CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

ALBERTO TRABUCCHI

apresentadas em 22 de Junho de 1976 ( *1 )

Senhor Presidente,

Senhores Juízes,

1. 

Através dos pedidos prejudiciais dirigidos ao Tribunal de Justiça nos presentes processos, os dois órgãos jurisdicionais holandeses visam obter elementos que lhes permitam determinar se as normas nacionais adoptadas nos Países Baixos em aplicação das recomendações publicadas em Novembro de 1974 pela Comissão actuando no âmbito da Convenção das Pescarias do Nordeste do Atlântico (CPANE) são compatíveis com o direito comunitário, em particular com as normas do Tratado relativas à agricultura e à proibição de restrições quantitativas, com os regulamentos n.os 2141/70 e 2142/70 do Conselho, relativos respectivamente ao estabelecimento de uma política comum das estruturas e de uma organização comum de mercado no sector da pesca, e com o artigo 102.o do acto de adesão, que prevê a determinação pelo Conselho das condições de exercício de pesca a fim de garantir, entre outros aspectos, a conservação dos recursos biológicos do mar.

Com vista à conservação do património ictíico daquela zona marítima, as citadas recomendações fixam as quotas máximas globais para a pesca no mar do Norte para o ano de 1975, nomeadamente no que respeita ao linguado e à solha, subdividindo-as ainda em quotas individuais por cada um dos Estados interessados. Prevêem ainda a proibição da pesca nas águas costeiras para as embarcações que excedam determinadas dimensões ou determinada potência. As autoridades neerlandesas promoveram a aplicação dessas recomendações mediante uma série de medidas restritivas da pesca; os contraventores são passíveis de sanções penais pela inobservância das obrigações que tais medidas comportam.

Os juízes neerlandeses de reenvio perguntam se, face às normas de direito comunitário acima mencionadas, os Estados-membros ainda têm competência para celebrar acordos internacionais visando preservar os recursos da pesca e se o direito comunitário permite aos Estados-membros adoptar medidas que fixam quotas de pesca. Estas questões dizem respeito quer à competência dos Estados-membros para, em presença de uma disciplina comunitária do sector da pesca, agirem unilateralmente neste sector no plano internacional, quer ao alcance do direito comunitário e, em particular, da regulamentação comum do mercado e das normas do Tratado relativas à proibição de medidas equivalentes a restrições quantitativas no que se refere a medidas restritivas do género das adoptadas pelas autoridades nacionais em execução de obrigações internacionais.

Antes de mais, convém, portanto, determinar se a competência para concluir acordos internacionais em matéria de conservação do património ictíico pertence a partir de agora exclusivamente à Comunidade ou se, ao invés, os Estados-membros têm ainda a possibilidade de agir a título individual nesse aspecto. Na hipótese de esse poder estatal dever ser excluído, tornar-se-á supérflua a apreciação das outras questões. Na hipótese inversa, pelo contrário, será de apreciar se, perante a disciplina comunitária no sector da pesca, os Estados-membros podem licitamente agir com o referido objectivo mediante a fixação de restrições à pesca e, em especial, estabelecendo quotas. Nesta perspectiva, poderão ser considerados também os artigos 30.o e seguintes do Tratado, relativos à proibição de restrições equivalentes a contingentes. Neste segundo aspecto, a questão coloca-se independentemente da origem convencional ou unilateral das restrições consideradas.

2. 

Examinemos antes do mais os problemas relativos à definição das competências externas da Comunidade e dos Estados-membros na matéria em apreço.

Relembremos que a convenção em causa (CPANE) foi celebrada em 24 de Janeiro de 1959 e entrou em vigor para todos os Estados signatários, entre os quais figuram sete Estados-membros, em 27 de Junho de 1963. A convenção tem como objectivo a conservação do património ictíico da parte norte-oriental do oceano Atlântico, incluindo as águas territoriais e costeiras. Uma comissão especial, composta por delegados de todas as partes contratantes, está incumbida da aplicação da convenção.

As questões apresentadas no caso em apreço pelos dois órgãos jurisdicionais dos Países Baixos não dizem respeito ao problema geral da possibilidade de os Estados-membros da CEE continuarem a participar a título individual numa convenção dessa natureza, mas somente à licitude da adopção, por esses Estados-membros agindo a título individual, de medidas restritivas da pesca em execução de obrigações derivadas de uma nova disposição adoptada no âmbito da convenção, o artigo 7.o, alíneas g) e h), pela qual todas as partes aderentes ao acordo ampliaram as competências da referida comissão, conferindo-lhe o poder de. fixar quotas globais de pesca e de as repartir entre os Estados. Essa alteração foi decidida em 1971 e entrou em vigor em 1974, portanto posteriormente à regulamentação comunitária relativa à organização do sector da pesca.

No que respeita ao aspecto internacional da conduta estatal, aquelas questões prejudiciais comportam, pois, a questão da compatibilidade com o direito comunitário unicamente no que se refere à participação dos Estados-membros na adopção da citada alteração da CPANE.

No acórdão no processo 22/70, AETR, o Tribunal afirmou que, «sempre que, para a aplicação de uma política comum prevista pelo Tratado, a Comunidade tenha adoptado disposições que instituam, seja de que forma for, regras comuns, os Estados-membros deixam de ter o direito, quer agindo individualmente quer colectivamente, de contrair com países terceiros obrigações que afectem essas regras; efectivamente, à medida que vão sendo instituídas essas regras comuns, só a Comunidade tem capacidade para assumir e executar, com efeitos em toda a esfera de aplicação da ordem jurídica comunitária, os compromissos contraídos com países terceiros; portanto, na aplicação das disposições do Tratado, não se pode separar o regime das medidas internas da Comunidade do das relações externas» (Colect. 1971, p. 69).

