CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

FRANCESCO CAPOTORTI

apresentadas em 16 de Janeiro de 1979 ( 1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. 

Este novo processo Rewe representa uma boa ocasião para abordar de frente o problema dos limites dentro dos quais os Estados-membros dispõem ainda de liberdade para sujeitar o escoamento de certas categorias de produtos, nacionais e importados, à existência de determinadas características, impedindo assim a importação de produtos estrangeiros que façam parte das categorias desprovidas das características exigidas.

Os factos são simples. Em Setembro de 1976, a empresa alemã Rewe solicitou ao monopólio federal do álcool autorização para importar de França um lote do licor bem conhecido sob a designação de «cassis de Dijon». A administração do monopólio respondeu não ser necessária qualquer autorização específica para essa importação, visto ter já concedido de forma genérica, por «aviso» de 8 de Abril de 1976, a autorização prevista na lei; informou contudo e do mesmo passo a empresa interessada de que era proibida na Alemanha a venda de «cassis de Dijon» com teor alcoólico entre 15 % e 20 %, nos termos de uma outra disposição da mesma lei federal sobre o monopólio, segundo a qual apenas é autorizada a comercialização dos álcoois destinados ao consumo humano se contiverem um teor em álcool não inferior a 32 % (percentagem aliás reduzida a 25 % para os licores do tipo em que se integra o «cassis de Dijon»). Excepcionalmente, esta regulamentação não é aplicável a determinados licores, mencionados num regulamento «ad hoc», mas, não constando o «cassis de Dijon» dessa lista, a administração do monopólio declarou não estar em condições de autorizar a sua venda no território federal.

Esta tomada de posição foi contestada pela empresa Rewe perante o tribunal administrativo de Darmstadt, que reenviou o processo para o Finanzgericht do Land de Hesse. Foi este último que, por decisão de 28 de Abril de 1978, colocou ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, as seguintes questões a título prejudicial:

«1)   Deve a noção de medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação, na acepção do artigo 30.o do Tratado CEE, ser interpretada no sentido de que se aplica também à fixação de um teor mínimo em álcool para álcoois destinados ao consumo humano estabelecida pela lei alemã sobre o monopólio do álcool (Branntweinmonopolgesetz), que tem por efeito impedir a circulação na República Federal da Alemanha de produtos tradicionais de outros Estados-membros cujo teor em álcool é inferior ao limite fixado?

2)   Está a fixação de tal teor mínimo em álcool abrangida pelo conceito de discriminação nas condições de abastecimento e comercialização entre nacionais dos Estados-membros, na acepção do artigo 37o do Tratado CEE?»

2. 

Começaremos por examinar a segunda questão para depois concentrar a nossa atenção na primeira, que nos parece a única verdadeiramente importante. Uma coisa é clara, visto os juízes do Finanz-gericht do Land de Hesse terem considerado adequado citar também o artigo 37.o do Tratado CEE: a norma básica que estabelece determinado teor em álcool mínimo como condição de venda de aguardentes na Alemanha consta, como já dissemos, da lei federal relativa ao monopólio do álcool e o artigo 37o refere-se, como se sabe, aos monopólios nacionais de natureza comercial. Não nos parece necessário discutir aqui detalhadamente a afirmação da Comissão, refutada com base em diversos argumentos pela empresa Rewe, de que o monopólio alemão do álcool foi suprimido; com efeito, a lei de 2 de Maio de 1976 apenas modificou a respectiva regulamentação e o facto de ter sido suprimido o exclusivo de importação de aguardentes anteriormente atribuído ao monopólio, não justifica, estamos em crer, a tese segundo a qual foi extinto o próprio monopólio. Facto é que continua a existir uma administração federal do monopólio (que, além do mais, é demandada perante o órgão jurisdicional de reenvio) com inúmeras e significativas competências; facto é estar também pendente perante o Tribunal de Justiça, simultaneamente com o presente processo, um outro — processo 91 /78, Hansen — no âmbito do qual as modalidades de funcionamento do monopólio alemão são examinadas à luz do artigo 37.o

