61988C0103

Conclusões do advogado-geral Lenz apresentadas em 25 de Abril de 1989. - FRATELLI COSTANZO SPA CONTRA COMUNE DI MILANO E IMPRESA ING. LODIGIANI SPA. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL: TRIBUNALE AMMINISTRATIVO REGIONALE DELLA LOMBARDIA - ITALIA. - EMPREITADAS DE OBRAS PUBLICAS - PROPOSTAS ANORMALMENTE BAIXAS - EFEITO DIREITO DAS DIRECTIVAS EM RELACAO A ADMINISTRACAO. - PROCESSO 103/88.

Colectânea da Jurisprudência 1989 página 01839
Edição especial sueca página 00083
Edição especial finlandesa página 00095


Conclusões do Advogado-Geral


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Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

A - Os factos

1. No pedido de decisão a título prejudicial, sobre que agora me pronuncio, estão em causa a interpretação e produção de efeitos da Directiva 71/305 do Conselho, de 26 de Julho de 1971, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (1). As questões formuladas pelo tribunal de reenvio, tribunale amministrativo regionale per la Lombardia, incidem, no essencial, sobre o conteúdo e âmbito do n.° 5 do artigo 29.° da Directiva 71/305, sua aplicabilidade directa e o direito ou obrigação de a administração pública nacionai, se for o caso, lhe dar cumprimento independentemente do disposto no seu direito interno.

2. As questões a decidir a título prejudicial são importantes para a decisão de um litígio objecto de um processo judicial entre a sociedade Fratelli Costanzo SpA e a Comuna de Milão, em que a demandante contesta o processo do concurso de adjudicação de obras públicas para a modernização do estádio "G. Meazza", no âmbito da preparação do campeonato do mundo de futebol de 1990. O critério previsto para adjudicação dos trabalhos foi o da proposta do preço mais baixo oferecido, com possibilidade de propostas adicionais, nos termos do artigo 24.°, alínea a), ponto 2, da Lei n.° 584, de 8 de Agosto de 1977 que visou dar cumprimento à Directiva 71/305. Com base em regime transitório instituído por decreto-lei pelo prazo de dois anos, para acelerar os processos de concursos de empreitadas de obras públicas (2), o pedido de apresentação de propostas previa a exclusão automática das anormalmente baixas, definidas por critérios puramente aritméticos. Com base neste regime especial temporário, a demandante foi excluída do processo de adjudicação. Foi a única concorrente que apresentou uma proposta inferior ao montante base de 82 043 643 386 LIT. A adjudicação foi feita a um agrupamento de empresas concorrentes com uma oferta superior em 9,85% ao montante de base (Ing. Lodigiani SpA).

3. Posteriormente, foi contestada a validade do decreto-lei, base jurídica do processo acelerado, não chegando a ser transformado em lei. Foi no entanto mantida a validade dos actos administrativos com base nele praticados.

4. A demandante sustenta, além do mais, que as disposições legais que serviram de base à sua exclusão do concurso são incompatíveis com o n.° 5 do artigo 29.° da Directiva 71/305. O tribunal de reenvio formula um conjunto de questões sobre a interpretação desta directiva. Pergunta, além disso ao Tribunal de Justiça, se a instituição demandada "tinha o poder ou o dever de não aplicar as normas de direito interno contrárias a esta disposição comunitária..."

5. Quanto ao restante da matéria de facto e aos argumentos das partes, remete-se para o relatório para audiência.

B - Análise das questões

6. Ainda que, na fase escrita do processo, as questões prejudiciais apresentadas tenham sido consideradas parcialmente inadmissíveis, deve considerar-se que o Tribunal foi validamente chamado a decidir. As dúvidas sobre a admissibilidade das questões respeitam essencialmente às que incidem sobre a compatibilidade do direito do Estado-membro com o direito comunitário. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, não é da sua competência averiguar da compatibilidade do direito interno dos Estados-membros com o direito comunitário. Em tais casos, o Tribunal de Justiça procede normalmente à reformulação das questões e estabelece critérios de decisão com base nos quais os juízes dos Estados-membros podem decidir a questão da compatibilidade.

