ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

23 de Maio de 1978 ( *1 )

No processo 102/77,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo Landgericht Freiburg, destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

1)

Hoffmann-La Roche e Co. AG, Bâle,

2)

Hoffmann-La Roche AG, Grenzach, Grenzach-Wyhlen (Alemanha)

e

Centrafarm Vertriebsgesellschaft Pharmazeutischer Erzeugnisse mbH, Bentheim (Alemanha),

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 36.o e 86.o do referido Tratado,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: H. Kutscher, presidente, M. Sørensen, presidentes de secção, J. Mertens de Wilmars, A. J. Mackenzie Stuart, A. 0'Keeffe e A. Touffait, juízes,

advogado-geral: F. Capotorti

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por despacho de 20 de Junho de 1977, entrado na Secretaria a 2 de Agosto de 1977, o Landgericht Freiburg colocou ao Tribunal, ao abrigo do artigo 177.o do Tratado CEE, duas questões relativas à incidência de certas disposições do Tratado sobre o exercício de direitos do titular de uma marca.

Estas questões surgiram no âmbito de um litígio que opõe duas empresas do sector de produtos farmacêuticos, das quais uma, a demandante na acção principal (a seguir «Hoffmann-La Roche»), titular de certa marca em diversos Estados-membros, se opõe à outra, a demandada na acção principal (a seguir «Centrafarm»), que comprou um produto daquela marca posto em circulação num Estado-membro, e o distribuiu noutro Estado-membro após o ter reembalado e ter aposto, sobre a nova embalagem, a marca do titular.

2

O produto em causa, o Valium, é comercializado na Alemanha pela Hoffmann-La Roche em embalagens de 20 ou de 50 drageias, destinadas a particulares, e em lotes quíntuplos de 100 ou de 250 drageias, para o uso de clínicas, enquanto a filial britânica do grupo Hoffmann-La Roche fabrica o mesmo produto e o comercializa em embalagens de 100 ou de 500 drageias a preços sensivelmente inferiores aos praticados na Alemanha.

A Centrafarm, na Alemanha, comercializou produtos Valium, comprados na Grã-Bretanha em embalagens originárias e reembaladas em lotes de 1000 drageias, tendo sido aposta, sobre as novas embalagens, a marca Hoffmann-La Roche e a indicação de que o produto fora posto em circulação pela Centrafarm.

Por outro lado, a Centrafarm revelou a intenção de reacondicionar as drageias em embalagens mais pequenas, destinadas à venda a particulares.

3

De acordo com a opinião expressa pela instância jurisdicional superior em fase anterior do mesmo processo, o Landgericht, no seu despacho de reenvio, pronunciou-se no sentido de que a operação praticada pela Centrafarm constituía uma violação dos direitos da Hoffmann-La Roche, nos termos da lei alemã sobre o direito das marcas.

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No decurso do presente processo perante este Tribunal, foi discutida a questão de saber se a legislação dos outros Estados-membros nesta matéria deve ser interpretada no mesmo sentido, não se tendo, no entanto, chegado a qualquer resposta unívoca.

Quanto à primeira questão

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É o seguinte o teor da primeira questão:

«O titular de uma marca depositada simultaneamente no Estado-membro A e no Estado-membro B da Comunidade pode, por força do artigo 36.o do Tratado CEE, impedir que um importador paralelo compre medicamentos que no Estado-membro A são, por acto do titular ou de terceiro por ele autorizado, licitamente portadores da marca e comercializados em embalagens que as ostentam, e que os reembale com a mesma marca, importando-os, assim marcados, para o Estado-membro B?»

6

Nos termos das disposições do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias e, em particular, do artigo 30.o, são proibidas entre Estados-membros as restrições quantitativas à importação, bem como todas as medidas de efeito equivalente.

Nos termos do artigo 36. o, tais disposições não impedem, contudo, as proibições ou restrições à importação que se justificarem por razões de protecção da propriedade industrial ou comercial.

Resulta, todavia, daquele mesmo preceito — quer do seu segundo parágrafo, quer do contexto em que ele se integra — que, se o Tratado não afecta a existência de direitos reconhecidos pela legislação de um Estado-membro em matéria de propriedade industrial e comercial, nem por isso pode o exercício de tais direitos deixar de ser limitado, segundo as circunstâncias, pelas proibições contidas no Tratado.

