61993C0316

Conclusões do advogado-geral Jacobs apresentadas em 27 de Janeiro de 1994. - NICOLE VANEETVELD CONTRA SA LE FOYER E SA LE FOYER CONTRA FEDERATION DES MUTUALITES SOCIALISTES ET SYNDICALES DE LA PROVINCE DE LIEGE. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL: TRIBUNAL DE COMMERCE DE HUY - BELGICA. - SEGURO - DIRECTIVA - PRAZO DE TRANSPOSICAO - EFEITO DIRECTO. - PROCESSO C-316/93.

Colectânea da Jurisprudência 1994 página I-00763


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. Em 2 de Maio de 1988, Nicole Vaneetveld ficou ferida num acidente de viação; circulava a bordo de um veículo conduzido por seu marido, Jean Dubois.

2. Inicialmente, a seguradora de J. Dubois, Le Foyer SA, reconheceu a sua responsabilidade. Pagou uma parte dos prejuízos sofridos por N. Vaneetveld e parte das despesas médicas assumidas pelo fundo de seguros em matéria social em que a demandante está inscrita, a Fédération des mutualités socialistes et syndicales de la province de Liège ("FMSS"). Subsequentemente, porém, Le Foyer SA, tendo tomado conhecimento de que na altura do acidente N. Vaneetveld estava separada mas não divorciada do seu marido, recusou assumir a sua responsabilidade. Essa recusa baseou-se nos termos da apólice de seguro de J. Dubois e com o fundamento de que a legislação belga em vigor no momento do acidente autorizava a exclusão do cônjuge do segurado.

3. N. Vaneetveld intentou uma acção no tribunal de commerce de Huy contra Le Foyer SA, que, por seu turno, em pedido reconvencional, reclama à recorrente a devolução das importâncias já pagas. Le Foyer SA intentou igualmente uma acção no mesmo tribunal contra a FMSS para reembolso das importâncias que pagou a este organismo.

4. O tribunal de commerce, entendendo que os dois processos, que decidiu apensar, podiam ser resolvidos através da legislação comunitária na matéria, colocou ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

"1) O disposto no artigo 5. da segunda Directiva do Conselho de 30 de Dezembro de 1983 (84/5/CEE) é imediatamente aplicável na ordem jurídica belga?

2) Na afirmativa, terá esta disposição criado na esfera dos particulares direitos subjectivos que os órgãos jurisdicionais nacionais tenham obrigação de tutelar?

3) Mais concretamente, terão esses direitos nascido com a entrada em vigor da directiva ou a partir de 31 de Dezembro de 1987, data-limite imposta aos Estados-membros para alterarem as disposições nacionais ou ainda a partir de 31 de Dezembro de 1988 por força do n. 2 do artigo 5. da referida directiva?"

5. A decisão de reenvio não é muito comum, uma vez que não fornece informações sobre os factos do processo; após algumas considerações de ordem formal, limita-se a enunciar as questões acima referidas. O Governo francês alega que o pedido de decisão prejudicial é, por isso, inadmissível. Cita o despacho do Tribunal de Justiça no processo Monin (1), no qual o Tribunal recordou que a necessidade de efectuar uma interpretação do direito comunitário que seja útil para o juiz nacional exige que este defina o quadro factual e regulamentar em que se inscrevem as questões que coloca ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que assentam essas questões (n. 6).

6. Na verdade, é geralmente útil que um pedido de decisão prejudicial descreva, mesmo sucintamente, os factos em causa, para que a questão ou questões colocadas possam ser entendidas no seu contexto. Quando assim não acontece, o Tribunal sempre poderá analisar as questões no seu contexto com base nos autos do processo nacional e tendo em atenção as observações das partes; e não é raro que assim aconteça. Mas os Estados-membros e as instituições da Comunidade, que devem apresentar observações escritas ao mesmo tempo que as partes, ficam numa situação de desvantagem, uma vez que podem não ter possibilidade de descortinar e, por conseguinte, de abordar as verdadeiras questões suscitadas pelo processo. Por seu lado, o Tribunal corre o risco de ficar privado do contributo de tais observações.

