ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção)

24 de Janeiro de 1992 ( *1 )

No processo T-44/90,

La Cinq SA, sociedade de direito francês, estabelecida em Paris, representada por Gilbert Parleani, advogado no foro de Paris, com domicílio escolhido no Luxemburgo no escritório do advogado Philippe Hoss, 15, Côte d'Eich,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por B. J. Drijber e E. Buissart, membros do Serviço Jurídico, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete de Roberto Hayder, funcionário nacional destacado para o Serviço Jurídico, Centre Wagner, Kirchberg,

recorrido,

apoiada por

União europeia de radiodifusão, sociedade de direito suiço, estabelecida em Genebra, representada por Hanns Ulrich, professor na Universidade de Munique, com domicílio escolhido no Luxemburgo no gabinete do advogado Jean Welter, 100, boulevard de la Pétrusse,

interveniente,

que tem por objecto a anulação da decisão da Comissão de 14 de Agosto de 1990 relativa a um processo de aplicação dos artigos 85.o e 86.o do Tratado CEE (IV/33.249 — La Cinq SA/União Europeia de Radiodifusão),

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção),

composto por: J. L. Cruz Vilaça, presidente, R. Schintgen, D. A. O. Edward, H. Kirschner e K. Lenaerts, juízes,

secretário: H. Jung

vistos os autos e após a audiência de 2 de Julho de 1991,

profere o presente

Acórdão

Os factos na origem do recurso

1

O presente recurso é dirigido contra uma decisão da Comissão, de 14 de Agosto de 1990, que indefere um pedido de medidas provisórias apresentado pela recorrente no âmbito das queixas submetidas à Comissão, pondo em causa, face ao disposto nos artigos 85.o e 86.o do Tratado CEE, as actuações da União Europeia de Radiodifusão (a seguir «UER»).

2

A La Cinq SA (a seguir «La Cinq») é uma sociedade de direito francês constituída em 1987, que foi autorizada pelas entidades francesas competentes a explorar em França por um período de dez anos — até 1 de Março de 1997 — um serviço de televisão privada difundido em aberto por via hertziana terrestre.

3

A UER é uma associação profissional sem finalidade comercial de organismos de radiodifusão, criada em 1950, com sede social em Genebra. Em conformidade com o artigo 2.o dos seus estatutos, a UER tem por objecto promover a cooperação entre os seus membros e com os organismos de radiodifusão do mundo inteiro e representar os interesses dos seus membros no que diz respeito aos programas, bem como nos domínios jurídico, técnico e outros. Tem 39 membros activos em 32 países situados na zona europeia de radiodifusão.

4

Aquando da criação da UER, as prestações de serviços de radiodifusão e de televisão eram asseguradas na Europa quase exclusivamente por organismos pertencentes ao sector público ou encarregados de um serviço público e beneficiando muitas vezes de um monopólio. Durante a segunda metade dos anos 80 — que foram marcados pelo desenvolvimento das empresas de radiodifusão e de televisão predominantemente comerciais — a UER admitiu no seu seio organismos de televisão privados, como as sociedades francesas Canal Plus e TF 1, que manteve a sua qualidade de membro activo após a sua privatização ocorrida em 1986. Durante este mesmo período, na sequência de importantes desenvolvimentos da técnica no sector do audiovisual, este perdeu a sua relativa homogeneidade inicial, tendo surgido no mercado novos tipos de operadores, de carácter nacional, regional ou transfronteiras, por vezes especializados em certos tipos de programas (culturais, desportivos, musicais) ou financiados por meio de assinaturas (televisão «com portagem») com vista a explorar a distribuição de programas de televisão por cabo e por satélite.

5

Os estatutos da UER foram alterados em 1988, a fim de insistir, segundo a própria UER, «na obrigação de os membros desempenharem uma missão particular de interesse público, a que estão sujeitos pela sua legislação e/ou pela prática nacional e que os caracteriza como sendo um grupo especial de radiodifusores com obrigações e interesses comuns». Para ter em conta os direitos adquiridos pelos antigos membros, os estatutos da UER, alterados, especificam no seu artigo 21.o que o artigo 3.o, n.o 2, na sua nova redacção, não afectará o estatuto dos organismos que, no momento da sua entrada em vigor — 1 de Março de 1988 —, tenham já a qualidade de membros activos mas que já não preencham todas as condições estipuladas no referido número.

6

A nova versão do artigo 3.o dos estatutos da UER, na medida em que tal seja relevante para a resolução do presente litígio, tem a seguinte redacção :

«N.o 1. Os membros da UER repartem-se em duas categorias:

a)

membros activos;

b)

membros associados.

N.o 2. Podem ser membros activos da UER os organismos de radiodifusão ou agrupamentos de tais organismos de um país membro da União internacional das telecomunicações (UIT) situado na zona europeia de radiodifusão tal como esta vem definida no regulamento das radiocomunicações anexo à convenção internacional das telecomunicações, que assegurem nesse país, com a autorização das entidades competentes, um serviço de radiodifusão de importância e de carácter nacionais e que, além disso, provem satisfazer todas as condições a seguir mencionadas:

a)

têm por obrigação cobrir a totalidade dos habitantes do seu país, e cubram já efectivamente pelo menos uma parte substancial dos mesmos, fazendo o possível para os cobrir totalmente em tempo útil;

b)

têm a obrigação de assegurar, e assegurem efectivamente, uma programação diversificada e equilibrada, destinada a todas as camadas da população, incluindo uma proporção equitativa de programas que correspondam aos interesses particulares/minoritários das diferentes categorias do público, independentemente da relação entre o custo e as taxas de audiência das emissões;

c)

produzam efectivamente e/ou façam produzir, sob o seu próprio controlo do conteúdo, uma parte substancial das emissões difundidas.

...

N.o 6. Os membros associados e os não membros da UER podem beneficiar de um acesso contratual à Eurovisão. O acesso será atribuído ou retirado por decisão do conselho de administração.»

7

A Eurovisão constitui o quadro principal dos intercâmbios de programas entre os membros activos da UER. Existe desde 1954 e constitui uma parte essencial dos objectivos da UER. A sua função encontra-se descrita no artigo 3.o, n.o 5, dos estatutos do seguinte modo:

«A Eurovisão assenta no compromisso de os membros se proporcionarem mutuamente, em regime de reciprocidade, a sua cobertura das notícias importantes, bem como as suas reportagens de actualidades e a sua cobertura dos acontecimentos desportivos e culturais que se desenrolem no seu territòrio nacional, na medida em que os mesmos possam ter interesse para os outros membros da Eurovisão.»

