61992J0091

ACORDAO DO TRIBUNAL DE 14 DE JULHO DE 1994. - PAOLA FACCINI DORI CONTRA RECREB SRL. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL: GIUDICE CONCILIATORE DI FIRENZE - ITALIA. - PROTECCAO DOS CONSUMIDORES NO CASO DE CONTRATOS NEGOCIADOS FORA DOS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS - POSSIBILIDADE DE INVOCACAO EM LITIGIOS QUE OPOEM DOIS PARTICULARES. - PROCESSO C-91/92.

Colectânea da Jurisprudência 1994 página I-03325
Edição especial sueca página I-00001
Edição especial finlandesa página I-00001


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


++++

1. Aproximação das legislações ° Protecção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais ° Directiva 85/577 ° Artigos 1. , n. 1, 2. e 5. ° Determinação dos beneficiários e do prazo mínimo para o exercício do direito de rescisão ° Carácter incondicional e preciso

(Directiva 85/577, artigos 1. , n. 1, 2. e 5. )

2. Actos das instituições ° Directivas ° Efeito directo ° Limites ° Possibilidade de invocar uma directiva contra um particular ° Exclusão

(Tratado CEE, artigo 189. )

3. Aproximação das legislações ° Protecção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais ° Directiva 85/577 ° Possibilidade, na ausência de medidas de transposição, de invocar o direito à renúncia contra um particular ° Exclusão

(Tratado CEE, artigo 189. , terceiro parágrafo; Directiva 85/577, artigos 1. , n. 1, 2. e 5. )

4. Actos das instituições ° Directivas ° Execução pelos Estados-membros ° Necessidade de assegurar a eficácia das directivas ° Obrigações das jurisdições nacionais

(Tratado CEE, artigo 189. , terceiro parágrafo)

5. Direito comunitário ° Direitos conferidos aos particulares ° Violação, por um Estado-membro, da obrigação de transpor uma directiva ° Obrigação de reparar o prejuízo causado aos particulares ° Condições ° Modalidades da reparação ° Aplicação do direito nacional

(Tratado CEE, artigo 189. , terceiro parágrafo)

Sumário


1. As disposições dos artigos 1. , n. 1, 2. e 5. da Directiva 85/577 relativa à protecção dos consumidores no caso de contratos celebrados fora dos estabelecimentos comerciais, são incondicionais e suficientemente precisas no que respeita à determinação dos beneficiários e do prazo mínimo no qual deve ser notificada a rescisão de um contrato celebrado fora de um estabelecimento comercial. É certo que os artigos 4. e 5. concedem aos Estados-membros uma certa margem de apreciação no que respeita à protecção do consumidor, no caso de o comerciante não ter fornecido as informações sobre o direito de rescisão e no que respeita ao prazo e às regras da rescisão, esta margem de apreciação não obsta à possibilidade de determinação dos direitos mínimos que devem existir em quaisquer circunstâncias em benefício dos consumidores.

2. A possibilidade de invocação de directivas contra entidades estatais assenta no carácter obrigatório que o artigo 189. lhes reconhece, e que só existe para o Estado-membro destinatário e visa evitar que um Estado possa tirar proveito da sua inobservância do direito comunitário. Com efeito, seria inaceitável que o Estado a que o legislador comunitário impôs a adopção de determinadas regras destinadas a reger as suas relações ° ou as das entidades estatais ° com os particulares, e a conferir a estes o benefício de certos direitos, possa invocar a inexecução dos seus deveres para privar os particulares do benefício de tais direitos. Alargar este princípio ao domínio das relações entre particulares equivaleria a reconhecer à Comunidade o poder de criar, com efeito imediato, deveres na esfera jurídica dos particulares quando ela só tem essa competência nas áreas em que lhe é atribuído o poder de adoptar regulamentos.

Daqui resulta que, na falta de medidas de transposição nos prazos prescritos, um particular não pode basear-se numa directiva para pretender invocar um direito contra outro particular e invocar esse direito perante uma jurisdição nacional.