7. Ao assinalar as vantagens de uma explicação do contexto pelo próprio pedido de decisão prejudicial, penso que será simultaneamente importante sublinhar as vantagens de uma explicação sucinta. Um pedido de decisão prejudicial deve limitar-se ao indispensável para permitir que se responda utilmente às questões colocadas. Assinalo esta circunstância porque, enquanto nalguns casos o pedido de decisão prejudicial apenas contém as questões, outros há em que o órgão jurisdicional nacional fornece uma informação bastante mais detalhada do que o necessário. Por vezes, os órgãos jurisdicionais nacionais enviam ao Tribunal uma longa decisão judicial, de que nem todos os elementos são relevantes; tal decisão judicial corre o risco de tornar as questões pouco claras em vez de as elucidar. Chega a acontecer que a um pedido de decisão prejudicial sejam acrescentados certos elementos ou anexos, não sendo claro quais, se é que alguns revestem importância. Estas práticas podem causar dificuldades em razão das dúvidas que podem surgir sobre quais os documentos a enviar aos Estados-membros e às instituições a fim de lhes permitir formular as respectivas observações. Além disso, os pedidos de decisão prejudicial têm que ser imediatamente traduzidos para todas as outras línguas comunitárias - actualmente nove - após darem entrada no Tribunal. Atrasos e muito trabalho desnecessário podem ser assim provocados.

8. Embora estas dificuldades sejam excepcionais, caberá talvez recordar que o que é mais útil é que o órgão jurisdicional nacional descreva sucintamente o contexto em que as questões se colocam, indicando sobretudo quaisquer factos importantes que tenham sido dados como assentes e todas as disposições de direito nacional aplicáveis.

9. Mesmo na falta dessas informações, pode acontecer que o Tribunal ainda consiga dar respostas úteis ao órgão jurisdicional nacional e a sua prática tem sido efectivamente essa, não a de se recusar a responder às questões. Desde o início, o Tribunal entendeu que o processo do artigo 177. se destinava a prestar uma certa forma de cooperação judicial que deveria excluir qualquer formalismo (2). Alguns processos mais recentes, nomeadamente os processos Meilicke (3), Telemarsicabruzzo (4), Banchero (5) e Monin (6), em que o Tribunal não respondeu às questões colocadas, não constituem, em meu entender, um desvio em relação a esta orientação fundamental. No processo Monin, evocado pelo Governo francês, o Tribunal entendeu ser necessário dispor de informações complementares para poder responder utilmente ao órgão jurisdicional nacional. (O mesmo aconteceu no processo Banchero, no qual o órgão jurisdicional nacional veio posteriormente a apresentar um segundo pedido de decisão prejudicial (7)). A utilidade da resposta parece-me ser um critério importante e, no caso presente, como veremos, pode ser dada uma resposta útil. Acresce que, no processo Monin, as questões colocadas eram extremamente genéricas e amplas, tornando particularmente difícil identificar a sua eventual relevância para o processo nacional. Além disso, o Tribunal assinalou no processo Monin, como nos processos Telemarsicabruzzo e Banchero, que a necessidade de o órgão jurisdicional nacional definir o contexto jurídico e factual das questões era particularmente importante em certos domínios, como a concorrência, que se caracterizam pela complexidade das situações factuais e jurídicas. Não é o que aqui acontece. Quanto ao processo Meilicke, resultava do pedido de decisão prejudicial que as próprias questões podiam ser puramente teóricas. No presente processo, nada aponta nesse sentido.

10. Além disso, no caso vertente, os factos que resultam dos autos e das observações escritas são claros, o problema jurídico é inequívoco e não pode haver dúvidas de que a resposta às questões colocadas será útil ao órgão jurisdicional nacional. Consequentemente, não seria adequado deixar de responder às questões colocadas, como nos processos Meilicke e Telemarsicabruzzo, ou julgar o pedido de decisão prejudicial inadmissível, como nos processos Banchero e Monin. Daqui não resulta, como adiante se tornará evidente, que todas as questões colocadas no presente processo devam necessariamente obter resposta.

11. Nestes termos, passarei a analisar as questões colocadas.

12. O artigo 3. , n. 1, da primeira directiva sobre a matéria, ou seja, a Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972 (8), obriga cada Estado-membro a adoptar todas as medidas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. O artigo 1. , n. 1, da segunda directiva, ou seja, a Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983 (9), determina que o seguro "deve obrigatoriamente cobrir os danos materiais e os danos corporais".