Dito isto, entendemos ter de se responder também pela negativa à segunda questão colocada pelo Finanzgericht, isto por duas razões. Antes de mais, apesar de a norma básica relativa ao teor em álcool mínimo de aguardentes constar da lei alemã relativa ao monopólio do álcool, é evidente não se tratar de uma disposição inscrita na lógica do monopólio: tal norma poderá manter-se em vigor independentemente da existência do monopólio e, em outros Estados, estão efectivamente em vigor normas equivalentes sem que exista monopólio. Na ordem jurídica alemã, como a Comissão recordou, a lei de 15 de Agosto de 1974, que procedeu à reforma do direito dos alimentos, previa já que a disposição da lei relativa ao monopólio do álcool sobre os teores mínimos em álcool viria a ser substituída por regulamentos adequados, integrados no contexto do direito dos alimentos. Seja como for, não nos podemos esquecer de que o problema é aqui examinado de forma genérica em virtude da natureza do processo de interpretação a título prejudicial; e, num plano geral, parece-me evidente que uma medida restritiva, como a que está em causa no presente processo, não cai sob a alçada do artigo 37.o

Em segundo lugar, admitindo embora ser o n.o 1 do artigo 37.o aplicável ao caso vertente, não nos parece que a fixação de um teor mínimo em álcool, aplicável tanto aos produtos nacionais quanto aos importados, possa caber no conceito de «discriminação entre nacionais dos Estados-membros quanto às condições de abastecimento e de comercialização» (n.o 1 do artigo 37.o, já referido). É pacífico que, para existir esse tipo de discriminação entre nacionais dos Estados-membros, é necessário haver tratamento diferenciado com base na nacionalidade; ora, se o teor mínimo em álcool é a condição a que está subordinada a venda de toda e qualquer aguardente ou licor, tanto os produtos nacionais como os estrangeiros estão formalmente colocados em idêntica posição quanto à obrigação de se respeitar essa condição. O artigo 37.o poderia, eventualmente, entrar em linha de conta do ponto de vista da obrigação de os Estados-membros se absterem de tomar qualquer nova medida «que restrinja o âmbito de aplicação dos artigos relativos à eliminação… das restrições quantitativas» (n.o 2); mas este aspecto é estranho à segunda questão, colocada pelo órgão jurisdicional alemão, relacionando-se antes com a matéria da primeira questão que nos cabe agora aprofundar.

3. 

A propósito da formulação da primeira questão, a demandada no processo principal observa que o processo do artigo 177.o não permite a apreciação da legalidade à luz do direito comunitário de disposições jurídicas em vigor num Estado-membro. O que é incontestavelmente verdadeiro. Mas a demandada reconheceu que a questão suscita também um problema de alcance genérico: o de saber se medidas do tipo das que existem na República Federal da Alemanha são compatíveis com o artigo 30.o do Tratado CEE. Nestes termos, o problema pode sem dúvida ser examinado no âmbito do presente processo.

Sabemos que o sentido e alcance da proibição de medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação foi objecto de um conjunto significativo de decisões do Tribunal de Justiça. Cite-se designadamente o acórdão de 15 de Dezembro de 1976, Donckerwolcke (41/76, Colect., p. 781), segundo o qual tais medidas abrangem qualquer regulamentação comercial dos Estados-membros susceptível de constituir obstáculo directa ou indirectamente, efectiva ou potencialmente ao comércio intracomunitário. Este acórdão é a expressão de uma corrente jurisprudencial unívoca: muitos outros acórdãos declaram também que a susceptibilidade de uma medida criar indirectamente entraves às trocas comerciais na Comunidade é suficiente para a qualificar como contrária ao artigo 30.o (entre outros: acórdãos de 15 de Dezembro de 1976, Simmenthal, 35/76, Colect., p. 747; de 20 de Maio de 1976, De Peijper, 104/75, Colect., p. 263; de 8 de Julho de 1975, Rewe, 4/75, Colect., p. 299).

Parece à primeira vista justificado afirmar, à luz desta jurisprudência, que caem sob a alçada da proibição do artigo 30.o medidas nacionais como as contestadas pela sociedade Rewe, visto não existir qualquer dúvida de que a fixação de um teor mínimo de álcool das aguardentes e licores nacionais e importados, entendida como condição de comercialização num Estado-membro, tem por efeito indirecto impedir a importação dos outros Estados-membros de aguardentes e licores com teor em álcool menos elevado.