7. No caso de lhe serem apresentadas questões erradamente formuladas, tem sido jurisprudência constante do Tribunal retirar delas o essencialmente relevante em matéria de direito comunitário e nessa parte dar uma resposta ao tribunal de reenvio.

8. As questões formuladas devem ser agrupadas, dentro de uma ordem sistemática lógica, da seguinte forma: em primeiro lugar, devem ser apurados os critérios de interpretação do n.° 5 do artigo 29.° da Directiva 71/305, de acordo com os quais o tribunal do Estado-membro deve decidir a questão da compatibilidade do direito nacional com o comunitário. A questão da inaplicabilidade directa da disposição da directiva põe-se apenas no caso de existência de incompatibilidade. Há então que verificar em que medida as instâncias nacionais, no caso em apreço as autoridades administrativas do Estado-membro, têm o poder e dever de fazer respeitar o direito comunitário.

9. A questão A do pedido de decisão a título prejudicial deve ser entendida no sentido de se saber em que medida deve ser integrado nas disposições legais de transposição para o direito nacional o disposto no n.° 5 do artigo 29.° da Directiva 71/305. A terminologia utilizada é em certa medida enganadora uma vez que distingue entre o "resultado a alcançar" e "as formas e os meios". Ali se invoca directamente a noção de directiva constante do artigo 189.° do Tratado CEE, nos termos da qual uma directiva é obrigatória, para o Estado ou Estados-membros a que se dirige, quanto ao fim a atingir, deixando às autoridades estaduais a escolha da forma e meios a empregar. Da própria formulação resulta já claro que não é adequado distinguir numa directiva entre "normas de resultado" e "normas de forma e meios" uma vez que, por definição, a directiva nada diz sobre as formas e os meios da transposição.

10. A questão de saber em que medida um Estado-membro é obrigado a fazer a transposição duma directiva sem alteração do seu conteúdo ou se dele se pode afastar, deve ser apreciada mediante interpretação das suas disposições concretas. Há, para este efeito, que ter em conta o texto da disposição e interrogar-se quanto ao espírito e objectivos da directiva. O n.° 5 do artigo 29.° da Directiva 71/305, a interpretar, tem a seguinte redacção:

"Se, para determinado concurso, as propostas forem manifesta e anormalmente baixas em relação à prestação, a entidade adjudicante analisará a sua composição antes de decidir da adjudicação da empreitada. Esta análise deve ser tomada em consideração.

Para o efeito, pedirá ao concorrente as justificações necessárias e indicar-lhe-á, se for caso disso, as que considera inaceitáveis.

Se na documentação relativa ao concurso se prevê a adjudicação pelo preço mais baixo, a entidade adjudicante deve fundamentar, perante o Comité Consultivo instituído pela decisão do Conselho, de 26 de Julho de 1971, a rejeição das propostas consideradas demasiado baixas."

11. O artigo 29.° da Directiva 71/305 enumera os critérios de adjudicação e estabelece o processo a respeitar em cada caso. A enumeração dos critérios de adjudicação, por um lado, e a determinação do processo a seguir, por outro, representam uma transparência do procedimento e ao mesmo tempo um elemento de segurança jurídica. Efectivamente, a uniformidade de procedimento prevista nesta disposição permite aos potenciais concorrentes avaliar o alcance dos compromissos que assumem quando participam no concurso. Para o efeito, o n.° 5 contém não só a determinação, para o dono da obra, de proceder a uma verificação das ofertas que manifestamente tenham um carácter anormalmente baixo relativamente à prestação e de como fazê-lo, mas igualmente uma garantia processual para o concorrente interessado. Este não pode ser excluído em virtude de uma oferta manifesta e anormalmente baixa sem a adopção de um processo administrativo de controlo (3).