13. A segunda directiva do Conselho teve como objectivo garantir que os membros da família do segurado, do condutor ou de qualquer outra pessoa responsável beneficiassem de uma protecção comparável à dos outros terceiros, pelo menos no que respeita aos danos corporais: v. nono considerando. Consequentemente, o artigo 3. prevê o seguinte:

"Os membros da família do tomador do seguro, do condutor ou de qualquer outra pessoa cuja responsabilidade civil decorrente de um sinistro se encontre coberta pelo seguro mencionado no n. 1 do artigo 4. não podem, por força desse parentesco, ser excluídos da garantia do seguro relativamente aos danos corporais sofridos."

O artigo 5. prevê o seguinte:

"1. Os Estados-membros alterarão as suas disposições nacionais para darem cumprimento à presente directiva o mais tardar até 31 de Dezembro de 1987. Desse facto informarão imediatamente a Comissão.

2. As disposições alteradas nos termos acima referidos serão aplicadas o mais tardar em 31 de Dezembro de 1988.

... ."

14. A legislação belga apenas transpôs a segunda directiva do Conselho através da lei de 21 de Novembro de 1989 (10). Esta lei revogou a legislação anterior, ou seja, a lei de 1 de Julho de 1956 (11), que permitia afastar da protecção pelo seguro o cônjuge e certos parentes do condutor e do segurado.

15. Resulta claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que as disposições da directiva a que um Estado-membro não tenha dado execução só podem produzir efeitos no termo do prazo previsto pela directiva para a sua implementação (12). No caso vertente, embora os Estados-membros tenham sido obrigados a alterar as respectivas legislações a fim de darem cumprimento à directiva até 31 de Dezembro de 1987, a directiva fixou a data de 31 de Dezembro de 1988 como data a partir da qual a legislação assim alterada deveria ser aplicada. Daqui decorre que as disposições da directiva não podiam ser aplicáveis a um acidente que teve lugar em 2 de Maio de 1988.

16. Consequentemente, não é estritamente necessário que o Tribunal responda à questão de saber se as disposições da directiva podiam exercer aquilo a que correntemente se chama efeito directo "horizontal", ou seja, saber se poderiam impor obrigações a organismos privados ou a particulares, de modo que, por exemplo, na falta de transposição no termo do prazo estabelecido, a responsabilidade de uma companhia de seguros poderia ser suscitada perante os órgãos jurisdicionais nacionais. Trata-se de uma questão levantada, embora não expressamente, pela decisão de reenvio, mas a resposta não será, segundo penso, de qualquer utilidade para o órgão jurisdicional nacional. Uma vez que, nas circunstâncias do presente processo, a directiva não tem qualquer efeito directo, ela não pode evidentemente ter efeito directo "horizontal". Assim, embora este problema seja suscitado nas questões do órgão jurisdicional nacional, não penso que o Tribunal se deva pronunciar sobre ele. Mais uma vez, a finalidade do sistema do artigo 177. é fornecer respostas que sejam úteis para o órgão jurisdicional nacional. Do mesmo modo que nalguns casos exige que se responda a uma questão que não foi directamente colocada pelo órgão jurisdicional nacional (13), este sistema pode por vezes justificar que não se responda a uma questão que foi colocada. Assim pode acontecer especialmente quando, como no caso vertente, a questão suscita problemas de grande importância para a ordem jurídica comunitária. Poderia parecer desproporcionado que o Tribunal se pronunciasse sobre estes problemas num processo em que a questão não tem que ser decidida.

17. No entanto, tem sido prática frequente do Tribunal não examinar a relevância das questões colocadas, mas de lhes responder mesmo sem saber de que forma a resposta solicitada pode influir na solução dos litígios no processo principal (14). No caso de se decidir ser este o procedimento a adoptar, passarei a analisar de que modo a questão poderia ser abordada se se considerasse necessário dar uma resposta.

