RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-204/90 ( *1 )

I — Matéria de facto e fase escrita do processo

1. Enquadramento jurídico a nível nacional

O primeiro e o segundo parágrafos do artigo 54.o do code des impôts sur les revenus belga (a seguir «CIR») dispõe que serão deduzidas ao total dos rendimentos profissionais «as cotizações de seguro voluntário de doença e de invalidez que o contribuinte tiver pago a uma sociedade mutualista reconhecida pela Bélgica, bem como as cotizações complementares de seguro de velhice e de morte prematura que o contribuinte tiver pago na Bélgica, em execução nomeadamente de um contrato de seguro de vida que tenha celebrado individualmente».

2. O litígio no processo principal e a questão prejudicial

Hanns-Martin Bachmann tinha celebrado em 1971, na Alemanha, um contrato de seguro voluntário de doença com a sociedade Debeka Krankenversicherungsverein AG, bem como dois contratos de seguro, um de invalidez, o outro de vida, com a sociedade Hamburg-Mannheimer.

Em 16 de Maio de 1972, estabeleceu-se na Bélgica para dirigir o serviço jurídico e fiscal da chambre de commerce belgo-luxem-bourgeoise-allemande em Bruxelas. De 1973 a 1976, na sua declaração de impostos, H.-M. Bachmann deduziu as cotizações relativas aos contratos acima mencionados ao total do seus rendimentos profissionais auferidos na Bélgica.

Tendo essas deduções sido recusadas por decisão de 24 de Agosto de 1987 do directeur des contributions directes de Bruxe-las-I, H.-M. Bachmann interpôs recurso na cour d'appel de Bruxelles que, por acórdão proferido em 15 de Novembro de 1988, confirmou a referida decisão. Interposto recurso de revista para a Cour de cassation (Primeira Secção), esta suspendeu a instância e apresentou ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«As disposições do direito fiscal belga que, em matéria de impostos sobre os rendimentos, subordinam a possibilidade de dedução de cotizações de seguro de doença e de invalidez ou de velhice e por morte à condição de essas cotizações serem pagas ‘na Bélgica’ são compatíveis com os artigos 48.o, 59.o, especialmente o primeiro parágrafo, 67.o e 106.o do Tratado de Roma?»

3. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

O despacho de reenvio da Cour de cassation de Belgique deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 5 de Julho de 1990.

Em conformidade com o disposto no artigo 20.o do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça da CEE, foram apresentadas observações escritas pelo recorrente no processo principal, representado por Jean-Pierre Nemery de Bellevaux, pelo ministro das Finanças do Reino da Bélgica, representado por Ignace Maselis, pela Comissão das Comunidades Europeias, representada por Jean-Claude Séché, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente, e pela República Federal da Alemanha, representada por Ernst Roder, na qualidade de agente.

O Tribunal de Justiça, com base no relatório preliminar do juiz-relator, ouvido o ad-vogado-geral, decidiu iniciar a fase orai do processo sem instrução.

II — Resumo das observações escritas apresentadas ao Tribunal de Justiça

1. Quanto à violação do artigo 48.o do Tratado

1. 1.

Segundo H.-M. Bachmann, o artigo 54.o do CIR viola o artigo 48.o do Tratado. Embora a disposição em litígio seja indistintamente aplicável aos habitantes do Reino da Bélgica, ela só afecta excepcionalmente os trabalhadores cujo domicílio tenha sido sempre na Bélgica. Com efeito, na generalidade dos casos, esses trabalhadores terão subscrito apólices de seguro com companhias estabelecidas neste país, ao passo que os trabalhadores que começaram a sua actividade profissional noutro Estado-membro subscrevem, desde o início de tais actividades, contratos de seguro com companhias de seguros estabelecidas nesse Estado.

A celebração de um novo contrato com uma sociedade estabelecida na Bélgica implica condições mais onerosas, em virtude do aumento da idade, da perda do aumento da quota-parte das reservas matemáticas ligada ao contrato de seguro de vida e talvez, também, do risco de ter de suportar uma recusa de uma companhia estabelecida na Bélgica, quando uma má evolução do estado de saúde do candidato segurado leve a companhia de seguros a deixar de cobrir o risco desse trabalhador.

1. 2.

O Governo belga considera que o artigo 54.o do CIR não contém qualquer discriminação em razão da nacionalidade entre os trabalhadores dos Estados-membros e é, portanto, compatível cora o artigo 48.o do Tratado. Com efeito, o pagamento das cotizações na Bélgica é exigido tanto aos trabalhadores nacionais como aos migrantes. Ademais, os trabalhadores belgas anteriormente expatriados, que quando regressam à Bélgica optam por conservar o benefício dos contratos subscritos no estrangeiro por ocasião dessa expatriação, são atingidos por essa limitação do mesmo modo que os trabalhadores originários da CEE expatriados na Bélgica que decidem conservar o benefício dos contratos anteriormente subscritos no seu país de origem.

Contrariamente ao que sustenta a Comissão, a disposição em litígio não constitui uma discriminação indirecta. Com efeito:

a)

O artigo 54.o do CIR não demoverá um nacional da Comunidade, que no seu Es-tado-membro de origem não goze também da possibilidade de dedução fiscal em causa, de aceitar uma proposta de emprego na Bélgica;

b)

Um nacional da Comunidade, que no seu Estado-membro de origem goze da possibilidade de dedução fiscal das cotizações em causa, poderá continuar a deduzir essas cotizações aos seus rendimentos profissionais no seu Estado-membro de origem, após ter aceitado um emprego na Bélgica;

c)

Um nacional da Comunidade que tenha celebrado contratos visados no artigo 54.o do CIR com uma sociedade estabelecida fora da Bélgica pode deduzir as cotizações aos seus rendimentos profissionais belgas nas condições seguintes:

no que toca ao seguro voluntário de doença e de invalidez, as cotizações devem ser pagas a uma sociedade mutualista reconhecida pela Bélgica,

no que respeita ao seguro de vida, as cotizações devem ser pagas na Bélgica a empresas belgas ou estabelecimentos belgas de empresas estrangeiras.