3. Na falta de medidas de transposição no prazo fixado pela directiva 85/577, relativa à protecção dos consumidores no caso de contratos celebrados fora dos estabelecimentos comerciais no prazo fixado, os consumidores não podem basear nela própria um direito de rescisão contra comerciantes com que tenham celebrado um contrato fora de um estabelecimento comercial e invocar esse direito perante os tribunais nacionais.

4. A obrigação dos Estados-membros, decorrente de uma directiva, de alcançar o resultado por ela prosseguido, bem como o seu dever, por força do artigo 5. do Tratado, de tomar todas as medidas gerais ou especiais adequadas a assegurar o cumprimento dessa obrigação, impõem-se a todas as autoridades dos Estados-membros, incluindo, no âmbito das suas competências, os órgãos jurisdicionais. Daqui resulta que, ao aplicar o direito nacional, quer se trate de disposições anteriores ou posteriores à directiva, o órgão jurisdicional nacional chamado a interpretá-lo é obrigado a fazê-lo, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da directiva, para atingir o resultado por ela prosseguido e cumprir desta forma o artigo 189. , terceiro parágrafo, do Tratado.

5. No caso de um Estado-membro ignorar a obrigação que lhe incumbe, por força do artigo 189. , terceiro parágrafo, do Tratado, de transpor uma directiva e de o resultado prescrito pela directiva não poder ser atingido por via de interpretação do direito nacional pelo órgão jurisdicional, o direito comunitário impõe a esse Estado-membro a reparação dos danos causados a particulares pela não transposição de uma directiva, desde que estejam reunidas três condições, ou seja, que o resultado prescrito pela directiva tenha como objectivo atribuir direitos a particulares, que o conteúdo desses direitos deve poder ser identificado com base nas disposições da directiva, e que existe um nexo de causalidade entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o dano sofrido. Neste caso, compete ao tribunal nacional assegurar a realização do direito a reparação dos consumidores lesados, no âmbito do direito nacional da responsabilidade.

Partes


No processo C-91/92,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177. do Tratado CEE, pelo Giudice conciliatore di Firenze (Itália), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Paola Faccini Dori

e

Recreb Srl,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação da Directiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de Dezembro de 1985, relativa à protecção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais (JO L 372, p. 1; EE 15 F6 p. 131),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: O. Due, presidente, G. F. Mancini, J. C. Moitinho de Almeida, M. Díez de Velasco e D. A. O. Edward, presidentes de secção, C. N. Kakouris, R. Joliet (relator), F. A. Schockweiler, G. C. Rodríguez Iglesias, F. Grévisse, M. Zuleeg, P. J. G. Kapteyn e J. L. Murray, juízes,

advogado-geral: C. O. Lenz

secretário: H. von Holstein, secretário adjunto

vistas as observações escritas apresentadas:

° em representação de P. Faccini Dori, por Vinicio Premuroso, advogado no foro de Milão, e Annalisa Premuroso e Paolo Soldani Benzi, advogados no foro de Florença,

° em representação da Recreb Srl, por Michele Trovato, advogado no foro de Roma, e Anna Rita Alessandro, procuradora em Florença,

° em representação do Governo alemão, por Ernst Roeder, Ministerialrat no Ministério Federal da Economia, e Claus-Dieter Quassowski, Regierungsdirektor no mesmo ministério, na qualidade de agentes,

° em representação do Governo helénico, por Vasileios Kontolaimos, consultor jurídico adjunto do Conselho Jurídico do Estado, e Panagiotis Athanasoulis, mandatário judiciário no Conselho Jurídico do Estado, na qualidade de agentes,

° em representação do Governo italiano, pelo professor Luigi Ferrari Bravo, chefe do Serviço do Contencioso Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, assistido por Marcello Conti, avvocato dello Stato,

° em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Lucio Gussetti, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente,

vistas as respostas dadas à pergunta escrita do Tribunal de Justiça:

° em representação do Governo alemão, por Ernst Roeder e Claus-Dieter Quassowski,