18. Tanto a Comissão como Le Foyer SA, nas respectivas observações escritas, defendem que se fosse necessário analisar a questão do efeito directo horizontal, seria suficiente responder remetendo para a jurisprudência do Tribunal segundo a qual o efeito directo das directivas apenas é oponível aos Estados ou a emanações dos Estados (efeito directo "vertical") (15). Não partilho desta opinião. É bem conhecido que a jurisprudência em questão deu origem a anomalias e, noutro processo pendente, o processo Faccini Dori (16), o Tribunal foi expressamente convidado a reanalisar a questão. Examinarei este problema muito sucintamente, recordando que ele foi bastante discutido pela doutrina e amplamente debatido no processo Faccini Dori.

19. Foi no processo Marshall em 1986 (que pode doravante ser designado processo Marshall I) que o Tribunal se pronunciou finalmente sobre o efeito directo das directivas, declarando que "uma directiva não pode, por si só, criar obrigações na esfera jurídica de um particular e que uma disposição de uma directiva não pode ser, portanto, invocada, enquanto tal, contra tal pessoa" (17). No entanto, o Tribunal esclareceu nesse processo que M. H. Marshall podia invocar a directiva em causa contra a autoridade recorrida, a Southampton and South-West Hampshire Area Health Authority (Teaching), que podia ser considerada um organismo do Estado e que não tinha importância saber se esse organismo actuava na qualidade de empregador ou de autoridade pública. Curiosamente, portanto, o Tribunal veio a pronunciar-se sobre esta questão num processo em que não era necessário fazê-lo: o Tribunal poderia simplesmente ter declarado que a autoridade recorrida era um organismo do Estado, deixando em aberto a questão de saber se as directivas poderiam ser invocadas contra organismos privados.

20. Na decisão, o Tribunal apresentou como argumento - único - a redacção do artigo 189. do Tratado. Como sabemos, e por boas razões, tal argumentação baseada na redacção do Tratado não tem geralmente sido decisiva para a sua interpretação pelo Tribunal. Além disso, o argumento baseado nessa redacção, embora tenha algum valor, não é totalmente convincente. O artigo 189. determina que a directiva "vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar...". Independentemente de o artigo 189. não excluir expressamente a possibilidade de resultarem das directivas obrigações derivadas para outras pessoas além dos Estados-membros, cabe notar que, com base em tal argumento decorrente da redacção, teria sido completamente impossível sustentar que o artigo 119. do Tratado, por exemplo, impunha obrigações aos empregadores privados, como o Tribunal decidiu já em 1976 (18). Além disso, se uma directiva apenas pode impor obrigações aos Estados-membros, não é fácil justificar que se imponham obrigações a organismos como a Southampton and South-West Hampshire Area Health Authority (Teaching). A bem conhecida tentativa de justificar a atribuição a uma directiva de efeito directo contra um Estado-membro, alegando designadamente que um Estado-membro não deveria poder ser autorizado a invocar o seu próprio incumprimento à obrigação de implementar uma directiva, é particularmente inadequada no que respeita a tal tipo de organismo, que não é responsável por esse incumprimento.

21. De qualquer modo, tendo o Tribunal reconhecido que as directivas tinham efectivamente esse alcance, tornou-se difícil justificar a existência de distinções entre, por exemplo, os empregadores do sector público e os do sector privado. Além disso, ao reconhecer-se, mesmo que limitadamente, a existência de efeito directo, alguns dos argumentos gerais de princípio que se opõem à atribuição de efeito directo horizontal às directivas - por exemplo, o argumento segundo o qual, por força do artigo 189. do Tratado, as directivas deixam às autoridades nacionais a escolha da forma e dos meios - deixam de poder ser defendidos.

22. Torna-se igualmente difícil, em meu entender, defender a existência de uma distinção a este respeito entre as directivas - que constituem, no fim de contas, a principal e muitas vezes única forma de legislação comunitária prevista em diversos domínios do Tratado - e outras disposições obrigatórias de direito comunitário, ou seja, os tratados, os regulamentos e as decisões que, sem excepção, ninguém contesta, podem impor obrigações aos particulares.