A lei não dispõe, portanto, que às cotizações devam ser pagas a uma empresa belga;

d)

Um nacional da Comunidade não poderá deduzir as cotizações de seguro voluntário de doença e de invalidez se estas forem pagas a uma sociedade mutualista não reconhecida pela Bélgica, nem as cotizações de seguro de vida se não forem pagas na Bélgica.

O Governo belga observa, além disso, que um nacional da Comunidade que queira aceitar um emprego na Bélgica poderá pôr termo ao seu contrato de seguro de doença e de invalidez no seu país de origem, sem sofrer inconvenientes, e celebrar um novo contrato com uma sociedade mutualista reconhecida pela Bélgica, com vista a beneficiar da possibilidade de dedução.

No que toca ao seguro de vida, a impossibilidade de dedução das cotizações é compensada pela não tributação dos capitais ou rendimentos constituídos. Essa compensação assegura que a regulamentação em causa não tenha nem directa nem indirectamente incidência financeira mais desfavorável para os nacionais de outros Estados-membros que para os nacionais belgas. O artigo 54.o do CIR não constitui por isso violação do princípio da não discriminação enunciado no artigo 48.o do Tratado CEE (acórdão de 8 de Outubro de 1980, Überschär, n.o 17, 810/79, Recueil, p. 2747).

Segundo o Governo belga, o caso em apreço não apresenta semelhanças com o do acórdão de 8 de Maio de 1990, Biehl (C-175/88, Colect., p. I-1779). Com efeito, nesse processo, era imposta uma obrigação de residência para que o interessado pudesse obter o reembolso do imposto cobrado a mais, ao passo que, no presente processo, o artigo 54.o do CIR não impõe qualquer obrigação de residência para usufruir do benefício de dedução fiscal.

O Governo belga observa que os entraves à circulação das pessoas decorrentes da diversidade das legislações dos Estados-membros em matéria fiscal devem ser suprimidos pela harmonização dessas legislações. Para esse efeito, a Comissão propôs uma directiva respeitante à harmonização das disposições relativas à tributação de rendimentos em relação com a livre circulação de trabalhadores no interior da Comunidade (JO 1980, C 21, p. 6), cujo artigo 9.o prevê:

«1.

Quando um Estado-membro conceda uma redução do imposto sobre os rendimentos, na acepção do artigo 2.o, quer pela via de dedução à matéria colectável, quer de outra forma, em virtude de pagamentos efectuados por uma pessoa singular a uma sociedade de seguros, a um banco, a um fundo de pensão, a uma sociedade de crédito à construção ou a qualquer outro beneficiário, o facto de esse beneficiário estar situado, estabelecido ou residir noutro Estado-membro não justifica, por si só, a recusa dessa redução.

2.

O primeiro Estado-membro pode subordinar a aplicação do n.o 1 à condição de o beneficiário ser submetido a um controlo fiscal e de cumprir certas obrigações fiscais idênticas ao controlo e às obrigações aplicáveis aos beneficiários correspondentes residentes no seu território.»

Essa proposta demonstra que, mesmo após uma harmonização fiscal no que toca à dedução de cotizações de seguros, um certo entrave à livre circulação de pessoas pode ser justificado por razões de controlo fiscal.

Existem outros entraves à livre circulação de pessoas, nomeadamente aqueles que podem resultar das disparidades das legislações nacionais em matéria de segurança social. Ora, o Tribunal admitiu no seu acórdão de 15 de Janeiro de 1986, Pinna (41/84, Colect., p. 1), que a existência de tais entraves era compatível com o Tratado. Pelo contrário, o que não é admissível é que uma regulamentação comunitária acrescente disparidades suplementares às já resultantes da falta de harmonização das legislações nacionais.

Os entraves em matéria de segurança social resultantes desta falta de harmonização não são contrários ao artigo 48.o do Tratado. Eis por que o artigo 51.o prevê uma coordenação das legislações dos Estados-membros no domínio da segurança social, com vista a garantir a livre circulação de pessoas.

O Governo belga observa finalmente que o acórdão do Tribunal de Justiça invocado pela Comissão contra o argumento segundo o qual a medida em litígio é justificada pela compensação referida é inaplicável ao caso vertente. No acórdão de 28 de Janeiro de 1986 Comissão/França (270/83, Colect., p. 273), a regulamentação criticada estabelecia um tratamento fiscal que discriminava directamente as sucursais e agências de sociedades de seguros cuja sede estava situada noutro Estado-membro. As vantagens de que podiam beneficiar as sociedades estrangeiras não justificavam, evidentemente, a violação do princípio da não discriminação.

1. 3.