° em representação do Governo francês, por Jean-Pierre Puissochet, director na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e Catherine de Salins, consultora no mesmo ministério, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações do Governo dinamarquês, representado por Joergen Molde, consultor jurídico no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo alemão, representado por Ernst Roeder e Claus-Dieter Quassowski, na qualidade de agentes, do Governo helénico, representado por Vasileios Kontolaimos e Panagiotis Athanasoulis, na qualidade de agentes, do Governo francês, representado por Catherine de Salins, na qualidade de agente, do Governo italiano, representado pelo professor Luigi Ferrari Bravo, na qualidade de agente, assistido por Ivo Braguglia, avvocato dello Stato, do Governo neerlandês, representado por Ton Heukels, consultor jurídico adjunto no Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Governo do Reino Unido, representado por J. E. Collins, na qualidade de agente, assistido por Derrick Wyatt, barrister, e da Comissão, representada por Lucio Gussetti, na qualidade de agente, na audiência de 16 de Março de 1993,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 9 de Fevereiro de 1994,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por despacho de 24 de Janeiro de 1992, que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 18 de Março do mesmo ano, o Giudice conciliatore di Firenze (Itália) submeteu, nos termos do artigo 177. do Tratado CEE, uma questão relativa, em primeiro lugar, à interpretação da Directiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de Dezembro de 1985, relativa à protecção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais (JO L 372, p. 1; EE 15 F6 p. 131), a seguir "directiva sobre os contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais", e, em segundo lugar, à possibilidade de a invocar em litígios entre comerciantes e consumidores.

2 Esta questão foi suscitada no âmbito de um litígio que opõe Paola Faccini Dori, residente em Monza (Itália), à Recreb Srl (a seguir "Recreb").

3 Resulta do despacho de reenvio que, em 19 de Janeiro de 1989, a sociedade Interdiffusion Srl celebrou na estação central de Milão (Itália), ou seja, fora do seu estabelecimento, um contrato sobre um curso de inglês por correspondência com P. Faccini Dori, sem que esta o tivesse previamente solicitado.

4 Alguns dias mais tarde, P. Faccini Dori informou a sociedade, por carta registada de 23 de Janeiro de 1989, de que cancelava a encomenda. A sociedade respondeu-lhe, em 3 de Junho de 1989, que tinha cedido a sua posição contratual à Recreb. Em 24 de Junho de 1989, P. Faccini Dori confirmou por escrito à Recreb a renúncia à assinatura do curso, invocando nomeadamente a faculdade para o efeito consagrada na directiva sobre os contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais.

5 Como resulta dos seus considerandos, aquela directiva tem por objectivo melhorar a protecção dos consumidores e pôr fim às disparidades existentes entre as várias legislações nacionais no respeitante a esta protecção, disparidades essas que podem ter incidência no funcionamento do mercado comum. Explica, no quarto considerando, que nos contratos celebrados fora dos estabelecimentos comerciais do comerciante, a iniciativa das negociações parte normalmente deste, que o consumidor não está, de forma alguma, preparado para aquelas, e que é assim frequentemente apanhado desprevenido. Na maior parte das ocasiões, o consumidor não está em condições de comparar a qualidade e o preço da proposta com outras ofertas. Segundo o mesmo considerando, este elemento de surpresa é geralmente tomado em linha de conta, não só nos contratos celebrados por venda ao domicílio, mas também noutras formas de contrato em que o comerciante toma a iniciativa contratual fora de estabelecimentos comerciais. A directiva, como resulta do quinto considerando, visa atribuir ao consumidor um direito de resolução durante um período de pelo menos sete dias, a fim de lhe dar a possibilidade de avaliar as obrigações decorrentes do contrato.

6 Em 30 de Junho de 1989, a Recreb requereu ao Giudice conciliatore di Firenze que proferisse contra P. Faccini Dori a injunção de pagamento da soma acordada, acrescida de juros e das despesas.

7 Em despacho injuntivo proferido em 20 de Novembro de 1989, aquele juiz condenou P. Faccini Dori a pagar tais quantias. Esta deduziu oposição contra a injunção perante o mesmo magistrado. Afirmou, novamente, que tinha rescindido o contrato nos termos previstos na directiva.