É contudo necessário proceder a um exame mais atento do problema, visto que o que está em jogo, no caso presente, são as disposições nacionais relativas à composição de determinados produtos (aguardentes e licores) que se integram no amplo domínio relativo à determinação das qualidades técnicas a que está sujeita a comercialização de bebidas e produtos alimentares. Poder-se-á ir ao ponto de afirmar, como faz o monopólio alemão do álcool, demandado no processo principal, que cada um dos Estados conserva plena competência legislativa no citado domínio e que a Comissão apenas dispõe de competência para elaborar e em seguida impor, através de directivas, medidas de harmonização (na acepção do artigo 100.o do Tratado CEE), limitando-se a aplicação do artigo 30.o à hipótese de medidas de comercialização que digam exclusivamente respeito a mercadorias importadas?

Avance-se desde já que esta tese se baseia na directiva da Comissão de 22 de Dezembro de 1969 (70/50/CEE), adoptada com base no n.o 7 do artigo 33 o do Tratado CEE, ou seja, com base numa norma que atribui à Comissão competência para determinar o processo e o calendário da supressão das medidas existentes à data da entrada em vigor do Tratado que tenham efeito equivalente ao dos contingentes. Essa mesma directiva foi também invocada pela demandante no processo principal, parecendo-nos, pois, necessário consagrar-lhe particular atenção. Em primeiro lugar, esta norma refere-se a medidas de comercialização diversas das indistintamente aplicáveis a produtos nacionais e importados (quarto e sétimo considerandos do preâmbulo e artigo 2.o); em segundo lugar, abrange medidas que, pelo contrário, se aplicam tanto aos produtos nacionais como aos importados (oitavo e décimo primeiro considerandos do preâmbulo e artigo 3 o). As medidas do primeiro grupo que, de acordo com o quarto considerando, «tornam as importações ou impossíveis ou mais difíceis ou onerosas do que o escoamento da produção nacional», são consideradas em si como susceptíveis de produzir efeito equivalente ao das restrições quantitativas à importação. Pelo contrário, a respeito das medidas do segundo grupo — em que se integram incontestavelmente as que estão em causa no presente processo —, o oitavo considerando da directiva afirma não terem elas, em princípio, efeitos equivalentes a restrições quantitativas, dado que «esses efeitos são normalmente inerentes à disparidade entre as regulamentações aplicadas pelos Estados-membros na matéria». Contudo, os nono e décimo considerandos, bem como o artigo 3 o da directiva, incluem as medidas em causa na categoria das que são proibidas nos termos do artigo 10.o do Tratado, no caso de «os efeitos restritivos sobre a livre circulação das mercadorias ultrapassarem o âmbito dos efeitos específicos de uma regulamentação comercial» e, assim, em especial, quando «os efeitos restritivos sobre a livre circulação das mercadorias são desproporcionados em relação ao resultado pretendido», e, também, «quando esse objectivo pode ser obtido por outro processo que crie menor entrave às trocas comerciais». No presente processo, a administração do monopólio alemão do álcool sustenta que medidas como as que estão actualmente em vigor na Alemanha relativas ao teor mínimo em álcool das aguardentes e licores têm efeitos restritivos proporcionais ao objectivo visado, não existindo outra forma de atingir os objectivos pretendidos, a saber, a protecção da saúde pública, a protecção dos consumidores contra as fraudes e a concorrência desleal. A sociedade Rewe é obviamente de opinião contrária.

4. 

Antes de examinar detalhadamente estas duas opiniões contrárias, gostaríamos de fazer algumas observações a respeito das linhas gerais da Directiva 70/50 e, de forma mais geral, do problema da determinação das qualidades técnicas das mercadorias para efeito da sua comercialização.