A Comissão observa que a disposição em litígio é contrária ao n.o 1 do artigo 48.o do Tratado. Tal como o Tribunal de Justiça admitiu nos acórdãos de 8 de Maio de 1990, Biehl, já referido, n.os 11, 12 e 13, e de 12 de Fevereiro de 1974, Sotgiu (152/73, Recueil, p. 153), as regras de igualdade de tratamento entre os trabalhadores dos Estados-membros, particularmente no que toca à remuneração, proíbem não apenas as discriminações ostensivas fundadas na nacionalidade, mas também qualquer forma dissimulada de discriminação que, por aplicação de outros critérios de distinção, leve, de facto, ao mesmo resultado. Se bem que a recusa da possibilidade de dedução das cotizações se aplique independentemente da nacionalidade do contribuinte, o critério no qual se baseia (a exigência de que as cotizações sejam pagas na Bélgica) pode actuar em detrimento dos contribuintes nacionais de outros Estados-membros. Assim, um trabalhador será demovido de exercer uma actividade profissional na Bélgica, quando descubra que a possibilidade de dedução fiscal, de que beneficia por hipótese no Estado-membro em que exerce a sua actividade, das cotizações pagas pelo seguro de pensão complementar e que entende continuar a pagar ao mesmo segurador, lhe é recusada na Bélgica.

A Comissão observa, além disso, que o artigo 54.o do CIR constitui, de qualquer forma, um entrave à livre circulação de trabalhadores proibida pelo Tratado (acórdão de 7 de Julho de 1988, Stanton, 143/87, Colect., p. 3877).

A Comissão considera que o argumento do Governo belga segundo o qual a impossibilidade de dedução fiscal das cotizações é compensada pela não tributação dos rendimentos de capitais constituídos por meio de cotizações não pode ser acolhido. Embora este benefício fiscal aplicado às pensões possa regular de maneira equitativa a situação dos trabalhadores fronteiriços, não tem interesse para as pessoas que deixam a Bélgica após aí terem exercido uma actividade profissional durante um certo período, que é o que sucede principalmente aos nacionais de outros Estados-membros. O Tribunal de Justiça excluiu, aliás, no seu acórdão de 28 de Janeiro de 1986, 270/83, já referido, n.o 21, que uma diferença de tratamento possa ser justificada por eventuais vantagens. Da mesma forma, o risco da evasão fiscal não pode ser invocado neste contexto (n.o 25 do mesmo acórdão).

1. 4.

O Governo alemão sustenta que os Estados-membros não são forçados a harmonizar a sua legislação em matéria de impostos sobre o rendimento para facilitar a livre circulação de trabalhadores, mesmo que, como no presente processo, essa liberdade sofra restrições.

Um nacional de um Estado-membro A, que permite a dedução das cotizações de seguro, quando trabalhe no Estado-membro B, que não permite em caso algum tal dedução, perde um benefício. Mas os Estados-membros não são forçados a harmonizar a sua legislação em matéria de imposto sobre o rendimento para facilitar a livre circulação. Convém aceitar, ao abandonar o Estado A e entrar no Estado B, a perda de certos benefícios fiscais concedidos pelo Estado A, mas não pelo Estado B, da mesma maneira que, inversamente, essa diferença de regulamentação pode ser um incentivo para os trabalhadores abandonarem o Estado B e entrarem no Estado A.

Convém dar uma solução semelhante no caso de o Estado B — tal como o Estado A — conceder efectivamente um benefício fiscal às cotizações de seguro, mas somente às cotizações pagas às empresas autorizadas a operar no Estado B, e de a sociedade na qual o trabalhador está segurado não ser autorizada a operar no Estado B. O trabalhador que abandona o Estado A para o Estado B suporta uma desvantagem, se bem que os dois Estados tenham uma regulamentação comparável em matéria de impostos sobre o rendimento. Enquanto, no caso precedente, a diferença em matéria fiscal (imposto sobre o rendimento) tornava a livre circulação mais difícil, na hipótese presente é a diferença em matéria de direito de seguros que é determinante. Todavia, enquanto as condições de fundo das categorias de seguro em causa não forem harmonizadas, essa desvantagem é inevitável.

2. Quanto à violação do artigo 59.o do Tratado

2. 1.

Com base nas considerações desenvolvidas a propósito da violação do artigo 48.o, H.-M. Bachmann sustenta que a disposição em litígio viola igualmente o artigo 59.o do Tratado.

2. 2.

O Governo belga considera que o artigo 54.o do CIR não restringe a liberdade de prestação de serviços.

No que toca ao seguro complementar de doença e de invalidez, as cotizações podem ser deduzidas se forem pagas a uma sociedade mutualista belga ou estrangeira reconhecida pela Bélgica. Tal reconhecimento das sociedades mutualistas estrangeiras foi admitido pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha, n.os 46 e 47 (205/84, Colect., p. 3755), segundo o qual a exigência de aprovação que cabe ao Estado-membro destinatário conceder e retirar visa apenas conduzir a um controlo eficaz e não restringe a livre prestação de serviços.

Além disso, convém acrescentar que a primeira Directiva 73/239/CEE do Conselho (JO L 228, p. 3; EE 06 F1 p. 143), tal como a segunda Directiva 88/357/CEE do Conselho (JO L 172, p. 1) relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes ao seguro directo não vida excluem as mútuas do seu âmbito de aplicação (artigo 3.o da Directiva 73/239, n.o 2 do artigo 12.o da Directiva 88/357). De qualquer forma, os riscos de massa, tais como a doença, são excluídos da liberalização prevista pela Directiva 88/357 (artigo 5.o); no entanto, a livre prestação de serviços também não foi realizada em relação a actividades de seguro de invalidez exercidas pelas seguradoras do ramo vida, pois estas actividades cabem no âmbito das disposições da directiva sobre as actividades de seguro de vida (79/267/CEE, JO 1979, L 63, p. 1; EE 06 F2 p. 62, n.o 3 do artigo 1.o).