Para permitir ao juiz nacional decidir se as disposições internas adoptadas em execução das recomendações previstas na Convenção das Pescarias do Nordeste do Atlântico são compatíveis com o direito comunitário, deve-se, portanto, determinar antes de mais, à luz dos princípios enunciados no acórdão AETR, se após a entrada em vigor da regulamentação comunitária relativa ao sector da pesca os Estados-membros podiam licitamente continuar a agir autonomamente no plano internacional, no âmbito da referida convenção, assumindo mesmo novas obrigações; podiam licitamente os Estados, em 1971, obrigar-se internacionalmente a permitir a fixação de limitações ao exercício de uma actividade incluída num sector que a partir de então era objecto de uma organização comum de mercado?

Saliente-se de imediato que, enquanto a CPANE respeita também à pesca no alto mar, a regulamentação comunitária que disciplina concretamente o sector da pesca, embora prevendo também um regime de trocas com países terceiros, diz sobretudo respeito a actividades e situações que se desenrolam no espaço dependente da soberania ou jurisdição dos Estados-membros. Isto é bem compreensível, na medida em que mal se conceberia uma regulamentação unilateral, mesmo se efectuada pela Comunidade, de problemas respeitantes à pesca em alto mar, que, pela sua natureza, apenas podem ser adequadamente encarados e resolvidos no âmbito de acordos em que participem todos os sujeitos de direito público interessados, e portanto, no nosso caso, os Estados terceiros cujos navios pesqueiros operam na zona marítima em questão. Naturalmente, isto é dito sem prejuízo de eventuais medidas, mesmo unilaterais, que possam ainda ser adoptadas, e designadamente em aplicação do prescrito no artigo 1.o do Regulamento n.o 2141/70 e do artigo 102.o do acto de adesão, relativas à promoção de uma exploração racional dos recursos biológicos do mar mediante uma regulamentação das condições da pesca.

Entendemos que o princípio derivado do acórdão AETR, segundo o qual o exercício, em relação a uma determinada matéria, de uma competência normativa interna da Comunidade comporta a assunção exclusiva por parte da Comunidade da competência, anteriormente atribuída aos seus Estados-membros, para assumir compromissos internacionais nessa mesma matéria, deve ser aplicado independentemente da consideração de que os compromissos internacionais se destinam a produzir efeitos exclusivamente no território dependente da soberania dos Estados-membros, ou mesmo fora desse espaço geográfico, como é precisamente o caso da convenção internacional aqui em apreço.

Determinante para o reconhecimento do carácter exclusivamente comunitário da competência externa é a existência de uma relação funcional entre a actividade que se desenrola fora do espaço geográfico comunitário propriamente dito, que é objecto da regulamentação internacional, e a regulamentação comum relativa às actividades desenvolvidas nesse espaço. A extensão automática das competências internas comunitárias ao plano externo tem com efeito a sua razão de ser e a sua justificação jurídica na relação funcional que existe entre o exercício das competências externas e o exercício das competências internas na mesma matéria. Portanto, quando uma competência externa, mesmo visando regular actividades que se desenvolvem num espaço geográfico mais amplo do que aquele que depende directamente do poder normativo comunitário, incide directamente sobre um sector que se encontra já regido na Comunidade por uma regulamentação comum, e que, portanto, possa incidir sobre o funcionamento dos mecanismos e das regras comuns estabelecidas pela Comunidade naquele sector de actividade, deve ser reconhecida aquela relação funcional entre a competência interna e a competência externa, que implica a assunção também desta última pela Comunidade em correlação com o efectivo exercício da sua competência normativa interna no mesmo sector.

3. 

Consideramos oportuno, ainda a título preliminar, precisar que, para efeitos de determinação das competências conferidas à Comunidade pelo sistema, não pode ter qualquer relevância a consideração das dificuldades que determinados Estados terceiros poderiam opor à participação da Comunidade na convenção internacional acima referida. Esta circunstância, embora possa ter uma certa relevância no que respeita à avaliação do comportamento seguido entretanto pelos Estados-membros, não poderia seguramente ter qualquer influência nem na afirmação da competência comunitária na matéria nem na qualificação da mesma em relação à posição dos Estados-membros. Por outras palavras, a eventual verificação daquelas dificuldades inerentes à atitude, inspirada por considerações políticas, de determinados Estados terceiros não poderá em caso algum modificar o estado de direito que caracteriza na ordem jurídica comunitária as relações entre a Comunidade e os seus Estados-membros. Se a interpretação do direito comunitário nos leva a constatar que a conservação do património ictíico só pode ser regulamentada pela Comunidade mesmo no plano das relações internacionais, a resistência que determinados Estados terceiros poderão opor à plena participação directa da Comunidade nas negociações relativas à CPANE e no funcionamento desta não poderá ter como efeito privar a Comunidade de uma competência sua e transferi-la para os Estados-membros. Quando muito, na hipótese de essas dificuldades se revelarem insuperáveis, a Comunidade poderá autorizar os seus Estados-membros a agir por conta dela, observando rigorosamente as directivas que a Comunidade lhes dará.

Devemos ainda precaver-nos contra outro perigo. A bondade, e digamos mesmo a necessidade do objectivo prosseguido pelos Estados mediante a aceitação de limitações de vária espécie à liberdade da pesca, não nos deve fazer perder de vista que o aspecto ecológico dos problemas, ainda que de importância primordial, não é o único que está em jogo nesta regulamentação internacional da pesca. Existe um relevante aspecto económico e comercial no que respeita, pois, à acção e à competência própria da Comunidade, que tem efectivamente uma enorme importância para todas as partes intervenientes no acordo. Por isso, deve-se evitar que a simpatia pela finalidade ecológica prosseguida conduza a aceitar indiscriminadamente qualquer processo ou meio utilizado.

Note-se, finalmente, conforme viemos a saber no decurso do presente processo, quão pouco funcionou na prática a concertação prévia ao nível comunitário, que se procurara estabelecer entre os Estados-membros em relação às negociações no âmbito da CPANE. Estes precedentes, embora incitando-nos a uma chamada de atenção para a exigência da concertação prévia na qual se inspira o artigo 116.o do Tratado CEE, podem deixar-nos um tanto cépticos sobre a eficiência de tal processo.

4. 

