61986J0080

ACORDAO DO TRIBUNAL DE JUSTICA (SEXTA SECCAO) DE 8 DE OUTUBRO DE 1987. - PROCESSO PENAL CONTRA KOLPINGHUIS NIJMEGEN BV. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL APRESENTADO PELO ARRONDISSEMENTSRECHTBANK DE ARNHEM. - POSSIBILIDADE DE INVOCAR CONTRA UM PARTICULAR UMA DIRECTIVA AINDA NAO TRANSPOSTA. - PROCESSO 80/86.

Colectânea da Jurisprudência 1987 página 03969
Edição especial sueca página 00213
Edição especial finlandesa página 00215


Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória

Palavras-chave


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1. Actos das instituições - Directivas - Efeito directo - Requisitos - Limites - Possibilidade de invocar uma directiva contra um particular - Exclusão

(Tratado CEE, artigo 189.°, terceiro parágrafo)

2. Actos das instituições - Directivas - Execução pelos Estados-membros - Necessidade de assegurar a eficácia das directivas - Obrigações dos órgãos jurisdicionais nacionais - Limites - Princípios da segurança jurídica e da não retroactividade

(Tratado CEE, artigo 189.°, terceiro parágrafo)

Sumário


1. Sempre que as disposições de uma directiva se revelem, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas, os particulares podem invocá-las contra o Estado, seja quando este deixe detranspor no prazo determinado a directiva para o direito nacional, seja quando proceda a uma transposição incorrecta da mesma.

Todavia, em conformidade com o artigo 189.° do Tratado, o carácter obrigatório de uma directiva na qual se fundamenta a possibilidade de a invocar perante um órgão jurisdicional nacional existe apenas relativamente "aos Estados-membros destinatários". Em consequência, uma directiva não pode, por si própria, criar obrigações para os particulares e, deste modo, as disposições de uma directiva não podem ser invocadas enquanto tais contra eles perante um órgão jurisdicional nacional.

2. Ao aplicar o direito nacional, nomeadamente as disposições de uma lei nacional especialmente aprovada com a finalidade de dar cumprimento à directiva, o órgão jurisdicional nacional deve interpretar o seu direito nacional à luz do texto e dos objectivos da directiva, com vista a alcançar o resultado referido no terceiro parágrafo do artigo 189.° do Tratado.

Esta obrigação é limitada, no entanto, pelos princípios gerais de direito que fazem parte do direito comunitário e designadamente os da segurança jurídica e da não retroactividade. Assim, uma directiva não pode ter como efeito, por si própria e independentemente de uma lei interna adoptada por um Estado-membro para a sua aplicação, determinar ou agravar a responsabilidade criminal de quem quer que aja em violação das suas disposições.

Partes


No processo 80/86,

que tem como objecto um pedido apresentado no Tribunal, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo Arrondissementsrechtbank de Arnhem, com o fim de obter, no processo penal pendente nesse órgão jurisdicional contra

Kolpinghuis Nijmegen BV, em Nimègue,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação da Directiva 80/777 do Conselho, de 15 de Julho de 1980, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes à exploração e à comercialização de àguas minerais naturais (JO L 229, p. 1; EE 13 F11 p. 47), especialmente no que diz respeito aos efeitos dessa directiva antes da sua transposição no direito nacional,

O TRIBUNAL (Sexta Secção),

constituído pelos Srs. O. Due, presidente de secção, G. C. Rodríguez Iglesias, T. Koopmans, K. Bahlmann e C. Kakouris, juízes,

advogado-geral: J. Mischo

secretário: D. Louterman, administradora

vistas as observações apresentadas:

- pelo Governo neerlandês, representado na fase escrita do processo por I. Verkade, secretário-geral e, na audiência, pelo seu agente, G.M. Borchardt,

- pelo Governo britânico, representado na fase escrita do processo pelo seu agente, Sra. S. J. Hay e, na audiência, por H. L. Purse, assistant solicitor,

- pelo Governo italiano, representado por Luigi Ferrari Bravo, chefe do Serviço do Contencioso Diplomático, na qualidade de agente, assistido por M. Conti, avvocato dello Stato,

- pela Comissão das Comunidades Europeias, representada na fase escrita do processo por Auke Haagsma, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente, substituído na audiência por R. C. Fischer, conselheiro jurídico, na qualidade de agente,

visto o relatório para audiência e após a realização desta em 3 de Fevereiro de 1987,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 17 de Março de 1987,

profere o presente

Acórdão

Fundamentação jurídica do acórdão


1 Por decisão de 3 de Fevereiro de 1986, entrada na Secretaria do Tribunal em 14 de Março seguinte, o Arrondissementsrechtbank de Arnhem apresentou, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, quatro questões prejudiciais relativas à interpretação do direito comunitário no que respeita ao efeito de uma directiva no direito nacional de um Estado-membro que ainda não tenha adoptado as medidas necessárias para lhe dar cumprimento.

