ACÓRDÃO DO TRIBUNAL (Quarta Secção)

11 de Março de 1986 ( *1 )

No processo 121/85,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo High Court of Justice, e tendente à obtenção no litígio pendente perante este órgão jurisdicional entre

Conegate Limited

e

HM Customs & Excise,

pedido de decisão, a título prejudicial, sobre a interpretação dos artigos 36.° e 234.° do mesmo Tratado,

O TRIBUNAL (Quarta Secção),

constituído pelos Srs. T. Koopmans, presidente de secção, K. Bahlmann, G. Bosco, T. F. O'Higgins e F. Schockweiler, juízes,

advogado-geral: Sir Gordon Slynn

secretária: D. Louterman, administradora

considerando as observações apresentadas:

em representação da demandante no processo principal, por N. Peters, Barrister,

em representação do Reino Unido, por P. Bucknell, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por E. White, na qualidade de agente,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 22 de Janeiro de 1986,

profere o presente

ACÓRDÃO

(A parte relativa aos factos não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por resolução de 30 de Novembro de 1984, entrada no Tribunal em 29 de Abril seguinte, o High Court of Justice de Inglaterra e do País de Gales submeteu, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, várias questões a título prejudicial relativas à interpretação dos artigos 36.° e 234.° deste Tratado, tendo em vista estar em condições de apreciar a compatibilidade, com o direito comunitário, de certas disposições da sua legislação em matéria aduaneira.

2

Estas questões foram levantadas no âmbito de um litígio relativo à apreensão, pelas autoridades aduaneiras do Reino Unido, de certos lotes de mercadorias importadas pela Sociedade Conegate Ltd provenientes da República Federal da Alemanha. Por ocasião de um controlo no aeroporto a que os lotes tinham chegado, os funcionários da alfândega constataram que as mercadorias consistiam, no essencial, em bonecas insufláveis com carácter manifestamente sexual e de outros objectos eróticos que consideraram como objectos «indecentes ou obscenos», cuja importação no Reino Unido é proibida pelo artigo 42.° do Customs Consolidation Act de 1876 (Código das Alfândegas de 1876).

3

A pedido da administração da alfândega, os juízes de Primeira Instância «Magistrates» ordenaram o confisco das mercadorias, decisão que foi confirmada pelo Crown Court de Southwark. A Conegate apresentou um recurso contra esta última decisão perante o High Court, defendendo que, nas circunstâncias do caso, o confisco das mercadorias constituía uma infracção ao artigo 30.° do Tratado que não poderia ser justificada por razões de moralidade pública na acepção do artigo 36.° do Tratado.

4

Em apoio da sua tese, a Coňegate observou que, se o acórdão do Tribunal de 14 de Dezembro de 1979 (Henn & Darby, 34/79, Recueil 1979, p. 3795) reconhece que uma proibição à importação de mercadorias pode ser justificada por razões de moralidade pública, e que cabe, em princípio, a cada Estado-membro determinar as exigencias da moralidade pública, no seu território; a aplicação de uma tal proibicão constitui, todavia, um meio de discriminação arbitrária, na acepção do segundo período do artigo 36.°, se, no Estado-membro em causa, existe um comércio lícito para as mesmas mercadorias. Tal seria o caso no Reino Unido, em que a produção e a comercialização de objectos eróticos não são, de um modo geral, proibidos, ao contrário da confecção e da comercialização de publicações obscenas que estavam em causa no acórdão já referido de 14 de Dezembro de 1979.

5

A este respeito, a Conegate lembrou que a produção dos objectos que estão em causa no presente litígio não está sujeita a qualquer restrição na legislação britânica, ao passo que a comercialização destas mercadorias está apenas sujeita a proibições de expedição por via postal e de exposição em lugares públicos. Outras restrições estariam em vigor em algumas das partes constitutivas do Reino Unido; assim, em Inglaterra e no País de Gales, as autoridades regionais poderiam escolher entre consentir a livre distribuição ou limitar os locais de venda, permitindo apenas a distribuição através de «sex shops» devidamente licenciadas.