8

Até 1987, o benefício dos serviços da UER era exclusivamente reservado aos seus membros. O n.o 6 do artigo 3.o dos estatutos, aditado aquando da revisão de 1988, previu um acesso contratual à Eurovisão de que poderiam beneficiar os membros associados e os não membros da UER. Este acesso contratual ou de sublicenças ao sistema de intercâmbio dos programas Eurovisão permite aos não membros completarem os seus próprios programas (nomeadamente desportivos e de notícias) na medida em que eles próprios não tenham adquirido os direitos de retransmissão no mercado. Segundo o princípio dito «do embargo», os não membros só têm, em princípio, direito à retransmissão em diferido.

9

Em 3 de Abril de 1989, a UER notificou à Comissão as regras que, regulámla aquisição dos direitos televisivos das manifestações desportivas, o intercâmbio de emissões desportivas no quadro da Eurovisão e o acesso contratual de terceiros a estas emissões e solicitou, simultaneamente, a emissão de um certificado negativo ou, subsidiariamente, a concessão de uma isenção ao abrigo do artigo 85.o, n.o 3, do Tratado CEE. Através de comunicação feita em conformidade com o artigo 19.o, n.o 3, do Regulamento n.o 17 do Conselho, de 6 de Fevereiro de 1962, primeiro regulamento de execução dos artigos 85.o e 86.o do Tratado CEE (JO 1962, 13, p. 204; EE 08 FI p. 22; a seguir «Regulamento n.o 17»), a Comissão publicou o essencial do conteúdo desta notificação no Jornal Oficial das Comunidades Europeias (JO 1990, C 251, p. 2), e anunciou a sua intenção de tomar uma decisão favorável a seu respeito. Na audiência, todavia, informou o Tribunal de que, tendo-se apercebido de que as regras notificadas suscitavam vários problemas na sua aplicação prática, tinha enviado, em seguida, uma comunicação de acusações à UER.

10

Resulta dos autos que a recorrente apresentou várias vezes desde a sua criação (uma vez em 1987, 1988 e 1990 e duas vezes em 1989) pedidos de admissão na UER quer directamente, quer através do Organisme français de radiodiffusion et de télévision (a seguir «OFRT»), membro da UER, no seio do qual a recorrente foi admitida em 1987. O último pedido de admissão, apresentado directamente à UER pela recorrente em Fevereiro de 1990, foi indeferido por decisão notificada em 1 de Junho de 1990.

11

Foi nestas condições que a recorrente apresentou à Comissão, em 28 de Julho de 1989, uma primeira queixa em que, após ter recordado as sucessivas recusas que tinham sido opostas à sua admissão como membro da UER, alegava que era vítima de uma discriminação por parte desta, na medida em que apenas lhe era possibilitado um acesso contratual indirecto aos seus serviços, nomeadamente à rede da Eurovisão, e tal, além disso, em condições muito desvantajosas. A recorrente considerava que as práticas que censurava à UER podiam ser qualificadas de acordo, decisão ou prática concertada nos termos do artigo 85.o, n.o 1, do Tratado CEE ou de exploração abusiva de uma posição dominante nos termos do artigo 86.o do Tratado. Solicitava, a título principal, à Comissão que declarasse verificada a existência de práticas anticoncorrenciais incompatíveis com o mercado comum imputáveis à UER ou aos seus membros, que daí fossem retiradas as consequências jurídicas a fim de ser posto termo às mesmas e, para este efeito, que ordenasse à UER que a admitisse no seu seio. A título de medidas provisórias, justificadas pelo prejuízo resultante das restrições com que deparava no acesso aos mercados das imagens

desportivas e de actualidades e dos efeitos destas restrições no mercado da publicidade televisiva, a recorrente pedia à Comissão que declarasse que, apesar das disposições do artigo 3.o dos estatutos da UER, que lhe conferiam o direito de se tornar membro activo desta associação, os órgãos desta tinham indeferido de modo discricionário e sobretudo discriminatório o seu pedido de adesão e, em consequência, que lhe fosse ordenado que se pronunciasse de novo, em prazo a fixar, sobre o pedido de adesão da La Cinq ou, pelo menos, que assegurasse à sociedade queixosa uma situação idêntica à que teria se tivesse sido aceite como membro activo.

12

Em 9 de Abril de 1990, dando seguimento a um pedido que lhe fora dirigido por H. C. Overbury, director na Direcção-Geral IV «Concorrência», a recorrente enviou à Comissão uma carta em que fazia o historial das suas relações com a UER e recordava a necessidade, em relação a toda e qualquer cadeia de orientação geral, como a La Cinq, de ser membro activo da UER a fim de se encontrar em situação concorrencial no mercado relativamente a duas categorias de imagens em particular: as actualidades e o desporto. Na sua carta, a recorrente chamava a atenção para o domínio que a UER exercia nos mercados destas duas categorias de imagens e tentava demonstrar que satisfazia todas as condições estatutárias para se tornar membro activo desta associação, sublinhando simultaneamente, por um lado, a situação de discriminação em que se encontrava devido à recusa da UER em a admitir no seu seio e, por outro, o carácter de «alibi» que constituía o acesso contratual de que beneficiava.

13

No seguimento da última recusa de admissão por parte da UER, a recorrente apresentou à Comissão, em 12 de Julho de 1990, uma «reiteração de queixa com pedido de medidas provisórias», em que se referia aos termos da sua queixa anterior e pedia de novo, tendo em conta a urgência e a iminência de um prejuízo irreparável, que fossem tomadas medidas provisórias comportando uma dupla injunção para a UER e consistindo, por um lado, em conceder-lhe, na pendência da resolução definitiva do contencioso, um «acesso suficiente» para preservar a concorrência em relação ao conjunto das retransmissões dos acontecimentos desportivos proporcionados pela Eurovisão e, por outro, a proceder de imediato, no seio de uma assembleia geral extraordinária, a uma discussão exaustiva e leal sobre a sua candidatura.

14

Na decisão impugnada de 14 de Agosto de 1990, a Comissão indeferiu o pedido de medidas provisorias, afirmando não estarem reunidas as condições para a sua concessão. Segundo a Comissão, não resulta de uma primeira análise sumaria dos factos a existencia a priori de uma infracção clara e flagrante aos artigos 85.o e 86.o do Tratado CEE, não parecendo provável resultar da não intervenção da Comissão qualquer dano irreparável para a La Cinq, tanto mais que a La Cinq beneficia de um acesso contratual às imagens da UER podendo portanto difundir um número considerável de acontecimentos desportivos importantes; tendo em conta esta mesma circunstância, não haveria, na opinião da Comissão, qualquer urgência especial justificando a adopção das medidas solicitadas.

Tramitação processual

15

Por petição entrada na secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 12 de Outubro de 1990, a La Cinq interpôs, nos termos do artigo 173.o, segundo parágrafo, do Tratado CEE, o presente recurso de anulação da decisão da Comissão de 14 de Agosto de 1990 (IV/33.249 — La Cinq SA/União Europeia de Radiodifusão).

16

Na sequência de uma reunião informal com as partes, realizada em 31 de Janeiro de 1991, mediante convocação do Tribunal, a recorrente renunciou, por carta de 11 de Fevereiro de 1991, a apresentar a sua réplica.