No que toca ao seguro de vida voluntário, o Governo belga observa que a livre prestação de serviços não foi ainda conseguida neste sector. No estado actual do direito comunitário, um Estado-membro pode exigir que uma sociedade estrangeira seja autorizada no seu território à prestação de serviços de seguro de vida (artigos 6.o a 8.o da Directiva 79/267, JO L 63, p. 1).

Mesmo que se devesse admitir que a impossibilidade de dedução das cotizações em causa constitui um entrave à livre prestação de serviços, tal entrave seria justificado pelo interesse geral. Com efeito, se só as cotizações de seguro complementar pagas na Bélgica podem beneficiar da imunidade fiscal é porque a administração fiscal está na impossibilidade de controlar os atestados correspondentes aos pagamentos efectuados no estrangeiro.

2. 3.

A Comissão sustenta que a medida em litígio constitui uma violação do princípio da livre prestação de serviços, dado que pode dissuadir não só os nacionais de outros Estados-membros, mas também os nacionais do Estado em causa de subscreverem um seguro complementar com um segurador estabelecido noutro Estado-membro. Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que um entrave pode nomeadamente resultar de medidas fiscais nacionais que afectem o exercício, pelo operador económico, dessa liberdade.

2. 4.

O Governo alemão sustenta que a regulamentação em litígio é lícita à luz do princípio da livre prestação de serviços. O obstáculo à livre prestação de serviços para as empresas de seguros que não tenham a sua sede ou a sua administração na Bélgica é justificado por um interesse geral (acórdão de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha, n.o 27, 205/84, Colect., p. 3755) que reside na protecção dos tomadores de seguro e dos segurados. Com efeito, um tomador de seguro não pode geralmente apreciar se a evolução da situação financeira da empresa de seguros e as cláusulas do contrato que ela aplica lhe dão garantias suficientes de que a prestação será fornecida caso o risco tenha lugar, e, enquanto as condições do direito de seguros não forem harmonizadas ao nível comunitário, os Estados-membros podem garantir o nível de protecção desejado, subordinando a prestação de serviços em matéria de seguros além-fronteiras a uma autorização para operar (acórdão de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/Alemanha, já referido, n.o 49). As directivas 73/239 e 88/357, que dizem respeito ao acesso à actividade de seguro directo, excluem expressamente o seguro de vida. Assim, os Estados-membros continuam a poder subordinar a prestação de serviços neste domínio a uma autorização para operar.

Ora, se os Estados-membros têm o direito de proibir as empresas, que não estão autorizadas a operar, de fornecer prestações de serviços, devem ter igualmente o direito de recusar benefícios fiscais a tais empresas.

3. Quanto à violação dos artigos 67.o e 106.o do Tratado

3. 1.

No que toca à violação do artigo 67.o do Tratado, H.-M. Bachmann observa que as disposições fiscais belgas impedem a livre circulação de capitais, dado que proíbem a dedução dos prémios que são pagos às companhias de seguros estrangeiras e, por conseguinte, desviam os candidatos subscritores de semelhantes contratos de seguros para companhias de seguros exclusivamente belgas. Observa, além disso, que, através da sua interpretação do code des impôts sur les revenus, o Ministério das Finanças introduziu uma outra discriminação. Com efeito, a administração pretende derrogar expressamente a exigência de pagamento na Bélgica de cotizações patronais, sempre que estas forem pagas «... no quadro de um seguro de grupo celebrado em França, no Grão-Ducado do Luxemburgo ou nos Países Baixos, em benefício de certos trabalhadores de nacionalidade francesa, luxemburguesa ou neerlandesa, na medida em que os interessados não beneficiem do regime especial de tributação dos quadros dirigentes, empregados e investigadores estrangeiros...».

No que toca à violação do artigo 106.o do Tratado, H.-M. Bachmann observa que o Governo belga não invoca qualquer argumento ligado à sua situação econômica em geral e à sua balança de pagamentos para justificar a disposição discriminatória em causa e que as considerações desenvolvidas a propósito da violação dos artigos 48.o e 67.o são, deste ponto de vista, igualmente válidas.

Por fim, o recorrente no processo principal menciona, em apoio das suas observações, o acórdão do Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 1986, 270/83, já referido, segundo o qual, ao não conceder às sucursais e agências, em França, de sociedades de seguros que tenham a sua sede social num outro Es-tado-membro, nas mesmas condições que às sociedades de seguros cuja sede esteja localizada em França, o benefício do crédito fiscal para os dividendos de sociedades francesas que essas sucursais e agências recebem, a República Francesa faltou às obrigações que lhe incumbem por força do artigo 52.o do Tratado.

3. 2.

O Governo belga observa, em primeiro lugar, que é impossível imaginar como é que uma disposição de direito fiscal pode constituir um entrave à livre circulação de capitais. O artigo 54.o do CIR não impede H.-M. Bachmann de pagar as suas cotizações de seguro na Alemanha.

O Governo belga observa em seguida que, mesmo que a disposição em litígio pudesse constituir entrave à livre circulação de capitais, não seria, mesmo assim, contrária aos artigos 67.o e 106.o do Tratado.

Com efeito, a dedução recusada diz respeito aos anos de 1973, 1974, 1975 e 1976. Ora, nessa época, a livre circulação de capitais era apenas muito parcialmente conseguida por duas directivas que não previam a livre realização das transferências efectuadas em execução de contratos de seguro senão para contratos em relação aos quais a livre prestação de serviços tinha sido realizada. Ora, até ao presente, a livre prestação de serviços não foi ainda conseguida no sector das mutualidades nem no dos seguros de vida. Segue-se que o artigo 67.o não foi violado.

