geral de pensões) ou outro regime de pensões que seja, pelo menos, equivalente ao deste regulamento, desde que os interessados ° no respeito das disposições de carácter administrativo estabelecidas nesta matéria pelo artigo 25. , n. 3 ° dêem a conhecer por escrito ao Fundo a sua vontade nesse sentido" [artigo 2. , n. 1, alínea a)].
6 Por portaria de 31 de Março de 1978, o secretário de Estado dos Assuntos Sociais tornou obrigatória, nos termos do artigo 2. , n. 1, da WVD, a inscrição no Fundo para os fisioterapeutas que exerçam a sua actividade nos Países Baixos. Como o regulamento do Fundo, a portaria de 31 de Março de 1978 isenta desta obrigação os fisioterapeutas que "trabalhem exclusivamente por conta de outrem, sendo-lhes, por essa razão, aplicável o regime constante da Algemene Burgerlijke Pensioenwet, ou outro regime de pensões que seja, pelo menos, equivalente ao referido regime profissional de pensões, desde que os interessados ° no respeito das disposições de carácter administrativo estabelecidas nesta matéria pelo regulamento do referido regime de pensões ° dêem a conhecer por escrito ao Fundo a sua vontade nesse sentido".
7 Por força das "normas ao abrigo do artigo 2. , n. 1, alínea a), do regulamento do Fundo" que foram aprovadas pelo Fundo, a inscrição só não é obrigatória quando o regime de pensões a que tenha aderido um fisioterapeuta que exerça a sua profissão no âmbito de um contrato de trabalho se aplicar a "todos os membros da profissão que trabalhem ao serviço da sociedade de responsabilidade limitada".
8 Nos termos das disposições acima referidas, os recorrentes nos processos principais, que exercem a profissão de fisioterapeuta nos Países Baixos como trabalhadores por conta de outrem, requereram a isenção da inscrição obrigatória no regime profissional de pensões dos fisioterapeutas. O Fundo indeferiu os seus pedidos por o regime de pensões a que os recorrentes tinham aderido por contrato celebrado com a companhia de seguros Delta Lloyd não ser aplicável a todos os membros da profissão ao serviço da entidade patronal em causa (a seguir "requisito da generalidade"). Por conseguinte, dirigiu aos dois recorrentes uma injunção para obter a continuação do pagamento das contribuições devidas nos termos do regime de pensões. Ao que se opuseram estes últimos, respectivamente, no Kantonrechter te Breda e no Kantonrechter te Tilburg, alegando que o requisito da generalidade não tem fundamento nem no regulamento do Fundo nem na WVD.
9 O Kantonrechter te Breda negou provimento ao pedido de Van Veen, ao passo que o Kantonrechter te Tilburg deu provimento ao pedido de Van Schijndel. Em recurso, o Rechtbank te Breda partilhou do ponto de vista defendido pelo Fundo e negou provimento aos pedidos de ambos os recorrentes.
10 Van Veen e Van Schijndel interpuseram recurso de cassação destas decisões alegando, designadamente e pela primeira vez no decurso desta última instância, que o Rechtbank te Breda deveria ter apreciado "se necessário oficiosamente" a compatibilidade da inscrição obrigatória no Fundo em litígio com as normas superiores do direito comunitário, nomeadamente com os artigos 3. , alínea f), 5. , segundo parágrafo, 85. , 86. e 90. , bem como com os artigos 52. a 58. e 59. a 66. do Tratado CEE. Desta forma, no entender dos recorrentes nos processos principais, a obrigação litigiosa poderá privar de efeito útil as regras de concorrência aplicáveis aos organismos de seguro de pensões e aos membros individuais da profissão, na medida em que imporá ou favorecerá a celebração de acordos incompatíveis com as regras comunitárias de concorrência ou reforçará os respectivos efeitos. Além disso, o Fundo não poderá satisfazer a procura do mercado, pelo menos a procura de regimes de pensão equivalentes em condições mais atraentes.
11 O Hoge Raad verifica a este respeito que, em apoio dos fundamentos do recurso de cassação, os recorrentes prevalecem-se de numerosos factos e circunstâncias que não foram dados como provados pelo Rechtbank te Breda nem invocados em apoio dos respectivos pedidos nos órgãos jurisdicionais inferiores. Ora, segundo o órgão jurisdicional a quo, no direito neerlandês, a natureza do recurso de cassação implica que só podem ser invocadas novas alegações quando versem matéria de direito, ou seja, não exijam uma nova análise da matéria de facto. Por outro lado, embora o artigo 48. do código de processo civil neerlandês obrigue o juiz, se necessário, a suscitar oficiosamente fundamentos de direito, o princípio dispositivo, nos processos que respeitam a direitos e obrigações cíveis de que as partes livremente dispõem, implica que o suprimento da fundamentação de direito não obriga o juiz a sair dos limites do litígio como este foi circunscrito pelas partes nem a procurar fundamento em factos e circunstâncias diferentes dos que servem de fundamento ao pedido.