23. Do mesmo modo, se o efeito directo horizontal fosse recusado às directivas em razão da insuficiência da sua base democrática - dado que o papel do Parlamento Europeu na adopção das directivas é desde o início bastante limitado e que apenas gradualmente tem vindo a aumentar - é novamente difícil descortinar por que razão tal argumento só deve valer para as directivas e não para a demais legislação comunitária, como os regulamentos, em que o papel do Parlamento tem sido idêntico. Além disso, não se pode obstar à existência de um efeito directo horizontal com o argumento de que as medidas não foram implementadas por um Parlamento nacional democraticamente eleito, uma vez que as directivas em questão ex hypothesi não deixam qualquer margem de discricionaridade ao legislador nacional.

24. Em meu entender, tão-pouco se pode argumentar com o facto de o Tratado não conter uma exigência de publicação das directivas (19). Esta lacuna, preenchida pelo Tratado da União Europeia (20), pode ser explicada pelo papel limitado atribuído às directivas no Tratado original e tem pouca importância, atendendo à prática invariável de publicar no Jornal Oficial todas as directivas legislativas do tipo das que são dirigidas a todos os Estados-membros. Não há dúvida que, se uma dada directiva não tivesse sido publicada, a falta de publicação poderia tê-la impedido, como qualquer outra medida, de produzir efeitos jurídicos (21).

25. As considerações precedentes não obviam, em meu entender, às importantes diferenças existentes entre as directivas e os regulamentos. No processo Marshall I, o Tribunal não invocou, a meu ver correctamente, o argumento (mencionado nas conclusões do advogado-geral Slynn) de que elaborar directivas directamente exequíveis contra os particulares eliminaria a distinção entre directivas e regulamentos. Reconhecer que mesmo as disposições de uma directiva podem ser directamente exequíveis, no caso excepcional de não terem sido transpostas correctamente, em nada altera a obrigação de os Estados-membros tomarem todas as medidas necessárias para lhes darem execução, enquanto os regulamentos, sendo directamente aplicáveis, normalmente não necessitam de implementação. Além disso, uma directiva, como vimos, só produzirá efeitos jurídicos após terminar o prazo estabelecido para a sua transposição. Os regulamentos e as directivas continuarão a ser instrumentos diferentes, adaptados a situações diferentes e prosseguindo os seus objectivos por meios diversos, mesmo admitindo que, em certas circunstâncias, uma directiva que não foi correctamente transposta pode impor obrigações a certas entidades privadas.

26. Há mais de 30 anos, no processo Van Gend en Loos (22), o Tribunal reconheceu o carácter específico do direito comunitário como sistema jurídico que não podia ser reduzido a um acordo entre os Estados-membros, como frequentemente acontecia no direito internacional tradicional. Após os desenvolvimentos que desde então se verificaram no sistema jurídico comunitário, talvez se imponha reconhecer que, em certas circunstâncias, directivas que não tenham sido correctamente transpostas podem conferir aos particulares direitos que estes podem invocar mesmo contra organismos privados. Talvez se pudesse estabelecer neste ponto uma clara diferenciação entre a ordem jurídica comunitária e a ordem jurídica internacional.

27. Uma das notórias debilidades do direito internacional consiste na eventualidade de um tratado não ser aplicável pelos tribunais de um Estado que dele é parte, mesmo que as suas disposições sejam susceptíveis de ser aplicadas pelos tribunais. Este resultado lamentável é sobretudo passível de se verificar nos chamados Estados "dualistas" que não reconhecem nenhum princípio constitucional que atribua efeito jurídico interno aos tratados que os vinculam em direito internacional. Assim, pode frequentemente acontecer, no quadro de um contrato internaconal entre sujeitos privados, que uma das partes que deseje que o contrato seja regulado por um dado tratado, ao averiguar se esse tratado terá sido ratificado pelo Estado da outra parte, venha a dar-se conta, em caso de litígio, que o tratado não faz parte do direito interno desse Estado e não será aplicado pelos seus tribunais.

28. É inaceitável que esta debilidade do direito internacional se possa reproduzir na ordem jurídica comunitária. Como frequentemente acontece com um tratado, uma directiva vincula o Estado quanto ao resulta a alcançar, mas deixa às autoridades nacionais a escolha da forma e dos meios. No entanto, o papel das directivas no Tratado CE tem vindo a aumentar, como resultado da prática legislativa do Conselho, num sentido que faz com que a linguagem utilizada no artigo 189. do Tratado já não seja a mais adequada. Não obstante a redacção do terceiro parágrafo deste artigo, já não é exacto afirmar que as directivas vinculam apenas "quanto ao resultado a alcançar". A "escolha quanto à forma e aos meios" deixada aos Estados-membros é muitas vezes ilusória, uma vez que a margem de discricionaridade dos Estados-membros na implementação das directivas está sensivelmente limitada pelo carácter pormenorizado e exaustivo da maior parte da legislação adoptada pelo Conselho sob a forma de directivas. Muitas das disposições contidas nas directivas são, assim, perfeitamente adaptadas a produzir efeitos directos.