6

Entendendo que o litígio suscitava um problema de interpretação do direito comunitário, o High Court suspendeu a instância até que o Tribunal se pronunciasse sobre as seguintes questões a título prejudicial:

«1)

Quando mercadorias estão sujeitas a uma proibição nacional de importação num Estado-membro a partir de um outro Estado-membro pelo facto de serem indecentes ou obscenas, para que exista no Estado-membro importador a falta de “comércio lícito” para as mercadorias em questão de que falam os n.os 21 e 22 do acórdão Henn & Darby do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (processo 34/79, Recueil 1979, p. 3795) será:

a)

suficiente que estas mercadorias possam ser produzidas e comercializadas no Estado-membro importador estando sujeitas, unicamente

i)

a uma proibição absoluta de serem expedidas por via postal,

ii)

a uma restrição relativa à sua exposição ao público e,

iii)

a um sistema de licenciamento dos estabelecimentos que as vendem a clientes maiores de 18 anos em certas zonas do Estado-membro, sistema que, de forma alguma, afecta o direito positivo deste Estado-membro em materia de indecencia e de obscenidade;

ou será antes

b)

necessário que exista uma proibição absoluta da sua produção ou da sua comercialização no Estado-membro importador?

2)

Quando, no Estado-membro importador exista um “comércio lícito” das mercadorias sujeitas a uma proibição nacional absoluta de importação a partir de um outro Estado-membro com o fundamento de serem obscenas ou indecentes, o Estado-membro importador terá fundamento, para, em semelhantes circunstâncias, invocar razões de moralidade pública, de acordo com o artigo 36.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, para proibir a importação de tais mercadorias, provenientes de um outro Estado-membro pelo facto de serem indecentes ou obscenas ou constituirá tal proibição, antes, um meio de discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros?

3)

A proibição à importação de mercadorias indecentes ou obscenas prevista no artigo 42.° do Customs Consolidation Act de 1876, constituirá um meio de discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada ao comércio, na acepção do artigo 36.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia quando se aplica a artigos proibidos por essa lei, mas não abrangidos pelo Obscene Publications Act de 1959?

4)

Não obstante as respostas dadas às questões precedentes, se um Estado-membro, agindo de acordo com as suas obrigações internacionais derivadas da assinatura da Convenção de Genebra de 1923 para a repressão da circulação e do comércio de publicações obscenas e da Convenção Postal Universal (renovada em Lausanne em 1974 e entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1976), adoptar uma proibição absoluta à importação de um outro Estado-membro de mercadorias que sejam classificadas como indecentes ou obscenas, será uma tal proibição compatível com o artigo 234.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia?»

7

Foram apresentadas observações pela Conegate, pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão.

Sobre a primeira questão

8

A Conegate refere-se às alegações que fez perante os órgãos jurisdicionais nacionais para sustentar que o artigo 42.° do Customs Consolidation Act de 1876, ao proibir, em termos gerais, a importação de objectos indecentes ou obscenos, comporta uma restrição mais severa que a resultante da legislação aplicável ao comércio destes produtos, no interior das diferentes partes do país, tais como a Inglaterra e o País de Gales. Esta observação aplicar-se-ia, por maioria de razão, à situação na Irlanda do Norte, cuja legislação não contém qualquer restrição à comercialização dos produtos em causa além daquelas relativas ao envio por via postal e à exposição ao público.

9

O Governo do Reino Unido salienta, antes de mais, que a primeira questão, tal como é formulada pelo High Court, dá conta, de forma correcta, das restrições à comercialização de artigos indecentes ou obscenos conforme existem em Inglaterra, no País de Gales e na Irlanda do Norte, mas não toma em consideração as restrições mais severas aplicáveis na Escócia e na ilha de Man. Na Escócia, a legislação aplicável constituiria proibição de distribuir, com vista à sua venda eventual, «artigos obscenos», sendo definido o termo «artigo» como compreendendo, entre outras coisas, representações e modelos; todavia, não haveria, ainda, jurisprudência quanto à questão de saber se a expressão «artigos obscenos» compreende produtos tais como os importados pela Conegate. Estes produtos, no entanto, certamente, fariam parte das «representações indecentes ou obscenas» em relação às quais a legislação aplicável à ilha de Man proíbe a produção e a distribuição. Ora, um Estado descentralizado, como o Reino Unido, que admite diferenças entre as legislações das suas partes constitutivas, mas que possui, apesar disso, um regime aduaneiro único, não teria outra alternativa se não alinhar este regime aduaneiro pelo sistema interno mais severo.

10

O Governo do Reino Unido acrescenta que, consideradas no seu conjunto, as disposições aplicáveis às diferentes partes do Reino Unido traduziriam uma atitude decididamente hostil em relação à comercialização de artigos indecentes. Deste ponto de vista, não seria desprovido de importância constatar que a legislação britânica tenha sido agravada ao longo dos últimos anos, designadamente no que diz respeito às fotografias pornográficas, às condições de licenciamento das «sex shops» e às condições de expor o material obsceno ao público. Fundamentalmente, não haveria, por isso, critérios diferentes conforme se tratasse de produtos nacionais ou importados.