12. Idêntica garantia processual constitui o dever de fundamentar a rejeição das propostas consideradas demasiado baixas previsto no último período desta disposição, no caso de se prever a adjudicação pelo preço mais baixo. A abertura, organização e encerramento do processo de verificação são prescritos como obrigatórios. Representam uma espécie de garantia mínima.

13. Em princípio não são possíveis afastamentos da "obrigatoriedade" prescrita nas disposições da directiva em virtude de situações excepcionais ou de particular urgência, na medida em que a própria directiva os não prevê.

14. Ao invés do referido, desta disposição da directiva não pode deduzir-se uma definição mais precisa de "oferta manifesta e anormalmente baixa", atento o respectivo conteúdo. Em especial, não se prevê qualquer processo para essa definição. Neste quadro, é deixado à norma de transposição nacional campo bastante para proceder a concretizações. Não se exige, por isso, que na norma de transposição se incluam, em reprodução literal, os termos da directiva. Muito mais importante é que seja reconhecível o carácter excepcional da proposta com preço mais baixo, o que, por si, pode justificar dúvidas quanto à sua seriedade. O processo de controlo tem por objecto e fim aprofundar ou, se for o caso, eliminar aquelas dúvidas. O desequilíbrio entre a prestação exigida e a proposta é que caracteriza esta hipótese. Este desequilíbrio deve encontrar tradução também nas normas de transposição.

15. Se o procedimento para qualificação de uma proposta como manifesta e anormalmente baixa é livre, é, pelo contrário, obrigatória a abertura de um processo de verificação caso apresente essas características. Uma exclusão automática é incompatível com o que vem dito. Se a norma de transposição satisfizer os referidos critérios, divergências terminológicas tais como "proposta anormalmente baixa" em vez de "propostas manifesta e anormalmente baixas" não põem em causa a conformidade com o direito comunitário ((questão C, alíneas a) e b) )).

16. Resta esclarecer (questão B-1) se uma norma estadual de transposição de uma directiva pode ser posteriormente alterada pelo legislador do Estado-mmebro. A este respeito deve, antes de mais, dizer-se que o acto jurídico de transposição constitui quanto à sua forma, uma disposição autónoma do sistema jurídico do Estado-membro. Em princípio, existem em relação a ele as mesmas possibilidades de alteração que em relação a qualquer outra norma de direito interno. Na medida em que o legislador de um Estado-membro, ao proceder à transposição, estava vinculado pelo conteúdo da directiva, não pode deixar de se verificar o mesmo quanto a posteriores alterações.

17. Nos domínios em que for deixado ao legislador nacional margem de manobra, pode, bem entendido, proceder a posteriores alterações. É também possível, do ponto de vista do direito comunitário, receber, se for o caso, melhorias no sentido da norma do direito comunitário. Divergências que não respeitem as normas e objectivos da directiva são inadmissíveis.

18. A determinação da forma das alterações admissíveis em relação ao conteúdo da directiva é da competência exclusiva do direito interno dos Estados-membros (questão B-2). Porque formalmente se trata de disposições jurídicas autónomas, também não se podem transferir para a ordem jurídica do Estado-membro regras processuais conhecidas do processo legislativo comunitário e nele impostas e erigi-las em condição suplementar de legalidade. Não se aplica assim à elaboração legislativa estadual o princípio da obrigatoriedade da fundamentação constante do artigo 190.° do Tratado CEE.

19. O tribunal de reenvio pretende saber, com a questão D do pedido prejudicial, se a administração comunal está vinculada às normas do direito comunitário no caso de o Tribunal entender que as normas do direito italiano em causa são contrárias ao n.° 5 do artigo 29.° da Directiva 71/305. Porque, como já afirmei, decidir esta questão não é da competência do Tribunal de Justiça, constituindo matéria a decidir pelo tribunal de reenvio com base nos critérios por aquele fornecidos, a continuação da análise deve ter por base a hipótese da incompatibilidade com a directiva das normas que procedem à sua transposição para direito interno.