Podemos agora passar ao exame do fundo da questão de saber se a regulamentação comunitária no sector da pesca, tendo em conta o seu efectivo conteúdo e os objectivos prosseguidos, é de natureza a criar obstáculos, já no plano da competência, à assunção por parte dos Estados de compromissos internacionais do género dos que foram assumidos através da supracitada alteração da Convenção complementar das Pescarias do Nordeste do Atlântico. Para este fim, é oportuno relembrar os traços essenciais da regulamentação comunitária.

O Regulamento n.o 2141/70, que estabelece uma política comum das estruturas no sector da pesca, institui um regime comum para o exercício da pesca nas águas marítimas e prevê a coordenação das políticas estruturais dos Estados-membros no sector. Tal regulamentação comum é caracterizada pelo princípio da igualdade de tratamento que os Estados-membros devem aplicar em relação a todos aqueles que exercem a pesca nas águas marítimas sobre as quais cada Estado exerce a sua própria soberania.

O artigo 5o deste regulamento prevê que, quando o exercício da pesca nas águas marítimas sobre as quais os Estados-membros exercem a sua soberania ou jurisdição expuser alguns dos seus recursos aos riscos de uma exploração excessiva, o Conselho pode adoptar as medidas necessárias para a conservação desses recursos.

Além disso, estão previstas acções adequadas com vista a contribuir para melhorar a produtividade e as condições de produção e de comercialização e é instituído junto da Comissão um comité permanente expressamente para promover a coordenação das políticas estruturais nacionais.

O Regulamento n.o 2142/70, que estabelece a organização comum de mercado no sector dos produtos da pesca, prevê a instituição de organizações de produtores, de um regime de preços e de um regime de trocas com os países terceiros. Regula também a concessão de auxílios por parte dos Estados às organizações de produtores e prevê a possibilidade de estabelecer regras comuns de comercialização que podem reportar-se particularmente à classificação' por categorias de qualidade, dimensão, peso, embalagem, etc.

O regime de preços baseia-se na fixação de um preço de orientação e, eventualmente, de um preço de intervenção. Pode igualmente ser fixado pelas organizações de produtores um preço de retirada, abaixo do qual não são vendidos os produtos oferecidos pelos produtores filiados. Competirá à organização de produtores fixar o destino dos produtos assim retirados. Para o financiamento das operações de retirada, estas organizações constituirão fundos de intervenção alimentados pelas contribuições dos associados.

O regime das trocas com os países terceiros é caracterizado pela proibição de quaisquer encargos de efeito equivalente a direitos aduaneiros e de qualquer restrição quantitativa. Para preservar a estabilidade do mercado interno comunitário prevê-se a fixação anual de preços de referência e a cobrança, na importação de países terceiros, de direitos de compensação iguais à diferença entre o preço de referência e o preço de entrada, no caso, naturalmente, de este último ser inferior ao preço de referência. Tais direitos são iguais para todos os Estados-membros. Estão igualmente previstas medidas de salvaguarda comunitárias em caso de perigo de perturbação devida às importações ou às exportações.

Tendo em conta a existência desta complexa regulamentação que disciplina o sector da pesca na esfera interna da Comunidade, trata-se de determinar se os Estados-membros podem continuar a celebrar individualmente acordos internacionais nesta matéria.

Sobre esta questão, para cuja solução se deve confrontar o objecto do acordo internacional em causa com o objecto da regulamentação comum do mercado, a citada decisão no processo AETR não conduziria a negar aos Estados a possibilidade de assumirem unilateralmente compromissos internacionais no domínio da conservação do património ictíico, ainda quando esses compromissos não sejam limitados ao alto mar mas operem, como sucede precisamente no caso em apreço, mesmo em relação às actividades de pesca exercidas no mar territorial, isto é, no âmbito já sujeito, mas por outros aspectos, a uma regulamentação comunitária concreta.

No processo AETR, com efeito, o acordo internacional que os Estados-membros estavam a negociar coincidia substancialmente, pelo seu conteúdo, com uma regulamentação comunitária que já disciplinava o mesmo sector específico. Havia, portanto, uma verdadeira e própria coincidência material entre o objecto da regulamentação comunitária e o do acordo internacional previsto.

No caso presente, ao invés, o artigo 5. o do Regulamento n.o 2141/70 limita-se a prever a possibilidade de o Conselho adoptar as medidas necessárias para a conservação dos recursos, relativamente ao exercício da pesca nas águas marítimas controladas pelos Estados-membros. Não se trata, pois, de uma regulamentação material actual, mas simplesmente da previsão de um poder de acção comunitário, que até agora não foi exercido. Saliente-se de imediato que ao lado desta norma, a qual, estando limitada às zonas marítimas dependentes da soberania ou da jurisdição dos Estados, prevê um poder de acção unilateral da Comunidade, o mesmo regulamento prevê, no seu artigo 1.o, uma missão mais ampla da Comunidade em função da exploração racional dos recursos biológicos do mar, sem lhe limitar o âmbito geográfico. O mesmo se pode observar no que se refere ao artigo 102.o do acto de adesão à Comunidade dos três novos Estados-membros, o qual determina que, o mais tardar a partir do sexto ano após a adesão, o Conselho, deliberando sob proposta da Comissão, determinará as condições de exercício da pesca, a fim de garantir a protecção dos fundos marinhos e a conservação dos recursos biológicos do mar". Esta norma também não estabelece um limite geográfico à missão atribuída à Comunidade. A sua aplicação poderá comportar especificamente um sistema de contingentes comunitários. Contudo, esta norma também não deu ainda lugar à adopção de medidas de aplicação.