11

A Comissão sustenta, antes de mais, que a expressão «comercio lícito», tal como figura no acórdão de 14 de Dezembro de 1979, já citado, ao qual se refere a primeira questão, não tem em vista actividades comerciais que sejam legítimas ou respeitáveis; visaria, simplesmente, todo o comércio que é permitido no Estado-membro em causa. Tal seria o caso em relação às mercadorias em causa, não constituindo as restrições referidas pelo órgão de jurisdição nacional na sua primeira questão, em relação a estes artigos, uma ausência de comércio lícito.

12

A Comissão alega, além disso, que, se os Estados-membros, no estado actual do direito comunitário, são livres de fixar as suas próprias normas em matéria de moralidade pública, esta liberdade encontra os seus limites no princípio segundo o qual os Estados-membros não podem sujeitar as importações a exigências mais rigorosas que as aplicáveis à produção e à comercialização dos mesmos artigos no seu próprio território.

13

A primeira questão levanta, em primeiro lugar, o problema geral de saber se uma proibição à importação de certas mercadorias pode ser justificada por razões de moralidade pública quando a legislação do Estado-membro em causa não comporta qualquer proibição ao fabrico ou ao comércio dos mesmos produtos no interior do território nacional.

14

Há que recordar, a este respeito, que, nos termos do artigo 36.° do Tratado, as disposições relativas à livre circulação de mercadorias no interior da Comunidade não constituem obstáculo às proibições de importação justificadas por «razões de moralidade pública». Tal como o Tribunal decidiu, no seu acórdão de 14 de Dezembro de 1979, já citado, pertence, em princípio, a cada Estado-membro, determinar as exigências de moralidade pública no seu território, de acordo com a sua própria escala de valores e pela forma que ele escolher.

15

Todavia, se bem que o direito comunitário deixe os Estados-membros livres para fazer as suas próprias apreciações sobre o caracter indecente ou obsceno de certos artigos, há que constatar, no entanto, que a natureza chocante de uma mercadoria não poderia ser considerada como atingindo um grau de gravidade suficiente para justificar restrições à livre circulação de mercadorias, sempre que o Estado-membro em causa não adopte, em relação a idênticas mercadorias fabricadas ou comercializadas no interior do seu território, medidas repressivas ou outras medidas reais e efectivas destinadas a impedir a sua distribuição no respectivo território.

16

Daqui resulta que um Estado-membro não poderá invocar razões de moralidade pública para proibir a importação de certas mercadorias provenientes de outros Estados-membros quando a sua legislação não contem qualquer proibição de fabrico ou de comercialização das mesmas mercadorias no respectivo territorio.

17

Não cabe ao Tribunal, no quadro das competências que lhe são atribuídas pelo artigo 177.°, examinar se, e em que medida, a legislação britânica contém uma tal proibição. Todavia, há que precisar que a existência ou não de tal proibição num Estado descentralizado, cujas partes constitutivas têm a sua própria legislação interna, só pode ser determinada tendo em conta o conjunto destas legislações, se bem que não seja necessário, para aplicação desta disposição, que o fabrico e o comércio de produtos cuja importação foi proibida sejam proibidos em relação à área territorial de todas as partes constitutivas, é necessário, pelo menos, que o conjunto das regras aplicáveis, permita deduzir que elas têm por finalidade conduzir, em substância, a uma proibição da produção e da comercialização destes produtos.

18

No caso concreto, o órgão de jurisdição nacional teve o cuidado de definir, na própria redacção da sua primeira questão, o conteúdo da legislação nacional cuja compatibilidade com o direito comunitário visa apreciar, invocando um regime, no Estado-membro de importação, em que as mercadorias em litígio podem ser livremente produzidas e em que a sua comercialização está sujeita só às limitações que ela formula explicitamente, a saber, uma proibição absoluta de ser expedida por via postal, uma restrição relativa à sua exposição ao público e, em certas regiões do Estado-membro em causa, a um sistema de licenciamento dos estabelecimentos habilitados a vender estas mercadorias a clientes maiores de 18 anos. Tais limitações não poderiam, entretanto, ser consideradas como equivalendo, em substância, a uma proibição de fabrico e comercialização.