20. Para se decidir o problema de saber se e em que medida a administração de um Estado-membro, em caso de conflito entre normas de direito comunitário e normas de direito estadual, está sujeita ao cumprimento do direito comunitário deve, antes de mais, distinguir-se segundo a natureza dos actos de direito comunitário aplicáveis.

21. Os regulamentos comunitários, que têm carácter geral, são obrigatórios em todos os seus elementos e directamente aplicáveis em todos os Estados-membros (segundo parágrafo do artigo 189.° do Tratado CEE) gozam, sem qualquer reserva, do primado do direito comunitário prevalecendo por isso sobre o direito interno que lhes seja contrário. Estamos neste caso perante uma hierarquia de normas previamente estabelecida. Há assim que reconhecer ao regulamento a autoridade do direito comunitário.

22. Diferente apreciação deve ser feita quanto à autoridade da directiva. Porque a directiva, e a ordem que contém, se dirige ao Estado-membro, não gera, num primeiro tempo, direitos ou obrigações para os particulares. Excepções a esta regra são possíveis apenas, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, quando o Estado-membro não cumprir as obrigações que decorrem do direito comunitário quanto à transposição de uma directiva, ou o fizer incorrectamente (4).

23. Esta jurisprudência não visa pôr em causa a natureza jurídica das directivas, mas equivale a uma sanção do comportamento irregular do Estado-membro, no interesse dos cidadãos comunitários. Que a jurisprudência sobre a aplicação directa das directivas não consagra também o respeito amplo pelo seu conteúdo por via diversa da transposição pelo Estado-membro, resulta claro do facto de não serem directamente aplicáveis as disposições que prevejam encargos para os particulares.

24. Para poderem ser directamente aplicáveis, as disposições das directivas devem preencher determinadas exigências. Na falta de medidas de execução nos prazos estabelecidos, os particulares podem invocar "as disposições das directivas que, atento o seu conteúdo, sejam incondicionais e suficientemente precisas contra quaisquer normas de direito nacional a elas não conformes; podem também invocá-las na medida em que prevejam direitos que possam fazer valer face ao Estado" (5). Assim, na medida em que o legislador comunitário pretenda atribuir aos particulares direitos subjectivos a reconhecer pela ordem jurídica nacional de um Estado-membro e este haja deixado decorrer o prazo fixado sem ter cumprido o dever de garantir o seu respeito, não pode a inacção deste traduzir-se em prejuízo daqueles particulares.

25. Diferente apreciação deve fazer-se no caso de o Estado-membro ter já procedido à transposição. Então há que distinguir se as medidas de execução da directiva são correctas ou incorrectas. No primeiro caso, aplica-se ao particular exclusivamente a norma de direito nacional (6) não podendo, pois, invocar a directiva (7). O recurso a esta também não é possível no caso de as normas de transposição de direito nacional se afastarem do seu conteúdo dentro dos limites por aquela admitidos. Como transposição incorrecta deve considerar-se quer a norma ab initio incompatível com a directiva quer a posterior alteração da situação jurídica de que resulte a incompatibilidade. Em tais casos, verifica-se, respectivamente, a persistência e o reaparecimento do dever de transposição integral e correcta resultante para os Estados-membros do disposto nos artigos 189.° e 5.° do Tratado CEE. A jurisprudência do Tribunal entende que também nestes casos os particulares podem socorrer-se das disposições da directiva (8). Neste contexto, deve ter-se em conta que a posterior alteração da situação jurídica constitui um acto autónomo de violação do direito comunitário. É proibido às instâncias nacionais, por seu lado, opor aos particulares um comportamento interno violador do direito comunitário (9).