Da mesma forma, o n.o 1 do artigo 106.o não pode ser violado, uma vez que os serviços em causa não estão liberalizados.

Mesmo que a livre prestação de serviços fosse uma realidade, o artigo 54.o do CIR seria justificado pela impossibilidade de a administração fiscal belga controlar os atestados correspondentes a pagamentos efectuados no estrangeiro.

3. 3.

A Comissão considera que a referência ao artigo 106.o está desprovida de pertinência no presente processo. No que toca ao artigo 67.o, a sua implementação foi levada a cabo pela directiva de 24 de Junho de 1988 (JO L 178, p. 5), que previu a liberalização completa dos capitais. Resulta daí que disposições fiscais como as que são objecto da questão prejudicial constituem uma discriminação baseada no «lugar do investimento» na acepção do artigo 67.o

3. 4.

O Governo alemão observa que a circulação de capitais pode ser dificultada, mas isso não pode ser contestado do ponto de vista do direito comunitário, dado que é a Directiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de Junho de 1988, para a execução do artigo 67.o do Tratado, que se aplica no caso em apreço. Ela liberaliza as «transferências em execução de contratos de seguros», mencionadas no anexo I, ponto X, da directiva. Mas esta directiva não permite apreciar se a operação que está na base das transferências está liberalizada. São as disposições do Tratado sobre a livre prestação de serviços que se aplicam para esse efeito.

O Governo alemão observa, finalmente, que, na medida em que se considere a regulamentação do imposto sobre o rendimento, descrita na questão prejudicial, uma restrição aos pagamentos, essa restrição deve ser apreciada, por força do disposto no n.o 2 do artigo 106.o do Tratado CEE, em função das disposições de direito comunitário que se apliquem à operação de base (acórdão de 11 de Novembro de 1981, Casati, n.o 24, 203/80, Recueil, p. 2595). São portanto as disposições sobre a livre prestação de serviços que se aplicam.

4. Respostas à questão prejudicial propostas pelas partes intervenientes

Tendo em conta o que precede, H.-M. Bachmann propõe ao Tribunal de Justiça que responda em sentido negativo à questão prejudicial.

A resposta sugerida pelo Governo belga à questão prejudicial é a seguinte:

«As disposições do direito fiscal belga que, em matéria de impostos sobre os rendimentos, subordinam a possibilidade de dedução das cotizações de seguro voluntário de doença e de invalidez à condição de serem pagas a sociedades mutualistas reconhecidas pela Bélgica e a possibilidade de dedução das cotizações de seguro de velhice e por morte à condição de essas cotizações serem pagas ‘na Bélgica’, são compatíveis com os artigos 48.o, 59.o, 65.o e 106.o do Tratado de Roma.»

A Comissão propõe que se responda como se segue:

«As disposições legislativas ou regulamentares de um Estado-membro que, em matéria de impostos sobre o rendimento, subordinam a possibilidade de dedução de cotizações de seguro, tais como as relativas a seguro de doença, de invalidez, de velhice ou por morte, à condição de essas cotizações serem pagas a uma empresa estabelecida no território desse Estado, são incompatíveis com os artigos 48.o, 52.o e 59.o do Tratado CEE bem como com as disposições da Directiva 88/361/CEE do Conselho, de 24 de Junho de 1988, para a execução do artigo 67.o do Tratado CEE.»

O Governo alemão propõe ao Tribunal de Justiça que responda em sentido afirmativo à questão prejudicial, especificando que deveria ser reformulada nos termos seguintes:

«É compatível com o direito comunitário uma regulamentação nacional que apenas concede um benefício fiscal em relação às cotizações de seguro de doença e de invalidez ou de velhice e por morte, para efeitos de tributação do rendimento, se a empresa de seguros tiver a sua sede ou a sua administração nesse país?»

J. C. Moitinho de Almeida

Juiz-relator


( *1 ) Língua do processo: francês.


ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

28 de Janeiro de 1992 ( *1 )

No processo C-204/90,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pela Cour de cassation de Belgique e destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Hanns-Martin Bachmann

e

Estado belga,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 48.°, 59.°, 67.° e 106.° do Tratado CEE,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: O. Due, presidente, R. Joliet, F. A. Schockweiler e F. Grévisse, presidentes de secção, C. N. Kakouris, J. C. Moitinho de Almeida, G. C. Rodríguez Iglesias, M. Diez de Velasco e M. Zuleeg, juízes,

advogado-geral: J. Mischo

secretário: J. A. Pompe, secretário-adjunto

vistas as observações escritas apresentadas:

em representação do recorrente no processo principal, por Jean-Pierre Nemery de Bellevaux, advogado no foro de Bruxelas,

em representação do recorrido no processo principal, por Ignace Maselis, advogado no foro de Bruxelas,

em representação da República Federal da Alemanha, por Ernst Roder, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Jean-Claude Séché, consultor jurídico, na qualidade de agente,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações das partes no processo principal, do Governo dinamarquês, representado por Jørgen Molde, na qualidade de agente, do Governo alemão, do Governo neerlandês, representado por T. Heukels, na qualidade de agente, e da Comissão, na audiência de 3 de Julho de 1991,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 17 de Setembro de 1991,

profere o presente

Acórdão

1

Por acórdão de 28 de Junho de 1990, entrado no Tribunal de Justiça em 5 de Julho seguinte, a Cour de cassation de Belgique apresentou, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, uma questão prejudicial sobre a interpretação dos artigos 48.°, 59.°, 67.° e 106.° do Tratado CEE.