Em primeiro lugar, recordámos já que a Directiva 70/50 se baseia de forma explícita no n.o 7 do artigo 33 o do Tratado. Situa-se, assim, no contexto da fase de supressão gradual dos contingentes coincidente com o período transitório (o n.o 2 do artigo 32.o é perfeitamente claro a este respeito). Tal facto pode explicar a atitude prudente de que a Comissão fez prova perante o fenómeno das medidas relativas à comercialização dos produtos, indistintamente aplicáveis aos produtos nacionais e aos importados, medidas cujos efeitos, como já vimos, são avaliados no oitavo considerando da citada directiva, como não sendo «em princípio» equivalentes aos das restrições quantitativas. Por outro lado, a Comissão adopta a mesma posição de prudência (ou melhor de interpretação restrita do artigo 30o) a respeito das formalidades a que está sujeita a importação, afirmando (no terceiro considerando da directiva em análise) «não terem, em princípio, efeito equivalente ao das restrições quantitativas»; tese posteriormente contraditada pelo Tribunal de Justiça no acórdão Donckerwolcke, já referido.

Terminado, porém, o período transitório, e tornada assim absoluta a proibição de contingentes e medidas de efeito equivalente, torna-se injustificado manter a mesma atitude de prudência.

Em segundo lugar, é preciso interpretar «cum grano salis» a afirmação contida no nono considerando da directiva em causa segundo a qual o Tratado não afecta a competência de que os Estados-membros dispõem para regular a actividade comercial. Certo é que essa competência não foi transferida para a Comunidade, mas o direito comunitário está em condições de limitar o respectivo exercício e, de facto, limita-o através de inúmeras normas, entre as quais a do artigo 30.o O acórdão Donckerwolcke aplicou precisamente a proibição constante do artigo 30.o às regulamentações comerciais susceptíveis de entravar o comércio intracomunitário. Em consequência, seria erro óbvio sustentar que os Estados-membros têm plena liberdade para fixar as condições de comercialização que se traduzam na exigência de determinada composição das mercadorias — e que o direito comunitário estaria, neste domínio, absolutamente excluído.

Entendemos ser pouco convincente o fundamento enunciado no oitavo considerando da directiva para justificar a tese da existência de efeito equivalente a restrições quantitativas (pelo menos «em princípio») no caso de medidas de comercialização aplicáveis a produtos nacionais e importados. Como já referimos, aquele fundamento consiste em que os efeitos de tais medidas «são normalmente inerentes à disparidade entre regulamentações aplicáveis na matéria pelos Estados-membros». Sem dúvida que a disparidade entre normas relativas à comercialização dos produtos podem falsear as condições de concorrência no mercado comum (hipótese abrangida pelo artigo 101.o do Tratado CEE) e ter, dessa forma, efeitos sobre a livre circulação das mercadorias, pelo que se justifica prosseguir a supressão das disparidades através de directivas de harmonização, mas terá entretanto de se verificar se uma das regulamentações nacionais na matéria não contém medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à exportação, abrangidas, enquanto tais, pela proibição constante do artigo 30o Assim não sucederá, por exemplo, se um Estado-membro condicionar a venda de determinados produtos fabricados no seu território a determinadas condições de composição ou qualidade, admitindo ao mesmo tempo a venda dos produtos importados da mesma categoria abrangidos por uma denominação de origem controlada ou contendo indicações precisas quanto aos elementos que constam da sua composição.

Com efeito, é mal colocada a questão das relações entre o artigo 30.o e seguintes do Tratado CEE, por um lado, e os artigos 100.o a 102.o (relativos à aproximação entre as legislações), por outro, caso se pressuponha que a aplicabilidade do segundo grupo de normas a determinada matéria é suficiente para excluir a incidência nessa mesma matéria da proibição constante do artigo 30o No caso vertente, a demandada no processo principal parece convencida de que, tratando-se de condições de qualidade ou composição das mercadorias, o direito comunitário apenas pode intervir sob a forma de directivas relativas à aproximação entre legislações. Consequentemente, dever-se-ia excluir, enquanto se aguarda a concretização da aproximação quanto a determinado produto, a apreciação à luz do artigo 30o das medidas adoptadas pelos Estados-membros. Esta tese é inadmissível (e, aliás, desmentida pela própria Directiva 70/50). É, com efeito, claro que o artigo 30o será colocado fora de acção, quando se operar a aproximação entre legislações, pela simples razão de que as directivas adoptadas nos termos dos artigos 100.o e 101.o se devem presumir conformes com o Tratado (incluindo o artigo 30o); mas até se verificar essa aproximação, o artigo 30o é e mantém-se aplicável a cada uma das legislações que aguardam a harmonização. É evidente, ademais, que as disposições nacionais eventualmente contrárias à proibição do artigo 30.o não podem servir de ponto de referência para uma posterior harmonização.

