ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

27 de Outubro de 1977 ( *1 )

No processo 30/77,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo Marlborough Street Magistrates' Court de Londres, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Regina (A Rainha)

e

Pierre Bouchereau,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 3. o da Directiva 64/221/CEE do Conselho, para a coordenação de medidas especiais relativas aos estrangeiros em matéria de deslocação e estada justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública (JO 56 de 4.4.1964, p. 850; EE 05 F1 p. 36).

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: H. Kutscher, presidente, M. Sørensen e G. Bosco, presidentes de secção, A. M. Donner, J. Mertens de Wilmars, P. Pescatore, A. J. Mackenzie Stuart, A. O'Keeffe, A. Touffait, juízes,

advogado-geral: J.-P. Warner

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por decisão de 20 de Novembro de 1976, que deu entrada no Tribunal em 2 de Março de 1977, o Marlborough Street Magistrates' Court de Londres, submeteu ao Tribunal de Justiça três questões respeitantes à interpretação do artigo 48.o do Tratado e de certas disposições da Directiva 64/221/CEE do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1964, para a coordenação de medidas especiais relativas aos estrangeiros em matéria de deslocação e estada justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública (JO 56, de 4.4.1964, p. 850; EE 05 F1 p. 36).

2

Essas questões foram colocadas no âmbito de um processo crime movido contra um nacional francês que desde Maio de 1975 exercia uma actividade assalariada no Reino Unido e que, em Junho de 1976, foi condenado pela detenção ilegal de estupefacientes, crime punível nos termos do Misuse of Drugs Act (lei sobre o abuso de estupefacientes) de 1971.

3

Em 7 de Janeiro de 1976, o arguido admitira os factos de que era acusado, constitutivos de idêntico crime perante outro órgão jurisdicional, tendo então sido dispensado de pena (conditional discharge) por um período de doze meses.

4

O Marlborough Street Magistrates' Court, em conformidade com as prerrogativas que lhe confere o n.o 1 do artigo 6.o da lei de 1971 sobre a imigração (Immigration Act), manifestou a intenção, notificada ao arguido, de propor ao secretário de Estado a sua expulsão; mas este argumentou que o artigo 48.o do Tratado CEE e as disposições da Directiva 64/221/CEE se opõem a que, no caso concreto, possa ser feita essa proposta de expulsão.

5

Como o órgão jurisdicional nacional entende que o litígio levanta questões relativas à interpretação do direito comunitário, submeteu ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, um pedido de decisão prejudicial.

Quanto à primeira questão

6

Na primeira questão pergunta-se «se uma proposta de expulsão feita por um órgão jurisdicional de um Estado-membro à autoridade com poderes executivos desse Estado — tendo tal proposta mero carácter indicativo e não sendo vinculativa para essa autoridade com poderes executivos — constitui uma 'medida ', na acepção dos n. os 1 e 2 do artigo 3o da Directiva 64/221/CEE?».

7

Essa questão destina-se a esclarecer se um órgão jurisdicional que, nos termos da sua legislação nacional, tem competência para propor à autoridade administrativa a expulsão de um nacional de outro Estado-membro, não sendo, no entanto, essa proposta vinculativa para essa autoridade, deve, ao fazê-lo, ter em conta as limitações resultantes do Tratado e da Directiva 64/221/CEE quanto ao exercício das competências que, nessa área, são reservadas aos Estados-membros.

8

Segundo as observações apresentadas pelo Reino Unido, em conformidade com o artigo 20.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da CEE, a questão colocada levanta dois problemas distintos: o de saber se um acto de um órgão jurisdicional pode ser considerado uma «medida» para efeitos da directiva e, sendo a resposta afirmativa, o de saber se uma mera proposta feita por um tal órgão jurisdicional pode constituir uma medida para efeitos da referida directiva.

a) Quanto ao primeiro ponto

9

O artigo 2.o da Directiva 64/221/CEE estabelece que a directiva diz respeito a todas as «disposições» (measures, dispositions, Vorschriften, prowedimenti, bestemmelser, voorschriften) relativas à entrada no território, à emissão ou renovação da autorização de residência ou à expulsão do território adoptadas pelos Estados-membros por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública.

10

Nos termos dos n. os 1 e 2 do artigo 3.o dessa directiva, as «medidas» (measures, mesures, Maßnahmen, prowedimenti, forholdsregler, maatregelen) de ordem pública ou de segurança pública devem fundamentar-se, exclusivamente, no comportamento pessoal do indivíduo em causa e a mera existência de condenações penais não pode, por si só, servir de fundamento à aplicação de tais medidas.

11

Embora o Governo do Reino Unido declare que aceita sem reservas que os n. os 1 e 2 do artigo 3. o são directamente aplicáveis e criam, em favor dos particulares, direitos que os órgãos jurisdicionais nacionais devem salvaguardar, pelo que nenhum tribunal de um Estado-membro pode ignorar essas disposições em causa que deva conhecer e na qual elas se apliquem, sustenta que um acto de uma instância jurisdicional não pode constituir uma «medida» (measure), na acepção do referido artigo 3o

12

Quanto a este ponto, esse Governo salienta que o facto de o mesmo termo inglês, neste caso «measures», ser usado quer no artigo 2o quer no artigo 3.o indicaria que a expressão utilizada deve ter, em cada um dos casos, o mesmo significado e que resultaria do primeiro considerando da directiva que no artigo 2o a expressão apenas teria em vista as medidas legislativas, regulamentares e administrativas, portanto, com exclusão das que provêm das autoridades judiciais.