2

Esta questão foi suscitada no quadro de um litígio que opõe Hanns-Martin Bachmann, de nacionalidade alemã, que trabalhava na Bélgica, ao Estado belga, devido à recusa do directeur des contributions directes de Bruxelas-I de admitir a dedução de cotizações pagas na Alemanha nos termos de contratos de seguro de doença e de invalidez, bem como de um contrato de seguro de vida, celebrados antes da sua chegada à Bélgica, ao total dos seus rendimentos profissionais relativos ao período de 1973 a 1976.

3

Esta recusa é baseada no artigo 54.° do code des impôts sur les revenus (a seguir «CIR»), aplicável ao caso em apreço no processo principal, segundo o qual só as cotizações de seguro voluntário de doença e de invalidez pagas a uma sociedade mutualista reconhecida pela Bélgica e as cotizações de seguro de velhice e por morte prematura pagas na Bélgica podem ser deduzidas aos rendimentos profissionais.

4

H.-M. Bachmann interpôs recurso da referida decisão para a cour d'appel de Bruxelles. Tendo sido negado provimento a esse recurso, solicitou a intervenção da Cour de cassation, que decidiu suspender a instância até que o Tribunal de Justiça se tenha pronunciado a título prejudicial sobre a seguinte questão :

«As disposições do direito fiscal belga que, em matéria de impostos sobre os rendimentos, subordinam a possibilidade de dedução de cotizações de seguro de doença e de invalidez ou de velhice e por morte à condição de essas cotizações serem pagas ‘na Bélgica’ são compatíveis com os artigos 48.°, 59.°, especialmente o primeiro parágrafo, 67.° e 106.° do Tratado de Roma?»

5

Para mais ampla exposição dos factos do litígio no processo principal, da sua tramitação e das observações escritas apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

6

Convém recordar, a título preliminar, que o Tribunal de Justiça não tem de se pronunciar, no quadro de um processo baseado no artigo 177.° do Tratado CEE, sobre a compatibilidade das normas de direito interno com as disposições do direito comunitário, mas que pode fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação do direito comunitário, com vista a permitir a esse órgão jurisdicional julgar da compatibilidade dessas regras com as disposições comunitárias evocadas.

7

Por conseguinte, há que considerar que, pela questão prejudicial, o órgão jurisdicional nacional procura, essencialmente, saber se os artigos 48.°, 59.°, 67.° e 106.° do Tratado devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que a legislação de um Estado-membro subordine a possibilidade de dedução de cotizações de seguro de doença e de invalidez ou de velhice e por morte à condição de essas cotizações serem pagas nesse Estado.

Quanto ao artigo 48.° do Tratado

8

O Governo belga observa que as disposições em causa se aplicam sem distinção de nacionalidade aos trabalhadores belgas e aos trabalhadores nacionais de outros Estados-membros que optem por conservar o benefício de contratos anteriormente subscritos no estrangeiro e que a afirmação da Comissão, segundo a qual essas disposições actuam mais particularmente em detrimento dos contribuintes nacionais de outros Estados-membros, está desprovida de qualquer fundamento.

9

A este propósito, há que salientar que os trabalhadores que tenham exercido uma actividade profissional num Estado-membro e a seguir trabalhem noutro Estado-membro, ou aí estejam à procura de um emprego, celebraram normalmente os seus contratos de seguro de velhice e por morte ou de seguro de invalidez e de doença com seguradores estabelecidos no primeiro Estado. Segue-se que as disposições em causa podem actuar particularmente em detrimento desses trabalhadores que, regra geral, são nacionais de outros Estados-membros.

10

No que toca aos contratos de seguro de velhice e por morte, o Governo belga observa que, embora os nacionais de outros Estados-membros que trabalhem na Bélgica e que sejam beneficiários de tais contratos subscritos anteriormente noutro Estado-membro não possam deduzir as suas cotizações ao total dos rendimentos tributáveis na Bélgica, em contrapartida, as pensões, rendas, capitais ou valores de remição que lhes sejam pagos pelos seguradores em execução dos referidos contratos não constituem rendimentos tributáveis, tal como resulta do artigo 32.° bis, inserido no CIR pela lei de 5 de Janeiro de 1976(Moniteur belge de 6.2.1976, p. 81). Se, ao regressarem ao seu país de origem, tiverem de pagar imposto sobre tais montantes, isso não decorre de um entrave à livre circulação de trabalhadores criado pela lei belga, mas da falta de harmonização das legislações fiscais dos Estados-membros.

11

Esse argumento não pode ser acolhido. Com efeito, são normalmente os nacionais de outros Estados-membros que, após terem trabalhado na Bélgica, regressam ao seu país de origem, onde as somas devidas pelos seguradores constituem objecto de imposições e se encontram assim impedidos de compensar a impossibilidade de dedução das cotizações em matéria de imposto sobre o rendimento pela não tributação dos montantes devidos pelos seguradores. E certo que tal situação resulta da falta de harmonização das legislações fiscais dos Estados-membros, mas essa harmonização não pode ser transformada em questão prévia à aplicação do artigo 48.° do Tratado.

12

No que toca aos seguros de invalidez e de doença, o Governo belga observa que as disposições em causa não constituem um entrave à livre circulação de trabalhadores, na medida em que um nacional da Comunidade desejoso de aceitar um emprego na Bélgica poderá pôr termo ao seu contrato sem sofrer inconvenientes e celebrar um novo contrato com uma sociedade mutualista reconhecida pela Bélgica, com vista a beneficiar da possibilidade de dedução. E aliás o que fará normalmente, dado que a cobertura desses seguros depende do sistema de seguros obrigatórios, o qual varia de um Estado-membro para o outro.