26. Admitida a incompatibilidade das normas jurídicas italianas, em causa, com o disposto no n.° 5 do artigo 29.° da Directiva 71/305, põe-se a questão da aplicabilidade directa desta. A questão de a administração nacional a dever ter em conta foi já respondida pela afirmativa. Que o artigo 29.° da Directiva 71/305 é fundamentalmente susceptível de aplicação directa foi já decidido pelo Tribunal de Justiça no processo 31/87 (10). Embora esta decisão não tenha visado expressamente o n.° 5 daquela disposição, deve, no entanto, considerar-se que se lhe aplica igualmente: o processo de análise a seguir em caso de desequilíbrio entre a prestação e uma proposta manifesta e anormalmente baixa não depende de quaisquer outras condições e está, além disso, detalhadamente descrito. Esta disposição é, assim, incondicional e suficientemente precisa. Não pressupõe, para a respectiva aplicação, a necessidade de um acto jurídico posterior.

27. Finalmente, o n.° 5 do artigo 29.° da Directiva 71/305 é de molde a gerar direitos para os particulares. Como o Tribunal decidiu já no acórdão Transporoute (11), e confirmou no processo 31/87 (12), "o objectivo daquela norma é a protecção do concorrente face ao arbítrio da entidade adjudicante". Tal fim não poderia ser atingido se a esta entidade fosse permitido decidir quanto à conveniência de pedir uma justificação. A obrigação da verificação como garantia processual pode ser considerada um direito subjectivo do concorrente que apresenta a proposta manifesta e anormalmente baixa.

28. Para responder à questão de saber se a administração dos Estados-membros pode, ou mesmo deve, não aplicar o direito nacional que não esteja em conformidade com o comunitário (no sentido da sua incompatibilidade com uma directiva) deve, antes de mais, ter-se em conta que:

- o direito comunitário faz parte da ordem jurídica interna dos Estados-membros (13),

- goza de primado face ao direito nacional dos mesmos Estados e

- todas as autoridades nacionais dos Estados-membros são, em princípio, obrigadas na sua actuação a respeitar o direito comunitário.

29. O dever de aplicação do direito comunitário abrange, neste caso também, a administração pública. Na medida em que é proibido ao Estado, tomado no seu conjunto, opor aos particulares normas que contrariem a directiva, introduzidas ou mantidas com desrespeito pelas obrigações decorrentes do direito comunitário esta proibição atinge materialmente também a administração pública (14). O dever geral de respeito do direito comunitário consta expressamente do artigo 5.° do Tratado CEE.

30. Todas as vezes que, até ao presente, um cidadão de um Estado-membro se socorreu da aplicabilidade directa das disposições de uma directiva, o Tribunal de Justiça entendeu sempre que a "invocação" daquela aplicabilidade se faz perante os órgãos jurisdicionais nacionais e que estes devem considerar a norma directamente aplicável como direito comunitário em vigor (15).

31. É, em qualquer caso, de ter em conta que ao particular deve também ser permitida a invocação, perante a administração pública, de directivas directamente aplicáveis. Se for bem sucedido, a administração pública terá agido de acordo com o direito comunitário. Do ponto de vista deste ordenamento jurídico, não há então que recorrer a tribunal. A instauração de processo judicial não é pois necessária. Aplicado ao caso que nos ocupa, significa isto que se a Comuna de Milão tivesse seguido o processo previsto no n.° 5 do artigo 29.° e baseado a sua decisão no que dele resulta, não seria necessário, do ponto de vista do direito comunitário, o recurso à intervenção de um tribunal.

32. Tal intervenção apenas será necessária se um particular invocar, sem sucesso, perante a administração pública, a directiva aplicável directamente. Neste caso, os tribunais serão chamados a tutelar a situação jurídica do particular derivada do direito comunitário.

33. Do ponto de vista do particular é, nesta medida, imperioso que possa invocar a norma directamente aplicável. Deve, em tal caso, dispor de todos os meios de recurso existentes, como se se apoiasse apenas em normas de direito interno. As possibilidades de se prevalecer de disposições de uma directiva aplicável directamente não chegam todavia até à criação de novos processos de protecção jurídica (16).