17

A UER foi admitida a intervir em apoio dos pedidos da recorrida por despacho do Tribunal de Primeira Instância (Primeira Secção) de 31 de Janeiro de 1991. As observações da interveniente foram apresentadas na Secretaria em 13 de Março de 1991.

18

Por carta de 8 de Abril de 1991, a Comissão apresentou as suas observações escritas sobre p memorando de intervenção da UER. A recorrente apresentou igualmente, em 15 de Abril de 1991, observações sobre o memorando apresentado pela interveniente.

19

Com base no relatório preliminar do juiz-relator, o Tribunal (Primeira Secção) decidiu iniciar a fase oral sem instrução prévia e convidou a recorrente a fornecer, para a audiência, elementos precisos demonstrando o prejuízo grave e irreparável por ela alegado. Através de memorando apresentado na Secretaria em 27 de Junho de 1991, a recorrente respondeu às questões que lhe tinham sido colocadas pelo Tribunal.

20

As alegações das partes e as suas respostas às questões do Tribunal foram ouvidas na audiência de 2 de Julho de 1991. No termo da audiência o presidente declarou encerrada a fase oral.

21

No seu recurso, a recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

anular a decisão da Comissão de 14 de Agosto de 1990;

devolver à Comissão o exame do pedido de medidas provisórias;

condenar a Comissão nas despesas.

22

A Comissão, por seu turno, conclui pedindo que o Tribunal se digne:

rejeitar o recurso por falta de fundamentação;

condenar a recorrente nas despesas.

23

A União Europeia de Radiodifusão conclui pedindo que o Tribunal se digne :

rejeitar o recurso por falta de fundamentação;

condenar a recorrente nas despesas, incluindo as da interveniente.

Quanto ao mérito

24

Em apoio dos seus pedidos de anulação, a recorrente invoca essencialmente dois fundamentos. Segundo a recorrente, a decisão controvertida é, por um lado, insuficientemente fundamentada e, por outro, encontra-se viciada por erro manifesto de facto e de direito. Estes fundamentos são invocados em relação às afirmações da Comissão quanto às diferentes condições que a recorrida considerou necessárias para exercer a competência que lhe é atribuída em matéria de concessão de medidas provisórias.

25

O Tribunal salienta, a este respeito, que a Comissão, na sua decisão, considerou que «as condições necessárias para a concessão de medidas provisórias num caso como o presente são :

a verificação de uma infracção através de elementos suficientemente claros para demonstrar a existência verosímil de uma infracção;

a probabilidade de um dano grave e irreparável para o requerente na ausência de intervenção da Comissão;

uma urgência comprovada.»

26

Nestas circunstâncias, o Tribunal considera que antes de examinar os fundamentos e argumentos das partes, convém precisar as condições que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, devem estar reunidas para que a Comissão possa exercer a sua competência de conceder medidas provisórias no âmbito de aplicação das regras de concorrência do Tratado.

27

O Tribunal recorda, antes de mais, que a competência da Comissão neste domínio foi reconhecida pelo Tribunal de Justiça no seu despacho de 17 de Janeiro de 1980, Camera Care/Comissão (792/79 R, Recueil, p. 119), segundo a qual cabe à Comissão, no exercício do controlo que lhe é atribuído, em matéria de concorrência, pelo Tratado e pelo Regulamento n.o 17, decidir nos termos do artigo 3o, n.o 1, do Regulamento n.o 17, se deve tomar as medidas provisórias que lhe são solicitadas.

28

Além disso, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça (despacho Camera Care, atrás referido, n.os 14 e 18, e despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 1982, Ford/Comissão, n.o 13, 228/82 e 229/82 R, Recueil, p. 3091), que só podem ser concedidas medidas provisorias quando as práticas de certas empresas forem, prima facie, de molde a constituir uma violação das regras comunitarias de concorrência passível de ser punida por uma decisão da Comissão. É necessário, além disso, que tais medidas só sejam tomadas em caso de urgência comprovada, com vista a obviar a uma situação susceptível de causar um prejuízo grave e irreparável à parte que as solicita, ou intolerável para o interesse geral.

29

Decorre do que precede que a condição relativa à urgência, que a Comissão considerou, na decisão controvertida, como uma terceira condição para a concessão de medidas provisórias, mais não é, na realidade, do que um aspecto da condição relativa ao risco de um prejuízo grave e irreparável.

30

Deve observar-se além disso que, sendo as duas condições para a concessão de medidas provisórias cumulativas, bastava não se verificar uma única destas condições no caso vertente para que a Comissão se visse impedida de exercer a sua competência na matéria.

31

Por fim, o Tribunal salienta que no caso em apreço a Comissão baseou a sua recusa de concessão de medidas provisórias no facto de não se verificar nenhuma das condições a que se encontra sujeito o exercício da sua competência.

32

A fim de verificar a razoabilidade dos pedidos da Comissão, cabe ao Tribunal examinar os diferentes fundamentos e argumentos invocados pela recorrente quanto às afirmações da Comissão sobre cada uma das duas condições necessárias para a concessão de medidas provisórias tal como o Tribunal as acaba de definir; ou seja, a existência verosímil de uma infracção e a probabilidade de um dano grave e irreparável que comprove a urgência da adopção de tais medidas.

A — Quanto à condição relativa à existência verosímil de uma infracção

33

A recorrente contesta a afirmação da Comissão de acordo com a qual no caso concreto não se encontra satisfeita a condição relativa à existência verosímil de uma infracção. A este respeito, a decisão controvertida seria insuficientemente fundamentada e viciada por erro manifesto de facto e de direito.

Quanto ao fundamento assente na insuficiência de fundamentação

34

Segundo a recorrente, a Comissão teria mantido um silêncio absoluto sobre os argumentos e os elementos de facto mais decisivos que tinham sido desenvolvidos na sua queixa. Concretamente, na opinião da recorrente, a decisão impugnada, ao tratar apenas da questão de saber se a La Cinq satisfazia ou não as condições exigidas pelo artigo 3.o, n.o 2, dos estatutos da UER fugiria ao próprio objecto da queixa e à principal razão de ser do pedido de medidas provisorias, isto é, a discriminação manifesta de que a recorrente seria vítima relativamente a algumas das suas concorrentes privadas, nomeadamente Canal Plus e TF 1, membros de pleno direito da UER. Com efeito, Canal Plus, que oferece um serviço de televisão «com portagem», não pode ter, mais que não seja apenas por esta razão, a obrigação de «cobrir a totalidade dos habitantes de um país» e, além disso, os seus programas seriam desequilibrados dado que se centram no cinema; quanto à TF 1, a sua programação teria sido alvo, por parte do Conseil supérieur de l'audiovisuel français (a seguir «CSA»), das mesmas críticas que a programação da recorrente.