Quanto ao problema das disposições nacionais cuja disparidade cria obstáculos de ordem técnica às trocas comerciais, deve recordar-se que o Conselho adoptou em 28 de Maio de 1969 um programa geral de eliminação desses obstáculos (JO C 76 de17 .6 .1979) e, em especial, uma resolução relativa aos produtos alimentares. O programa previa, entre outras coisas, que o Conselho adoptaria, antes de 1 de Janeiro de 1971, directivas no sector do álcool, sendo acompanhado de um acordo entre os representantes dos governos dos Estados-membros reunidos no seio do Conselho que instaurava um regime provisório de statu quo. O calendário adoptado em Maio de 1969 foi posteriormente substituído por outro, anexo à resolução do Conselho de 17 de Dezembro de 1973 (JO C 117 de 31.12.1973), que adiava para 1 de Janeiro de 1978 a data-limite para a adopção pelo Conselho das propostas da Comissão relativas aos produtos alcoólicos. Parece, contudo, não terem sido apresentadas ao Conselho, até ao momento, propostas nesta matéria.

Prestados estes esclarecimentos, deve acrescentar-se que, nos casos em que foram adoptadas directivas de harmonização (por exemplo, no sector dos sumos de frutos: v. Directiva 75/720 do Conselho, de 17 de Novembro de 1975), a eliminação dos obstáculos técnicos às trocas comerciais operou-se pela adopção de normas comuns relativas não apenas à composição dos produtos e respectivas características de fabrico, como também ao uso de denominações reservadas e à etiquetagem. Ora, pode suceder que, antes da adopção das normas comuns, cada um destes aspectos seja regido pelo direito de um único Estado-membro, de tal forma que produza efeitos equivalentes a restrições quantitativas; tudo depende dos objectivos de cada regulamentação nacional e da forma pela qual é resolvido o problema das condições de comercialização dos produtos importados.

5. 

Chegados a este ponto da nossa análise, teremos agora de abordar os objectivos visados por normas do tipo das que estão em vigor na República Federal da Alemanha; convirá verificar se são suficientes para justificar o entrave colocado às importações. A demandada no processo principal referiu três objectivos que teriam valor de justificação: protecção da saúde pública, protecção do consumidor contra as fraudes, repressão da concorrência desleal. A medida de fixação do teor mínimo em álcool das aguardentes e licores de que nos ocupamos no caso vertente pode, pois, ser examinada à luz do critério constante do artigo 3.o da Directiva 70/50, no intuito de definir se os efeitos restritivos são desproporcionados em relação aos objectivos prosseguidos e se esses mesmos objectivos não podem ser atingidos por outros meios de que resulte menor entrave às trocas comerciais. Aquela medida pode também ser examinada à luz do artigo 36.o do Tratado CEE que, como se sabe, declara, entre outras coisas, que os artigos 30.o a 34.o não obstam às restrições à importação justificadas por razões de ordem pública ou de protecção da saúde das pessoas.