8 Verifica-se entretanto que, à data dos factos, não tinha sido tomada em Itália qualquer medida de transposição da directiva, embora o prazo para transposição tivesse terminado em 23 de Dezembro de 1987. Com efeito, a Itália só transpôs a directiva com o Decreto legislativo n. 50, de 15 de Janeiro de 1992 (GURI, Supplemento ordinario ao n. 27, de 3.2.1992, p. 24), que entrou em vigor em 3 de Março de 1992.

9 O tribunal de reenvio interrogou-se sobre se poderia aplicar as disposições da directiva, apesar de esta não ter ainda sido transposta em Itália à data dos factos.

10 Dirigiu, assim, ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial formulada nos seguintes termos:

"Deve a Directiva 85/577/CEE, de 20 de Dezembro de 1985, ser considerada suficientemente precisa e pormenorizada e, em caso de resposta afirmativa, ela foi susceptível de produzir efeitos nas relações entre os particulares e o Estado italiano e nas relações dos particulares entre si, no período compreendido entre o termo do prazo de vinte e quatro meses fixado aos Estados-membros para lhe darem cumprimento e o dia em que o Estado italiano efectivamente a cumpriu?"

11 A directiva sobre os contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais impõe aos Estados-membros a adopção de certas normas destinadas a reger as relações jurídicas entre comerciantes e consumidores. Tendo em conta a natureza do litígio, que opõe um consumidor a um comerciante, a questão submetida pelo tribunal nacional suscita dois problemas que devem ser examinados separadamente. Em primeiro lugar, respeita à natureza incondicional e suficientemente precisa das disposições da directiva relativas ao direito de rescisão. Em segundo lugar, incide sobre a possibilidade de invocar nos litígios entre particulares, na falta de medidas de transposição, uma directiva que impõe aos Estados-membros a adopção de certas normas destinadas a reger, precisamente, relações entre aquelas pessoas.

Quanto à natureza incondicional e suficientemente precisa das disposições da directiva relativas ao direito de rescisão

12 Nos termos do n. 1 do seu artigo 1. , a directiva é aplicável aos contratos celebrados entre comerciantes que forneçam bens e serviços e consumidores, durante excursões realizadas por aqueles fora dos seus estabelecimentos comerciais ou no decorrer de visita dos comerciantes a casa dos consumidores ou ao seu local de trabalho, se a visita não se efectuar a pedido destes.

13 O artigo 2. , por seu lado, determina que se deve entender por "consumidor" qualquer pessoa singular que, nas transacções abrangidas pela directiva, age com fins que podem ser considerados alheios à sua actividade profissional, e por "comerciante" qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao concluir a transacção em questão, age no âmbito da sua actividade comercial ou profissional.

14 Estas disposições são suficientemente precisas para permitir ao juiz nacional saber quem são os devedores e os credores das obrigações. Não é necessária, a este respeito, qualquer medida particular de execução. O juiz nacional pode limitar-se a verificar se o contrato foi celebrado nas circunstâncias descritas pela directiva, e se o foi entre um comerciante e um consumidor, na acepção daquele diploma.

15 Para proteger um consumidor que tenha concluído um contrato em tais circunstâncias, o artigo 4. da directiva determina que o comerciante deve informar por escrito o consumidor do direito que lhe assiste de rescindir o contrato, bem como do nome e da direcção da entidade junto da qual esse direito pode ser exercido. Acrescenta nomeadamente que, no caso previsto no n. 1 do artigo 1. , aquela informação deve ser dada ao consumidor no momento da celebração do contrato. Precisa, finalmente, que os Estados-membros devem velar por que a respectiva legislação nacional preveja medidas adequadas para a protecção dos consumidores nos casos em que aquela informação não seja fornecida.

16 O n. 1 do artigo 5. da directiva dispõe, nomeadamente, que consumidor tem o direito de renunciar aos efeitos do compromisso assumido desde que envie uma notificação, no prazo de pelo menos sete dias a contar da data em que o comerciante o tenha informado dos seus direitos, em conformidade com as modalidades e condições prescritas pela legislação nacional. O n. 2 especifica que aquela notificação tem como efeito liberar o consumidor de qualquer obrigação decorrente do contrato.