35

A recorrente recorda, neste contexto, a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça segundo a qual a Comissão não é obrigada a responder a toda e qualquer argumentação desenvolvida por uma parte, desde que fundamente a sua decisão de modo suficiente (acórdão de 17 de Novembro de 1987, BAT e Reynolds/Comissão, 142/84 e 156/84, Colect., p. 4487), pertinente, ou seja, adaptada à globalidade da situação de facto e de direito que é submetida à sua apreciação, e que permita ao Tribunal de Justiça exercer o seu controlo (acórdãos de 4 de Julho de 1963, Alemanha/Comissão, 24/62, Recueil, p. 131, e de 11 de Julho de 1985, Remia/Comissão, 42/84, Recueil, p. 2545). Ora, segundo a recorrente, não existe na decisão controvertida qualquer alusão à argumentação central da recorrente relativa à discriminação grave e manifesta de que seria vítima nem à existência de elementos de facto susceptíveis de afectar as suas alegações a este respeito. A insuficiência de fundamentação seria, assim, manifesta e provada.

36

A recorrente salienta igualmente, nas suas observações sobre o memorando apresentado pela interveniente, que este memorando, bem como a contestação da Comissão, tendem na realidade a «rectificar»a posteriori a fundamentação da decisão de 14 de Agosto de 1990, dando deste modo ao Tribunal, não apenas a prova de que esta fundamentação era frágil e parcial, mas ainda de que era manifestamente insuficiente para permitir ao Tribunal exercer o seu controlo jurisdicional.

37

Em resposta ao fundamento assente na insuficiência de fundamentação, a Comissão começa por sublinhar a contradição que existe entre a insistência com que a La Cinq apresentou a sua candidatura à UER e o facto de qualificar as condições de adesão de «secundária e periférica» relativamente à questão da discriminação.

38

Á Comissão considera, além disso, que se trata, na realidade, de duas acusações estreitamente ligadas, visto que a pretensa discriminação teria a sua origem na recusa da UER admitir a La Cinq no seu seio, ao passo que outras cadeias que não preencheriam as condições previstas pelos estatutos da UER teriam sido admitidas na qualidade de membros activos.

39

Em seguida, a Comissão alega que, tratando-se no caso vertente de um processo urgente, lhe bastava demonstrar, através de uma argumentação fundamentada, que um dos elementos cumulativos para a adopção de medidas provisórias (por exemplo, o dano irreparável) não se verificava. Todavia, se bem que não estivesse, na sua opinião, sujeita a tal obrigação, teria igualmente procedido à análise de um dos dois elementos susceptíveis de ser considerados como constitutivos de uma infracção prima facie, ou seja, a questão de saber se a La Cinq satisfazia ou não as condições de adesão à UER, sem que tal signifique, no entanto, que não se tenha pronunciado sobre o aspecto «discriminação». Este último aspecto seria, de resto, suficientemente complexo para merecer um exame mais aprofundado do que o que pode ter lugar no âmbito de um processo urgente.

40

Face aos argumentos desenvolvidos pelas partes quanto a este primeiro fundamento, cabe ao Tribunal, para exercer o seu controlo quanto à legalidade da decisão impugnada, verificar se a Comissão respeitou a obrigação, que lhe é imposta pelo artigo 190.o do Tratado CEE, de fundamentar a sua decisão de indeferimento de um pedido de medidas provisórias.

41

Tal como o Tribunal de Justiça decidiu várias vezes (acórdãos de 14 de Julho de 1972, Cassella/Comissão, 55/69, Recueil, p. 887, e Hoechst/Comissão, 55/69, Recueil, p. 927, e de 17 de Janeiro de 1984, VBVB e VBBB/Comissão, 43/82 e 63/82, Recueil, p. 19), a Comissão não é obrigada a tomar posição, na fundamentação das suas decisões, sobre todos os argumentos que os interessados invocam em apoio do seu pedido. Basta-lhe, com efeito, expor os factos e as considerações jurídicas que assumam uma importância essencial na economia da decisão.

42

Resulta igualmente de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça (acórdãos de 4 de Julho de 1963, Alemanha/Comissão, 24/62, Recueil, p. 133; de 30 de Setembro de 1982, Roquette Frères/Conselho, 110/81, Recueil, p. 3159; de 17 de Janeiro de 1984, VBVB e VBBB/Comissão, já referido), que a fundamentação de uma decisão que afecte interesses deve ser susceptível de permitir ao juiz comunitário exercer o seu controlo de legalidade e ao interessado conhecer as justificações da medida tomada, a fim de poder defender os seus direitos e verificar se a decisão é ou não razoável.

43

O Tribunal verifica, a este respeito, que, embora alguns dos argumentos invocados pela recorrente não tenham sido examinados na decisão impugnada, a mesma indica os elementos essenciais de facto e de direito relativos às diferentes condições a que está sujeita a concessão de medidas provisórias que levaram a Comissão a recusar as medidas solicitadas, permitindo assim à recorrente contestar a razoabilidade desta decisão e ao Tribunal exercer o seu controlo de legalidade.

44

Das considerações que precedem resulta que o primeiro fundamento deve ser rejeitado.

Quanto ao fundamento assente em erro manifesto de facto e de direito

45

Segundo a recorrente, ao não indagar se havia de facto discriminação e ao concentrar a sua análise num aspecto periférico, no caso concreto, a questão de saber se a La Cinq satisfazia as condições exigidas pelo artigo 3.o, n.o 2, dos estatutos da UER, a Comissão ter-se-ia contentado com uma visão parcial da situação de facto, o que afectaria a sua decisão de erro manifesto de facto; esta abordagem constitui, simultaneamente, um erro manifesto de direito, na medida em que a Comissão se recusou a encarar, quando isso lhe incumbia a fim de preservar o efeito útil das regras de concorrência, a aplicação do direito comunitário a uma situação caracterizada pelo comportamento de um organismo associativo que, ocupando uma posição dominante no mercado, recusou aceitar no seu seio uma sociedade como a La Cinq, que tinha mais razões para se tornar membro da UER do que outras sociedades que foram admitidas como membros activos.

46

A recorrente contesta, aliás, a afirmação da Comissão segundo a qual não é evidente que a La Cinq satisfaça as condições de adesão previstas nos estatutos da UER, no que diz respeito à cobertura dos habitantes de um país e à qualidade da programação [artigo 3.o, n.o 2, alíneas a) e b), dos estatutos da UER].

47

A recorrente alega, a este respeito, que é uma cadeia de vocação nacional que cobre já mais de 72 % da população e desenvolve esforços para garantir a cobertura total do território nacional, quando nenhuma cadeia de televisão cobre 100 % de um território nacional e/ou 100 % da população. A recorrente critica, por outro lado, o facto de a Comissão não ter procedido a uma análise comparativa entre a sua grelha de programação e as das diferentes cadeias membros da UER, análise que lhe teria permitido verificar a sua grande similitude e, portanto, concluir que as condições exigidas pelos estatutos da UER são mais imprecisas e menos rigorosas do que as exigências da regulamentação interna francesa, no que diz respeito, por exemplo, às quotas de obras de expressão original francesa, com as quais a Comissão teria no entanto estabelecido um paralelo injustificado.