Observe-se, a este respeito, que o artigo 36.o é, sem dúvida, um parâmetro mais sólido do que o que nos é oferecido pela Directiva 70/50, face às dúvidas que exprimimos a respeito da compatibilidade desta directiva com a interpretação restrita do artigo 30.o, prevalente hoje em dia. Sublinhe-se, além disso, que os critérios constantes do artigo 3 o da Directiva 70/50 pressupõem a legalidade, na perspectiva do direito comunitário, dos objectivos que os Estados-membros pretendem prosseguir através das medidas de comercialização. Ora, a protecção da saúde pública é, sem qualquer dúvida, um objectivo legítimo a que o artigo 36.o faz expressa referência. Igualmente legítimas são as derrogações ao artigo 30.o que se revelem necessárias para garantir a protecção dos produtores e consumidores contra as fraudes comerciais: o Tribunal de Justiça reconheceu-o, sempre com base no artigo 36.o e na noção de ordem pública dele constante, no acórdão de 20 de Fevereiro de 1975, Comissão/Alemanha (12/74, Recueil, pp. 181 e segs., n.o 7, Colect., p. 95). Pelo contrário, temos dúvidas de que a repressão da concorrência desleal possa justificar derrogações ao artigo 30.o; parece, no mínimo, duvidoso que a noção de ordem pública constante do citado artigo 36.o possa ser alargada a esta matéria. Julgamos, contudo, ser útil recordar que, na já citada Directiva 75/726 relativa à aproximação das legislações em matéria de sumos de frutos, a proibição da criação de obstáculos ao comércio intracomunitário desses produtos por disposições nacionais não harmonizadas relativas à respectiva composição, características de fabrico, condicionamento ou etiquetagem (n.o 1 do artigo 12.o) foi declarada não aplicável às disposições justificadas por razões de repressão da concorrência desleal diversas da protecção da saúde pública, repressão das fraudes, protecção da propriedade pública e comercial, indicações de proveniência e denominação de origem (n.o 2 do artigo 12.o).

Atentemos agora nas medidas em causa no presente litígio. Parece-nos particularmente difícil partilhar o ponto de vista sustentado pela administração alemã do monopólio do álcool de que a fixação de um teor mínimo em álcool das aguardentes e licores serve para proteger a saúde pública contra os riscos de alcoolismo. Foi dito em apoio desta tese que quanto menor é o teor em álcool tolerado maiores são as quantidades de aguardente e licor consumidas e que, seja como for, o facto de o mercado ser inundado de produtos importados, depois de rebentado o dique do teor mínimo em álcool, aumentaria a tentação dos consumidores. No que nos diz respeito, estamos em crer que colocar no mercado uma alternativa consistente em bebidas menos fortes permite esperar uma diminuição do número de consumidores de bebidas mais nocivas por terem maior teor alcoólico. Para nos limitarmos ao licor que está na origem do presente processo, existem na Alemanha consumidores de «cassis de Dijon» actualmente obrigados a consumir a versão de 25o, especialmente produzida para o mercado alemão, por estar proibida a comercialização do verdadeiro «cassis de Dijon». Não seria melhor para a saúde pública que os consumidores que apreciam um licor com sabor a «cassis» pudessem absorver menor quantidade de álcool, independentemente da satisfação de beberem o produto de origem? E, se é verdade, como foi afirmado pelo advogado do monopólio alemão, que são os hábitos e a procura dos consumidores que determinam as normas de qualidade, de tal forma que possam encontrar no mercado o que desejam e esperam nele encontrar ao solicitar determinado produto, não é também verdade que para orientar esses hábitos e eventualmente os modificar se revela oportuno, senão necessário, criar um maior número de opções? Orientar o público para as bebidas alcoólicas menos fortes seria, estamos em crer, fazer prova de uma maior preocupação com a saúde pública do que obrigá-lo a ingerir apenas bebidas relativaménte às quais não é possível reduzir o teor mínimo da substância nociva que contêm.

Quanto à repressão das fraudes, parece-nos importante evitar a venda de produtos que se façam passar pelo que não são ou usurpem uma denominação que lhes não pertence, ou a propósito dos quais se estabeleça um equívoco quanto ao respectivo local de produção, ou relativamente aos quais se não refiram as substâncias que fazem parte da sua composição. Entendemos, assim, ser perfeitamente legítimo, na perspectiva do direito comunitário, que cada Estado-membro resolva de forma adequada o problema da identificação de cada produto, da respectiva denominação, origem, e da indicação das substâncias que entram na sua composição. Mas tudo isto nada tem a ver com a determinação obrigatória do teor mínimo em álcool relativamente a todas as aguardentes e licores.