A plena aplicação das duas disposições legais supracitadas, tendo em conta a matéria de que se trata e as exigências de acção comum a uma pluralidade de Estados que a regulamentação comporta, tornará indubitavelmente necessárias acções da Comunidade no plano internacional. Com efeito, a conservação do património ictíico só pode ser prosseguida eficazmente através de acordos internacionais. Não há dúvidas de que a Comunidade recebeu a competência para se ocupar ela própria desse aspecto da regulamentação da pesca, mesmo no que se refere ao alto mar. Isto resulta já da simples consideração da conexão necessária, diria mesmo da interdependência, entre o funcionamento da organização comum de mercado, a prossecução da política estrutural comum no sector da pesca e as limitações à pesca no alto mar que possam justificar-se por considerações ecológicas e económicas. Por isto, devemos, portanto, ver na atribuição de poderes normativos à Comunidade também o reconhecimento da sua correspondente competência negocial internacional. Acrescente-se ainda que, mesmo que não se pudesse reconduzir directamente essa competência às disposições do Tratado CEE relativas à agricultura (e sobre este ponto não é necessário tomar aqui posição), bastaria a circunstância de o Regulamento n.o 2141/70 se ter baseado formalmente no artigo 235. o do Tratado.

Conforme a jurisprudência AETR, não basta a simples existência de um poder normativo comunitário numa determinada matéria para excluir a competência negocial internacional dos Estados na mesma. Ao invés, como dissemos, é necessário que tenha havido um efectivo exercício dessa competência e que, portanto, a matéria tenha sido efectivamente regulamentada por normas comunitárias: só desta maneira a competência internacional dos Estados se achará inteiramente substituída pela da Comunidade. Além disso, deve ainda salientar-se que não basta que um sector genericamente considerado tenha sido objecto de uma regulamentação comunitária para excluir automaticamente os Estados de qualquer competência da intervenção nesse sector. A incompatibilidade de uma competência estatal numa determinada matéria deve ser estabelecida não em abstracto, mas em contraposição com a regulamentação comunitária. Se isto é válido no que respeita à competência estatal para adoptar disposições internas, como resulta da jurisprudência do Tribunal (por exemplo, os acórdãos nos processos 2/73, Geddo, Colect. 1973, p. 339; 51/ /74, Van der Hulsfs, Colect. 1975, p. 33; e 65/75, Tasca, de 26 de Fevereiro de 1976), também deverá valer, ao mesmo título, para as competências externas dos Estados.

Assente, portanto, que, mesmo existindo uma regulamentação comum para o sector da pesca, essa regulamentação não disciplina ainda concretamente um aspecto específico, como é o que se refere à conservação dos recursos ictíicos, poderá admitir-se que os Estados ainda são competentes para assumir nesta matéria compromissos internacionais?

Tenhamos presente que, ao definir uma regulamentação internacional da pesca com uma finalidade ecológica, é necessário, entre outros aspectos, proceder à repartição entre todos os sujeitos de direito público interessados na pesca nas zonas consideradas dos encargos económicos que as medidas de protecção comportam. A definição dessa regulamentação interessa portanto directamente, para além do funcionamento interno das organizações de mercado, também à própria condução da política comercial comum.

Trata-se, portanto, de uma matéria que toca em diversos aspectos nos interesses e nas competências da Comunidade. Analogamente ao que o Tribunal observou no seu parecer 1/75, em relação à política comercial comum, também neste sector, uma maneira, e talvez a mais adequada, de obter uma definição concreta da política comum consiste na celebração de acordos internacionais com Estados terceiros com a intervenção não já dos Estados-membros individualmente, mas da Comunidade, que é a única que está em situação de prosseguir uma política para salvaguarda dos interesses verdadeiramente comuns.

Tais circunstâncias não poderão deixar de repercutir-se na liberdade de acção dos Estados-membros antes que a Comunidade tenha traduzido a sua competência em medidas concretas: se não no sentido de excluir uma competência concorrente dos Estados, pelo menos para a limitar. Por isso, na expectativa de uma acção comunitária concreta e tendo em conta a urgência imposta pelas circunstâncias, os Estados poderão ainda adoptar, agindo a título individual no âmbito das suas competências próprias, as medidas necessárias à prossecução dos objectivos cuja importância foi reconhecida pelo próprio sistema comunitário, mas com a limitação de os meios escolhidos para esse fim não serem contrários às normas do Tratado. Além disso, devem ter presente que as acções empreendidas unilateralmente terão um carácter meramente transitório, e não devem portanto ser susceptíveis de criar obstáculos à eficácia plena não só da regulamentação comunitária em vigor, mas também das medidas que a Comunidade deverá adoptar no mesmo sector para a prossecução dos objectivos na aplicação de uma política comum. Por isso, as obrigações genéricas impostas pelo artigo 5.o do Tratado e a previsão do supramencionado artigo 116.o deverão levar a admitir, nesta fase transitória, uma obrigação precisa dos Estados no sentido de se concertarem previamente em sede comunitária a fim de evitarem, no plano internacional, tomadas de posição individuais susceptíveis de entravar a definição e a prossecução da acção comum por parte da Comunidade.

5. 

Admitida, portanto, pelo menos a título transitório, uma limitada competência residual dos Estados para assumirem compromissos internacionais em matéria de conservação do património ictíico, convém agora determinar se, tendo em conta o seu contéudo específico e o seu alcance, não estarão substancialmente em contradição com a regulamentação comum do mercado da pesca ou com as normas do Tratado CEE os compromissos internacionais assumidos em 1971 por sete dos nove Estados-membros, mediante a adopção das alíneas g) e h) do artigo 7.o da convenção, que atribuem à comissão especial actuando no âmbito do acordo o poder de dirigir aos Estados participantes recomendações para a adopção de medidas destinadas a regulamentar o volume da actividade da pesca, as quantidades totais das capturas e a sua repartição entre os Estados-membros no decurso de um período a determinar.

É de salientar que, embora as recomendações de tal organismo internacional revistam carácter obrigatório quando adoptadas por uma maioria de dois terços, qualquer Estado a quem sejam dirigidas tem, contudo, a possibilidade de se eximir legalmente à sua execução, mediante simples declaração, num prazo de 90 dias. Por isso, mesmo admitindo-se que as medidas recomendadas pela referida comissão com base nas alíneas g) e h) do artigo 7o possam vir a estar em oposição com a regulamentação comum do sector da pesca em vigor na Comunidade, a faculdade reconhecida a cada uma das partes na dita convenção de se eximir tempestivamente à aplicação dessas recomendações permite considerar que a aceitação da referida alteração ao artigo 7.o por parte dos Estados-membros participantes na mesma convenção não seja por si só susceptível de colocar aqueles Estados em situação de incompatibilidade com as suas obrigações comunitárias.