48

Em resposta aos argumentos da recorrente, a Comissão considera, em primeiro lugar, poder duvidar que a La Cinq satisfaça incontestavelmente todas as condições exigidas para poder aderir à UER.

49

Quanto à obrigação de cobrir a totalidade da população, a Comissão considera que essa obrigação deve ser entendida como um elemento de uma missão de serviço público (por oposição a uma «missão» exclusivamente comercial) e não deve ser assimilada a uma «vocação nacional» (por oposição a uma «vocação local»). Segundo os dados de que a Comissão disporia, a La Cinq só chegaria actualmente acerca de 72 % dos lares franceses e ter-se-ia fixado como objectivo atingir apenas 92 %. Estes números demonstram claramente que não satisfaz a obrigação de servir a totalidade da população, mesmo na hipótese de se dever entender por «totalidade» um número de 95 %.

50

No que diz respeito à condição de uma «programação diversificada e equilibrada», a Comissão defende-se da acusação da La Cinq segundo a qual teria tomado em consideração críticas do CSA relativas aos incumprimentos da cadeia a certas disposições regulamentares nacionais, alegando que só teria tomado em consideração, pelo contrário, as críticas relativas à natureza pouco diversificada e pouco equilibrada da programação da cadeia, cujo perfil mais temático do que genérico seria essencialmente dominado pela ficção e pela informação.

51

Em segundo lugar, e sem afastar à partida a possibilidade de uma discriminação — dado que não é evidente que o Canal Plus satisfaça perfeitamente as condições de adesão previstas nos actuais estatutos da UER — a Comissão sustenta que as duas cadeias não se encontram a priori em verdadeira situação de concorrência, dado que o Canal Plus beneficia de uma concessão de serviço público e é uma cadeia «com portagem» cujos rendimentos provêm essencialmente das suas assinaturas, ao passo que a La Cinq retira quase exclusivamente os seus recursos da publicidade. Nestas condições, a Comissão considera que a existência e o grau eventual da discriminação invocada, tal como a melhor forma de a sanar, só podem ser determinados numa fase posterior e com base num exame minucioso.

52

A interveniente contesta, por seu turno, os argumentos desenvolvidos pela recorrente na sua queixa para justificar o seu pedido destinado a ser admitida na qualidade de membro activo no seio da UER através de uma decisão da Comissão obrigando a referida União a aceitar a sua candidatura. A este respeito, a interveniente observa que a recorrente, ao basear-se nos artigos 85.o e 86.o do Tratado CEE, não deu a priori um fundamento jurídico bastante à sua queixa, visto que estas condições só se referem às restrições de concorrência e não têm por objecto o controlo das actividades de uma associação profissional enquanto tal; além disso, na opinião da interveniente, as referidas disposições, embora proíbam os actos de discriminação relativamente a parceiros comerciais, não proíbem a discriminação horizontal enquanto tal.

53

Neste contexto, a interveniente salienta nomeadamente o que considera ser uma contradição fundamental na argumentação desenvolvida pela recorrente para demonstrar que devia ser obrigatoriamente admitida como membro activo da UER, por força simultaneamente do artigo 85.o e do artigo 86.o do Tratado CEE. Na opinião da interveniente, se — como é sustentado pela recorrente — se devesse concluir que a Eurovisão constitui uma colusão que não é susceptível de beneficiar de uma isenção por força do n.o 3 do artigo 85.o e que a UER, no entanto, se encontra em posição dominante no mercado dos direitos de retransmissão de acontecimentos desportivos, não se poderia obviar a esta situação admitindo uma empresa vítima de um tratamento discriminatório no seio da colusão ou do grupo de empresas que dominam o mercado; tal medida falsearia ainda mais o jogo da concorrência contribuindo para a extensão da colusão ou para o reforço da posição dominante.

54

A interveniente considera igualmente que ao solicitar a adopção de medidas provisórias que lhe dariam pleno acesso ao sistema de intercâmbio de programas da Eurovisão, a recorrente pediu à Comissão que adoptasse uma decisão que esta não podia tomar sem julgar antecipadamente a própria natureza da solução a dar à situação de infracção presumida, sem julgar antecipadamente da sua decisão de conceder ou não à UER uma isenção por força do artigo 85.o, n.o 3, do Tratado CEE e sem se imiscuir no campo da liberdade de associação. Segundo a interveniente, o artigo 3.o do Regulamento n.o 17 só permite à Comissão obrigar as empresas a pôr termo à infracção, deixando a estas últimas o cuidado de decidir a maneira como satisfazem esta obrigação negativa.

55

A UER salienta, além disso, que a recorrente nunca satisfez, e continua a não satisfazer, os critérios de adesão à UER.

56

No que diz respeito, em especial, à obrigação de cobrir a totalidade dos habitantes de um país, a interveniente alega que se trata de uma obrigação especialmente onerosa, que abrange não só a obrigação de servir toda a população desse país, mas exigindo ainda e cumulativamente que o organismo de radiodifusão que apresenta a sua candidatura cubra já efectivamente uma parte substancial da mesma, fazendo todos os possíveis para a cobrir na totalidade em tempo útil. Dado que os custos para chegar ao último auditor aumentam de modo desproporcionado e extremo, injustificável do ponto de vista da estrita rentabilidade, seria precisamente o facto de cobrirem obrigatoriamente toda a população de um país que caracterizaria os organismos de radiodifusão de interesse geral.

57

No que diz respeito ao segundo critério de adesão à UER, ou seja, a obrigação de uma programação diversificada e equilibrada destinada a todas as camadas da população, a interveniente remete essencialmente para as verificações do CSA, sublinhando, além disso, as diferenças entre as regulamentações a que estão sujeitos em França os organismos de radiodifusão de interesse geral e as empresas de radiodifusão de caracter comercial, o que justificaria a legalidade, atendendo às regras de concorrência do Tratado CEE, do tratamento diferencial aplicado pela UER aos organismos de radiodifusão.

58

A interveniente observa, por outro lado, que sempre seguiu uma prática constante de não admissão de candidaturas apresentadas por novas empresas de radiodifusão de orientação comercial, prática que se explica pelos objectivos e pelos princípios de funcionamento que lhe são próprios. A este respeito, o mero facto de a TF 1 e o Canal Plus serem financiados por lucros comerciais não pode ser invocado como prova de discriminação, dado que as diferenças de tratamento têm a sua origem nas características particulares de cada cadeia. Além disso, as duas empresas mencionadas distinguem-se da recorrente pelo facto de ser necessário ter em conta os seus direitos adquiridos. Com efeito, elas foram admitidas como membros activos da UER muito antes da alteração dos estatutos desta em 1988 e antes de o aparecimento das empresas de radiodifusão de orientação comercial se ter tornado uma realidade. Além disso, se fossem admitidas como membros activos da UER empresas de radiodifusão de orientação comercial, a par de organismos de radiodifusão de interesse geral, o próprio sistema de intercâmbio de programas Eurovisão não poderia continuar a ser o que é: um sistema de solidariedade entre organismos da mesma natureza apoiando indirectamente os seus membros mais fracos.