12 Tendo em conta quanto antecede, o Hoge Raad decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
"1) Deve o tribunal nacional, num processo civil que tem por objecto a livre disposição de direitos e obrigações que pertencem às partes, aplicar a alínea f) do artigo 3. e os artigos 5. , 85. e 86. e/ou 90. do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia quando o litigante interessado na sua aplicação os não invocou?
2) Caso se deva responder pela afirmativa à primeira questão, é esta resposta válida mesmo no caso de o tribunal, procedendo desse modo, infringir o princípio dispositivo a cujo respeito está obrigado, pois que desse modo a) actuará fora dos limites do litígio como foi circunscrito pelas partes e/ou b) deverá procurar fundamento noutros factos e circunstâncias, diferentes daqueles em que fundou o seu pedido a parte interessada na referida aplicação?
3) Caso também se deva responder pela afirmativa à segunda questão, é possível invocar pela primeira vez perante o tribunal nacional de cassação as disposições do Tratado referidas na primeira questão se a) segundo o direito processual nacional, em cassação, apenas é possível apresentar novas alegações caso versem exclusivamente sobre questões de direito, isto é, caso não exijam uma análise dos factos e possam ser acolhidas em todas as circunstâncias, e se b) os fundamentos do recurso exigem, designadamente, uma análise dos factos?
4) No contexto do alcance da WVD, exposto no ponto v da parte A do ponto 3.1, deve ser qualificado como empresa, nos termos dos artigos 85. , 86. ou 90. do Tratado, um fundo profissional de pensões ao qual, por força ou em conformidade com a WVD, estão obrigados a aderir os membros de uma profissão ou uma ou várias categorias determinadas desses membros, com as consequências jurídicas que a lei dá a essa obrigação, como referidas brevemente na parte A do ponto 3.1?
5) Em caso de resposta afirmativa, constitui a obrigação de aderir ao regime de pensões dos fisioterapeutas, referida na parte B do ponto 3.1, uma medida tomada por um Estado-Membro que anula o efeito útil das regras de concorrência aplicáveis às empresas ou esse é o caso apenas em determinadas circunstâncias e, assim sendo, em quais?
6) Caso esta última questão deva ser respondida pela negativa, podem outras circunstâncias fazer com que a referida obrigação seja incompatível com o disposto no artigo 90. do Tratado e, assim sendo, quais?"
Quanto à primeira questão
13 Deve salientar-se que as regras de concorrência referidas pelo órgão jurisdicional nacional são vinculativas e directamente aplicáveis na ordem jurídica interna. Uma vez que, por força do direito nacional, os órgãos jurisdicionais devem suscitar oficiosamente os fundamentos de direito que decorrem de uma norma interna vinculativa, que não tenham sido adiantados pelas partes, igual obrigação se impõe relativamente às normas comunitárias vinculativas (v., designadamente, acórdão de 16 de Dezembro de 1976, Rewe, 33/76, Colect., p. 813, n. 5).
14 O mesmo se passa se o direito nacional conferir ao tribunal a faculdade de aplicar oficiosamente a norma de direito vinculativa. Efectivamente, compete aos órgãos jurisdicionais nacionais, por aplicação do princípio da cooperação enunciado no artigo 5. do Tratado, garantir a protecção jurídica decorrente, para os particulares, do efeito directo das disposições do direito comunitário (v., designadamente, acórdão de 19 de Junho de 1990, Factortame e o., C-213/89, Colect., p. I-2433, n. 19).
15 Portanto, há que responder à primeira questão que, num processo relativo a direitos e obrigações cíveis de que as partes livremente dispõem, compete ao tribunal nacional aplicar as disposições dos artigos 3. , alínea f), 85. , 86. e 90. do Tratado, mesmo quando a parte que tem interesse na respectiva aplicação as não tenha invocado, caso o direito interno lhe permita essa aplicação.
Quanto à segunda questão
16 Com esta questão, o órgão jurisdicional a quo pretende saber se essa obrigação existe também no caso de, para aplicar oficiosamente as normas comunitárias já referidas, o tribunal deverá renunciar ao princípio dispositivo a cujo respeito está obrigado, saindo dos limites do litígio como foi circunscrito pelas partes e/ou baseando-se em factos e circunstâncias diferentes daqueles em que baseou o seu pedido a parte no litígio que tem interesse na aplicação das disposições do Tratado.