As referidas novas disposições do artigo 7.o têm como objecto a limitação da pesca e não do comércio do peixe. Isto basta para excluir uma incompatibilidade certa, em abstracto, das medidas que possam ser adoptadas ao abrigo daquelas disposições e da regulamentação comunitária que, como já se realçou, respeita sobretudo à fase de comercialização do produto, não regulando ainda directamente a fase da pesca ou, como impropriamente por vezes se diz, da «produção» do peixe.

6. 

A questão que apresenta aspectos mais delicados e que temos de apreciar agora diz respeito à compatibilidade, em concreto, com o direito comunitário de medidas estatais do género daquelas a que se refere o juiz nacional e que foram tomadas em execução da recomendação adoptada em Novembro de 1974, com efeitos para todo o ano de 1975, pela comissão prevista na Convenção das Pescarias do Nordeste do Atlântico.

A regulamentação neerlandesa sobre cuja compatibilidade com o direito comunitário os órgãos jurisdicionais de reenvio têm dúvidas consta de três ordens de medidas. Em primeiro lugar, um decreto do ministro da Agricultura, de 25 de Fevereiro de 1975, que impõe restrições de vária natureza à pesca do linguado e da solha, ou seja: uma proibição geral e absoluta de pesca em determinadas zonas, uma proibição da pesca por embarcações que excedam determinadas dimensões e determinada potência do motor nas águas costeiras e, finalmente, uma limitação das capturas pelo conjunto dos pescadores nacionais no mar do Norte e no mar da Irlanda.

Em execução deste decreto ministerial, o organismo neerlandês competente («Produktschap voor Vis en Visprodukten») adoptou um decreto que proíbe o desembarque dos linguados e das solhas pescados nas zonas sujeitas a proibição absoluta de pesca ou pescados nas águas territoriais, por embarcações com arqueação ou potência superiores às indicadas no decreto ministerial; e prevê, além disso, a adopção de normas de aplicação para fins da repartição das quotas de pesca permitidas para o conjunto dos pescadores neerlandeses. Estas normas de aplicação foram depois adoptadas pelo presidente do referido organismo e foram objecto de numerosas alterações no decurso do ano de 1975: num primeiro momento, limitou-se o número de saídas por cada embarcação para o mar do Norte, depois foi acrescentada uma limitação quantitativa do desembarque semanal de linguados por cada embarcação, independentemente do número das saídas; posteriormente, esta regulamentação foi substituída por um sistema de quotas estabelecido para cada embarcação em função da potência do motor e, finalmente, a partir de 27 de Novembro de 1975, foi absolutamente proibido qualquer desembarque de linguados provenientes do mar do Norte. Pelo contrário, no que respeita à solha, contentaram-se em relação ao ano de 1975 a obrigar os pescadores a indicar as quantidades capturadas e a sua proveniência.

Deverá uma regulamentação desta natureza ser considerada incompatível, no estádio actual, com a regulamentação comunitária no sector da pesca ou, de forma mais geral, com as normas directamente aplicáveis do Tratado CEE?

Resulta do que acima se disse que a regulamentação nacional adoptada com o objectivo de assegurar o respeito da quota atribuída aos Países Baixos comporta dois tipos distintos de proibições ou de limitações: um primeiro tipo, visando directamente a pesca, que tem como objectivo manter a pesca global dos pescadores neerlandeses dentro do limite da quota atribuída aos Países Baixos; um segundo tipo, que consiste em limitações de vária ordem (número de saídas, limitação da quantidade de peixe que cada embarcação é autorizada a desembarcar, etc.) que não respeitam directamente à operação da pesca, mas antes ao destino do produto da pesca e que têm como objectivo efectuar a repartição da quota global nacional entre os vários pescadores neerlandeses.

Enquanto, pois, as limitações do primeiro tipo incidem directamente sobre uma fase que precede a comercialização do produto, as do segundo tipo ou pelo menos algumas delas, sobretudo as limitações quantitativas e a proibição absoluta de desembarque de certos tipos de peixe, incidem antes sobre o início da fase de comercialização, limitando-a quantitativamente ou mesmo impedindo-a radicalmente em relação ao produto pescado no mar do Norte, Todavia, também as medidas deste segundo tipo são adoptadas exclusivamente em função da limitação da pesca.

Por outro lado, é evidente que, mesmo quando a proibição actua directamente na fase anterior, isto é, em relação às operações de pesca propriamente ditas, é manifestamente susceptível de se repercutir no comércio do produto, limitando na origem as quantidades que podem ser oferecidas no mercado pelo conjunto dos pescadores nacionais, e isto com efeitos não só no mercado nacional mas também no de qualquer outro país, uma vez que o contingente atribuído a cada Estado se aplica independentemente do lugar em que é desembarcado ou posto à vencia o produto da frota pesqueira nacional.

É-nos perguntado se essas restrições elevem ser consideradas como medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas, que, como tais, seriam abrangidas pela proibição estabelecida no artigo 31o do Tratado, cujo carácter directamente aplicável o Tribunal já reconheceu (acórdão no processo 13/68, Salgoll, Colect. 1965-1968, p. 903).

Viu-se que todas as restrições de que aqui se trata, ainda que de natureza diversa e actuando em fases diversas da actividade económica, foram estabelecidas exclusivamente em função da limitação da quantidade da pesca. A limitação do comércio enquanto tal é totalmente estranha aos objectivos prosseguidos, quer pelo organismo internacional incumbido de aplicação da CPANE quer pelo Estado-membro de que falamos.