59

Tendo em conta o que precede, o Tribunal considera que, para exercer o seu controlo sobre a legalidade da decisão controvertida, lhe cabe examinar, em primeiro lugar, se a Comissão se baseou ou não numa interpretação jurídica correcta da condição relativa à existência verosímil de uma infracção e, em segundo lugar, se, como é afirmado pela recorrente, cometeu um erro manifesto na apreciação das circunstâncias de facto, susceptível de a ter levado a concluir que no caso concreto a referida condição não se encontrava satisfeita.

60

Deve recordar-se, antes de mais, que a Comissão fundamenta a sua conclusão relativa à ausência de uma infracção verosímil na consideração de que «não resulta de um primeiro exame sumário dos factos que haja uma infracção clara e flagrante (infracção a priori) aos artigos 85.o, n.o 1, e 86.o do Tratado».

61

Ora, tal como o Tribunal decidiu no seu acórdão de 12 de Julho de 1991, Peugeot/Comissão (T-23/90, Colect., p. II-653) confirmando, desse modo, a argumentação desenvolvida pela Comissão durante o processo (ver n.o 59 do acórdão), não se pode equiparar, no âmbito de um recurso sobre a legalidade de uma decisão da Comissão relativa à concessão de medidas provisórias, a exigência da verificação de uma infracção prima facie com a exigência de certeza inerente a uma decisão final. No caso concreto, a fundamentação considerada pela Comissão na decisão impugnada — confirmada, aliás, na audiência — equivale a exigir que, para que possam ser concedidas medidas provisórias, esteja já provada a existência de uma infracção clara e flagrante no estádio da simples apreciação prima facie que deve servir de base à concessão de tais medidas.

62

Daqui decorre que, ao identificar a exigência de uma «infracção a priori» com a da verificação de uma «infracção clara e flagrante» no estádio das medidas provisórias, a Comissão fundamentou o seu raciocínio numa interpretação jurídica errada da condição relativa à existência verosímil de uma infracção.

63

O Tribunal considera que o erro de direito feito pela Comissão na interpretação da condição relativa à existência verosímil de uma infracção é susceptível de afectar gravemente a regularidade e a pertinência de toda e qualquer apreciação que a Comissão tenha podido fazer sobre a questão de saber se esta primeira condição necessária para a concessão das medidas provisórias solicitadas se encontrava de facto preenchida.

64

Este juízo do Tribunal aplica-se à apreciação feita pela Comissão sobre a questão de saber se a recorrente satisfazia as condições estatutárias necessárias para se tornar membro activo da UER, nomeadamente as fixadas pelo artigo 3.o, n.o 2, alíneas a) e b), dos estatutos, único argumento que a Comissão abordou na sua decisão para concluir no sentido da ausência de uma infracção verosímil.

65

O erro ocorrido no raciocínio da Comissão decorre com toda a evidência da própria redacção da decisão controvertida, de acordo com a qual «não é evidente que a La Cinq satisfaça todas as condições de adesão e... (não) é portanto manifesto que a recusa seja discriminatória e injustificada» (n.o 5 da decisão) e «é difícil defender à partida que a La Cinq satisfaz incontestavelmente as condições estatutárias de adesão e que há manifestamente uma infracção da parte da UER» (n.o 8 da decisão).

66

Resulta das considerações anteriores que a conclusão da Comissão segundo a qual a condição relativa à existência verosímil de uma infracção não se encontrava preenchida no caso concreto assenta numa interpretação jurídica errada desta condição.

B — Quanto à condição relativa à existência de um risco de prejuízo grave e irreparável que comprove a urgência da adopção de medidas provisórias

67

A recorrente contesta a afirmação da Comissão segundo a qual não teria havido risco de prejuízo grave e irreparável que a ameaçasse e que justificasse a adopção urgente das medidas provisórias solicitadas. Na opinião da recorrente, esta conclusão é afectada por um erro manifesto de facto, dado que a Comissão não teve em conta as especificidades do dossier e as do sector económico em causa e, além disso, utilizou em apoio da sua decisão dados factuais manifestamente inexactos. Por outro lado, segundo a recorrente, ao não ter em conta a globalidade dos elementos de apreciação, a Comissão teria igualmente cometido um erro manifesto de direito.

Quanto ao fundamento único assente num erro manifesto de facto e de direito

68

Para a recorrente, nas circunstâncias concretas do seu caso, a recusa de lhe ser concedido o acesso à Eurovisão na qualidade de membro activo da UER só lhe pode causar um prejuízo grave e irreparável.

69

A recorrente alega, em especial, que o acesso contratual à Eurovisão, a que a Comissão se referiu na decisão impugnada, de que ela beneficia por força de um contrato dito de sublicença celebrado com a OFRT, nunca lhe permitiu obter imagens dos grandes acontecimentos desportivos proporcionados pela Eurovisão, com duas excepções, das quais uma apenas no seguimento de um processo de medidas provisórias perante os tribunais franceses. E mais, este acesso contratual à Eurovisão foi criado para ter em conta os interesses das cadeias ou organismos de radiodifusão que não se podem tornar membros activos da UER, por não preencherem as condições exigidas para o efeito. Não sendo esse o seu caso, a recorrente considera que a recusa em questão constitui uma discriminação patente e notória que teria, aliás, sido já reconhecida por um acórdão de 15 de Novembro de 1989 da cour d'appel de Paris.

70

Na opinião da recorrente, o risco de prejuízo grave e irreparável não deve ser forçosamente identificado com o risco de cessação de actividade ou de apresentação à falência da empresa. No caso concreto seria antes o risco de não renovação da sua autorização de emitir — que deixará de produzir os seus efeitos em 1 de Março de 1997 — que deveria ser tomado em consideração para a concessão de medidas provisórias. Tendo em conta o facto que o processo administrativo prossegue perante a Comissão, que a decisão quanto ao mérito a ser tomada no termo do mesmo será provavelmente objecto de recurso para o Tribunal de Primeira Instância e eventualmente de recurso para o Tribunal de Justiça, a recorrente considera que na ausência de medidas provisórias as indemnizações compensatórias a que terá direito só lhe poderão ser atribuídas, na melhor das hipóteses, numa data relativamente próxima do termo da autorização de emitir que lhe foi concedida pelas autoridades francesas.