17 É certo que os artigos 4. e 5. concedem aos Estados-membros uma certa margem de apreciação no que respeita à protecção do consumidor, no caso de o comerciante não ter fornecido as informações e no que respeita ao prazo e às regras da rescisão. Contudo, esta circunstância não afecta a natureza precisa e incondicional das disposições da directiva em causa no processo principal. Com efeito, aquela margem de apreciação não obsta à possibilidade de determinação dos direitos mínimos. Resulta, a este respeito, dos termos do artigo 5. que a rescisão deve ser notificada num prazo mínimo de sete dias a partir do momento em que o consumidor tenha recebido do comerciante as informações impostas. Assim, é possível determinar a protecção mínima que deve existir em quaisquer circunstâncias.

18 Deve, assim, responder-se ao tribunal nacional, quanto ao primeiro problema suscitado, que o n. 1 do artigo 1. , o artigo 2. e o artigo 5. da directiva são incondicionais e suficientemente precisos no que respeita à determinação dos beneficiários e do prazo mínimo de notificação da rescisão.

Quanto à possibilidade de invocar as disposições da directiva relativas ao direito de rescisão, num litígio que opõe um consumidor a um comerciante

19 O segundo problema colocado pelo órgão jurisdicional nacional incide mais especificamente na questão da possibilidade de retirar da própria directiva, na falta de medidas de transposição nos prazos fixados, um direito dos consumidores de rescindir contratos com comerciantes, susceptível de invocação perante os tribunais nacionais.

20 Como tem sido sublinhado pelo Tribunal de Justiça, em jurisprudência constante desde o acórdão de 26 de Fevereiro de 1986, Marshall (152/84, Colect., p. 723, n. 48), uma directiva não pode, por si só, criar obrigações para um particular e não pode, portanto, ser invocada, enquanto tal, contra ele.

21 O tribunal nacional sublinhou que a limitação dos efeitos das directivas incondicionais e suficientemente precisas, mas não transpostas, às relações entre entidades estatais e particulares conduziria a que determinados actos normativos só tivessem essa natureza nas relações entre determinados sujeitos de direito, enquanto, na ordem jurídica italiana, como na ordem jurídica de qualquer Estado moderno assente no princípio da legalidade, o Estado é um sujeito de direito semelhante a qualquer outro. O facto de a directiva só poder ser oposta ao Estado equivaleria a uma sanção por falta de adopção de medidas legislativas de transposição, como se se tratasse de uma relação de natureza estritamente privada.

22 A este respeito, basta assinalar que, como resulta do citado acórdão de 26 de Fevereiro de 1986, Marshall (n.os 48 e 49), a jurisprudência sobre a possibilidade de invocação de directivas contra entidades estatais assenta no carácter obrigatório que o artigo 189. lhes reconhece, e que só existe para "o Estado-membro destinatário". Esta jurisprudência tem por objectivo evitar que "um Estado possa tirar proveito da sua inobservância do direito comunitário."

23 Com efeito, seria inaceitável que o Estado a que o legislador comunitário impôs a adopção de determinadas regras destinadas a reger as suas relações ° ou as das entidades estatais ° com os particulares, e a conferir a estes o benefício de certos direitos, possa invocar a inexecução dos seus deveres para privar os particulares do benefício de tais direitos. Assim, o Tribunal de Justiça reconheceu a oponibilidade ao Estado (ou a entidades estatais) de certas disposições das directivas relativas à adjudicação de concursos públicos (v. acórdão de 22 de Junho de 1989, Fratelli Costanzo, 103/88, Colect., p. 1839) e das directivas relativas à harmonização dos impostos sobre o volume de negócios (v. acórdão de 19 de Janeiro de 1982, Becker, 8/81, Recueil, p. 53).

24 Alargar esta jurisprudência ao domínio das relações entre particulares equivaleria a reconhecer à Comunidade o poder de criar, com efeito imediato, deveres na esfera jurídica dos particulares quando ela só tem essa competência nas áreas em que lhe é atribuído o poder de adoptar regulamentos.