34. Na medida em que o tribunal decidiu, noutro contexto, que o sistema de protecção jurídica previsto no Tratado CEE, tal como consta em especial do seu artigo 177.°, pressupõe "que deve ser possível, para garantia do respeito do direito comunitário que produz efeitos directamente, utilizar, perante os tribunais nacionais e na mesmas condições de admissibilidade e pressupostos processuais, todas as vias jurídicas processuais previstas no direito nacional, tal como se se tratasse da garantia do respeito deste direito" (17), pode falar-se da existência de uma forma de garantia jurídica para conseguir o respeito do direito comunitário directamente aplicável.

35. Ao invés, entende a administração que há que distinguir, conforme as autoridades estaduais tenham dúvidas quanto à conformidade do direito nacional com o comunitário ou o litígio tenha sido objecto de decisão judicial. Deve, para tanto, seguir-se a jurisprudência estabelecida de que o particular pode socorrer-se daquelas disposições em tribunal. Se tal lhe é permitido, deverá também ser-lhe reconhecido o direito de o fazer face à administração, a fim de esta conhecer na totalidade o seu ponto de partida na questão a decidir. No entanto, se o particular tem o direito de invocar perante a administração o seu ponto de vista, deve dar-se a esta também o de com ele se conformar. Seria efectivamente absurdo impedi-la de tomar uma decisão conforme ao direito comunitário a que, em definitivo, deve obediência.

36. A questão reside apenas em saber se se lhe pode impor uma obrigação comunitária correspondente. A esta questão tenho de responder negativamente pois a administração não tem possibilidade de recorrer ao Tribunal de Justiça para obter uma decisão sobre a aplicabilidade directa da directiva em questão. Ao dar prevalência a disposições de direito comunitário de aplicação directa face às correspondentes normas de direito interno, a administração age por sua conta e risco, sem a cobertura do Tribunal de Justiça. Em meu entender, tem o direito, mas não o dever de o fazer, uma vez que o Tratado não lhe proporciona, em tal caso, a necessária protecção jurídica.

37. Esta solução dá também resposta à questão suscitada pelo representante da Comissão na audiência, de saber se aquela instituição, no caso de não cumprimento de uma directiva, tem duas possibilidades de propor acção por incumprimento, uma por não transposição e outra por não aplicação. Na medida em que, como aqui refiro, a administração não tem o dever de aplicar directamente uma disposição de uma directiva, não há lugar à acção por incumprimento. Aqui reside a diferença relativamente ao regulamento. A administração pública dos Estados-membros tem não só o direito, mas também o dever de o aplicar, ainda que contrário ao direito interno, uma vez que ela goza neste caso da protecção do artigo 189.° do Tratado CEE, estando fora de dúvida a obrigatoriedade e aplicabilidade directa dos regulamentos. A aplicação de disposições desta natureza faz parte do domínio normal de competência de qualquer administração.

38. Os argumentos em contrário, que, no essencial, consistem na afirmação de que assim, as diferenças entre directiva e regulamento são apagadas, não contrariam o ponto de vista aqui sustentado, na medida em que à administração não é imposto o dever de respeitar também as directivas de aplicação directa. Nesta conformidade, também não constitui problema o facto de as autoridades administrativas não disporem de qualquer meio de recurso directo ao Tribunal de Justiça no domínio do regime das decisões a título prejudicial. A administração apenas dará cumprimento a uma disposição directamente aplicável de uma directiva se chegar à convicção de que a sua aplicabilidade no caso concreto está fora de dúvida. Agirá então como órgão de execução do direito comunitário. De resto permanece também o dever dos órgãos legislativos de procederem à adaptação da ordem jurídica interna, visto que apenas através da correcta transposição se cria, para a administração, o dever de aplicação da regulamentação jurídica conforme à directiva.