Alguém sustentou que as menções constantes da etiqueta podem constituir garantia suplementar para o consumidor (e que é por essa razão que a legislação alemã as prevê), mas não garantia única. O consumidor negligenciaria, regra geral, tomar conhecimento das características de um produto, orientando-se quase automaticamente para os produtos menos caros (no caso vertente, aqueles cujo teor em álcool é menor); estaria, assim, exposto a fraudes de todos os tipos. Mas a ideia desta manifesta, quase geral, incapacidade do consumidor parece-nos condenar ao fracasso qualquer esforço para o proteger, excepto se lhe for imposto um produto nacional único, de composição constante e rigorosamente controlada. Por outro lado, a fixação de um teor mínimo em álcool elimina, por si só, o risco de se comprar uma aguardente ou licor com teor em álcool inferior ao mencionado. Mas será que existe uma noção de aguardente ou licor necessariamente vinculada a determinado teor em álcool? E, em matéria de aguardentes, a fraude mais grave a evitar através de um estrito limite legislativo será a existência de um teor em álcool inferior ao esperado pelo consumidor?

Estas dúvidas conduzem-nos a afirmar ser diverso o verdadeiro fundamento da medida em causa; ele deve ser procurado numa tradição de mercado a que os produtores nacionais se habituaram há longo tempo e à qual, em consequência, se adaptou o gosto dos consumidores, de tal forma que se cria o temor pela invasão dos produtos estrangeiros com menor teor em álcool. A demandada no processo principal negou que a regulamentação em análise conceda vantagens aos produtores nacionais, visto se aplicar indistintamente a todos os produtos, nacionais ou importados. Pelo nosso lado, estamos em crer que a principal vantagem da regulamentação reside na restrição da importação de produtos concorrentes já conhecidos no respectivo país de origem mas não comercializáveis por serem de teor alcoólico inferior ao limite estabelecido. A demandada no processo principal observa também que, no caso de se ter de admitir a comercialização de produtos estrangeiros de baixo teor em álcool, toda a produção nacional ver-se-ia obrigada a adaptar-se a esse tipo de produtos, com a consequência de o limite original acabar por ser substituído pelo teor mínimo em álcool adoptado no Estado-membro cujas exigências fossem menores nessa matéria. Mas este raciocínio baseia-se totalmente na ideia de que o consumidor efectua as suas compras unicamente em função do preço menos elevado para os produtos com menor teor em álcool. A experiência comum demonstra não ser esse o caso: nos países em que o consumo de vinho é elevado (para citar uma bebida com baixo teor em álcool), tal circunstância não conduziu os produtores de «brandy», «grappa» ou outras aguardentes a reduzir o respectivo teor em álcool. Na perspectiva do direito comunitário, nada impede que um Estado-membro estabeleça um teor mínimo em álcool para as aguardentes ou licores de produção nacional e exija ao mesmo tempo que os correspondentes produtos estrangeiros contenham uma menção clara da respectiva proveniência e teor em álcool (claro que sem usurpar as denominações nacionais devidamente protegidas).

Retiramos, deste conjunto de considerações, a convicção de que medidas do tipo das em vigor na República Federal, criando directamente obstáculos às importações e sendo, assim, contrárias ao artigo 30.o do Tratado CEE, se não justificam à luz do artigo 36.o do Tratado ou do artigo 3 o da Directiva 70/50 da Comissão, de 22 de Dezembro de 1969. O objectivo de proteger os consumidores contra as fraudes pode, com efeito, ser prosseguido por outros meios que afectem de menor forma as trocas comerciais; à luz deste objectivo, os obstáculos colocados à livre circulação das mercadorias são excessivos e, portanto, desproporcionados.

6. 

Em consequência, concluímos propondo que o Tribunal de Justiça responda às questões que lhe foram colocadas pelo Finanzgericht de Hesse, por decisão de 28 de Abril de 1978, declarando — nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE — o seguinte:

«1)

O conceito de «medida de efeito equivalente a restrições quantitativas» (artigo 30.o do Tratado CEE) abrange a fixação de um teor mínimo em álcool para as aguardentes e licores, estabelecida pela lei de um Estado-membro como condição de comercialização, quando se aplique indistintamente a produtos nacionais e estrangeiros, impedindo assim a importação de produtos de outros Estados-membros com teor em álcool inferior ao limite fixado.

2)

As medidas nacionais do tipo acima referido não são abrangidas pelo conceito de «discriminação entre nacionais dos Estados-membros… quanto às condições de abastecimento e de comercialização» (artigo 37o do Tratado CEE), ainda que se integrem no contexto de um regime nacional de monopólio do álcool.»


( 1 ) Língua original: italiano