17 A este respeito, deve recordar-se que, na falta de regulamentação comunitária na matéria, compete à ordem jurídica interna de cada Estado-Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das acções judiciais destinadas a assegurar a protecção dos direitos que decorrem, para os particulares, do efeito directo do direito comunitário. Todavia, estas modalidades não podem ser menos favoráveis do que as modalidades relativas a acções análogas de natureza interna, nem tornar na prática impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (v., designadamente, acórdãos Rewe, já referido, n. 5; de 16 de Dezembro de 1976, Comet, 45/76, Colect., p. 835, n.os 12 a 16; de 27 de Fevereiro de 1980, Just, 68/79, Recueil, p. 501, n. 25; de 9 de Novembro de 1983, San Giorgio, 199/82, Recueil, p. 3595, n. 14; de 25 de Fevereiro de 1988, Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, Colect., p. 1099, n. 12; de 24 de Março de 1988, Comissão/Itália, 104/86, Colect., p. 1799, n. 7; de 14 de Julho de 1988, Jeunehomme e EGI, 123/87 e 330/87, Colect., p. 4517, n. 17; de 9 de Junho de 1992, Comissão/Espanha, C-96/91, Colect., p. I-3789, n. 12; e de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o., C-6/90 e C-9/90, Colect., p. I-5357, n. 43).
18 Deve também recordar-se que o Tribunal de Justiça já decidiu que uma norma de direito interno que impeça a aplicação do procedimento previsto no artigo 177. do Tratado não deve ser aplicada (v. acórdão de 16 de Janeiro de 1974, Rheinmuehlen, 166/73, Colect., p. 17, n.os 2 e 3).
19 Para aplicar estes princípios, cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito comunitário deve ser analisado tendo em conta a posição que essa disposição ocupa no processo, a sua tramitação e as suas especificidades nas diversas instâncias nacionais. Nesta perspectiva, há que tomar em consideração, se for caso disso, os princípios que estão na base do sistema jurídico nacional, como a protecção dos direitos da defesa, o princípio da segurança jurídica e o bom andamento do processo.
20 No caso concreto, deve salientar-se que o princípio de direito nacional de que, num processo cível, o tribunal deve ou pode suscitar oficiosamente fundamentos está limitado pelo seu dever de se cingir ao objecto do litígio e de basear a sua decisão na matéria de facto que lhe foi presente.
21 Esta limitação justifica-se pelo princípio de que a iniciativa processual pertence às partes, só podendo o juiz actuar oficiosamente em casos excepcionais em que o interesse público exija a sua intervenção. Este princípio dá aplicação a concepções partilhadas pela maior parte dos Estados-Membros no que toca às relações entre o Estado e o indivíduo, protege os direitos da defesa e garante o bom andamento do processo, designadamente pondo-o ao abrigo dos atrasos inerentes à apreciação de novos fundamentos.
22 Nestas condições, há que responder à segunda questão que o direito comunitário não impõe que os órgãos jurisdicionais nacionais suscitem oficiosamente um fundamento assente na violação de disposições comunitárias, quando a análise desse fundamento os obrigue a abandonar o princípio dispositivo a cujo respeito estão obrigados, saindo dos limites do litígio como foi circunscrito pelas partes e baseando-se em factos e circunstâncias diferentes daqueles em que baseou o seu pedido a parte que tem interesse na aplicação das referidas disposições.
Quanto às restantes questões
23 Tendo em conta as respostas dadas às duas primeiras questões, não é necessário responder à terceira. Também não é necessário responder às outras questões que foram submetidas apenas para a hipótese de ser entendido que o Hoge Raad deveria analisar um fundamento como o suscitado pelas partes no processo principal.
Quanto às despesas
24 As despesas efectuadas pelos Governos neerlandês, alemão, grego, espanhol, francês, irlandês e do Reino Unido, bem como pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo Hoge Raad der Nederlanden, por acórdãos de 22 de Outubro de 1993, declara:
1) Num processo relativo a direitos e obrigações cíveis de que as partes livremente dispõem, compete ao tribunal nacional aplicar as disposições dos artigos 3. , alínea f), 85. , 86. e 90. do Tratado CEE, mesmo quando a parte que tem interesse na respectiva aplicação as não tenha invocado, caso o direito interno lhe permita essa aplicação.
2) O direito comunitário não impõe que os órgãos jurisdicionais nacionais suscitem oficiosamente um fundamento assente na violação de disposições comunitárias, quando a análise desse fundamento os obrigue a abandonar o princípio dispositivo a cujo respeito estão obrigados, saindo dos limites do litígio como foi circunscrito pelas partes e baseando-se em factos e circunstâncias diferentes daqueles em que baseou o seu pedido a parte que tem interesse na aplicação das referidas disposições.