39. Semelhante é o caso de uma decisão jurisprudencial anterior. Se o conflito de normas foi já objecto de solução abstracta, não pode a administração ser impedida de aplicar também efectivamente a norma directamente aplicável, tanto mais que já não tem qualquer possibilidade material de opor ao particular a disposição contrária ao direito comunitário (18). Essa clarificação não tem necessariamente que resultar de um tribunal nacional, podendo provir também de anterior decisão duma questão prejudicial proferida pelo Tribunal de Justiça. Na verdade, os acórdãos proferidos nas questões prejudiciais não têm eficácia erga omnes. No entanto, o Tribunal de Justiça decidiu, relativamente a acórdãos de declaração de validade no quadro do disposto no artigo 177.° do Tratado CEE, que o acórdão, apesar de se dirigir directamente apenas ao tribunal de reenvio, constitui, para qualquer outro, razão suficiente para, tendo em vista uma decisão a proferir, considerar aquele acto não válido. O Tribunal de Justiça baseia o seu entendimento na necessidade de uma aplicação unitária do direito comunitário e da segurança jurídica (19). O particular deve ter também o direito de invocar uma directiva perante a administração e esta a possibilidade de satisfazer o pretendido.

40. Nestas condições restritas, a disposição directamente aplicável de uma directiva pode ser considerada, quanto à sua eficácia, como qualquer outra disposição do direito comunitário de validade geral. Uma vez que, nestas circunstâncias, o conflito de normas é resolvido pelo recurso à hierarquia abstracta das normas jurídicas, não é necessário novo recurso para um tribunal.

41. Tendo em conta que foi reconhecido, por acórdão proferido numa questão prejudicial (20), que o n.° 5 do artigo 29.° da Directiva 71/305 era directamente aplicável, poderia concluir-se, relativamente às questões apresentadas ao Tribunal no presente caso, que a administração estava habilitada a aplicar directamente aquela disposição. Todavia, o referido acórdão só foi proferido posteriormente à decisão da administração agora em apreço (21).

42. No entanto, o Tribunal de Justiça havia já considerado inadmissível um processo de exclusão automática no caso de apresentação de uma proposta "manifesta e anormalmente baixa" (22). Existia, pois, uma razão jurídica de fundo para que as autoridades administrativas não aplicassem uma norma que previa uma exclusão com base puramente matemática.

43. Embora possa concluir-se do que vem dito a possibilidade de, com base no direito comunitário, não ser aplicada a norma de direito nacional em causa, não pode retirar-se das considerações que antecedem a existência de qualquer dever de procedimento nesse sentido. Na medida em que subsiste a dúvida suficientemente fundada quanto à aplicabilidade do direito comunitário, deve permitir-se também a subsistência, para a administração, da possibilidade de um esclarecimento. Os próprios órgãos jurisdicionais podem, após ter sido proferida uma decisão a título prejudicial, colocar novas questões para obterem esclarecimentos. E isto quer a decisão prejudicial haja sido proferida no mesmo processo quer em processo diferente.

Quanto às despesas

44. Em relação às partes no processo principal, o presente processo tem a natureza de incidente suscitado no tribunal de reenvio. É, assim, da sua competência decidir em matéria de despesas. As apresentadas pelo Reino da Espanha e pela República Italiana não são reembolsáveis.

C - Conclusão

45. 1) A instauração do processo de análise previsto no n.° 5 do artigo 29.° da Directiva 71/305 para o caso de apresentação de "propostas manifesta e anormalmente baixas" é imperativa e deve, por isso, ser objecto das disposições de transposição da directiva para direito interno (questão A). É deixada ao legislador de cada Estado-membro a caracterização mais precisa de uma "proposta manifesta e anormalmente baixa" (questão C).