29. Existem sérias razões de princípio para atribuir efeito directo às directivas sem qualquer distinção baseada na qualidade do recorrido. Isso estaria em conformidade com a necessidade de garantir a eficácia do direito comunitário e a sua aplicação uniforme em todos os Estados-membros. Estaria sobretudo em conformidade com a importância ultimamente reconhecida pela jurisprudência do Tribunal de Justiça à obrigação essencial que incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais de darem soluções eficazes com vista à protecção dos direitos comunitários (23). Talvez seja porque uma nova abordagem das directivas é imposta pela recente jurisprudência do Tribunal de Justiça que a doutrina defendeu recentemente que fosse atribuído efeito directo horizontal às directivas (24). O argumento baseado na necessidade de uma aplicação uniforme do direito comunitário, é indiscutível; mas é necessário assegurar que a legislação comunitária seja uniformemente aplicada não só entre os Estados-membros, mas igualmente no interior dos Estados-membros. É inevitável que ocorram distorções, não só entre os Estados-membros mas também no interior destes, se as directivas puderem ser invocadas por exemplo contra empregadores ou fornecedores de bens ou de serviços do sector público, mas não contra os do sector privado. Não se resolve a questão afirmando que estas distorções desaparecerão se a directiva for correctamente implementada (25); a situação que há que analisar é aquela em que a directiva não foi correctamente implementada.

30. A possibilidade oferecida ao particular, segundo o acórdão Francovich (26), de reclamar uma indemnização por danos ao Estado-membro em que uma directiva não foi correctamente implementada não é, em meu entender, uma alternativa válida para a execução directa da directiva. O queixoso seria frequentemente obrigado a desencadear dois processos judiciais distintos, simultanea ou sucessivamente, um contra o particular com quem está em litígio e outro contra as autoridades públicas, o que dificilmente seria compatível com a necessidade de uma resolução eficaz do problema.

31. Em meu entender, não se pode contrapor que a imposição de obrigações aos particulares comprometeria a segurança jurídica. Pelo contrário, a característica mais marcante da jurisprudência existente sobre esta questão talvez seja o facto de ter gerado alguma insegurança (27). Em primeiro lugar, conduziu a uma interpretação muito ampla do conceito de Estado-membro, de tal forma que as directivas podem ser executadas mesmo contra empresas comerciais em que exista um certo elemento de participação ou de controlo estatal (28), não obstante o facto de tais empresas não serem responsáveis pelo incumprimento dos Estados-membros e de poderem estar em concorrência directa com empresas do sector privado contra as quais essas mesmas directivas não podem ser executadas. Além disso, provocou grande insegurança no que respeita ao alcance da legislação nacional, tendo em conta a obrigação imposta aos órgãos jurisdicionais nacionais de alargar ao máximo o sentido dos termos da legislação nacional, de modo a tornar eficazes directivas que não foram correctamente transpostas (29). Acresce que, nas situações em que a legislação nacional é interpretada extensivamente de modo a tornar uma directiva eficaz, o resultado pode ser que se imponham aos particulares obrigações a que não estariam vinculados na falta da directiva. Assim, mesmo no caso de não terem sido correctamente transpostas, as directivas podem dar origem a obrigações para os particulares. Neste contexto, não parece ser válida a crítica segundo a qual executar directivas directamente contra os particulares poderia comprometer a segurança jurídica. Pelo contrário, se as disposições de uma directiva fossem susceptíveis, em determinadas condições, de ser directamente exequíveis em relação aos particulares, a segurança jurídica poderia saír reforçada, permitindo igualmente a instituição de um sistema mais coerente.