A jurisprudência do Tribunal delineou uma noção ampla de restrições de efeito equivalente a restrições quantitativas que se estende a qualquer regulamentação do comércio «susceptível de criar obstáculos directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, ao comércio intracomunitário» (acórdão 8/74, Dassonville, Colect. 1974, p. 423), chegando mesmo a abranger medidas que actuam directamente apenas no estádio da produção. O acórdão no processo 190/73, Van Haaster (Colect. 1974, p. 471), considerou ser uma medida de efeito equivalente uma regulamentação interna que visa limitar quantitativamente a cultura de um produto da floricultura abrangido por uma organização comum de mercado. Todavia, a fundamentação não permite deduzir que tal conclusão pressuponha a afirmação de uma regra geral aplicável, em qualquer caso, a todos os produtos que fazem parte de uma organização comum de mercado, uma vez que o acórdão se baseia nas características da organização específica de mercado de que se tratava.

Nesse caso o Tribunal, com efeito, deu sobretudo relevância à existência de normas que estabelecem critérios qualitativos comuns e que já têm por si mesmas um efeito restritivo da produção.

Também o regime comunitário da pesca prevê medidas que visam melhorar a qualidade dos produtos e adaptar o volume da oferta às exigências do mercado (artigo 5o do Regulamento n.o 2142/70). Mas, se uma regulamentação do género é adequada para evitar um excesso de produção, não basta certamente para evitar o depauperamento dos recursos naturais.

No caso presente, o elemento mais característico é constituído pela circunstância de o produto em causa, diversamente dos jacintos que constituíam o objecto da regulamentação que estava em causa no processo Van Haaster, não poder ser reproduzido em quantidades praticamente ilimitadas, à vontade do homem. A sua reprodução depende exclusivamente de factores naturais e de condições ambientais, que o homem pode agravar, é certo, como nos mostrou a recente experiência dos países mais industrializados, e para cuja preservação os Estados procuram precisamente promover essas acções comuns, ou pelo menos coordenadas, entre as quais se inserem as medidas restritivas em análise.

A realidade actual em matéria de reprodução do peixe é caracterizada pelo perigo iminente de um despovoamento dos mares, devido, entre outros aspectos, às técnicas mais aperfeiçoadas e ao incremento do potencial dos meios de pesca. Numa situação desta natureza, que comporta perigos graves, não só no plano do equilíbrio ecológico mas também no plano económico do abastecimento, poderá admitir-se que medidas estatais visando limitar racionalmente a pesca, com base nos dados da ciência (isto é, no sentido de que impõem limitações necessárias e proporcionadas), a fim de preservar para o futuro reais possibilidades de pesca e, portanto, também do respectivo comércio, escapam à proibição dos artigos 30.o e seguintes do Tratado CEE?

A consideração do efeito próximo destas medidas, consistindo numa previsível diminuição do comércio de peixe entre os Estados-membros, conduziria necessariamente a colocá-las sob a alçada das proibições comunitárias. Uma consideração menos restrita do fenómeno, que dê realce aos previsíveis efeitos, mais afastados no tempo, das medidas em causa, os quais não poderão deixar de favorecer a actividade da pesca e do comércio, poderia, ao invés, fornecer argumentos em apoio de uma conclusão diferente.

A exclusão de tais medidas do âmbito de aplicação dos artigos 30.o e 31o do Tratado pressuporia o acolhimento de uma concepção um tanto pragmática e talvez verdadeiramente flexível da noção de medidas de efeito equivalente; noção que deveria adequar-se a uma apreciação da relevância dos eventuais efeitos sobre o comércio, não limitada a um curto período de tempo.

A inserção, no conceito de medidas de efeito equivalente, da consideração dos objectivos prosseguidos e ainda dos efeitos mesmo a longo prazo pode complicar a noção e torná-la menos clara, com o risco de uma menor eficácia da proibição. Por isso hesitamos em propor-vos a aceitação de tal inserção. No entanto, acreditamos que os objectivos ecológicos podem ser utilmente prosseguidos sem se correr o risco de enfraquecer a proibição das medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas; poderão mesmo ser prosseguidos talvez mais eficazmente evitando introduzir no sistema comunitário subterfúgios nacionais que poderiam na prática prejudicar até o efectivo exercício da competência comunitária no sector em causa.

No caso de, para evitar tais riscos, pretendermos basear-nos numa noção mais rígida, que conduziria a colocar a categoria de medidas em causa sob a alçada da proibição do artigo 31o do Tratado, deve-se examinar antes de mais se a cláusula derrogatória do artigo 36.o do Tratado não terá como efeito subtrair a essa proibição as medidas estatais restritivas da pesca, por finalidades justificadas de conservação do património ictíico. Esta norma admite derrogações às proibições de restrições quantitativas e de medidas de efeito equivalente por razões de protecção, entre outras, de vida dos animais ou de preservação das plantas. Na ausência de uma acção comunitária visando prosseguir aquela finalidade de preservação do ambiente natural, podemos perguntar-nos se essa excepção é válida para subtrair à proibição a acção unilateral dos Estados, que actuam a título puramente cautelar, na medida, evidentemente, em que as restrições aplicadas sejam necessárias e adequadas.

O artigo 36.o permite restrições quantitativas directas ao comércio entre os Estados-membros. Por maioria de razão poderá permitir restrições indirectas, como são, a duplo título, as limitações à pesca: indirectas, em primeiro lugar, porque actuam na «produção» e, além disso, porque não actuam directamente sobre as importações ou exportações. Com efeito, mesmo na medida em que as restrições em relação aos pescadores nacionais se aplicam directamente às quantidades de pesca que é permitido desembarcar nos Países Baixos, o comércio interestatal não está directamente em causa, uma vez que o peixe é considerado pelo direito comunitário como produto originário do país de matrícula e de pavilhão do navio de pesca [v. artigo 4.o, n.o 2, alínea 0, do Regulamento n.o 802/68/CEE do Conselho].