13

Este argumento também não pode ser acolhido. Com efeito, a necessidade de rescindir o contrato subscrito com um segurador estabelecido num Estado-membro para poder beneficiar da dedução prevista noutro Estado-membro, quando o interessado considere que a continuação de tal contrato corresponde aos seus interesses, constitui, pelas diligências e os encargos que implica, um entrave à sua liberdade de circulação.

14

Os governos belga, alemão, neerlandês e dinamarquês consideram que, de qualquer forma, disposições tais como as mencionadas pelo órgão jurisdicional nacional são justificadas por razões de interesse geral.

15

A este propòsito, o Governo alemão observa que, no que toca aos seguros de velhice e por morte, assim como aos seguros de doença e de invalidez, resulta da jurisprudência do Tribunal (ver o acórdão de 4 de Dezembro de 1986, Comissão//Alemanha, n.° 49, 205/84, Colect., p. 3755) que os Estados-membros podem subordinar a subscrição dos contratos de seguro com um segurador estabelecido noutro Estado-membro a um regime de aprovação, a fim de assegurar a protecção dos consumidores, enquanto tomadores de seguro e segurados. Ora, se os Estados-membros não são obrigados a aceitar a subscrição de contratos de seguro que não respeitem essa condição, também não são obrigados a conceder vantagens fiscais a tais contratos.

16

Este argumento não pode ser acolhido. Embora, na falta de medidas comunitárias de harmonização, os Estados-membros possam, para assegurar a protecção dos segurados e tomadores de seguro, enquanto consumidores, subordinar a subscrição de certos contratos de seguro à autorização do segurador, tal interesse geral não pode ser invocado para recusar reconhecer a existência de contratos de seguro celebrados com seguradores estabelecidos noutros Estados-membros no momento em que o tomador de seguro aí residia.

17

Os governos belga, neerlandês e dinamarquês consideram que disposições como as do artigo 54.° do CIR se impõem dado, por um lado, a dificuldade, se não a impossibilidade, de controlar os atestados correspondentes a pagamentos de cotizações efectuadas nos outros Estados-membros e, por outro, a necessidade de assegurar a coerência do regime fiscal no domínio dos seguros de velhice e por morte.

18

No que respeita à eficácia dos controlos fiscais, há que salientar que a Directiva 77/799/CEE do Conselho, de 19 de Dezembro de 1977, relativa à assistência mútua das autoridades competentes dos Estados-membros no domínio dos impostos directos (JO L 336, p. 15; EE 09 Fl p. 94, a seguir «directiva»), pode ser invocada por um Estado-membro a fim de controlar se foram efectuados pagamentos noutro Estado-membro, quando, como é o caso no processo principal, o cálculo correcto do imposto sobre o rendimento deva ter em conta os referidos pagamentos (n.° 1 do artigo 1.°).

19

O Governo belga observa, todavia, que certos Estados-membros não dispõem de qualquer base jurídica para exigir aos seguradores as informações necessárias aos controlos de pagamentos efectuados no seu território.

20

Há que salientar, a este propósito, que o n.° 1 do artigo 8;° da directiva não impõe a colaboração das autoridades fiscais dos Estados-membros quando a sua legislação ou a sua prática administrativa não permitam à autoridade competente nem efectuar investigações, nem obter ou utilizar informações para as próprias necessidades desses Estados-membros. Todavia, a impossibilidade de solicitar tal colaboração não pode justificar a impossibilidade de dedução das cotizações de seguro. Com efeito, nada impede as autoridades fiscais em causa de exigir ao interessado as provas que julguem necessárias e, eventualmente, de recusar a dedução se tais provas não forem apresentadas.

21

No que toca à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal, o Tribunal de Justiça considerou, no seu acórdão proferido hoje mesmo, Comissão/Bélgica (C-300/90), que existe, na regulamentação belga, uma ligação entre a possibilidade de dedução das cotizações e a tributação de somas devidas pelos seguradores em execução de contratos de seguro de velhice e por morte. Com efeito, segundo o artigo 32.° bis do CIR, já referido, as pensões, rendas, capitais ou valores de remição de contratos de seguro de vida estão isentos de imposto quando a dedução das cotizações prevista no artigo 54.° não for conseguida.

22

Segue-se que, em tal regime fiscal, a perda de receitas que resulta da dedução das cotizações de seguro de vida, noção que inclui os seguros de velhice e por morte, ao rendimento total tributável é compensada pela tributação das pensões, rendas ou capitais devidos pelos seguradores. Nos casos em que a dedução de tais cotizações não tenha sido conseguida, essas somas estão isentas de imposto.

23

A coerência de tal regime fiscal, cuja concepção cabe a cada Estado-membro, pressupõe, por conseguinte, que, no caso de esse Estado-membro ser obrigado a aceitar a dedução das cotizações de seguro de vida pagas noutro Estado-membro, aquele possa cobrar o imposto sobre as somas devidas pelos seguradores.

24

A este propòsito, convém declarar que um compromisso do segurador de pagar o referido imposto não pode constituir uma garantia suficiente. Com efeito, se o compromisso não for respeitado, será necessário fazê-lo executar no Estado-membro do estabelecimento e, mesmo para além da dificuldade de um Estado-membro conhecer a existência e o montante dos pagamentos efectuados por seguradores estabelecidos noutro Estado-membro, não é impossível que razões de ordem pública possam então ser invocadas para impedir a cobrança do imposto.