32. Uma vez que a jurisprudência já obriga efectivamente os órgãos jurisdicionais nacionais a aplicar as directivas contra os particulares, através de uma interpretação de todas as disposições de direito nacional, quer tenham ou não sido adoptadas para dar execução a uma directiva e lhes sejam anteriores ou posteriores, de modo a dar eficácia às disposições das directivas, atribuir efeito directo horizontal às directivas não constituiria, em termos de consequências práticas, um desvio radical em relação ao actual quadro legislativo: tal efeito directo apenas se produzirá nas situações em que for impossível interpretar neste sentido qualquer disposição de direito nacional. As consequências de semelhante alteração poderiam, de qualquer modo, ser atenuadas, se necessário, através de uma limitação no tempo da nova jurisprudência, por razões idênticas às adoptadas pelo Tribunal no processo Defrenne II (30), de modo a excluir ou a restringir a sua aplicação a situações passadas.

33. É evidente que existem circunstâncias em que será claro que uma directiva que não foi transposta por um Estado-membro não imporá obrigações aos particulares. Assim, uma directiva não pode, por si só, gerar responsabilidade penal (31). Talvez nem sequer se deva interpretar uma directiva no sentido de que impõe obrigações aos particulares nas situações em que isso se possa traduzir em conferir direitos ao Estado que não cumpriu as suas obrigações.

34. No entanto, de uma maneira geral, parece-me que as directivas cujo objecto seja conferir direitos aos particulares e impor-lhes obrigações devem poder ser executadas a pedido do queixoso, a menos que as legítimas expectativas do recorrido fossem, desse modo, frustradas.

35. Mesmo que esta tese geral não fosse aceite, um processo como o ora em discussão poderia fornecer, se o prazo de transposição já tivesse expirado, argumentos convincentes a favor do efeito directo das directivas. No que respeita à questão do seguro de responsabilidade obrigatório em matéria de acidentes de viação, existe um evidente interesse geral em que os particulares possam confiar num sistema eficaz de seguro aplicado uniformemente em toda a Comunidade. Além disso, as empresas que oferecem seguros de veículos automóveis são, em virtude das imposições legais inerentes ao seu estatuto financeiro, grandes empresas habituadas a operar num quadro fortemente regulamentado no qual a liberdade contratual foi consideravelmente reduzida em atenção ao interesse geral determinante de garantir que todos os condutores e todos os veículos automóveis estejam eficazmente segurados, em termos de responsabilidade, em relação a terceiros. Na verdade, pode supor-se que tais empresas estão familiarizadas com as obrigações que as directivas comunitárias pretendem manifestamente impor-lhes. Será então aceitável que se esquivem a assumir a sua responsabilidade pelo facto de um dado Estado-membro não ter cumprido a sua obrigação de transpor a directiva em causa? Do mesmo modo que o Tribunal de Justiça reconheceu que um Estado-membro não pode invocar o seu próprio incumprimento, parece igualmente evidente que uma companhia de seguros, em semelhantes circunstâncias, não deverá poder beneficiar do incumprimento de um Estado-membro.

36. Pelas razões acima invocadas, se a questão tivesse suscitado uma resposta, teria sido de opinião que as disposições em causa criam efectivamente direitos na esfera dos particulares que os órgãos jurisdicionais nacionais têm a obrigação de tutelar, mesmo contra organismos que não sejam emanações do Estado. Repito, porém, que, em minha opinião, a questão não suscita uma resposta no presente caso.

Conclusão

37. Consequentemente, em meu entender, é suficiente dar a seguinte resposta às questões colocadas pelo órgão jurisdicional nacional:

"Antes da data de 31 de Dezembro de 1988, referida no n. 2 do artigo 5. da segunda directiva relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, as disposições desta directiva não criavam na esfera dos particulares direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais tivessem a obrigação de tutelar."

(*) Língua original: inglês.

(1) - Processo C-368/92, Monin Automobiles (Colect. 1993, p. I-2049).

(2) - Processo 16/65, Schwarze/Einfuhr- und Vorratsstelle Getreide (Recueil 1965, pp. 877 a 886).

(3) - Processo C-83/91, Meilicke (Colect. 1992, p. I-4871).

(4) - Processos apensos C-320/90 a C-322/90, Telemarsicabruzzo e o. (Colect. 1993, p. I-393).