2) Em princípio, os Estados-membros podem alterar as normas de transposição de uma directiva, desde que o conteúdo da norma de transposição se mantenha dentro do quadro do disposto nessa directiva. É exclusivamente o direito do Estado-membro que estabelece a forma e meio da alteração (questão B).

3) Existindo incompatibilidade entre a directiva e as normas de transposição para direito interno, a administração dos Estados-membros pode não aplicar estas normas e não deve aplicá-las se o respectivo conteúdo e âmbito já tiver sido objecto de esclarecimento noutra decisão jurisdicional. É todavia permitido às autoridades nacionais, se tiverem dúvidas quanto à situação jurídica aplicável, recorrer a tribunal para o seu esclarecimento, dispondo para o efeito dos meios previstos no direito interno (questão D)

(*) Língua original: alemão.

(1) JO L 185, de 16.8.1971, p. 5; EE 17 F1 p. 9.

(2) Artigo 4.° dos decretos-leis n.os 206, de 25 de Maio de 1987, 302, de 27 de Julho de 1987, e 393, de 25 de Setembro de 1987.

(3) Ver acórdão de 10 de Fevereiro de 1982 no processo 76/81 SA Transporoute et travaux/Ministère des travaux publics, Recueil, p. 417, n.° 18.

(4) Ver por exemplo, o acórdão de 6 de Maio de 1980, processo 102/79 Comission des Communautés Européennes/Royaume de Belgique, Recueil, p. 1473, n.° 12, e o acórdão de 20 de Setembro de 1988 no processo 31/87 Beentjes BV/Reino dos Países Baixos, Colect. p. 0000, n.° 40.

(5) Ver acórdão de 19 de Janeiro de 1982 no processo 8/81, Becker/Finanzamt Muenster, Recueil, p. 53, n.° 25.

(6) Acórdão de 15 de Julho de 1982 no processo 270/81 Felicitas Rickmers-Linie KG & Co./Finanzamt fuer Verkehrssteuern de Hamburgo, Recueil, p. 2771, n.° 24, e processo 8/81, citado, n.° 19.

(7) Não é afectada a possibilidade de interpretar uma disposição por referência à directiva.

(8) Ver acórdão de 6 de Maio de 1980 no processo 102/79, citado, p. 1473, n.° 12.

(9) Ver acórdão de 13 de Fevereiro de 1985 no processo 5/84 Direct Cosmetics Ltd/Commissioners of Customs and Excise, Recueil, p. 617, n.os 37 e 38.

(10) Acórdão de 20 de Setembro de 1988, citado, Colect. p. 0000, n.° 44.

(11) Acórdão proferido no processo 76/81, citado, p. 412, n.° 17.

(12) Ibidem, n.° 42.

(13) Ver acórdão proferido no processo 8/81, ibidem, n.° 23.

(14) Ver acórdão proferido no processo 5/84, ibidem, p. 612, n.os 37 e 38.

(15) Ver por exemplo o acórdão proferido no processo 8/81, ibidem, n.° 23.

(16) Ver acórdão de 7 de Julho de 1981, processo 158/80, Rewe Handelsgesellschaft Nord und Rewe Markt Steffen/Hauptzollamt Kiel, Recueil, p. 1805, n.os 31 e seguintes.

(17) Ver acórdão proferido no processo 158/80, citado, n.° 46.

(18) Ver acórdão proferido no processo 5/84, citado, p. 612, n.os 37 e 38.

(19) Acórdão de 13 de Maio de 1981 proferido no processo 66/80 SpA; International Chemical Corporation/Amministrazione delle Finanze dello Stato, Recueil, p. 1191, n.os 12 e 13.

(20) Ver acórdão proferido no processo 31/87, citado.

(21) O acórdão proferido no processo 31/87 é de 20 de Setembro de 1988, a decisão impugnada de 24 de Julho de 1987 (decisão de reenvio de 16 de Fevereiro de 1987, matéria de facto, primeira parte).

(22) Acórdão proferido no processo 76/81, citado, p. 417.