Na medida em que implica uma excepção a um dos princípios fundamentais do mercado comum, o artigo 36.o só admite derrogações à livre circulação de mercadorias que sejam justificadas por razões de salvaguarda dos direitos que constituam objecto específico daquela propriedade.

7

O objecto específico do direito de marca consiste em assegurar ao seu titular o direito exclusivo de utilizar a marca na primeira comercialização de um produto, protegendo-o, desse modo, contra eventuais concorrentes que pretendam desfrutar da posição da empresa e da reputação da marca através da utilização abusiva desta.

Para responder à questão de saber se este direito exclusivo integra o direito de oposição à utilização da marca por terceiro após reembalagem do produto, há que ter em conta a função essencial da marca, que é a de garantir ao consumidor ou utente final a identidade originária do produto marcado, permitindo-lhe distinguir, sem confusão possível, tal produto de outros, com diversa proveniência.

Esta garantia de proveniência implica que o consumidor ou utente final possa ter a certeza de que o produto de marca que lhe tenha sido oferecido no mercado não foi objecto, numa fase anterior à da comercialização, de qualquer intervenção, efectuada por um terceiro sem a autorização do titular da marca, e que tenha afectado o produto no seu estado originário.

O direito reconhecido ao titular de se opor a qualquer utilização da marca que seja susceptível de falsear a garantia de proveniência, assim entendida, releva do objecto específico do direito de marca.

8

É, por conseguinte, justificado, nos termos do primeiro período do artigo 36.o, que se reconheça ao titular da marca o direito de se opor a que um importador de um produto de marca aponha, após o reacondicionamento do mesmo produto e sem autorização sua, a mesma marca na nova embalagem.

9

Há ainda, contudo, que analisar se o exercício de tal direito pode constituir uma «restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros», na acepção do segundo período do artigo 36.o

Tal restrição poderá resultar, nomeadamente, do facto de ter o titular da marca comercializado, em diversos Estados-membros, um mesmo produto em diversas embalagens, fazendo-se valer dos direitos inerentes à marca para impedir a reembalagem por um terceiro, mesmo que esta não venha a afectar nem a identidade, nem o estado originário do produto.

Assim, o problema em causa consiste em saber se a reembalagem de um produto de marca, como a que foi efectuada pela Centrafarm, é susceptível de afectar o estado originário do produto.

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A resposta a esta questão dependerá, necessariamente, das circunstâncias, nomeadamente, da natureza do produto e do processo de reembalagem.

Em muitos casos, e devido à própria natureza do produto, a reembalagem afecta inevitavelmente o seu estado, enquanto noutros o reacondicionamento comporta apenas o risco, mais ou menos evidente, de que o produto tenha sido exposto a manipulações ou influências que possam vir a afectar o seu estado originário.

É concebível, mesmo assim, que o reacondicionamento tenha sido efectuado em circunstâncias tais que torne impossível a alteração do estado originário do produto.

Tal poderá ocorrer, por exemplo, nos casos em que o titular da marca tenha comercializado o produto em embalagens duplas, tendo sido apenas a embalagem exterior objecto de reacondicionamento e mantendo-se intacta a embalagem interior; ou nos casos em que seja o reacondicionamento controlado por uma autoridade pública, para que se assegure a integridade do produto.

Sendo assegurada a garantia de proveniência enquanto função essencial da marca, o exercício do direito de marca como forma de impedir a livre circulação de mercadorias entre os Estados-membros poderá constituir uma restrição dissimulada, na acepção do segundo período do artigo 36.o do Tratado, se se demonstrar que a utilização do direito de marca pelo respectivo titular, dado o sistema de comercialização por ele aplicado, contribui para separar artificialmente os mercados dos diversos Estados-membros.

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Esta conclusão, que se impõe no interesse da liberdade de trocas, implica que se reconheça ao operador, que vende o produto importado com a marca aposta sobre a nova embalagem sem autorização do titular, uma faculdade que, em circunstâncias normais, seria reservada ao mesmo titular.

No interesse do titular enquanto proprietário da marca, e para o proteger de qualquer abuso, convém que se reconheça tal faculdade apenas se se demonstrar que o estado originário do produto não poderá, de forma alguma, ser afectado pelo reacondicionamento.

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Tendo em conta que é também do interesse do titular da marca que o consumidor não seja induzido em erro quanto à proveniência do produto, convém ainda que só se reconheça ao operador a faculdade de vender o produto importado com a marca aposta sobre a nova embalagem se se tiver, previamente, informado o titular, e se se indicar claramente na embalagem quem procedeu ao reacondicionamento do produto.