Tendo em conta os objectivos prosseguidos através da regulamentação internacional da pesca, de que as disposições internas consideradas constituem meras medidas de execução, pode-se definitivamente excluir que as restrições de que aqui se trata constituam um meio de discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada ao comércio entre os Estados-membros. As finalidades prosseguidas, mesmo tendo uma importante incidência económica, são de qualquer forma destituídas de qualquer efeito discriminatório ou proteccionista. Visam antes de mais a preservação do ambiente. Mesmo sob este aspecto estariam, pois, a ser respeitadas as condições de aplicação do artigo 36.o

Todavia, pode considerar-se que falta um elemento que diz respeito ao próprio espírito e à função própria desta cláusula derrogatória: isto é, falta o carácter verdadeiramente unilateral, limitado a um Estado, das medidas restritivas, o qual é consequência do carácter essencialmente nacional e interno de um Estado dos interesses que o artigo 36.o permite proteger. Como já se observou, as medidas consideradas só podem alcançar o seu objectivo se fizerem parte — como aqui acontece — de uma acção conjunta de todos os Estados que actuam na ampla zona de que aqui se trata. Isto mostra que, no caso em apreço, não existe um interesse particular de um Estado que se contraponha ao interesse dos outros Estados, ou seja, mostra que as medidas em causa prosseguem na realidade um interesse por sua natureza comum a todos esses Estados, e que é igualmente próprio da Comunidade, a qual deverá protegê-lo ela mesma substituindo-se aos Estados-membros.

A verificada necessidade de uma acção comum com o objectivo da protecção do património ictíico constitui mais uma confirmação do preeminente carácter comunitário da competência para agir neste sector, conforme o que está previsto nas disposições já referidas do Regulamento n.o 2141/70 e do acto de adesão.

Podemos igualmente relembrar o que observámos nas nossas conclusões no processo Dassonville: esta norma derrogatória permite a cada Estado-membro introduzir limitações à circulação das mercadorias em função da protecção dos direitos e dos interesses compreendidos na sua esfera de soberania. Poderá considerar-se como tal a limitação da pesca no alto mar, isto é, numa zona situada fora da esfera territorial não sujeita nem à jurisdição nem à soberania do Estado considerado individualmente?

Mas bastará esta exacta valoração do artigo 36.o e da sua função típica de dar aos Estados individualmente considerados uma protecção contra critérios comunitários de livre circulação mais genéricos para excluir a sua invocação no nosso caso?

Vimos que na regulamentação comunitária relativa à pesca existe uma lacuna, uma vez que ainda falta uma regulamentação para a protecção do património ictíico. A Comunidade, no exercício da competência que lhe é conferida nesta matéria, será previsivelmente levada a impor restrições do género das que são objecto das medidas nacionais de que aqui se trata. A acção de cada Estado visando o mesmo fim, na expectativa da acção comunitária, poderia ser considerada como dirigida ao objectivo da defesa necessária de um bem seu e que encontra também correspondência nos interesses dos outros Estados. Esta consideração de natureza substancial poderia talvez, não obstante as rigorosas objecções formais acima expostas, permitir invocar, ainda que apenas a título transitório, o disposto no artigo 36.o, que tem essencialmente como objectivo proteger bens fundamentais de cada Estado considerado individualmente, mesmo que não se trate de interesses próprios a contrapor a interesses comuns, mas de interesses próprios a proteger, na expectativa de uma defesa dos mesmos no mais vasto âmbito comunitário.

7. 

Todavia, apresenta-se uma outra possibilidade mais satisfatória no âmbito do sistema: a de invocar, em apoio da acção conduzida por todos os Estados-membros interessados na conservação dos recursos ictlicos do Nordeste do Atlântico (são, como se sabe, todos os Estados-membros excepto o Luxemburgo e a Itália, que não têm acesso directo a esses recursos), um princípio geral de direito que permite excepcionalmente a qualquer sujeito de direito agir no interesse de outros sujeitos, mesmo sem mandato, praticando actos a título cautelar. No direito público interno aplica-se tal princípio, por exemplo, à actividade do chamado «agente de facto».

No caso em apreço, haveria o obstáculo do carácter derrogatório, em relação a um princípio fundamental do mercado comum, das medidas restritivas estatais. A este respeito, já se tem sustentado desde há algum tempo na doutrina que mesmo uma acção estatal unilateral que derrogue disposições fundamentais do mercado comum poderia excepcionalmente subsistir na ordem jurídica comunitária, na condição de se tratar de medidas cautelares que correspondessem objectivamente a um interesse comum protegido pelo Tratado e de razões válidas terem excluído a possibilidade de ser adoptado um procedimento comunitário. Nesse caso, poderia considerar-se o Estado como tendo agido na qualidade de órgão da Comunidade, e a sua acção, correspondente ao interesse comum, poderia ser assumida por ela, eventualmente através da ratificação formal por parte da autoridade que, nos termos do Tratado, teria competência para adoptar essa medida restritiva na mesma matéria ou para autorizar a sua adopção por parte dos Estados (v. P. Gori, «Les clauses de sauvegarde des traités CECA et CEE», Heule, 1967, p. 274).

As dificuldades, que no início acentuámos, que a Comunidade terá encontrado no passado para fazer aceitar por determinados Estados-membros a sua plena participação na CPANE, a falta de definição de uma política sua e, portanto, de uma linha de acção precisa nesta matéria e, finalmente, a urgência de uma acção internacional para a protecção dos recursos biológicos da zona do mar em causa podem ser consideradas como razões válidas para justificar o acolhimento por parte da Comunidade, se necessário com reservas, da acção conduzida pelos Estados-membros no plano internacional e das consequentes medidas internas de aplicação, desde que tal acção corresponda a um interesse comunitário preciso.

Em 6 de Abril de 1976, decidindo de acordo com a proposta da Comissão, o Conselho adoptou disposições nesse sentido, sob a forma de regulamento, para dissipar quaisquer dúvidas sobre a admissibilidade, a título transitório, na ordem jurídica comunitária, dos compromissos unilateralmente assumidos pelos Estados neste sector. Por isso, a disposição autoriza expressamente os Estados-membros a manterem temporariamente, até 31 de Dezembro de 1976, as medidas restritivas das capturas das suas frotas de pesca, em conformidade com os compromissos internacionais que tinham assumido ou que estavam para assumir.