71

Neste contexto, a recorrente sublinha que a imagem de uma cadeia no público constitui um factor decisivo, quer em termos de taxa de audiência, de valorização das receitas resultantes das «imagens publicitárias» ou do ponto de vista da renovação da sua autorização de emitir. Ora, uma imagem negativa decorrente de uma discriminação sofrida nas retransmissões só poderia ser corrigida lentamente, ao ritmo da evolução da opinião pública e não pela simples atribuição de indemnizações, sobretudo porque esta atribuição, no momento em que ocorrer, já não permitirá à La Cinq desenvolver a sua própria capacidade concorrencial. Na audiência, a recorrente, por outro lado, alegou que, uma vez que a concorrência no mercado da publicidade está directamente ligada à taxa de audiência de uma cadeia, uma situação de desvantagem como a sua, na medida que não permite rentabilizar as «imagens publicitárias», pode em si mesma estar na origem de um prejuízo grave e irreparável que não é susceptível de ser demonstrado por dados numéricos.

72

Segundo a recorrente, a Comissão também não tomou em consideração uma outra especificidade do presente caso, decorrente do facto de que, se a recusa de admissão feita pela UER à La Cinq vier a ser declarada ilícita, será ainda necessario resolver retroactivamente a situação da recorrente quanto aos acontecimentos já difundidos, ou ainda não difundidos mas já repartidos entre os membros da UER, antes da decisão da Comissão, por força dos contratos plurianuais celebrados com todos os grandes organizadores de acontecimentos desportivos internacionais.

73

As circunstâncias invocadas provam, segundo a recorrente, a urgência que havia e que continua a haver em tomar as medidas provisórias solicitadas. Esta urgência surge ainda mais claramente se se considerar a lista dos acontecimentos televisivos manifestamente populares que serão difundidos durante 1991 e 1992, de que a recorrente se verá privada se não forem adoptadas as medidas provisórias solicitadas.

74

Em resposta, a Comissão sublinha que a La Cinq beneficia de um acesso sem restrições às actualidades televisivas difundidas diariamente pela UER. Além disso, resulta dos autos que a recorrente dispõe de uma posição forte no que diz respeito às imagens desportivas, nomeadamente quanto ao ténis e aos ralis automóveis e tem uma exclusividade quase total em matéria de grandes prémios de fórmula 1 e de corridas de motos em circuito.

75

Segundo a Comissão, mesmo supondo que, como afirma a La Cinq, este acesso é apenas teórico e só tenha dado origem na prática à retransmissão de alguns desafios de futebol, não se pode verificar com base apenas neste facto um dano irreparável e irreversível que justifique medidas provisórias, tanto mais que a La Cinq não produziu qualquer prova tangível, tal como dados numéricos relativos a uma eventual perda de audiência ou a uma diminuição das receitas publicitárias. De qualquer modo, a recorrente teria sempre a liberdade de desenvolver uma política de contraprogramação, difundindo emissões de grande qualidade destinadas a atrair a parte de público que não se interessa pelos acontecimentos desportivos.

76

Quanto à urgência das medidas solicitadas, a Comissão observa que a La Cinq apresentou o seu primeiro pedido de adesão à UER em Fevereiro de 1987 e que a última recusa que lhe foi feita em Junho de 1990 em nada modificou a situação em que se encontrava já há três anos. Consequentemente, é difícil admitir que, de repente, a situação tenha assumido um carácter de urgência susceptível de exigir uma intervenção da Comissão para sanar a mesma.

77

O Tribunal observa, a título liminar, que a Comissão se baseou na sua decisão nas seguintes considerações para refutar a probabilidade de um dano grave e irreparável para a recorrente susceptível de justificar a urgência das medidas solicitadas. Por um lado, afirma que a La Cinq beneficia de um acesso contratual às imagens da UER e que teve a possibilidade de retransmitir um número considerável de acontecimentos desportivos importantes, incluindo desafios do último campeonato do mundo de futebol. Por outro, a Comissão sustenta que só podem ser considerados danos irreparáveis os danos que não possam ser sanados por nenhuma decisão posterior, o que seria o caso sé, por exemplo, a La Cinq, devido à atitude da UER, tivesse sido forçada a pôr termo às suas actividades. A Comissão considerou que este perigo era longínquo e que os prejuízos financeiros que a recorrente corria o risco de sofrer podiam ser reparados através de acções de indemnização intentadas perante os tribunais nacionais depois de se ter verificado que a UER tinha violado as regras de concorrência.

78

A semelhança do exame a que o Tribunal procedeu anteriormente a propósito da condição relativa à existência verosímil de uma infracção, convém agora examinar em primeiro lugar se a Comissão partiu de uma interpretação jurídica correcta da condição relativa à existência de um risco de prejuízo grave e irreparável que prove a urgência da adopção de medidas provisórias.

79

Quanto a este aspecto, deve considerar-se que, ao afirmar na sua decisão que «só podem ser considerados danos irreparáveis os danos que não possam ser sanados por nenhuma decisão posterior», a Comissão baseou-se num conceito juridicamente incorrecto do prejuízo irreparável cuja existência ou risco poderia justificar a concessão de medidas provisórias.

80

Com efeito, ao formular a exigência que consta do seu conceito de prejuízo irreparável, a Comissão foi além do que impõe a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que se limita a fazer referência aos danos que já não poderão ser sanados pela decisão que a Comissão virá a tomar no termo do processo administrativo (despacho de 17 de Janeiro de 1980, Camera Care, atrás referido).

81

A interpretação da Comissão tornaria, além disso, quase impossível a verificação de tal condição, o que equivaleria na prática a esvaziar de conteúdo a competência que lhe é reconhecida para a concessão de medidas provisórias.

82

Foi neste contexto que a Comissão não teve em conta, para decidir do caracter grave e irreparável do prejuízo, a duração limitada da autorização de emitir concedida à La Cinq e a influência que esta circunstância podia ter nas possibilidades oferecidas à recorrente em tempo útil — nomeadamente quanto à renovação da sua autorização — para sanar as consequências de eventuais actos ilícitos que lhe dizem respeito e obter reparações financeiras.

83

Daqui decorre que a Comissão cometeu um erro de direito na interpretação da condição relativa à existência de um prejuízo grave e irreparável que prove a urgência da adopção das medidas provisórias solicitadas.

84

Deve examinar-se em seguida se, ao invocar o acesso contratual às imagens da UER de que a La Cinq beneficia para afastar a verificação da condição relativa à probabilidade de um prejuízo grave e irreparável, a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação.

85

A este propósito, convém recordar que, como o Tribunal de Justiça o esclareceu nomeadamente nos seus acórdãos de 11 de Julho de 1985, Remia (42/84, atrás referido), e de 17 de Novembro de 1987, BAT e Reynolds (142/84 e 156/84, atrás referido), tratando-se de situações que impliquem apreciações económicas complexas, o controlo jurisdicional deve limitar-se à verificação do respeito das regras processuais e de fundamentação, bem como da exactidão material dos factos, da ausência de erro manifesto de apreciação e de desvio de poder.