2 Essas questões foram apresentadas no âmbito de um processo penal contra uma empresa distribuidora de bebidas pelo facto de ter conservado armazenada, com vista à sua venda e entrega, uma bebida designada por ela como "água mineral", mas composta de água da torneira e de gás carbónico. Imputa-se a essa empresa uma infracção ao artigo 2.° do Keuringsverordening (regulamento de inspecção) da comuna de Nimègue, que proíbe conservar armazenados, com vista à sua venda e entrega, produtos alimentares destinados à comercialização e ao consumo humano que possuam uma composição defeituosa.

3 Perante o politierechter (tribunal de polícia), o Officier van justitie (Ministério Público) invocou, entre outras, a Directiva 80/777 do Conselho, de 15 de Julho de 1980, relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes à exploração e à comercialização de águas minerias naturais (JO L 229, p. 1). A directiva determina nomeadamente que os Estados-membros adoptem as disposições adequadas para que unicamente as águas extraídas do solo de um Estado-membro e reconhecidas pela autoridade responsável desse mesmo Estado como águas minerais naturais, conformes às disposições do anexo I, parte I da mencionada directiva, possam ser comercializadas como águas minerais naturais. Estas disposições da directiva deveriam ter sido aplicadas quatro anos depois da notificação da mesma, ou seja, em 17 de Julho de 1984, mas a adaptação da legislação neerlandesa só produziu efeitos em 8 de Agosto de 1985, enquanto os factos imputados à ré no processo principal ocorreram em 7 de Agosto de 1984.

4 Nessas condições, o Arrondissementsrechtbank colocou ao Tribunal as seguintes questões:

"1) Uma autoridade nacional (neste caso a autoridade encarregada de instaurar o processo penal) pode invocar contra os seus nacionais uma disposição de uma directiva relativamente à qual o Estado-membro em questão não adoptou as medidas legislativas ou regulamentares para a sua aplicação?

2) Os órgãos jurisdicionais nacionais são obrigados a aplicar directamente as disposições de uma directiva que a isso se prestem, quando não tenham sido adoptadas medidas para dar cumprimento a essa directiva, mesmo no caso de o interessado não pretender invocar qualquer direito com base nessas disposições?

3) Quando um órgão jurisdicional nacional for chamado a interpretar uma norma de direito nacional, deve ou pode, para tal interpretação, guiar-se pelo conteúdo de uma directiva aplicável?

4) Seria diferente a resposta à primeira, segunda e terceira questões, se o prazo fixado para a adaptação da legislação nacional pelo Estado-membro em questão ainda não tivesse expirado na data pertinente (neste caso, 7 de Agosto de 1984)?"

5 Para uma exposição mais ampla dos factos do processo principal, das regulamentações comunitária e nacional em causa, bem como das observações apresentadas no Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Esses elementos do processo só serão aqui retomados quando necessários à apreciação pelo Tribunal.

Quanto às duas primeiras questões

6 As duas primeiras questões dizem respeito à possibilidade de aplicar, enquanto tais, as disposições de uma directiva que ainda não tenha sido transposta para o direito nacional do Estado-membro em causa.

7 A esse propósito, deve recordar-se que, conforme jurisprudência constante do Tribunal (designadamente o acórdão de 19 de Janeiro de 1982, Becker, 8/81, Recueil, p. 53), sempre que as disposições de uma directiva se revelem, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas, os particulares podem invocá-las contra o Estado, seja quando este deixe de transpor, no prazo determinado, a directiva para o direito nacional, seja quando proceda a uma transposição incorrecta da mesma.

8 Essa jurisprudência fundamenta-se na consideração de que seria incompatível com a natureza coerciva que o artigo 189.° atribui à directiva excluir em princípio que a obrigação imposta por ela pudesse ser invocada por pessoas a quem ela diga respeito. O Tribunal extraiu daí a consequência de que o Estado-membro que não tenha adoptado no prazo determinado as medidas de execução impostas pela directiva não pode alegar, em oposição aos particulares, o incumprimento, por ele próprio, das obrigações que ela implique.

9 No seu acórdão de 26 de Fevereiro de 1986 (Marshall, 152/84, Recueil, p. 723), o Tribunal sublinhou contudo que, de acordo com o artigo 189.° do Tratado, o carácter obrigatório das directivas, em que se fundamenta a possibilidade de as invocar perante um órgão jurisdicional nacional, existe apenas relativamente "aos Estados-membros destinatários". Em consequência, uma directiva não pode, por si própria, criar obrigações para os particulares e, deste modo, as disposições de uma directiva não podem ser invocadas enquanto tais contra eles perante um órgão jurisdicional nacional.