(5) - Processo C-157/92, Banchero (Colect. 1993, p. I-1085).

(6) - V. supra, nota 1.

(7) - Processo registado sob o número C-387/93.

(8) - JO L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113.

(9) - JO 1984, L 8, p. 17; EE 13 F15 p. 244.

(10) - Lei belga de 21 de Novembro de 1989 relativa ao seguro de responsabilidade civil obrigatório em matéria de veículos automóveis (Moniteur belge de 8.12.1989).

(11) - Lei belga de 1 de Julho de 1956 relativa ao seguro de responsabilidade civil obrigatório em matéria de veículos automóveis (Moniteur belge de 15.7.1956).

(12) - V. processo 148/78, Pubblico Ministero/Ratti (Recueil 1979, p. 1629).

(13) - V., por exemplo, processo 157/84, Frascogna/Caisse des Dépôts et Consignations (Recueil 1985, p. 1739).

(14) - V. processos apensos 98/85, 162/85 e 256/85, Bertini/Regione Lazio (Recueil 1986, p. 1885, n. 8); processos apensos 2/82 a 4/82 (Delhaize Frères/Estado belga (Recueil 1983, p. 2973, n. 9).

(15) - V., em especial, o processo 152/84, Marshall/Southampton and South-West Hampshire Area Health Authority ( Marshall I ) (Colect. 1986, p. 723).

(16) - Processo C-91/92.

(17) - Processo Marshall I, já referido na nota 15 (n. 48 do acórdão).

(18) - Processo 43/75, Defrenne/Sabena (Recueil 1976, p. 455, n.os 39 e 40).

(19) - V., por exemplo, Pescatore: L' effet direct des directivas communautaires, une tentative de démythification , Dalloz 1980, capítulo XX.

(20) - V. artigo 191. , n.os 1 e 2, do Tratado CE alterado pelo Tratado da União Europeia.

(21) - V. processo 98/78, Racke/Hauptzollamt Mainz (Recueil 1979, p. 69, n. 15).

(22) - Processo 26/62, Van Gend en Loos/Nederlandse Administratie der Belastingen (Recueil 1963, p. 1).

(23) - V., por exemplo, o processo C-213/89, Factortame (Colect. 1990, p. I-2433), e acórdão de 2 de Agosto de 1993, C-271/91, Marshall II.

(24) - V., por exemplo, Manin: L' invocabilité des directives: quelques interrogations , Revue Trimestrielle de Droit Européen, 1990, p. 669; Emmert: Horizontale Drittwirkung von Richtlinien? Lieber ein Ende mit Schrecken als ein Schrecken ohne Ende! , in Europaeisches Wirtschafts- und Steurrecht, 1992, p. 56; Boch e Lane: European Community Law in national Courts: a continuing contradiction , Leiden Journal of International Law, 1992, p. 171; Van Gerven: The horizontal effect of directive provisions revisited - the reality of catchwords , Innstitute of European Public Law, University of Hull, 1993; Emmert e Pereira de Azevedo: L' effet horizontal des directives. La jurisprudence de la CJCE: un bateau ivre? , Revue Trimestrielle de Droit Européen, 1993, p. 503; Mangas Martín, in Rodríguez Iglesias e Linán Nogueras (responsáveis da publicação), El derecho comunitario europeu y su aplicácion judicial, 1993, pp. 77 a 79.

(25) - V. processo Marshall I, n. 31.

(26) - Processos apensos C-6/90 C-9/90, Francovich e o. (Colect. 1991, p. I-5357).

(27) - V. as conclusões do advogado-geral W. Van Gerven de 26 de Janeiro de 1993 no processo C-271/91, Marshall II, nota 23 supra, n. 12, e os autores citados na nota 24.

(28) - V. processo C-188/89, Foster/British Gas (Colect. 1990, p. I-3313).

(29) - V., como exemplo limite, o processo C-106/89, Marleasing (Colect. 1990, p. I-4135).

(30) - V. supra, nota 18.

(31) - V. processo 80/86, Kolpinghuis Nijmegen (Colect. 1987, p. 3969); v. também as minhas conclusões nos processos apensos C-206/88 e C-207/88, Vessoso e Zanetti (Colect. 1990, p. I-1461, n.os 24 e 25).