86

É necessário acrescentar que, como o Tribunal de Justiça decidiu recentemente, num acórdão de 21 de Novembro de 1991, Technische Universität München, n.os 14, 26 e seguintes (C-269/90, Colect., p. I-5469), nos casos em que as instituições da Comunidade dispõem de um poder de apreciação para poderem desempenhar as suas funções, o respeito das garantias atribuídas pela ordem jurídica comunitária nos processos administrativos assume uma importância ainda mais fundamental. Entre essas garantias consta, nomeadamente, a obrigação de a instituição competente examinar, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos relevantes do caso concreto.

87

Ora, convém verificar que, embora tendo invocado o acesso contratual às imagens da Eurovisão de que beneficia a recorrente, a Comissão não examinou todavia as condições em que este acesso pode ter lugar.

88

Com efeito, os elementos fornecidos pela recorrente, quer nas suas queixas de 28 de Julho de 1989 e de 12 de Julho de 1990, quer durante a instância perante o Tribunal, que eram conhecidos da Comissão ou de que esta poderia normalmente ter tomado conhecimento sem dificuldade, são susceptíveis de levantar sérias dúvidas quanto à importância prática e ao significado real do sistema de acesso contratual ou de sublicença a fim de permitir aos organismos de televisão que não sejam admitidos no seio da UER ter um acesso concorrencial às imagens da Eurovisão.

89

A este respeito, deve salientar-se, em primeiro lugar, que o artigo 3.o, n.o 6, dos estatutos da UER prevê que o acesso contratual à Eurovisão «será atribuído ou retirado por decisão do conselho de administração», o que coloca os organismos de televisão não membros da UER na dependência das decisões tomadas a este respeito por um órgão composto de administradores que representam os membros activos da UER.

90

O Tribunal observa além disso que, embora seja um facto que o esquema da sublicença só diz respeito ao acesso indirecto aos direitos já adquiridos pelos membros da UER e que, consequentemente, o mesmo não prejudica o acesso directo aos direitos de retransmissão dos acontecimentos desportivos internacionais e outros que as diferentes cadeias podem obter no mercado, a Comissão não tomou todavia em consideração a influência que podem exercer no acesso efectivo à Eurovisão cadeias que não são membros activos da UER o peso de que esta última dispõe nos diferentes mercados, sobretudo se tivermos em conta o facto que ela agrupa a maior parte das cadeias de orientação geral na Europa, que intervém muitas vezes nas negociações com vista à aquisição de direitos de retransmissão em nome dos seus membros e que se desenvolveu uma prática, consistente em negociar contratos plurianuais com os organizadores de acontecimentos desportivos internacionais. Todas estas circunstâncias são, à primeira vista, passíveis de reduzir sensivelmente as possibilidades concorrenciais de que pode dispor uma cadeia que opera individualmente no mercado dos direitos de retransmissão dos acontecimentos que interessam a um grande número de espectadores, como é o caso dos grandes acontecimentos desportivos internacionais.

91

Deve assinalar-se igualmente que a recorrente alegou desde a sua primeira queixa, por um lado, que por iniciativa da UER, a adesão à OFRT a impedia de adquirir a título exclusivo os direitos de retransmissão dos grandes acontecimentos desportivos que se realizam no estrangeiro e, por outro, que o sistema de acesso contratual à Eurovisão era acompanhado de condições financeiras complexas, discriminatórias e desvantajosas, definidas numa convenção de 25 de Agosto de 1987 entre a OFRT e'a UER. Na carta que dirigiu em 26 de Setembro de 1989 a H. C. Overbury, a recorrente precisou que estas condições tinham sido repercutidas a seu respeito pela OFRT, sem qualquer negociação possível, por contrato de 1 de Outubro de 1988.

92

O Tribunal recorda, por outro lado, a este respeito, que a recorrente alegou, sem ser contestada pela recorrida, que durante o período que precedeu a decisão controvertida, à excepção do jogo Stuttgart-Nápoles de 17 de Maio de 1989, foi apenas após a introdução de um pedido de medidas provisórias perante os órgãos jurisdicionais nacionais que a La Cinq pôde difundir, aquando do último campeonato do mundo de futebol, as imagens de quatro jogos de segunda ordem cedidas pela Antenne 2 e pela FR 3.

93

Por ultimo, o Tribunal salienta que as dúvidas sobre a capacidade do sistema contratual introduzido para permitir aos organismos não membros da UER terem acesso alternativo, em condições concorrenciais, às imagens da Eurovisão sao confirmadas pela alteração ocorrida na posição da Comissão relativamente à comunicação que tinha inicialmente publicado por força do artigo 19.o, n.o 3, do Regulamento n.o 17. Com efeito, enquanto nessa comunicação a Comissão tencionava tomar uma decisão favorável relativamente ao sistema da Eurovisão, informou c Tribunal que tinha enviado entretanto à UER uma comunicação de acusações que substituiria a sua comunicação precedente.

94

Daqui resulta que a Comissão não cumpriu a obrigação que lhe incumbia de toma: em consideração todos os elementos pertinentes do caso concreto a fim de determinar a existência de um prejuízo grave e irreparável para a recorrente, compro vando a urgência da adopção das medidas solicitadas, e que consequentemente ; decisão controvertida se encontra viciada por erro manifesto de apreciação.

95

Decorre das considerações que precedem que a conclusão da Comissão, segundo a qual a condição relativa à existência de um risco de prejuízo grave e irreparável comprovando a urgência da adopção de medidas provisórias não se encontrava preenchida no caso concreto, assenta numa interpretação juridicamente incorrecta desta condição e num erro manifesto de apreciação dos factos controvertidos.

96

Resulta do que precede que foi com base numa interpretação juridicamente errada das duas condições a que está subordinado o exercício da sua competência com vista a roncessāo de medidas provisórias que a Comissão concluiu que estas condições nao se verificavam no caso concreto. Daí resulta igualmente, no que diz respeito a segunda destas condições, que a Comissão cometeu, além disso, um erro manifesto de apreciação. Deste modo a decisão impugnada deve ser anulada.

Quanto às despesas

97

Nos termos do artigo 87.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instancia, a parte vencida, é condenada nas despesas, se tiver sido pedido nesse sentido. Tendo a Comissão sido vencida há que condená-la nas despesas A interveniente suportará as suas próprias despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Primeira Secção)

decide:

 

1)

A decisão da Comissão de 14 de Agosto de 1990 (IV/33.249 — La Cinq SA/União Europeia de Radiodifusão) é anulada.

 

2)

A Comissão é condenada nas despesas. A interveniente suportará as suas próprias despesas.

 

Cruz Vilaça

Schintgen

Edward

Kirschner

Lenaerts

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 24 de Janeiro de 1992.

O secretário

H. Jung

O presidente

J. L. Cruz Vilaça


( *1 ) Língua do processo: francês.