13

Uma comparação das diferentes versões linguísticas das disposições em questão mostra que, com excepção da versão italiana, todas as outras usam termos diferentes em cada um dos dois artigos, pelo que não se pode tirar quaisquer consequências jurídicas da terminologia utilizada.

14

As diferentes versões linguísticas de um texto comunitário devem ser objecto de interpretação uniforme e, portanto, quando exista uma divergência entre essas versões, a disposição em causa deve ser interpretada em função da economia geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento.

15

Ao coordenar as normas nacionais relativas ao controlo dos estrangeiros, na medida em que digam respeito a nacionais dos outros Estados-membros, a Directiva 64/ /221 /CEE tem em vista proteger esses nacionais contra um exercício das competências que resultam da excepção relativa às limitações justificadas por razões de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública que possa ir além das necessidades que justificam uma excepção ao princípio fundamental da livre circulação de pessoas.

16

É essencial que nas diferentes fases do processo que pode conduzir à eventual adopção de uma decisão de expulsão essa protecção possa ser garantida pelos órgãos jurisdicionais, quando estes intervenham na elaboração de tal decisão.

17

Daqui resulta que a noção de «medida» inclui a actuação de um órgão jurisdicional que, nos termos da lei, tem por função propor em certos casos a expulsão de um nacional de outro Estado-membro.

18

Ao formular essa proposta, portanto, essa autoridade judicial deve assegurar a correcta aplicação da directiva e ter em conta os limites que esta impõe à actuação das autoridades dos Estados-membros.

19

Esta conclusão vai, aliás, ao encontro do ponto de vista expresso pelo Governo do Reino Unido, segundo o qual «não se sugere que um tribunal de um Estado-membro possa ignorar as disposições dos n. os 1 e 2 do artigo 3. o em qualquer causa que deva conhecer e na qual se apliquem essas disposições», mas pelo contrário aceita-se «que tais disposições são directamente aplicáveis e conferem aos nacionais dos Estados-membros direitos que os tribunais nacionais devem salvaguardar».

b) Quanto ao segundo ponto

20

No que se refere ao segundo ponto da primeira questão, o Governo do Reino Unido sustenta que uma mera proposta não pode constituir uma «medida», na acepção dos n. os 1 e 2 do artigo 3 o da Directiva 64/221/CEE, e que apenas a decisão consecutiva do ministro pode ter essa natureza.

21

Constitui uma «medida», na acepção da directiva, qualquer acto que afecte o direito de as pessoas abrangidas pelo artigo 48.o entrarem e residirem livremente nos Estados-membros nas mesmas condições que os nacionais do Estado-membro de acolhimento.

22

No âmbito do processo previsto pelo n.o 6 do artigo 3. o do Immigration Act de 1971, a proposta a que se refere a questão submetida pelo órgão jurisdicional nacional constitui uma fase obrigatória no processo de elaboração de uma eventual decisão de expulsão e uma condição prévia e necessária da referida decisão.

23

Além disso, no âmbito desse processo, a proposta tem como efeito possibilitar a privação da liberdade do interessado e é, em todo o caso, um elemento justificativo da decisão posterior de expulsão que venha a ser tomada pela autoridade administrativa.

24

Portanto, essa proposta afecta o direito de livre circulação e constitui uma medida na acepção do artigo 3. o da directiva.

Quanto à segunda questão

25

Na segunda questão pergunta-se se «o teor do n.o 2 do artigo 3. o da Directiva 64/ /221/CEE, segundo o qual a ‘mera’ existência de condenações penais não pode, ‘por si só’, servir de fundamento à aplicação de medidas de ordem pública ou de segurança pública, significa que a existência de condenações penais só pode ser tomada em consideração na medida em que elas atestem uma tendência presente ou futura para agir de forma contrária à ordem ou à segurança pública» e, a título subsidiário, «que sentido deve dar-se às expressões 'a mera existência' e 'por si só' só que constam do n.o 2 do artigo 3. o da Directiva 64 /221/CEE?».

26

De acordo com os termos da decisão de reenvio, essa questão resume-se a saber se, como defendeu o arguido perante o órgão jurisdicional nacional, «a existência de condenações penais só pode ser tomada em consideração na medida em que elas atestem uma tendência presente ou futura para agir de forma contrária à ordem ou à segurança pública» ou, pelo contrário, se, como sustentou a acusação, ela significa que, «embora o tribunal não possa propor a expulsão por razões de ordem pública com fundamento apenas na existência de uma condenação, lhe é lícito tomar em consideração o comportamento anterior do arguido que esteve na origem da condenação».