Não cremos que seja necessário, no presente processo, considerar a parte do regulamento relativa à eventual assunção de novos compromissos internacionais pelos Estados-membros considerados individualmente. Poder-se-ia talvez alimentar dúvidas sobre a regularidade de uma autorização em branco, sem qualquer determinação sequer de critérios orientadores gerais para uma eventual acção futura dos Estados destinada a desenvolver-se num âmbito que respeita de tal forma directamente às competências comunitárias e às matérias disciplinadas pela regulamentação agrícola comum.

No que respeita ao cumprimento dos compromissos assumidos, o único que aqui tem interesse, o regulamento pode assumir o valor, se for caso disso, de ratificação da acção dos Estados.

Este acto reconhece expressamente a necessidade, para fazer face a uma grave ameaça ecológica, da adopção por parte dos Estados, nas circunstâncias concretas, de medidas idóneas para controlar a pesca e implica a apreciação positiva pelo Conselho e pela Comissão da conformidade substancial com o interesse comunitário das acções conduzidas conjuntamente por todos os Estados-membros interessados na pesca na zona do mar considerada.

Nesta perspectiva, o «regulamento» do Conselho, com base num estado de necessidade, e tendo em conta a lacuna, que se mantém, da regulamentação comunitária no sector, permite a título excepcional e transitório a acção estatal em causa.

Isto basta para permitir salvaguardar tal acção na ordem jurídica comunitária e para justificar, portanto, as medidas estatais já adoptadas que limitam a pesca.

Mesmo que, evidentemente, daí não derive, nas relações com os Estados terceiros, a substituição automática da Comunidade aos Estados-membros que são partes na convenção em causa, tudo isto poderá servir, ao menos, no plano das relações entre a Comunidade e os seus Estados, para permitir a título transitório a eficácia das medidas nacionais na expectativa de uma acção directa da Comunidade que se substitua formalmente, mesmo no plano das relações externas, à dos Estados-membros.

É esta a solução que, em definitivo, consideramos ser a mais conforme ao sistema comunitário.

8. 

Tal conclusão torna supérfluo o exame das questões interpretativas respeitantes ao alcance da regulamentação comum do sector da pesca em relação às medidas nacionais do género das aqui em apreciação.

A este respeito limitar-nos-emos, pois, a algumas breves observações.

A Comissão salienta que a imposição de restrições quantitativas à actividade da frota pesqueira da Comunidade tem sobretudo como efeito. influir na formação normal dos preços do peixe e, portanto, perturbar o normal funcionamento do sistema comum de preços estabelecido pelo Regulamento n.o 2142/70. Por outro lado, o processo comunitário de decisão em matéria de preços tornar-se-ia extremamente difícil e delicado, a partir do momento em que o volume total da pesca fosse determinado por decisões adoptadas fora do quadro comunitário. Da limitação quantitativa poderá derivar ainda a possibilidade de um aumento das importações provenientes dos Estados terceiros. O sistema de quotas exerce, pois, mesmo sob este aspecto, uma acção sobre a própria política comercial comunitária.' No mercado interno da Comunidade, um sistema de quotas nacionais negociadas individualmente por cada Estado-membro teria incidência directa nas trocas intracomunitárias. Daí resulta, portanto, uma alteração das condições em que devem ser efectuadas as trocas no âmbito da Comunidade, de acordo com a política comum da pesca, que se baseia no princípio da liberdade do comércio em condições de concorrência leal, mediante a valorização da qualidade dos produtos.

A Comissão salienta igualmente que qualquer disposição nacional destinada a proteger o património ictíico está necessariamente ligada à política estrutural comum.

Todas estas interferências são inegáveis; e também é certo que a Comunidade, ao negociar acordos internacionais relativos à conservação dos recursos biológicos do mar, estará em condições de ter em conta, de forma mais adequada que os Estados-membros considerados individualmente, as exigências de funcionamento da regulamentação comum da pesca e as exigências e interesses da política comercial comum. É mais uma razão para desejar uma acção rápida da Comunidade a tal respeito, que se substitua às acções até aqui conduzidas pelos Estados. Mas, entretanto, tais acções, pelas razões já expostas, devem ser consideradas a título transitório como válidas, não obstante as restrições que comportam, directa ou indirectamente, actual ou potencialmente, para o normal funcionamento da regulamentação comunitária no sector da pesca.

9. 

Em conclusão, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelos dois tribunais dos Países Baixos declarando que a Comunidade tem competência para celebrar acordos internacionais regulamentando a pesca, mesmo com a finalidade de preservar os recursos biológicos do alto mar, mas que, enquanto tal competência não for efectivamente exercida, os Estados-membros mantêm a competência para assumir essas mesmas obrigações internacionais com o mesmo fim, sem prejuízo da questão da sua compatibilidade com as normas materiais de direito comunitário que disciplinam o funcionamento do mercado comum e, em particular, do sector da pesca.

As medidas nacionais que limitam a liberdade de pesca, em particular mediante a fixação de quotas, são susceptíveis de entravar o normal funcionamento da disciplina comunitária do sector da pesca estabelecida pelos regulamentos n.os 2141/70 e 2142/70 do Conselho e estão em oposição, em princípio, com a proibição de medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas ao comércio intracomunitário estabelecida nos artigos 30.o e 31o do Tratado CEE.

Todavia, no período que decorre até à definição de uma regulamentação comunitária idónea para prosseguir os objectivos e realizar as tarefas cometidas à Comunidade pelos artigos 1.o e 5.o do Regulamento n.o 2141/70 do Conselho e pelo artigo 102.o do acto de adesão, as medidas dessa natureza, desde que a sua adopção tenha sido urgente e necessária para a prossecução de uma finalidade de interesse comum, como é a protecção do património ictíico ameaçado de empobrecimento, e que introduzam restrições não desproporcionadas ao fim prosseguido, devem ser consideradas válidas e poderão portanto, ainda que apenas a título transitório, produzir plenamente os seus efeitos.


( *1 ) Língua original: italiano.