19

Na audiência, o Governo do Reino Unido insistiu no facto de que, actualmente, nenhuma produção de objectos comparáveis aos importados pela Conegate existe no solo britânico, mas estât, circunstância de facto, que não exclui a possibilidade de produzir tais objectos e que, aliás, não foi salientada pelo órgão de jurisdição nacional, não é susceptível de conduzir a uma apreciação diferente da situação.

20

Convém, desde logo, responder à primeira questão, que um Estado-membro para afectar a importação de certas mercadorias com uma proibição pelo facto de serem indecentes ou obscenas, não pode prevalecer-se de razões de moralidade pública, na acepção do artigo 36.° do Tratado, sempre que as mesmas mercadorias possam ser livremente produzidas no seu território e sempre que a comercialização neste território esteja unicamente sujeita a uma proibição absoluta de expedição por via postal, a uma restrição relativa à exposição ao público e, em certas regiões, a um sistema de licenciamento dos estabelecimentos habilitados a vender mercadorias a clientes com idade não inferior a 18 anos.

21

Esta conclusão não se opõe a que estas mercadorias, uma vez importadas no Estado-membro em causa, sejam submetidas às mesmas restrições de comercialização que as aplicáveis aos produtos similares produzidos e comercializados no interior do país.

Sobre â segunda e a terceira questões

22

Tendo presente a resposta dada à primeira questão, a segunda e a terceira questões não têm sentido.

Sobre a quarta questão

23

A Conegate, o Governo do Reino Unido e a Comissão acordaram em reconhecer que a quarta questão é desprovida de pertinência para a solução do litígio principal. A Convenção de Genebra de 1923 diria apenas respeito a «publicações» obscenas que não estão em causa no presente litigo enquanto que a Convenção Postal Universal não poderia aplicar-se a uma importação efectuada por via não postal.

24

A Comissão recordou, aliás, que de acordo com jurisprudência assente do Tribunal, o artigo 234.° do Tratado, ao salvaguardar «os direitos e obrigações» resultantes de convenções anteriores ao Tratado, tem em vista apenas os direitos é obrigações estabelecidos entre Estados-membros e países terceiros. Estas convenções não poderiam, por isso, ser invocadas para justificar restrições ao comércio entre os Estados-membros da Comunidade.

25

Este argumento da Comissão deve ser aceite. Como o declarou o Tribunal, no seu acórdão de 14 de Outubro de 1980 (Burgoa, 812/79, Recueil 1980, p. 2787), o artigo 234.° tem por objecto garantir que a aplicação do Tratado não afecte, nem o respeito devido aos direitos dos países terceiros resultantes de uma convenção antes celebrada com um Estado-membro, nem a observância das obrigações derivadas desta convenção para este Estado-membro. As convenções celebradas, antes da entrada em vigor do Tratado, não podem, portanto, ser invocadas nas relações entre Estados-membros para justificar restrições ao comércio intracomunitário.

26

Há, pois, que responder à quarta questão que o artigo 234.° do Tratado deve ser interpretado no sentido de que uma convenção celebrada antes da entrada em vigor do Tratado não pode ser invocada para justificar restrições ao comércio entre Estados-membros.

Quanto às despesas

27

As despesas efectuadas pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão, que apresentaram observações perante o Tribunal, não podem constituir objecto de reembolso. Revestindo o processo, em relação às partes no processo principal, o carácter de um incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, pertence a este decidir sobre as despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL (Quarta Secção),

pronunciando-se sobre as questões a ele apresentadas pelo High Court of Justice, por decisão de 30 de Novembro, declara:

 

1)

Um Estado-membro, para impor à importação de certas mercadorias uma proibição pelo facto de serem indecentes ou obscenas, não pode invocar razões de moralidade pública, na acepção do artigo 36.° do Tratado, sempre que estas mesmas mercadorias possam ser livremente produzidas no seu território e sempre que a comercialização no mesmo território está sujeita unicamente a uma proibição absoluta de expedição por via postal, a uma restrição relativa à exposição ao público e, em certas regiões, a um sistema de licenciamento dos estabelecimentos habilitados a vender estas mercadorias a clientes maiores de 18 anos.

 

2)

O artigo 234.° do Tratado CEE deve ser interpretado no sentido de que uma convenção concluída antes da entrada em vigor do Tratado CEE, não pode ser invocada para justificar restrições ao comércio entre Estados-membros.

 

Koopmans

Bahlmann

Bosco

O'Higgins

Schockweiler

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, a 11 de Março de 1986.

O secretário

P. Heim

O presidente da Quarta Secção

T. Koopmans


( *1 ) Língua do processo: inglês.