10 Assim, há que responder às duas primeiras questões prejudiciais que uma autoridade nacional não pode invocar contra um particular uma disposição de uma directiva cuja necessária transposição para direito nacional ainda não tenha sido efectuada.

Quanto à terceira questão

11 A terceira questão pretende saber em que medida o juiz nacional deve ou pode ter em conta uma directiva enquanto elemento de interpretação de uma norma do seu direito nacional.

12 Como foi declarado pelo Tribunal no seu acórdão de 10 de Abril de 1984 (Von Colson e Kamann, 14/83, Recueil, p. 1891), a obrigação decorrente de uma directiva, para os Estados-membros, de alcançar o resultado nela previsto, bem como o seu dever, por força do artigo 5.° doTratado, de adoptar todas as medidas gerais ou especiais adequadas para assegurar o cumprimento dessa obrigação, é imposta a todas as autoridades dos Estados-membros, inclusivamente, no âmbito da sua competência, às autoridades jurisdicionais. Desta forma, ao aplicar o direito nacional, e em particular as disposições de uma lei nacional especialmente aprovada com a finalidade de dar cumprimento à directiva, o órgão jurisdicional nacional deve interpretar o seu direito nacional à luz do texto e dos objectivos da directiva, com vista a alcançar o resultado referido no terceiro parágrafo do artigo 189.° do Tratado.

13 No entanto, esta obrigação de o juiz nacional ter em conta o conteúdo da directiva ao interpretar as normas pertinentes do seu direito nacional é limitada pelos princípios gerais de direito que fazem parte do direito comunitário e desiganadamente os da segurança jurídica e da não retroactividade. Assim, o Tribunal declarou, no seu acórdão de 11 de Junho de 1987 ("Pretore" de Salò/X, 14/86, Colectânea, p. 2545), que uma directiva não pode ter como efeito, por si própria e independentemente de uma lei interna adoptada por um Estado-membro para a sua aplicação, determinar ou agravar a responsabilidade penal de quem quer que aja em violação das suas disposições.

14 Deve, pois, responder-se à terceira questão prejudicial que, ao aplicar a sua legislação nacional, o órgão jurisdicional de um Estado-membro deve interpretá-la à luz do texto e dos objectivos dadirectiva para alcançar o resultado referido no terceiro parágrafo do artigo 189.° do Tratado, mas uma directiva não pode ter como efeito, por si própria e independentemente de uma lei adoptada para a sua execução, determinar ou agravar a responsabilidade criminal daqueles que actuem em violação das suas disposições.

Quanto à quarta questão

15 A questão de saber se as disposições de uma directiva podem ser invocadas enquanto tais perante um órgão jurisdicional nacional coloca-se somente no caso de o Estado-membro em causa não ter transposto a directiva para direito nacional no prazo determinado ou de ter feito uma transposição incorrecta da mesma. Considerando as respostas negativas dadas às duas primeiras questões, as soluções ali indicadas não seriam, porém, diferentes, no caso de o prazo fixado ao Estado-membro para adaptar a legislação nacional ainda não ter decorrido na data em questão. Quanto à terceira questão, relativa aos limites que poderiam ser impostos pelo direito comunitário à obrigação ou à faculdade para o juiz nacional de interpretar as normas do seu direito nacional à luz da directiva, esse problema não se coloca de maneira diferente conforme o prazo de transposição tenha ou não decorrido.

16 Desse modo, deve responder-se à quarta questão prejudicial que as soluções indicadas nas respostas acima não são diferentes no caso de o prazo fixado ao Estado-membro para adaptar a legislação nacional ainda não ter decorrido na data em questão.

Decisão sobre as despesas


Quanto às despesas

17 As despesas em que incorreram o Governo neerlandês, o Governo italiano, o Governo do Reino Unido e a Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações no Tribunal, não podem ser objecto de reembolso; visto que o processo, relativamente às partes no processo principal, se apresenta sob a forma de um incidente deduzido perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir sobre as despesas do processo.

Parte decisória


Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL (Sexta Secção)

declara:

1) Uma autoridade nacional não pode invocar, contra um particular, uma disposição de uma directiva cuja necessária transposição para direito nacional ainda não foi efectuada.

2) Ao aplicar a sua legislação nacional, o órgão jurisdicional de um Estado-membro deve interpretá-la à luz do texto e dos objectivos da directiva, com vista a alcançar o resultado mencionado no artigo 189.°, terceiro parágrafo, do Tratado, mas uma directiva não pode ter como efeito, por si própria e independentemente de uma lei adoptada para sua execução, determinar ou agravar a responsabilidade criminal daqueles que actuem em violação das suas disposições.

3) As soluções indicadas nas respostas dadas acima não são diferentes no caso de o prazo fixado ao Estado-membro para adaptar a legislação nacional ainda não ter decorrido na data em questão.