27

O teor do n.o 2 do artigo 3.o da directiva, segundo o qual «a mera existência de condenações penais não pode, por si só, servir de fundamento à aplicação de tais medidas», deve ser entendido no sentido de exigir das autoridades nacionais uma apreciação específica, efectuada sob o ângulo dos interesses inerentes à salvaguarda da ordem pública, que não coincide necessariamente com as apreciações que estiveram na base da condenação penal.

28

Daqui resulta que a existência de uma condenação penal só pode ser tomada em consideração na medida em que as circunstâncias que deram lugar a essa condenação revelam a existência de um comportamento pessoal que constitua uma ameaça actual para a ordem pública.

29

Embora, em termos gerais, a comprovação de uma ameaça dessa natureza implique a existência no indivíduo em questão de uma tendência para manter esse comportamento no futuro, também pode acontecer que o simples facto do comportamento passado preencha as condições da referida ameaça à ordem pública.

30

Compete às autoridades, e, sendo caso disso, aos órgãos jurisdicionais nacionais, decidir essa questão em cada caso concreto, à luz da condição jurídica especial das pessoas sujeitas ao direito comunitário e da natureza fundamental do princípio da livre circulação de pessoas.

Quanto à terceira questão

31

Pela terceira questão pergunta-se se a expressão «ordem pública» (public policy) que consta do n.o 3 do artigo 48.o deve ser interpretada como incluindo as razões de Estado (reasons of State), mesmo quando não seja de temer uma ofensa à paz ou à ordem pública (breach of the public peace or order) ou, num sentido mais restrito, incluindo a noção de ameaça de qualquer ofensa à paz, à ordem ou à segurança pública (threatened breach of the public peace, order or security) ou, pelo contrário, num sentido mais lato.

32

Despojada dos seus aspectos terminológicos, esta questão pretende que seja precisada a interpretação a dar à noção de «ordem pública» a que se refere o artigo 48.o

33

No acórdão de 4 de Dezembro de 1974 (processo 41/74, Van Duyn, Colect. 1974, p. 567) o Tribunal salientou que a noção de ordem pública no contexto comunitário, e designadamente enquanto justificação de uma derrogação ao princípio fundamental da livre circulação dos trabalhadores, deve ser entendida em sentido estrito, de modo que o seu alcance não pode ser determinado unilateralmente por cada Estado-membro sem controlo das instituições da Comunidade.

34

Todavia, conclui-se no mesmo acórdão que as circunstâncias específicas que poderiam justificar o recurso à noção de ordem pública podem variar de país para país e de época para época e que, portanto, é necessário, nesta matéria, reconhecer às autoridades nacionais competentes uma margem de apreciação que não extravase dos limites impostos pelo Tratado e pelas disposições adoptadas para a sua aplicação.

35

Na medida em que pode justificar certas restrições à livre circulação das pessoas sujeitas ao direito comunitário, o recurso por uma autoridade nacional à noção de ordem pública pressupõe, em todo o caso, a existência, afora a perturbação da ordem social que qualquer infracção à lei constitui, de uma ameaça real e suficientemente grave que afecte um interesse fundamental da sociedade.

Quanto às despesas

36

As despesas efectuadas pelo Governo do Reino Unido e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis.

37

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Marlborough Street Magistrates' Court, por decisão de 20 de Novembro de 1976, declara:

 

1)

Constitui uma «medida», na acepção dos n. os 1 e 2 do artigo 3.o da Directiva 64/221/CEE qualquer acto que afecte o direito de as pessoas abrangidas pelo artigo 48.o do Tratado entrarem e residirem livremente nos Estados-membros nas mesmas condições que os nacionais do Estado-membro de acolhimento. Esta noção inclui a actuação de um órgão jurisdicional que, nos termos da lei, tem por função propor, em certos casos, a expulsão de um nacional de outro Estado-membro, quando essa proposta constitua uma condição prévia e necessária da referida decisão.

 

2)

O n.o 2 do artigo 3.o da Directiva 64/221 /CEE, nos termos do qual a mera existência de condenações penais não pode, por si só, servir de fundamento às restrições à livre circulação autorizadas pelo artigo 48.o do Tratado, por razões de ordem pública e de segurança pública, deve ser interpretado no sentido de que a existência de condenações penais só pode ser tomada em consideração na medida em que as circunstâncias que deram lugar a essas condenações revelam a existência de um comportamento pessoal que constitua uma ameaça actual para a ordem pública.

 

3)

Na medida em que pode justificar certas restrições à livre circulação das pessoas sujeitas ao direito comunitário, o recurso, por uma autoridade nacional, à noção de ordem pública pressupõe, em todo o caso, a existência, afora a perturbação da ordem social que qualquer infracção à lei constitui, de uma ameaça real e suficientemente grave que afecte um interesse fundamental da sociedade.

 

Kutscher

Sørensen

Bosco

Donner

Mertens de Wilmars

Pescatore

Mackenzie Stuart

O'Keeffe

Touffait

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 27 de Outubro de 1977.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

H. Kutscher


( *1 ) Ungua do processo: inglês.