13

Decorre de quanto precede que, sem prejuízo da apreciação das questões de facto específicas de cada caso concreto, não releva para a solução do problema jurídico em análise, relativo à matéria do direito de marca, que a questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional diga exclusivamente respeito a medicamentos.

14

Assim, em resposta à primeira questão deve declarar-se que:

a)

nos termos do artigo 36.o, primeiro período, do Tratado, é justificada a oposição do titular de um direito de marca, protegido simultaneamente em dois Estados-membros, ao facto de um produto, licitamente portador de marca num desses Estados, ser colocado no mercado do outro Estado-membro com nova embalagem à qual foi aposta, por um terceiro, a mesma marca;

b)

constitui, no entanto, uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros, na acepção do artigo 36.o, segundo período, do Tratado:

se se demonstrar que o exercício do direito de marca pelo seu titular, dado o sistema de comercialização por ele aplicado, contribui para estabelecer uma compartimentação artificial entre os mercados dos Estados-membros;

se se demonstrar que a reembalagem não poderá afectar o estado originário do produto;

se o titular da marca for previamente avisado da colocação no mercado do produto reembalado;

se se indicar, na nova embalagem, quem é que procedeu ao reacondicionamento do produto.

Quanto à segunda questão

15

É o seguinte o teor da segunda questão:

«Tem o titular da marca o poder de se opor à importação — ou é, pelo contrário, tal oposição proibida pelo Tratado CEE, mais concretamento pelo seu artigo 86.o — sempre que:

o titular detiver, através do medicamento em causa, uma posição dominante no mercado do Estado B;

a sua oposição à importação dos produtos reembalados e portadores da marca originária constituir um obstáculo de facto à livre circulação dos mesmos produtos, quer porque estes são, no Estado-membro B, distribuídos em embalagens de formato diverso do corrente no Estado-membro A, quer porque a sua importação sob outra forma tenha deparado com escasso êxito no mercado;

a referida oposição tiver (ainda que se não demonstre que são estes o: seus objectivos únicos ou principais) a consequência de manter uma sensí vel, e porventura injustificada, diferença do preços em ambos os Estados -membros?»

16

Basta observar que, sendo lícito o exercício do direito de marca nos termos do artigo 36.o do Tratado, não se poderá considerar tal exercício contrário ao artigo 86.o apenas porque o direito é exercido por uma empresa que detém no mercado uma posição dominante, se o direito de marca não for utilizado como instrumento de exploração abusiva de tal posição.

Quanto às despesas

17

As despesas efectuadas pelo Governo do Reino Unido, pelo Governo alemão e pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são rembolsáveis, Revestindo o processo, quanto às partes na acção principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões que lhe foram submetidas pelo Landgericht Freiburg, por despacho de 20 de Junho de 1977, declara:

 

1)

a)

Nos termos do artigo 36.o, primeiro período, do Tratado CEE, é justificada a oposição do titular de um direito de marca, protegido simultaneamente em dois Estados-membros, ao facto de um produto, licitamente portador da marca num desses Estados, ter sido comercializado no outro Estado-membro com nova embalagem à qual foi aposta, por um terceiro, a mesma marca.

b)

Tal oposição constitui, contudo, uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros, na acepção do artigo 36.o, segundo período, do Tratado:

se se demonstrar que o exercício do direito de marca pelo seu titular, dado o sistema de comercialização por ele aplicado, contribui para estabelecer uma compartimentação artificial entre os mercados dos Estados-membros;

se se demonstrar que a reembalagem não poderá afectar o estado originário do produto;

se o titular de marca for previamente avisado da colocação no mer cado do produto reembalado; e

se se indicar, na nova embalagem, quem procedeu ao reacondicionamento do produto.

 

2)

Na medida em que o exercício do direito de marca é legítimo nos termos do artigo 36.o do Tratado, não poderá tal exercício ser considerado contrário ao artigo 86.o do Tratado apenas porque o direito é exercido por uma empresa que detém no mercado uma posição dominante, se o direito de marca não for utilizado como instrumento de exploração abusiva de tal posição.

 

Kutscher

Sørensen

Bosco

Mertens de Wilmars

Mackenzie Stuart

O' Keeffe

Touffait

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 23 de Maio de 1978.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

H. Kutscher


( *1 ) Língua do processo: alemão.