25 Daqui decorre que, na falta de medidas de transposição da directiva no prazo fixado, os consumidores não podem basear nela própria um direito de rescisão contra comerciantes com que tenham celebrado um contrato, e invocar esse direito perante os tribunais nacionais.

26 Por outro lado, e segundo jurisprudência constante desde o acórdão de 10 de Abril de 1984, Von Colson e Kamann (14/83, Recueil, p. 1891, n. 26), a obrigação dos Estados-membros, decorrente de uma directiva, de alcançar o resultado por ela prosseguido, bem como o seu dever, por força do artigo 5. do Tratado, de tomar todas as medidas gerais ou especiais adequadas a assegurar o cumprimento dessa obrigação, impõem-se a todas as autoridades dos Estados-membros, incluindo, no âmbito das suas competências, os órgãos jurisdicionais. Como resulta dos acórdãos do Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 1990, Marleasing (C-106/89, Colect., p. I-4135, n. 8), e de 16 de Dezembro de 1993, Wagner Miret (C-334/92, Colect., p. I-6911, n. 20), ao aplicar o direito nacional, quer se trate de disposições anteriores ou posteriores à directiva, o órgão jurisdicional nacional chamado a interpretá-lo é obrigado a fazê-lo, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da directiva, para atingir o resultado por ela prosseguido e cumprir desta forma o artigo 189. , terceiro parágrafo, do Tratado.

27 No caso de o resultado prescrito pela directiva não poder ser atingido por via de interpretação, deve recordar-se que, segundo o acórdão de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o. (C-6/90 e C-9/90, Colect., p. I-5357, n. 39), o direito comunitário impõe aos Estados-membros a reparação dos danos causados a particulares pela não transposição de uma directiva, desde que estejam reunidas três condições. A primeira é que a directiva tenha como objectivo atribuir direitos a particulares. Seguidamente, o conteúdo desses direitos deve poder ser identificado com base nas disposições da directiva. Deve existir, finalmente, um nexo de causalidade entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o dano sofrido.

28 A directiva sobre os contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais visa incontestavelmente atribuir direitos a particulares, e é igualmente certo que o conteúdo mínimo de tais direitos pode ser identificado com base, apenas, nas disposições da directiva (v. supra, n. 17).

29 Existindo dano, e devendo-se este a violação pelo Estado dos deveres a que estava sujeito, compete ao tribunal nacional assegurar a realização do direito a reparação dos consumidores lesados, no âmbito do direito nacional da responsabilidade.

30 Quanto ao segundo problema suscitado pelo juiz nacional, e tendo em conta as considerações precedentes, deve responder-se que, na falta de medidas de transposição da directiva no prazo fixado, os consumidores não podem basear nela própria um direito de rescisão contra comerciantes com quem tenham celebrado um contrato, e invocar esse direito perante os tribunais nacionais. Todavia, o órgão jurisdicional nacional, ao aplicar disposições do direito nacional anteriores ou posteriores à directiva, é obrigado a interpretá-las, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da directiva.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

31 As despesas efectuadas pelos Governos dinamarquês, alemão, helénico, francês, italiano, neerlandês e do Reino Unido, bem como pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Giudice conciliatore di Firenze, por despacho de 24 de Janeiro de 1992, declara:

1) O n. 1 do artigo 1. , o artigo 2. e o artigo 5. da Directiva 85/577/CEE do Conselho, de 20 de Dezembro de 1985, relativa à protecção dos consumidores no caso de contratos negociados fora dos estabelecimentos comerciais, são incondicionais e suficientemente precisos no que respeita à determinação dos beneficiários e do prazo mínimo de notificação da rescisão.

2) Na falta de medidas de transposição da directiva no prazo fixado, os consumidores não podem basear nela própria um direito de rescisão contra comerciantes com quem tenham celebrado um contrato, e invocar esse direito perante os tribunais nacionais. Todavia, o órgão jurisdicional nacional, ao aplicar disposições do direito nacional anteriores ou posteriores à directiva, é obrigado a interpretá-las, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da directiva.