25

E certo que tal compromisso poderia ser, em princípio, acompanhado do depósito de uma caução pelo segurador, mas daí resultariam encargos suplementares para este, que deveriam ser repercutidos nos prêmios de seguro, de modo que os segurados, que poderiam, além disso, estar sujeitos a dupla tributação sobre as somas devidas em execução dos contratos, deixariam de ter qualquer interesse em manter tais contratos.

26

É certo que existem convenções bilaterais entre certos Estados-membros que admitem a dedução fiscal das cotizações pagas num Estado-membro contratante que não aquele que concede tal vantagem e reconhecem a um só Estado-membro o poder de tributar as somas devidas pelos seguradores em execução dos seus contratos. Tal solução só é todavia possível por essa via ou pela adopção, pelo Conselho, das medidas de coordenação ou de harmonização necessárias.

27

Segue-se que, no estado actual do direito comunitário, a coerência de tal regime fiscal não pode ser assegurada por disposições menos restritivas que as que estão em causa no litígio do processo principal e que qualquer outra medida que permita garantir a cobrança, pelo Estado em causa, do imposto previsto pela sua legislação sobre as somas devidas pelos seguradores em execução dos seus contratos teria consequências semelhantes às que resultam da impossibilidade de dedução das cotizações.

28

Tendo em conta o que precede, há que admitir que, no domínio dos seguros de velhice ou por morte, disposições tais como as da lei belga em causa são justificadas pela necessidade de garantir a coerência do regime fiscal em que se inserem e que, por conseguinte, tais disposições não são contrárias ao artigo 48.° do Tratado.

29

Há, todavia, que declarar que o artigo 32.° bis do CIR é aplicável apenas a partir do ano de 1975 e que, por isso, cobre somente uma parte do período em causa. Cabe ao órgão jurisdicional nacional apreciar, com base nos desenvolvimentos que precedem, se, quanto à parte restante do referido período, as disposições por ele mencionadas eram necessárias para atingir o objectivo de interesse geral acima indicado.

30

Cabe da mesma forma ao órgão jurisdicional nacional apreciar se, no que toca aos seguros de doença e de invalidez, as referidas disposições eram igualmente necessárias para atingir esse objectivo.

Quanto ao artigo 59.° do Tratado

31

Convém notar, a este propósito, que disposições como as da lei belga em causa constituem uma restrição à livre prestação de serviços. Com efeito, disposições que implicam o estabelecimento do segurador num Estado-membro, para que os segurados possam beneficiar, nesse Estado, de certas deduções fiscais, desencorajam os segurados de se dirigirem aos seguradores estabelecidos num outro Estado-membro e, portanto, constituem, para estes últimos, um obstáculo à livre prestação de serviços.

32

Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça (ver acórdão de 4 de Dezembro de 1986, já referido, n.° 52), a exigência de um estabelecimento é todavia compatível com o artigo 59.° do Tratado, caso constitua uma condição indispensável para atingir o objectivo de interesse geral procurado.

33

Ora, tal corno resulta das considerações acima desenvolvidas, tal é o caso no que toca aos seguros de velhice e por morte, para o período posterior a 1975. No que toca aos anos anteriores, assim como aos seguros de doença e de invalidez, cabe ao órgão jurisdicional nacional apreciar se as disposições por ele referidas eram igualmente necessárias para garantir a coerência do regime fiscal de que fazem parte.

Quanto aos artigos 67.°, n.° 1, e 106.° do Tratado

34

Disposições como as do artigo 54.° do CIR não são contrárias aos artigos 67.° e 106.° do Tratado. Basta salientar a este propósito que, por um lado, o artigo 67.° não proíbe as restrições que não visem as transferências de capitais, mas que resultem indirectamente de restrições às outras liberdades fundamentais, e que, por outro, disposições tais como as que estão em litígio no órgão jurisdicional nacional não impedem o pagamento das cotizações de seguro devidas a seguradores estabelecidos noutro Estado-membro, nem que esse pagamento seja efectuado na moeda do Estado-membro em que o segurador está estabelecido.

35

Por conseguinte, há que responder à questão prejudicial que os artigos 48.° e 59.° do Tratado opõem-se a que a legislação de um Estado-membro subordine a possibilidade de dedução de cotizações de seguro de doença e de invalidez ou de velhice e por morte à condição de essas cotizações serem pagas nesse Estado. Todavia, esta condição pode ser justificada pela necessidade de garantir a coerência do regime fiscal aplicável. Os artigos 67.° e 106.° do Tratado CEE não se opõem a tal legislação.

Quanto às despesas

36

As despesas efectuadas pelos governos alemão, dinamarquês e neerlandês, bem como pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre a questão que lhe foi submetida pela Cour de cassation de Belgique, por acórdão de 28 de Junho de 1990, declara:

 

Os artigos 48.° e 59.° do Tratado CEE opõem-se a que a legislação de um Estado-membro subordine a possibilidade de dedução de cotizações de seguro de doença e de invalidez ou de velhice e por morte à condição de essas cotizações serem pagas nesse Estado. Todavia, esta condição pode ser justificada pela necessidade de garantir a coerência do regime fiscal aplicável. Os artigos 67.° e 106.° do Tratado CEE não se opõem a tal legislação.

 

Due

Joliét

Schockweiler

Grévisse

Kakouris

Moitinho de Almeida

Rodríguez Iglesias

Diez de Velasco

Zuleeg

Proferido em audiencia pública no Luxemburgo, em 28 de Janeiro de 1992.

O secretario

J.-G. Giraud

O presidente

O Due


( *1 ) Língua do processo: francês.